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Crítica | Watchmen – 1ª Temporada – Quando o ar vira ouro

Os corações de todos os fãs, assim como as cobras de Alan Moore, se apertam quando surge mais uma conversa sobre adaptar a lendária graphic novel Watchmen para o meio audiovisual. Zack Snyder cuidou da tarefa hercúlea em 2009 com seu ambicioso e conciso filme em longa-metragem, mas Damon Lindelof e a HBO resolveram brincar com algo ainda mais perigoso: uma continuação para a história definitiva de super-heróis. Mesmo a DC, lançando prelúdios e crossovers paralelos, não havia tido a ousadia de mostrar o que acontece além daquele final perfeito. Mas aqui estamos.

Durante 9 episódios, o co-criador de Lost e The Leftovers ofereceu sua interpretação do material, chamando a HQ de Moore de “Velho Testamento” enquanto batizava sua série de “Novo Testamento”. Tendo a história completa em mãos após a exibição do episódio finai, fica bem claro que Watchmen foi uma série de TV perfeitamente atrelada ao material original, explorando suas próprias ideias no universo criado em 1985, e até mesmo realizando a proeza improvável de tornar a graphic novel base mais rica e complexa com suas adições.

Quando o primeiro episódio, “It’s Summer and We’re Running out of Ice”, começa, o espectador ainda não sabe o que esperar. É um bom piloto que introduz o novo universo, brinca com as referências ao quadrinho e estabelece um novo mistério com o assassinato de um chefe de polícia. Desde já, o roteiro de Lindelof e sua equipe começa a atualizar temas da HQ: se na década de 80 a paranoia da Guerra Fria e o medo do holocausto nuclear provocavam tensão, hoje temos a crise política bipolar e as questões raciais nos EUA (começar a série com o Massacre de Tulsa em 1921 é uma decisão poderosa). Colocar um grupo de supremacia branca, que se apropriou e deturpou os escritos de Rorschach em seu diário, é uma ideia excelente, tal como a discussão que se desenrola ao longo desses primeiros episódios – em perfeito alinhamento com o tipo de discurso que Moore estabeleceu em sua obra-prima.

Nesse universo, Lindelof é perfeitamente capaz de trazer figuras carismáticas e envolventes para movimentar os eventos. A principal delas, claro, é a Angela Abar de Regina King, uma ex-policial que atua como a vigilante Sister Night na força tarefa de Tulsa. A atriz vencedora do Oscar oferece uma performance forte e cheia de camadas, onde vemos as inseguranças e medos de Angela sempre à tona, mas também sua personalidade badass ao assumir o incrível traje de uma freira mercenária. Ao lado dela, também temos o melancólico Looking Glass do excelente Tim Blake Nelson, uma das figuras mais trágicas e interessantes desse novo universo – e sua conexão traumática com os grandes eventos de Watchmen rendem uma das imagens mais impressionantes do ano todo. Fechando a trinca, a Lady Trieu de Hong Chau garante uma das figuras mais enigmáticas e suspeitas da série, fruto da performance ambígua da atriz chinesa.

Mas então, Lindelof começa a revelar conexões cada vez maiores com a graphic novel. E é aí que Watchmen realmente se prova como a sequência definitiva para a HQ (e não o filme de Zack Snyder, isso precisa ficar bem claro), usando personagens como Laurie Blake, Adrian Veidt e o poderoso Doutor Manhattan de forma surpreendente e complexa. Jean Smart traz todo o humor e irreverência da antiga Espectral, agora bem mais cínica e sarcástica como seu pai, ao passo em que Jeremy Irons surge simplesmente brilhante como um Ozymandias mais insano e teatral, dominando cada segundo de cena. Para não entregar spoilers, basta dizer que, ainda que o visual tenha deixado a desejar, o intérprete do Doutor Manhattan fez um bom trabalho ao retratar a falta de emoções e alienação do personagem divino de forma convincente, mas ainda mantendo traços de seus sentimentos – algo que o filme de Snyder, por exemplo, pecou ao torná-lo completamente alienado.

Quando a série chega a seu sexto episódio, This Extraordinary Being, porém, vemos a conexão mais audaciosa com a série de papel. Usando uma ponta solta da HQ original, Lindelof trouxe uma história de origem para o misterioso Justiça Encapuzada, o primeiro vigilante mascarado do universo de Watchmen, e, partir disso, girou a maior parte dos acontecimentos da temporada em torno dele. Rodado em preto e branco e usando uma montagem complexa, o episódio é um noir pesado e assustador pela luta de um policial negro, que usa uma máscara para poder sobreviver, contra uma conspiração racista e de controle mental. É também a melhor análise e reflexão sobre o que faz uma pessoa usar uma máscara e assumir uma identidade anônima que a série foi capaz de oferecer – algo que pouquíssimas histórias do gênero, convenhamos, o fazem.

E não poderia deixar essa crítica passar sem falar do episódio A God Walks into Abar, que enfim explica como o Doutor Manhattan está conectado a toda essa história da primeira temporada. É o tipo de episódio movido inteiramente pela estrutura que seu roteiro aborda, que escolhe posicionar-se na forma como Manhattan enxerga o tempo: simultaneamente. Cada corte e mudança de tempo/espaço está relacionada à percepção com a qual o ser azul conta sua história, toda centrada em um diálogo com Angela em um bar. É simplesmente perfeito, e que também garante excelentes performances de seus intérpretes e uma direção segura de Nicole Kassell – que sabiamente esconde o rosto de Manhattan por quase 30 minutos através de uma mise en scene engenhosa.

A HBO trouxe grandes produções em 2019, e Watchmen talvez seja a mais surpreendente e satisfatória. São 9 episódios concisos e diferentes entre si, capturando o espírito da graphic novel de Alan Moore ao mesmo tempo em que a expande de forma audaciosa e inteligente. Watchmen, a série, faz o que Laurie fez com o Doutor Manhattan na graphic novel original: convencer todos nós de que milagres, como o ar se transformando em ouro, são possíveis de acontecer.

Watchmen – 1ª Temporada (EUA, 2019)

Showrunner: Damon Lindelof
Direção: Nicole Kassell, Stephen Williams, Steph Green, AndrIj Parekh, David Semel
Roteiro: Damon Lindelof, Nick Cuse, Lila Byock, Cristal Henry, Cord Jefferson, Jeff Jensen, Claire Kiechel, Stacy Osei-Kuffour, Carly Wray
Elenco: Regina King, Jeremy Irons, Jean Smart, Tim Blake Nelson, Yahya Abdul-Mateen II, Hong Chau, Don Johnson, Tom Mison, Sara Vickers, Louis Gossett Jr., James Wolk, Frances Fisher, Jessica Camacho, Andrew Howard, Jovan Adepo
Emissora: HBO
Episódios: 9

Duração: 50 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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