Há diversos defeitos e gostos duvidosos no cinema de John Cassavetes, porém é inegável que existe muita paixão em suas obras. A começar, as produções eram quase sempre bancadas pelo próprio diretor que constantemente trabalhava como ator para pagar seus filmes. Ou seja, totalmente independentes. Aliás, é bastante seguro afirmar que Cassavetes fundou o cinema independente americano com Sombras, seu primeiro longa.
Ao decorrer de sua carreira, ficou nítido que diretor buscava transpor o conceito do documentário de “cinema-direto”, ou seja, capturar “a vida como ela é” para a ficção com o auxílio constante de improvisações que tanto agregavam quanto prejudicavam seus filmes. O ápice de sua carreira aconteceria em 1974 com Uma Mulher Sob Influência, uma de suas poucas obras a conseguirem chamar a atenção do Oscar conquistando duas merecidas indicações.
Ocorre que este seria um dos longas mais “comportados” da carreira dele ao trazer um intenso drama sobre o casal Longhetti e seus três filhos. Tudo orbita a figura de Mabel (Gena Rowlands), uma mulher instável por conta de um distúrbio psicológico nunca revelado que lhe oferece doses de histeria e confusão mental diariamente. Como seu marido, Nick (Peter Falk), trabalha diversas horas por dia em construção civil e reparos urbano, a estranha mulher tenta encontrar seu papel na sociedade como mãe e dona de casa, apesar de sua condição psicológica.
Porém, quando as coisas começam a sair do controle e da “normalidade”, Nick começa a perceber que a imprevisibilidade de sua esposa coloca a própria família em risco, dificultando sua rotina desregrada. Esse fato desencadeia inúmeros conflitos que põem à prova seu amor por Mabel.
Mistério da Loucura
Apesar de hoje ser um enorme clichê e uma pergunta canastrona, Cassavetes elabora todo o roteiro de Uma Mulher Sob Influência na seguinte questão: afinal, quem é o mais louco? Obviamente que ele não pretende responder a pergunta, mas é inegável que a moral do longa seja esta. A verdade é que o primeiro ato do filme é estupendamente realizado.
Isso ocorre porque o roteirista segue um bê-á-bá bastante básico, mas estranhamente ausente em suas narrativas. Trabalhando com a rotina, ele nos permite conhecer de fato quem é Mabel. Inicialmente uma mulher equilibrada e boa mãe que zela pelos filhos, rapidamente essa figura é desconstruída quando ela experimenta a frustração de não poder dormir com Nick naquela noite. Descompensada, ela vaga sozinha pela cidade em busca de companhia e álcool até cometer, enfim, o adultério com um desconhecido que, posteriormente, ela crê que seja seu marido.
É nesse exato instante que o filme começa a mudar abruptamente e apresentar a realidade de que Mabel não é uma pessoa normal. Através da icônica cena do almoço/espaguete, vemos que a relação entre Mabel e Nick já está fragilizada tanto por conta das sandices da mulher quanto pela impaciência do homem. Com diversos amigos e convidados, Cassavetes permite o improviso que escala a um nível de excitação e entusiasmo para ser totalmente castrada pela reação de Nick contra os pedidos inofensivos de Mabel.
Logo é estabelecida uma relação na qual toda vez Mabel é agredida psicologicamente ou fisicamente por seu marido, sua situação mental deteriora consideravelmente até a ruptura completa de um ataque de nervos. O diretor então mostra duas diferentes loucuras: a do lunático pacífico e a do histérico violento, e como ambas são vistas pela sociedade. A mais desconfortável e indesejada é a de Mabel, pois mesmo que a mulher seja inocente e totalmente refém de sua situação, é uma personagem inconveniente com grandes lapsos de memória.
Ela só se torna agressiva quando encurralada e posta no limite, temendo uma internação. O mais belo de tudo isso é que não existe em si uma exposição explicita dessa evolução de loucura. Tudo vem através da ótima atuação de Gena Rowlands que até mesmo evidencia boas sacadas de Cassavetes como diretor.
