Dona de uma arrecadação superior a US$ 7 bilhões, o que chegou a render a J. K. Rowling R$ 17 por segundo, a saga Harry Potter é um sucesso econômico. Sendo, portanto, um blockbuster, a obra sobre o pequeno bruxo é facilmente vinculada à indústria cultural, manifestação marcada por alienação e superficialidade. No entanto, a narrativa do universo de Hogwarts apresenta elementos que escapam a essa rotulação simplista e até explicam o seu sucesso. Vejamos alguns desses ingredientes que nos ajudam a gostar de Harry Potter.
1. RECRIAÇÃO DO AMBIENTE ESCOLAR
Harry Potter gira ao redor do ambiente escolar, o que ecoa nos dois tipos de público da saga: jovens e adultos. Os de pouca idade veem a realidade em que estão inseridos. Os de avançada faixa etária relembram o universo de que um dia fizeram parte. Nesse sentido, assistir a essa produção é ser agraciado com o fator “boyhood”: acompanhamos o crescimento das personagens da fase infantil até a adulta. Manifesta-se assim a encantadora magia do ciclo da vida. No entanto, vale a pena assistir a Harry Potter não apenas pela recriação do universo estudantil. Sua narrativa mostra-nos que a escola é um microcosmo que reflete a sociedade, entendida, pois, como macrocosmo. Dentro dessa lógica, é valioso notar como tudo, até o último momento, pode ser benéfico para pontuar e produzir uma virada importantíssima de jogo. Assim é a vida. Outro ensinamento é proporcionado pela convivência com diferentes tipos de professores, do mais severo ao mais tolerante, do mais afetivo ao mais narcisista. E os meninos aprendem – assim como nós – que temos de conviver com essa diversidade, já que não conseguiremos (e nem deveremos) modificá-las.
2. VALORIZAÇÃO DE DIFERENTES INTELIGÊNCIAS
Já a partir de Harry Potter e a Pedra Filosofal aprendemos mais uma lição sobre aceitação de diferenças: a resolução de todos os conflitos terá a contribuição de diversos tipos de inteligência. É bom dominar as matérias escolares, mas isso não é suficiente para se alcançar o sucesso. Fazem-se necessárias outras habilidades, muitas delas nada convencionais. Em outras palavras: tanto a superdotada Hermione Granger quanto o limitado Ronald Weasley são importantes para a vitória diante das forças malévolas da vida.
3. AVENTURA JUVENIL SEM ASSEPSIA
Por gravitar ao redor do universo escolar, a saga Harry Potter mostra-se como uma aventura juvenil em que entram em ação questões como construção, defesa e aceitação de identidade, valorização da amizade e solidariedade, busca de um papel no mundo. No entanto, todas essas problemáticas são abordadas de sem disfarces, sem assepsia. Infelizmente, há um costume de se achar que tudo o que se dirige à infância e à juventude deva ser pasteurizado. Harry Potter, mesmo sendo uma fantasia bonita, não imbeciliza seu público, pois não esconde os aspectos negativos da vida. No entanto – eis aí mais uma vantagem –, não exibe o lado sombrio do ser humano de forma sensacionalista ou mesmo sádica. É sadiamente sincero.
4. CRÍTICA SOCIAL
Classificar Harry Potter como blockbuster ou mesmo popcorn movie é bastante plausível. Ainda assim, essas qualificações não permitem que se veja essa saga como mero entretenimento alienado. Há nela uma crítica a mecanismos de funcionamento da sociedade. A maneira como os integrantes de Gringotes são descritos metaforiza o setor financeiro, no qual se deve confiar sem esperar humanidade. A luta dos Malfoy em defesa de um ideal de sangue puro é uma referência ao nazismo. A fama de Gilderoy Lockhart, descolada da realidade, simboliza o que acontece a muitas celebridades da mídia e das redes sociais. A frase do ministro da magia (“Vivemos tempos sombrios”) é uma alusão à atualidade, em que a imprensa se mostra (propositalmente?) cega ao tratar heróis como vilãos. Dolores Umbridge representa um sistema em que educadores preocupam-se não com a formação de indivíduos, mas de sujeitos que não coloquem em risco um Estado totalitário.
5. HISTÓRIA EDIFICANTE
Apesar de tantos ingredientes negativos, Harry Potter não é uma história depressiva. Há elementos realistas e até mesmo sombrios, mas nenhum dos livros ou filmes assume uma visão niilista, desencantado com a espécie humana. Ainda assim, não se cai também na pasmaceira de um discurso conformista, muito menos de alienação hedonista. A narrativa do bruxo mirim assume um antigo papel das artes, que é o da busca de engrandecimento humano. Na presente obra, tal se dá por meio da valorização da amizade.
6. INTERTEXTUALIDADE COM A CULTURA OCIDENTAL
Já no título da primeira obra da saga Harry Potter há uma referência a um dos grandes mitos da Idade Média: a pedra filosofal. Esse é um entre tantos exemplos de intertextualidade, processo por meio do qual a obra de Rowling sai enriquecida pela releitura do repertório cultural ocidental (basilisco, grifo, sereias, dragões, fênix). Esses ingredientes, inseridos na narrativa, ganham novos significados, ao mesmo tempo que inspiram o público a ir em busca dessas fontes. Assim, a saga Harry Potter acabou valorizando a linguagem escrita, depósito de todo esse repertório cultural, aumentando o número de leitores pelo mundo. Detalhe: o poder de Rowling no processo de intertextualização é tão forte que ela até criou uma nova narrativa-fonte para a sua saga: Os Contos de Beedle, o Bardo.
Para mais informações desse processo de intertextualidade no campo da mitologia, vale a pena ler o artigo de Thiago Nolla.
7. ORAS! É UMA BAITA NARRATIVA!
Todas essas explicações tornam-se inúteis quando se tem em mente um fato simples e inquestionável: Harry Potter é uma baita narrativa! O curioso é que essa característica é observada tanto em cada livro/filme isoladamente como também no conjunto da saga. Ao acompanhar essa atualização do tema da jornada do herói, tornamo-nos mais e mais humanos. Rimos com meninices, temos raiva de injustiças e preconceitos, sofremos com perdas irreparáveis, torcemos por nossos protagonistas, sentimos orgulho pela nobreza de caráter deles, sentimo-nos recompensados pelas vitórias. Enfim, vivemos de forma mais completa.
Texto escrito por Laudemir Guedes Fragoso