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Crítica | Sully: O Herói do Rio Hudson

O cinema de Clint Eastwood não é fácil de ser definido, porém é uma obviedade afirmar que seu olhar atual está concentrado em histórias de grandeza humana – mesmo que ligeiramente romanceadas para a ficção. Seja um cantor disposto a sacrificar sua renda para ajudar um antigo amigo, um soldado enfrentando todos os horrores possíveis e além em uma guerra nublada, em um diretor do FBI e seus conflitos internos de sexualidade ou, agora, com um piloto desconhecido que salva 155 almas em uma manobra totalmente sem precedentes para um desastre aéreo.

Com seus 86 anos de vida de maioria relacionados ao cinema, não é surpresa essa profunda admiração de Eastwood pelos maiores feitos da vida e dos Homens na História. Obviamente, o roteiro de Todd Kormanicki busca adaptar os acontecimentos fatídicos daquele congelante dia de 15 de janeiro de 2OO9.

O Horror de Hollywood

De tempos para cá, tenho notado certas tendências no mercado hollywoodiano no que diz respeito ao storytelling. Muitas vezes, presumimos que a escolha de contar uma história já esteja definida no roteiro – e geralmente é mesmo. Em outros filmes como A Chegada, a decisão é tomada no processo de montagem.

O que pode marcar esse ano para o cinema americano é escolha interessante da não linearidade do texto. Se fossemos comparar em termos de estrutura narrativa, Sully e Deadpool, são filmes-irmãos, pois ambos se valem de diversos flashbacks para contar sua história. No caso de Sully, é algo ainda mais elaborado – e também simples.

Kormanicki e Eastwood já fazem uso direto da narrativa durante os créditos iniciais através de uma voz over, já indicando acontecimentos que logo veremos em tela. Como todo diretor que se preze, Eastwood já começa o longa com o pé na porta: com a sequência do pouso forçado. Porém, nisso, já há uma das brincadeiras da dupla com a estrutura do filme: o avião colide em prédio, explode e todo mundo morre – algo que o espectador já sabe que é inverídico.

Com esse começo eletrizante que se trata da sempre clichê sequência de sonho, o roteirista situa o espectador na narrativa de fato: o acidente já foi e acompanhamos o estresse pós-traumático de Sully em decorrência dos eventos. Esse estabelecimento da psique de Sully é a melhor característica que Kormanicki oferece em seu texto. O protagonista, de fato, é bem desenvolvido.

Dias de Glória, Sonhos de Desgraças

O principal foco do filme é centrado no contraste entre o feito heroico do piloto versus toda a investigação da NTSB, órgão responsável para formalizar o laudo de todo o acidente. Logo, é firmado um lado antagônico real e ameaçador – caso Sully seja considerado culpado, ele perde sua aposentadoria, e o antagonista criado pela própria paranoia do piloto que desenvolve uma certa quantia de apatia e tiques nervosos, além de alucinar em muitas ocasiões.

Tudo isso é traduzido com firmeza pelo talento de Tom Hanks. Ele encontra o tom do personagem humorado, mas de olhares pesarosos e incrédulos diante o milagre do acontecimento. Hanks faz seu Sully parecer perdido e isso é o maior acerto de sua atuação, de não sentirmos firmeza em nesse herói. É uma atuação subversiva que põe em cheque tudo aquilo que imaginário popular constrói para heróis carismáticos.

Esse é o segundo ponto principal do roteiro de Kormanicki: o choque de um homem comum diante da súbita mudança de rotina sofrida pelos diversos assédios vindos da mídia. Do anonimato para o rol das celebridades em questão de horas. Novamente, isso também é sintetizado através de encontros de Sully com estranhos e do seu contato com jornalistas, seja assistindo na televisão ou participando de entrevistas.

O roteirista usa essas sequencias para sintetizar o drama do personagem já que o grosso do desenvolvimento é muito baseado em solilóquios silenciosos, de isolamento e contemplação. Sully é um homem calado, simples e de pouca conversa. Os únicos diálogos que expõe ao público seu trauma são os que ele troca com o co-piloto e sua esposa.

Onde Kormanicki pode errar é na demonização dos investigadores que pendem muito para o lado apático e agressivo com Sully quase que ignorando seu feito. Outros personagens também são descartáveis, não conseguindo emplacar quase ninguém, além do protagonista.

Também há um incômodo no único flashback que acompanha outro período da vida de Sully, se concentrando em suas aulas de voo quando rapaz. É um tanto desconexa, mas nada que prejudique a fluidez da narrativa, já que o grande miolo do filme é concentrado em três enormes flashbacks.

