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Análise | Assassin’s Creed: Unity

Quando “Assassin’s Creed Unity” foi anunciado, fiquei atônico e bastante empolgado com a possibilidade que o novo cenário histórico iria oferecer em termos de narrativa e gameplay, rapidamente se tornando o mais esperado da leva de 2014. Entretanto, o que recebi na época, foi um jogo parcialmente quebrado em termos de funcionalidade técnica, com uma história e personagens pouco inspirados e baixa inovação. De fato, até hoje alguns desses problemas ainda persistem porém, com uma segunda olhada, mais atenta dessa vez, para escrever a presente análise, e tendo jogado outros 3 jogos da franquia simultaneamente, fui capaz de perceber coisas que antes havia deixado passar batido, talvez pela sensação constante de decepão.

Nunca pensei que diria isso mas sim, “Unity” é um caso de jogo subestimado. Possui problemas devido majoritariamente ao fato de ser bem ambicioso mas, por conta da obrigação de a empresa entregar o game em determinado período para preencher os lançamentos que se tornaram anuais (até 2015), sofreu com sua própria ambição. Analisemos mais ao fundo os pontos.

Primeiramente, é válido mencionar que a empresa ouviu as reclamações em relação ao fato de a franquia estar perdendo a sua alma depois do lançamento de “Assassin’s Creed III” com seu elemento sandbox grandioso e “Assassin’s Creed IV: Black Flag” com seus combates navais em enorme escala – focado mais em ser um jogo de piratas, excelente por sinal, e se esquecendo do elemento “assassino”. O objetivo aqui era retornar às raízes.

Saem os navios, saem até os cavalos e retornam a exploração vertical e o gameplay stealth com todas as forças. Uma melhora absurda, se comparado com os anteriores, acompanhada de uma ideia genial, diga-de passagem, trata-se do sistema de evolução, similar à de um RPG, do protagonista com direito a árvore de habilidades. Características, modos de ação, combate, saúde, armas, armaduras e outros equipamentos vão sendo conquistados, melhorados ou personalizados conforme o jogador vai aumentando de nível ao ir jogando missões da campanha ou paralelas. Some-se a isso a inteligência artificial estar mais agressiva – mesmo que ainda burra – e de inimigos atacarem em grupos mais numerosos e temos o jogo mais difícil da série. O combate, redesenhado para o estilo esgrima, só ajuda no feito.

“Unity” foi o jogo da série que mais me senti verdadeiramente como um assassino, sendo desafiado e tendo que repensar várias estratégias ao longo da campanha e do multiplayer durante missões de invasões por normalmente acabarem com um punhado de inimigos à minha volta sem eu ter todos os atributos para derrubá-los – a mecânica não é tão facilidade quanto a série Arkham – resultando em fuga. 

Os méritos não param por aí. Antes as missão de assassinato dentro de  um determinado espaço estavam limitadas a uma certa área de ação desse espaço. Agora, a área de ação é bem mais abrangente, fornecendo várias possibilidades diferentes de chegar do ponto A até o F, ao invés do B. Portanto, nesse aspecto, podemos ver que a identidade primária da franquia foi sim, reconquistada. Fora as missões normais de história, temos ainda a possibilidade de intervir em situações mundanas geradas aleatoriamente por processamento – como em uma briga ou assalto, a já tradicional caçadas a tesouros e objetos valiosos de arte e os objetivos dos estabelecimentos privados, resgatando o financiamento da “Trilogia Ezio”, permitindo até ao jogador dono de bares e restaurantes. Os enigmas de Nostradamus são outra afiada adição para se investir mais algumas horas na jogatina. Há simplesmente muito o que fazer.

O problema na jogabilidade vem do fato das mecânicas não estarem 100% funcionais – mesmo com os movimentos extremamente fluídos do protagonista – ocasionando pulos para locais errados, cover ou saída de cover em momentos inoportunos, subidas e descidas equivocadas, problemas de colisão… erros usuais na série mas um pouco ampliados aqui por conta do teste das novas possibilidades. 