O fato é que Uma Mulher Sob Influência foi idealizado como uma peça de teatro (e talvez funcionasse melhor em um). Portanto, quando há um grande aglomerado de personagens, as coisas fluem mesmo que em profundidade de campo ou fora de foco, afinal Cassavetes oferece apenas um olhar sobre a situação e não todos. Isso permite que atores, principalmente Rowlands, continuem criando e mergulhando a fundo em seus personagens.
Mesmo que bastante caricata e pouco sutil, a Mabel de Rowlands é muito interessante ao misturar diversos sintomas de distúrbios psicológicos para impedir o espectador de identificar qual é o problema que ela sofre. Há muita mistura de depressão, ansiedade, Alzheimer, bipolaridade, demência, TOC e diversos tiques nervosos que oferecem um retrato imprevisível e, ainda assim, amável para Mabel.
Com a abordagem explícita para sua loucura, o mesmo não acontece com Nick, o louco aceito e tolerado que também não tem ciência da sua própria loucura. Nick é um personagem que transita no limiar da hipocrisia através de seu descuido com os filhos ou pura irresponsabilidade, já que não sabe ser um pai para as crianças. Peter Falk cria um personagem de extremo que, por vezes, se torna cansativo, pois sempre está berrando ou sussurrando coisas inaudíveis. É algo teatral que enriquece o longa, mas acaba tornando muitas das discussões improvisadas totalmente artificiais – isso é muito mais grave no terceiro ato do longa.
Por conta dessas escaladas absurdas emocionais, Cassavetes não consegue realizar seu “cinema-direto” aqui, pois é nítido para o espectador toda a manipulação desses exageros repetitivos. Aliás, enquanto tudo é novo e interessante até metade do longa, o mesmo não pode ser dito para o que vem depois.
Isso ocorre por conta de diversos fatores. O principal deles é a repetição de pontos que anteriormente já haviam sido bem elaborados e concretizados como no caso do clímax narrativo no qual temos outra discussão eterna entre Mabel e Nick. O segundo mais importante é a completa falta de percepção de Cassavetes em notar que seu filme gigantesco não possui os elementos necessários para justificar a longa duração e do ritmo decadente que rapidamente se torna entediante.
A relação com as crianças nunca é desenvolvida fora do básico, além de termos diversas cenas desnecessárias que não agregam em absolutamente nada para edificar melhor o personagem de Nick já muito bem explorado até então. Em questão de poucos minutos, é fácil perceber que o filme passa a ficar redundante e fragilizado, não conseguindo o impacto de outrora.
Mesmo com a narrativa já debilitada, Cassavetes também não consegue inventar ou renovar a estética crua do longa para criar um visual mais interessante, apesar da trilha musical continuar poderosa. Trabalhando quase sempre no mesmo cenário, a técnica de sua direção se torna bastante mecânica e previsível, com uma repetição incomoda de enquadramentos – incluindo seus exageradíssimos close-ups, em conjunto de uma câmera na mão intrusiva. Ou seja, o melhor comando de Cassavetes na direção ainda é com seus atores que conseguem criar, enfim, um improviso que agrega na narrativa por uma quantidade satisfatória de tempo.
Sob a Influência de Cassavetes
É fácil apontar Uma Mulher Sob Influência como o melhor filme da carreira de Cassavetes. A estética crua mais comportada em conjunto com uma narrativa que permite o desenvolvimento de seus personagens (até certo ponto) tornam a experiência de assistir a esse drama realmente interessante, mesmo que se torne entediante no terceiro ato.
Através de performances assustadoras de Peter Falk e Gena Rowlands, temos um estudo histérico sobre a loucura conveniente e inconveniente, além de trazer retratos sobre a classe trabalhadora e seus respectivos matrimônios. Entre altos e baixos, muitos gritos e sussurros repletos de exageros, Cassavetes conseguiu criar sua obra-prima, mesmo que imperfeita.
Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence, EUA – 1974)
Direção: John Cassavetes
Roteiro: John Cassavetes
Elenco: Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper, Lady Rowlands, Katherine Cassavetes, Matthew Cassel, Mario Gallo, Eddie Shaw, Charles Horvath
Gênero: Drama
Duração: 155 minutos