A fome de Elia Kazan pela revolução hollywoodiana não parou após cravar o enorme sucesso de Uma Rua Chamada Pecado. Após trazer à tona uma história que desconstrói o sonho da família americana e de arquétipos muito utilizados pela Hollywood Clássica até então, aproximando as narrativas ao espectador comum com uma abordagem trágica muito inspirada pelo Neorrealismo Italiano, Kazan iria muito além com Sindicato de Ladrões que até hoje é considerado como sua maior obra-prima
Retomando a parceria com Marlon Brando, Kazan dessa vez abordaria uma pertinente sobre a corrupção sindical que assombrava – e assombra até hoje, a vida do trabalhador. A polêmica do tema foi tamanha que motivou diversos sindicatos reais a moverem boicotes contra o filme, além de vários terem sido desmantelados por terceiros também motivados pelo tom inspirador da obra.
Crime Institucionalizado
A narrativa de Sindicato de Ladrões vem através do conceito original de Budd Schulberg trazendo a vida de Terry (Brando), um integrante relativamente novo do sindicato corrupto de estivadores do porto local. A mando de Johnny Camarada (Lee J. Cobb), líder dos sindicalistas, Terry chama Joey, um membro pronto a delatar a organização criminosa, para uma emboscada. Acreditando que Joey sofreria apenas um susto, Terry fica surpreso e horrorizado ao descobrir que seu amigo fora assassinado.
Descrente de que estava fazendo a coisa certa, pouco a pouco ele se afasta do sindicato e descobre um novo amor, Edie (Eva Marie Saint), a irmã de seu amigo assassinado. Ao se aproximar da mulher e do padre Barry (Karl Malden), figura totalmente contrária aos sindicalistas corruptos, Terry acaba se tornando o próximo alvo de seus antigos colegas.
Apesar de ir à fundo no psicológico humano como fez em Uma Rua Chamada Pecado, o foco de Kazan aqui é certamente monumental por bater de frente e denunciar um problema atual na época. Acima de ser uma ficção, portanto, Sindicato de Ladrões é um filme social – e um de alta qualidade. A começar, temos personagens interessantes, apesar de idealizados em maioria.
O mais complexo certamente é Terry que, em primeiro momento, pode enganar muito bem o espectador através do retrato brucutu, insensível e pragmático que Brando cria. Através do contato com Edie – essa sim muito idealizada como a personificação da bondade e martírio, Terry é transformado lentamente até perceber que sua vida cercada de falsos amigos é mais uma das mentiras que ele mantém para si mesmo.
A busca pela verdade é um tema trabalhado em aspectos micro e macro no roteiro de Schulberg, pois enquanto Terry encara terríveis verdades que o tornam um monstro, o padre Barry tenta convencer os estivadores negligenciados pelo sindicato a virarem delatores e denunciarem as práticas injustas que ocorrem no porto para a polícia. Apesar desse idealismo permear todos os personagens justos – principalmente com o padre, o roteirista se esforça para oferecer diversas características únicas para o romance de Terry com Edie.
Ocorre que ambos personagens são prisioneiros de alguma forma e encontram a liberdade através desse relacionamento marcado pelos contrastes, além do pérfido segredo que Terry esconde sobre ter sido o responsável, indiretamente, pelo assassinato do irmão da namorada. Como temos uma narrativa de múltiplos focos narrativos, muito da narrativa é diluído com cenas para dar prosseguimento na história.
Nessas sequências, Schulberg, através de diálogos expositivos, traz explicações sobre o modus operandi dos corruptos de forma similar a uma narrativa mafiosa, além de outras mostrarem o pesado impacto psicológico que o sindicato comporta contra todos os trabalhadores totalmente acovardados temendo pelo pior. Quando surge alguma fagulha de esperança, o terror da opressão logo surge através de cenas icônicas nas quais Kazan exibe as táticas cínicas e perversas do grupo.
A luz da catarse narrativa se dá em uma das cenas mais icônicas do longa, durante uma conversa tensa e repleta de emoções complicadas entre Terry e seu irmão mais velho, Charlie. Em apenas uma cena, o passado dos dois se torna extremamente relevante, além de justificar o constante estado de negação que o protagonista vive – há características de seu passado que poderiam ter tirado Terry de uma realidade nada agradável.
Com uma narrativa já bastante forte que até mesmo conversava com a vida pessoal polêmica de Elia Kazan, já era esperado que o diretor fornecesse um dos melhores desempenhos criativos de sua carreira. A começar, Kazan foge ao máximo das internas que marcaram tanto seu trabalho em Uma Rua Chamada Pecado. Aqui o que interessa é captar o realismo das locações e de cenários decadentes, frios e solitários nos quais Terry passa suas tardes.
Em um inteligente foreshadowing, Kazan mostra Terry e Edie no terraço do prédio onde fica o pequeno pombal do falecido Joey. Enquanto Edie se aproxima, Kazan mostra diversos enquadramentos com antenas estranhamente posicionadas em formato de crucifixos. A simbologia funciona em diversos níveis, já que é possível interpretar aquilo como um prenuncio de uma possível morte martirizada de Terry, da relação amorosa do casal ter iniciado sob o véu mórbido de uma morte e, por fim, sobre um sentimento da indústria, da morte do Cinema que a cada perdia popularidade para a televisão.
Apesar de abusar bastante da ótima trilha musical de Leonard Bernstein, Kazan também trabalha a poesia cinematográfica a nível sonoro – algo que é sempre muito de elaboração difícil. Em uma cena crucial entre Terry e Edie, Kazan utiliza os efeitos sonoros altos das buzinas dos navios que estão aportando, refletindo o desespero emocional de Edie ao descobrir uma verdade muito indesejada. É algo simplesmente magistral.
Com essa pegada neorrelista trabalhada através do elegante classicismo da linguagem cinematográfica hollywoodiana, o cineasta elabora um clímax particularmente magistral ao resgatar características próprias do protagonista, além de criar um embate físico entre o bem e o mal, do justo contra a injustiça, da liberdade versus a tirania. O uso da câmera subjetiva durante a caminhada final de Terry para um futuro melhor conquistado através de muita luta, apenas agrega ainda mais nesta cena histórica.
O Poder do Um
Elia Kazan conseguiu cravar duas obras-primas em questão de apenas poucos anos. O cineasta desafiou agora paradigmas da vida real ao denunciar as problemáticas envolvendo o poder dividido entre grupos de aproveitadores que parasitavam da força do trabalhador comum. Ele apenas prova, aliado de um rigor artístico impecável que viria a inspirar diversos outros filmes dos anos 1970, que a força e moral de apenas um indivíduo pode muito bem inspirar as massas para desafiar os falsos donos do poder.
Sindicato de Ladrões (On the Waterfront, EUA – 1954)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Budd Schulberg, Robert Siodmak
Elenco: Marlon Brando, Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger, Eva Marie Saint
Gênero: Drama
Duração: 108 minutos