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Ghost In The Shell | A Excelência do Anime de 1995 e do Filme Atual

Um Raro Acerto Da Hollywood Contemporânea

Na matéria que escrevi sobre as três versões cinematográficas mais famosas de A Bela e a Fera, embora tenha feito levemente, atentei para a queda das ambições artísticas vista de uma produção para a outra. Já no artigo em que comparei os dois longas metragens norte americanos feitos sobre os Power Rangers, fui muito mais enfático e disse que, ao realizar o atual remake, Hollywood não soubera aproveitar as principais características que fizeram do primeiro filme uma obra estranhamente original. Ainda nesse artigo, com veemência, constatei que o futuro da mais influente indústria do cenário cinematográfico mundial era tenebroso, pois estava aniquilando qualquer traço de originalidade e uniformizando as suas produções de uma maneira a fazer com que não sejamos capazes de distinguir A de B.

No entanto, como as surpresas desta vida nunca cessam de aparecer, quando fui assistir à versão live action e norte americana de A Vigilante Do Amanhã: Ghost In The Shell, sentei na cadeira com aquela incômoda sensação de que desperdiçaria duas horas acompanhando um tipo de filme com o qual já estava demasiadamente acostumado, mas, eis que, revivendo aquela emoção que encontra equivalência apenas quando o seu time do coração vira o jogo com um gol aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, fui tomado de surpresa ao ver o nível de excelência que o filme atingiu em cada um dos seus departamentos técnicos e artísticos, abrindo espaço até mesmo para Rupert Sanders, o diretor, imprimir o seu estilo e referências numa condução surpreendentemente autoral.

O Anime Japonês De 1995

A produção original – o anime japonês de 1995 dirigido por Mamoru Oshii e adaptado dos mangás criados por Masamune Shirow – chamou atenção em razão da sua animação inovadora, que misturava a técnica clássica com a computação gráfica; uma lógica visual que trabalhava com os conceitos do subgênero cyberpunk;  e a trilha sonora de Kenji Kawai composta por trechos de música ambiente e canções que remetiam ao passado cultural do Japão e de outros países como a Bulgária. Porém, acima disso, os verdadeiros responsáveis pela posição de destaque gozada por O Fantasma Do Futuro eram os seus temas, que iam desde questões como o papel exercido pela tecnologia nos dias de hoje até reflexões filosóficas acerca do Ser e da individualidade humana, passando por discussões políticas sobre autoritarismo e democracia.

Abordados numa trama relativamente simples e curta (o longa tem apenas 92 minutos de duração), esses temas propostos pela ousada narrativa do anime eram e ainda são amplamente fundamentados por discussões filosóficas de alto nível. Um número considerável de livros e romances sobre esses assuntos já foram lançados e devem ser averiguados pelo público para que haja um aprofundamento correto e enriquecedor nessas questões. Afinal, por mais que o longa tenha a coragem de propor reflexões de um elevado padrão filosófico, ainda assim, além de ter sido feito com a intenção de levar diferentes tipos de espectador aos cinemas (e que, talvez, não estivessem acostumados com esse nível de profundidade), o longa também é um filme de ação e, em decorrência disso, precisa alternar os momentos mais intimistas com aqueles dedicados ao desenvolvimento da trama principal.

A Versão Live Action De 2017

Essa realidade de propor a reflexão sobre assuntos importantes e não aprofundá-los a ponto de transformar a narrativa numa obra de tese é palpável no anime de 1995. Quando os créditos finais começam a subir, a sensação do espectador não é a de ter saído de uma cansativa explanação feita por algum professor de Filosofia e sim a de ter visto um filme corajoso que não teme ser uma espécie de espelho no qual o espectador enxerga o seu verdadeiro reflexo, com as distorções e tortuosidades típicas do comportamento humano. Sendo assim, não deixa de ser curioso que essa realidade, tão elogiada na época de lançamento do anime, ao ser repetida com perfeição e até mesmo ampliada pela produção atual (o filme de Rupert Sanders abre o leque de assuntos), tenha sido considerada pelos críticos como a maior falha cometida por A Vigilante Do Amanhã: Ghost In The Shell.

Pois, se há algo que vem sendo negativamente destacado pela imprensa nacional e internacional, além da polêmica acerca do tal whitewashing (como não possui nenhuma relevância artística, não entrarei no mérito dessa discussão), é a aparente superficialidade da obra. Na visão de alguns críticos, o longa atual não tem coragem de discutir as questões que levanta ou se aprofundar nelas de uma maneira intelectualmente elevada. Ora, mas não era exatamente isso que acontecia no anime de 1995? Assim como A Vigilante Do Amanhã: Ghost In The Shell, O Fantasma Do Futuro escolhe ser, deliberadamente, uma obra de arte com o intuito de propor reflexões e não de fazê-las no lugar no espectador. Ou seja, nos dois filmes, as tramas (embora tenham diferenças, elas são parecidas) são construídas com o propósito de engajar o público a se aprofundar em temas que, na insanidade do cotidiano, passam despercebidos. Em nenhum momento, os filmes tentam fazer aquilo que cabe a nós realizar.