O Homem com Nome

Eastwood, apesar da idade e de ter vivenciado tantos movimentos dentro do cinema hollywoodiano e mundial, é um dos cineastas mais versáteis de todos os tempos. O eclético diretor sempre se renova e encara qualquer desafio tendo dirigido faroestes, dramas diversos, filmes de esporte, de guerra e até mesmo musicais. O homem é incontrolável.

Um dos maiores presentes para qualquer cinéfilo é conferir a grandeza de suas obras que, paradoxalmente, sempre transmitem uma simplicidade tocante. Com Sully, Eastwood acerta novamente, se reciclando e até mesmo brincando com a linguagem cinematográfica graças às possibilidades geradas pelos flashbacks ordenados no roteiro.

Assim como em Sniper Americano, a pegada da direção segue calcada no realismo e na linguagem clássica, seja na construção de planos sequência ou na encenação. O plano que apresenta Sully é uma síntese brilhante para o que veremos se desenrolar na obra. Vemos um homem curvado envolto por um grosso vapor emanado da água quente do chuveiro.

É a representação perfeita de certo onirismo, já que é o único momento que o cinematografista Tom Stern utiliza iluminação barroca, amarelada de profundo jogo entre claro e escuro. É uma representação para um homem que deveria estar morto, mas que não está e agora tem que lidar com toda a pressão e trauma que curvam sua figura logo ali. Eis o poder do cinema bem pensado. Eis o poder do cinema de Eastwood.

Esse belo jogo de iluminação logo se dissolve na realidade, gélida e dura. Aliás, muito do clima de Sully é natalino, de certa forma – Natal em janeiro. Stern e Eastwood buscam tons dessaturados e monocromáticos, sempre flertando com tons cinzentos da cidade de Nova Iorque. A monotonia da fotografia chapada, pouco contrastada, é utilizada não somente para calcar o realismo tão desejado por Eastwood, mas para reforçar o contraste entre a euforia midíatica que ronda o protagonista com seu próprio estado de espirito amargurado. Novamente, é a síntese na imagem para construir Sully

Porém, o mais impressionante que Eastwood nos oferece aqui é a sequência do pouso-forçado. No caso, das sequências. O diretor reitera o acidente três vezes ao longo do filme. E em todas há um completo show de encenação e domínio sobre a linguagem.

Eastwood não aborda o evento sempre da mesma maneira, mas variando planos e mostrando mais detalhes cada vez que apresenta o acidente para o público. Há essa preocupação inteira em estabelecer o pré, durante e pós-acidente tomando diversos pontos de vista: piloto, tripulantes, passageiros, pedestres vendo o avião cair, do resgate e da mídia.

O mais impressionante, contudo, é a eficiência em deixar o espectador na beira da poltrona durante todas as cenas de pouso, como se esperássemos resultados diferentes de um acontecimento real. Impossível distanciar seu trabalho com o que Corra, Lola, Corra proporcionou para a linguagem cinematográfica e narrativa.

A elegância da direção se alia ao excelente desempenho dos departamentos de edição e mixagem de som que conseguem transmitir todo o inferno acústico que é um avião em plena queda – simulam explosões, fuselagem e avisos eletrônicos dos painéis exaustivamente e com precisão cirúrgica – deve render uma indicação ao Oscar nessas categorias.

Até mesmo na conclusão, durante o julgamento final de Sully, Eastwood escolhe fugir do convencional expositivo através diálogos cansativos. Mesmo que de forma didática e de mão pesada, as soluções visuais para conferirem o veredito da sessão são bem pensadas, também pelo contraste.

The Hollywood Finest

Sully é muito mais um filme-exercício de linguagem do que uma experiência comercial propriamente dita por conta das reiterações das sequências do pouso forçado que, com certeza, provocarão reações bem divergentes nos espectadores – é ame ou odeie, simplesmente. Todavia, não é uma obra para ser descartada principalmente por ser ter sigo gravada inteiramente no formato IMAX e, acredite, é um grande diferencial para esse longa – Eastwood pensa em enquadramentos majestosos para sintetizar Sully: seja em uma alucinação em um reflexo ou durante uma corrida noturna na Times Square.

Para quem admira o trabalho do glorioso Eastwood, não há recomendação melhor. E também vale muito a pena para aqueles que gostam de histórias de superação e estudo de personagem.

É um grande filme: na coragem e na execução para representar o feito heroico do homem comum sob o olhar de um homem extraordinário.

Sully: O Herói do Rio Hudson (Sully, 2016 – EUA)
Direção: Clint Eastwood

Roteiro: Todd Komarnicki
Elenco: Tom Hanks, Aaron Eckhart, Laura Linney, Anna Gunn, Mike O’Malley
Gênero: Biográfico, Drama
Duração: 96 min

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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