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Era uma vez… a velha Hollywood!

Quando se analisa uma obra de arte, muitas vezes incorre-se no despropósito de que a análise feita pelo sujeito exceda o conteúdo que a obra original lhe provém.  O crítico, ao discorrer sobre este conteúdo, acaba muito mais por revelar sobre si mesmo do que sobre o que analisa. Esta é uma discussão eterna entre os consumidores das obras, e que ganhou relevância com a arte moderna e a semiótica. A primeira, por separar a crítica do público comum, e a segunda por libertar a análise de uma base mais sólida, real, baseada em evidências.

A minha pessoa, particularmente, sempre achou estranho análises de um curta-metragem que tem mais laudas que as páginas do roteiro. Por outro lado, em um bar, não há quem não faça isso. Talvez seja um pouco o espírito deste texto. 

Como naqueles memes entre as pessoas/situações “Nutella” em contradição àquelas de “raiz”, o novo filme de Quentin Tarantino, Era uma vez em Hollywood, pode ser visto como um embate entre a velha e a nova Hollywood, entre a geração que saiu da Segunda Guerra Mundial versus a geração dos baby boomers. As pistas são várias. Há desde o embate físico entre estas pessoas como o embate sobre as visões de atuação, sobre os cinemas surgidos nesta época contra o cinema mais tradicional e as séries televisivas, e também sobre os valores.

Dentro deste ponto de vista, a personagem central do filme é Cliff Booth, interpretado por Brad Pitt. Cliff é a personificação exata da geração saída da Guerra (ele é referenciado como sendo um ex-combatente): leal, corajoso, íntegro, sem nenhum traço de politicamente correto e com um passado um tanto suspeito. Mais ainda: ele é um dublê, uma profissão sem glamour, mas que faz parte da base do cinema de Hollywood, aqueles que nunca aparecem, mas perfazem um serviço brilhante. Cliff é de uma lealdade de cão a Rick Dalton (Leonardo DiCaprio). Quando não em serviço, atua como um factótum do primeiro, indo desde motorista ao sujeito que realiza os serviços gerais, passando por ombro amigo nas crises existenciais do companheiro. Cliff, apesar de sedutor, não aceita uma proposta sexual da garota hippie por desconfiar que a mesma seja uma menor de idade. Quando visita o rancho de um antigo conhecido não hesita, mesmo em uma situação absolutamente adversa, em verificar se está tudo dentro da normalidade com o antigo comparsa. Cliff é a velha Hollywood e a velha geração, aquela que aguenta o tranco sem reclamar, sem agir de acordo com o politicamente correto. Ele sabe o que é o certo e o que é errado, e dane-se o resto.

É sabido que os anos 70 representam duas coisas em Hollywood. A proeminência da nova geração e a queda dos arcanos. A primeira é oriunda da universidade, a segunda do trabalho dentro do estúdio. Para a velha geração, a ética é a do trabalho. Para a segunda, a ética da ideologia. Na primeira, a ascensão na carreira se dá por etapas, dentro de um sistema hierarquizado. Para a geração da universidade, não há ascensão paulatina, o que vale é o talento, o sujeito pode dirigir um filme se o tiver, e é sabido que essa geração não teve muito escrúpulos em subir dentro do sistema.

Assim, os embates físicos de Cliff podem ser analisados neste nível. Cliff é o velho cara bom de briga e Bruce Lee o histrião dela. Nessa cena absolutamente hilária, Lee é o folgado que implica com o primeiro que aparece, que solta gritinhos antes da briga, teoriza sobre o assunto, mas na hora do vamos ver, quem “mete porrada” é Cliff. Quando no rancho, ante a covardia e criancice do hippie que lhe fura o pneu, e que lhe desdenha com um risinho irônico, Cliff o força a reparar seu erro trocando o pneu, de uma maneira absolutamente não politicamente correta. Os hippies, no filme de Tarantino, não são a geração inocente que a mídia retrata. São covardes, folgados, conspiradores. E isto Cliff não tolera. Esta briga entre a velha geração e a nova teve um caso clássico nos anos 70. John Wayne, ao saber que Dennis Hopper estava em uma determinada filmagem, toma um helicóptero e desce no set para tentar fazer com o ator hippie o que Cliff faz no filme de Tarantino.

Esteticamente, o filme de Tarantino é um pouco o antípoda dos grandes filmes atuais. Não há grandes efeitos especiais (são mais direcionados à reconstrução da época que como uma realidade alternativa), não há uma sucessão ininterrupta de cortes; ao contrário, há uma ênfase nos grandes movimentos de câmera, nos planos longos onde a atuação é valorizada, o filme é rodado em película, o jeito é antigo. É curiosa esta postura. Tarantino foi o enfant terrible do cinema americano nos anos 90, e hoje parece ser o guardião de uma tradição. No filme, é possível ver os antigos refletores Mole-Richardson de arco-voltaico e as gruas pesadonas.

