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Crítica | A Vigilante do Amanhã – Ghost in the Shell

O que nos define como indivíduos? É o corpo que nos envolve? É a substância que vive dentro dele? Ou as memórias que criamos ao longo de nossas vidas?

Dirigido por Rupert Sanders (mais conhecido por Branca de Neve e o Caçador) e produzido pela Paramount Pictures, A Vigilante do Amanhã – Ghost in the Shell adapta a animação homônima japonesa de 1995 para as telas hollywoodianas. Com um histórico de péssimas adaptações de obras japonesas – do abominável Dragon Ball Evolution passando por uma versão medíocre de Old Boy -, será que esta nova versão americana consegue entregar um filme à altura do original?

Na história, Major, vivida por Scarlett Johansson, uma ciborgue de origem humana e comandante da força tarefa Seção 9 especializada em ciberterrorismo, é encarrega em uma investigação de atentados contra a vida de membros da empresa fabricante de robôs, Hanka Robotics. Essas investigações levarão ela a questionar seu passado obscuro e seu propósito como uma arma comandada pelo governo.

As Inevitáveis Comparações

Vamos primeiro tirar a principal dúvida sobre o filme: Não, a adaptação hollywoodiana não tem a mesma sutileza do original e não adapta literalmente as passagens do longa de 1995 (apesar de pegar muitos elementos e cenas, mas isso será detalhado mais à frente).

Desde a primeira cena, vemos a formação do corpo robótico de Major. Aqui, o filme já nos entrega em alguns diálogos pela doutora Ouelet (Juliete Binoche) e o presidente da Hanka Robotics, Cutter (Peter Ferdinando) que Major é vista como uma arma e uma maravilha tecnológica, sendo o primeiro caso de salvamento humano bem sucedido. O grande dilema da personagem é não conseguir lembrar claramente de seu passado, com glitches e bugs que sustentam elementos que Major não reconhece de suas memórias. Ao contrário da obra original, temos uma protagonista humana com um passado desconhecido, misterioso, se tornando o grande problema da trama.

Há elementos visuais muito parecidos com o desenho mas em contextos diferentes. Isso pode ser visto logo de início, com a cena de Motoko salvando um dos membros da Hanka Robotics de um ataque terrorista, enquanto na cena do original, Motoko está em uma missão que está investigando um suposto hacker, envolvido com o vilão Puppet Master. Elementos visuais e recriações de cenas tiradas do anime acontecem frequentemente e acabam dando imagens familiares mas não previsíveis para quem já assistiu ao original.

É interessante notar como a adaptação, em um aspecto generalizado, acaba tendo os mesmos problemas que a sua obra de origem. Para muitos, a animação de 1995 peca por sua superexposição em diálogos e conversas longas com termos tecnológicos que fazem pouco sentido para o público. Aqui temos a mesma quantidade exagerada de diálogos expositivos, mas que acabam cometendo um crime mais grave do que meramente tentar explicar conceitos científicos e tecnológicos, mas que acabam expondo de forma exagerada e redundante grande parte dos temas do filme. Um exemplo disso é a repetição quase cômica da comparação que os personagens usam para explicar a situação de um indivíduo sem uma identidade corpórea, um “fantasma sem uma concha”, como é repetido múltiplas vezes. Os diálogos se tornam enfadonhos e empalidecem a narrativa em relação ao original.

Admirável Mundo Cibernético

O grande mérito do filme é a construção de uma identidade visual própria, pegando emprestado elementos da animação de 1995, mas sem medo de desenvolver seus próprios conceitos. O filme esbanja cyberpunk desde seus primeiros segundos, se utilizando de uma belíssima sequência onde vemos o corpo robótico de Major sendo construído. Os tais ciberaperfeiçoamentos em humanos, capazes de melhorar o rendimento de órgãos e partes do corpo humano, criam imagens fascinantes frequentemente.

A computação gráfica é em sua maior parte muito bem executada. Em imagens arrebatadoras das fachadas da cidade, até pequenos detalhes como as mini-pulsações eletromagnéticas da roupa de Major, até a forma “líquida” que os hologramas se desfazem, mostram o nível de atenção que a produção teve para criar um mundo rico e complexo. Nesse aspecto, um ponto fora da curva no cinema hollywoodiano atual.

E não só pela bela fotografia e os visuais incríveis, mas a direção de Rupert Sanders, muito inspirada em Stanley Kubrick na forma como posiciona a câmera em algumas tomadas e o uso de alguns efeitos que chegam ao psicodélico, conduzem de forma a nos maravilhar ainda mais. A cada nova cena, Rupert parece ter uma carta na manga que nos surpreende visualmente com sua fotografia densa e sombria e os cenários que demonstram o contraste da cidade, com a fumaça saindo dos bueiros e a sujeira na parte pobre da cidade e o limpo e polido das partes nobres, muito tirada de outras obras como Blade Runner.