Dessa maneira, tem-se também no filme protagonizado pela Scarlett Johansson a apresentação de distintos temas e assuntos para discussão: repetem-se as questões acerca da importância positiva e negativa que a tecnologia tem nos tempos modernos, do Ser e da essência da individualidade humana, das diferenças entre autoritarismo e democracia (com o adendo de que o problema dos refugiados e da imigração poucas vezes esteve tão em voga como nos dias de hoje) e de outros que ainda não foram mencionados e que estão presentes nas duas produções, como as diferenças de gênero, a possível existência de um alma ou espírito e a aceitação do próprio corpo como um elemento essencial para a formação de um indivíduo, além de outros que são uma exclusividade sua, como a dúvida sobre o poder que as lembranças têm de realmente definir o tipo de pessoas que nos tornamos. Tudo feito de uma maneira rica, clara e condizente com a natureza cinematográfica e comercial de uma obra realizada dentro dos moldes de um blockbuster. Assim, pode-se dizer que não há uma diferença fundamental entre as duas obras. Elas partem de pontos idênticos e atingem resultados muito similares. 

Os Elementos Técnicos De A Vigilante Do Amanhã: Ghost In The Shell

No entanto, se a constatação desse fato é suficiente para contradizer as injustas críticas que o filme vem sofrendo, ela acaba por levantar a seguinte pergunta: se as duas obras são parecidas e apresentam os mesmos temas, por que fazer uma versão live action do anime, além do óbvio interesse financeiro da empreitada? Essa dúvida, muito pertinente, é respondida por Rupert Sanders magistralmente: para partir de um arsenal repleto de inovações tecnológicas e referências cinematográficas e, assim, extrapolar as possibilidades visuais que na produção de 1995 estavam somente num estado latente de potência. Do ponto de vista técnico, aquilo que no anime era uma inovação no campo da animação, no filme atual, é a consagração do emprego de efeitos digitais para criar um mundo único, capaz de ser representado genuinamente somente no Cinema (a sociedade futurística de A Vigilante Do Amanhã: Ghost In The Shell é, juntamente com o amparo oferecido pela temática da obra, um universo verossímil e profundamente real).

Já do ponto de vista temático, o cineasta justificou a realização em live action do filme com o uso inteligente que faz de algumas referências cinematográficas. Chamo atenção para a forma como ele, ao lado do diretor de fotografia Jess Hall e o designer de produção Jan Roelfs, se apropria das luzes de neon e dos tons escuros (preto e cinza) e também de tons chamativos (azul e vermelho) para criar uma narrativa melancólica e chuvosa que se aproxima mais de Blade Runner – O Caçador de Andróides que do anime original. Para completar essa ligação do filme com a icônica obra de Ridley Scott, os sintetizadores presentes na execução das músicas trazem à memória a genial trilha de Vangelis. E, ainda em tempo, Sanders homenageia o maravilhoso Frankenstein de Mary Shelley, do Kenneth Branagh, ao empregar um plano contra-plogée e mostrar círculos (criação e morte) na cena em que Major é criada (como uma espécie de Frankenstein).

Ainda Há Criatividade Em Hollywood

A única justificativa possível para uma recepção tão negativa ao projeto atual é uma preguiça por parte do espectador na hora de enxergar os óbvios méritos do filme. Com a baixa qualidade vista nas mega produções lançadas anualmente, o público já se acostumou a não esperar muito dos filmes. E, quando é amparada por palavras negativas e injustas da crítica, essa falta de expectativa é reforçada e as pessoas veem na tela aquilo que já esperam ver e não o que a obra de fato é. Junta-se a isso a polêmica do whitewashing e o que se tem é um fracasso de bilheteria retumbante, mesmo que cada um dos frames do filme não justifiquem outro resultado senão o sucesso completo.

No entanto, ao final, depois de passar por todos esses “poréns”, extrapolando a discussão sobre os dois filmes em questão, fica a constatação de que, quando achamos que Hollywood não é mais capaz de entregar uma obra que se diferencie das outras e tenha os seus próprios códigos de realização e apreciação, os produtores, artistas e técnicos dessa máquina gigantesca de produção nos surpreendem, entregando filmes especiais e únicos. Embora ainda sejam raros, eles salvam o panorama atual da devastação completa. E, para aqueles que não concordam com esse meu relativo otimismo, recomendo que assistam a A Vigilante Do Amanhã: Ghost In The Shell. Se já o viram, peço que deem uma segunda chance, desta vez, dispersos dos preconceitos bobos e inúteis.

Redação Bastidores

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