Os refletores a arco, assim como a película, possuem saudosistas. Apesar de pesados, de logística complicada (era necessário um eletricista para cada refletor, para manter o carvão no tamanho correto, e altíssima amperagem para funcionamento), muitos ainda creem que era o refletor com a melhor qualidade de luz, pela sua óptica incomparável, já que era uma fonte de luz praticamente pontual, o que faz diferença como centro óptico perfeito. Já em relação às gruas antigas, jamais ninguém lamentou o seu enorme peso, o que prova que saudosismo tem limites do bom-senso, é claro.

Outra cena seminal dentro da diferença entre gerações cinematográficas é aquela em que DiCaprio conhece uma atriz mirim. O diálogo é curioso. Rick Dalton é o ator à moda antiga. Sem firulas, lê literatura de segunda linha, não se preocupa em se “preparar” para a cena. A garotinha, entretanto, é o oposto. Não quer almoçar para poder se dedicar completamente à cena, sua leitura é de nível erudito, ela possui todos os cacoetes intelectuais da nova geração. Desse modo, é possível traçar um paralelo entre a velha geração de atores e a geração Actors Studio. Antes do Actors, atuar em cinema era algo sem muita firula. Como Cliff na briga, Rick Dalton vai para o set de filmagem sem ficar horas se preparando e se concentrando, sem muito glamour.

Ele fuma, come qualquer coisa, cospe no chão. A garotinha não: precisa se concentrar, não pode comer para que isso não atrapalhe sua atuação, precisa se preparar intelectualmente para a “grande tarefa”. Assim como John Wayne, um republicano, rivaliza com Hopper, há um caso famoso das diferenças entre a velha geração e a nova pela visão de um diretor. Quando Alfred Hitchcock é obrigado a aceitar Paul Newman (um famoso discípulo do método do Actors Studio) para seu filme Cortina Rasgada, os problemas começam. Hitchcock, o cineasta da velha geração, não consegue entender o motivo pelo qual Newman não consegue fazer um olhar neutro em um close. O que o velho cineasta conseguia de um ator da velha geração como James Stewart ou Cary Grant facilmente, não era mais possível com um membro do “método”. Para piorar, Newman era informal, enquanto Hitchcock vestia terno para ir ao set.

Desse modo, Rick Dalton e Cliff Booth são a personificação da velha geração. O jeito de sair do usual era através do álcool, e não das drogas. Não havia frescuras, maneirismos. Havia lealdade, companheirismo. Rick Dalton, apesar de seu ego, não é uma estrela, fica deslocado e constrangido quando elogiam sua atuação. Dalton é o cara que saiu das séries, esse cinema “de base”. Sua carreira, no filme, é uma homenagem à de Clint Eastwood. Ambos saíram das séries e foram para o western spaghetti, ambos são à moda antiga. 

Também na fotografia do filme há uma espécie de homenagem às situações raiz na fotografia noturna. Nos anos 70, a ASA de um filme era 100. Assim, fazer noturnas era bem mais complicado que atualmente. E o negativo padrão era o mítico 5254 da Kodak, um negativo com grande latitude, grão fino e imagem contida. No filme, é possível ver, nas cenas noturnas, o fundo muito escuro, pois ao se filmar com ASA 100 e com um diafragma de f2.8 ou f4 este é resultado obtido. Compare as cenas de rua noturnas desse filme com as do Taxi Driver (Scorsese, 1976) e perceba que é muito similar em termos de fundo.

Outros filmes contemporâneos também usaram desse mesmo expediente, como o novo Suspíria, a Dança do Medo (Suspiria, Lucas Guadagnino, 2018) Além disso, a fotografia do filme é sem excesso de contraste e saturação, que era o padrão de imagem do 5254. Esse negativo era defendido por muitos fotógrafos “raiz”. O que ocorreu é que, depois deste negativo, a Kodak alterou o banho de revelação, tornando-o mais quente e mais rápido com o novo processo ECN-2 e o negativo 5247. O resultado do novo negativo e processo era, segundo muitos, inferior ao antigo.  

Juntando todos estes fatores, o filme pode ser visto como uma parábola do cinema e da sociedade americana da virada dos anos 60 para os 70. Isto não retira os outros enormes méritos do filme, como a liberdade narrativa em relação aos flashbacks, a reconstrução de época. Mas este texto se propõe a uma análise sobre uma ótica mais particular, menos analisada e mais do meu feitio. Apesar de eu ser oriundo da nova estrutura, e com ela da sua soberba (toda geração tenta destruir a antiga como uma forma de autoafirmação), com o passar dos anos despertei simpatia pela velha geração. Esta análise reflete um pouco disso.

A Hollywood antiga era mais ingênua e direta. O final de filme fecha a questão, quando Sharon Tate sai ilesa da carnificina perpetrada por Charles Manson. Ela termina o filme linda, simpática, grávida e salva. Ao brincar com a história e com o cinema, Tarantino, em seu filme, nos faz crer que a velha Hollywood tinha razão: que a vida nos filmes era mais divertida, lúdica e justa que na vida real.     

Texto de Adriano Soriano Barbuto

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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