Blade Runner que, aliás, parece ser uma das grandes inspirações para a trilha sonora do filme. Flertando com o tema original de Ghost in the Shell, mas não se apoiando totalmente nele, une a sutileza das composições de Clint Mansell (conhecido por trabalhar com Darren Aronofsky em filmes como Réquiem para um Sonho e Cisne Negro), com claras inspirações ao som espacial e atmosférico de Vangelis. A trilha, apesar de esparsa, consegue adicionar ainda mais ao tom futurista e cibernético do filme.

E o que contribui ainda mais para a imersão nas cenas é o uso bem inserido do 3D, que aqui oferece profundidade a visuais (o efeito em slow-motion da água, o vidro estilhaçando de forma perpendicular à posição da câmera, etc) e não se torna um mero floreio visual e enriquece o mundo criado pelo filme. E apesar de certa escassez de cenas de ação, Rupert consegue muito bem conduzi-las, seja em locais fechados, como uma boate, até cenas em espaço aberto.

Human After All

A atuação de Scarlett Johanson como Major acaba virando um híbrido de uma interpretação robótica com emoções humanas que não funciona e parece não ter uma direção clara. Em alguns momentos Scarlett atua de forma a não esboçar emoções, como Hail Joel Osment em Inteligência Artificial, e em outros se torna extremamente emocional, expressando raiva e ódio. Isso acaba criando uma atuação que fica no meio termo: pouco capaz como uma personalidade robótica e forçando emoções humanas convenientes.

Apesar de uma interessante reviravolta acerca de sua identidade (ou o primeiro whitewashing justificado na história), Scarlett não apresenta elementos em sua performance profundos o suficiente para alcançar o nível esperado dos temas debatidos, e que acabam refletindo o problema do filme de se encontrar no debate de existencialismo que o original apresentava.

E isso acaba infectando alguns personagens coadjuvantes, já que em boa parte do longa eles contracenam com Major. Batou, interpretado por Pilou Asbaek, faz o seu melhor para dar personalidade ao personagem, mesmo não carregando o carisma necessário. Enquanto o lendário diretor e ator Takeshi Kitano parece atuar no automático em seu papel de Aramaki, líder da Seção 9. Sem a qualidade esperada do mestre do cinema japonês, ele parece estar ali para bater o ponto e representar o público oriental de alguma forma. Michael Pitt, o misterioso Kuze, traz uma interpretação interessante de um androide deformado, com bugs e tiques na sua fala, mas que não aparece o suficiente para se tornar memorável.

No geral, os personagens acabam empalidecendo em relação ao mundo tecnológico criado ao seu redor, se baseando em diálogos rasos e atuações pouco expressivas. No caso de A Vigilante do Amanhã, quem ganha é o mundo e não seus personagens.

Ao sair do filme, há uma sensação de vazio, mas não pela identificação com os problemas existenciais de Major ou com o dilema de uma identidade dualista, como o filme propõe. Muito pelo contrário. Em seus últimos momentos, o roteiro acaba caindo no erro de muitas produções hollywoodianas, com medo de dar uma conclusão digna ao tema debatido e se transformando um mero show-off de cenas e visuais maravilhosos. Melhor que a maioria das adaptações hollywoodianas de anime? Com certeza. Chega ao nível ou supera a obra original? Nem um pouco. Para um filme que bate tanto na tecla de um ser baseado nas suas memórias e na substância além da casca que o envolve, A Vigilante do Amanhã – Ghost in the Shell se torna a antítese disso, sendo uma maravilha superficial, mas sem momentos memoráveis ou algo que reúna as esparsas memórias visuais que o espectador terá após terminá-lo.

Veredito

A Vigilante do Amanhã – Ghost in the Shell é, como esperado, um clássico caso de adaptação hollywoodiana de uma obra estrangeira. Apesar de se esforçar para chegar ao nível filosófico e existencialista do original, falha na sua execução com um roteiro fraco e demasiadamente literal, além de personagens e atuações pouco inspiradas. Pegando partes da obra original, especialmente na réplica de cenas e visuais icônicos, não oferece a mesma sutileza da obra de 1995. É ainda um espetáculo visual, com efeitos incríveis e um mundo cyberpunk muito bem construído e que com certeza agradará os fãs do estilo. Mas que no final parece mais uma grande vitrine de seu gênero, nos mostrando por trás de uma camada de efeitos visuais algo que poderia se tornar, mas que nunca chega a seu potencial completo. Como muitas adaptações hollywoodianas, um filme visualmente deslumbrante, mas sem a essência do original.

A Vigilante do Amanhã – Ghost in the Shell (Ghost in the Shell, EUA – 2017)

Direção: Rupert Sanders
Roteiro: Jamie Moss, William Wheeler e Ehren Kruger
Elenco:  Scarlett Johansson, Michael Pitt, Pilou Asbæk, Chin Han, Juliette Binoche
Gênero: Ficção Científica, Drama
Duração: 106 min.

Redação Bastidores

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