Como mencionei no primeiro parágrafo, em seu lançamento, “Unity” contou com inúmeros problemas técnicos, com vários bugs e glitches que se não a chegavam a comprometer a imersão ou experiência do jogador, o fazia rir de forma involuntária, com alguns virando verdadeiros memes. A queda na taxa de quadros também era um problema grave, com casos que a jogatina de alguns se manteve por um tempo nos 15 FPS, não conseguindo passar disso. É inaceitável que um game de supostamente 3 anos de produção chegue às lojas em tal estado, mesmo com o altíssimo número de NPCs na tela, a interação do jogador com o ambiente e com os próprios transeuntes é baixa, não justificando o acontecimento.

Porém, como estou analisando o game em seu estado atual, posso dizer que, através dos patches e atualizações disponibilizadas, o produto roda tranquilamente sem grandes engasgadas e com a presença de bugs mínimos comuns em qualquer mundo aberto.

As missões da campanha e paralelas se não variam muito no objetivo, o fazem na sua execução. E, agora, com o novo formato de modo multiplayer cooperativo em que 4 jogadores cumprem juntos missões carregadas de conteúdo histórico que, depois de um tempo, para alguns, podem se tornar monótonas, a gama de possibilidades, antes inexistentes na série, aumentam. Os novos trechos das “falhas no Animus” também são uma ótima adição. Nelas, o protagonista viaja para outras épocas temporais do mesmo local, desde a Idade Média a Segunda Guerra, passando pela construção da Estátua da Liberdade e uma sensacional escalada a Torre Eiffel. 

Algumas novidades como a “Phantom Blade” (Lâmina Fantasma) também são bem vindas para contribuir ao fator stealth possibilitando o jogador utilizar as mecânicas de uma besta para atirar a longas distâncias. A navegação no mapa também recebeu melhorias com as novas mecânicas de “Parkour Up” e “Parkour Down”, tornando as escaladas e descidas nos edifícios, mais fácil, com o jogador aprimorando seus movimentos de parkour ao longo o jogo. Quanto aos trechos no presente, toda aquela urgência de que algo grande irá acontecer se perdeu. Não há mais personagens e arcos interessantes, apenas a câmera em primeira pessoa ouvindo instruções de terceiros.

E então chegamos aos gráficos. Provando de uma vez todas que é capaz de criar mundos abertos orgânicos em qualquer localidade ou época, a Ubisoft mais uma vez mostra que fez a lição de casa entregando um visual avassalador. A Paris do final do século XVIII beira a perfeição. Não podia segurar a ansiedade para a minha primeira sincronização do alto de uma construção para observar a beleza do mundo desenhado, gerando momentos que me fizeram escorrer lágrimas tamanha satisfação de ver algo tão belo e fiel. A vista da recriação externa e interna e da escala da Catedral de Notre -Dame foram um desses momentos. 

Dava prazer de parar em uma edificação só para observar as texturas, o mármore, a madeira, a vidraça, os vitrais – observe o trabalho de iluminação neles. Um marco. Nem “The Witcher 3: Wild Hunt” conseguiu superar a qualidade visual que Unity apresentou 7 meses antes. Até mesmo as roupas de Arno – a melhor e mais bonita para um assassino na série, junto com a de Connor – são um primor em fluidez de movimentação e design refletindo bem a personalidade do protagonista e de seu país.

E agora vamos aos dois pontos finais, um que causou a minha maior decepção e o outro o meu total deslumbramento.

A história de “Unity” não é das mais originais e tem um rumo e finais bem clichê. Entretanto, o contexto muda tudo. Antes de partir para a análise mais profunda e incisiva sobre a proposta de retratação do período do jogo, vou focar superficialmente na narrativa e nos personagens. 

A premissa de um jovem rebelde que tem sua família assassinada e resolve buscar vingança enquanto treina pela Ordem dos Assassinos, descobre intrigas políticas e luta por um bem maior, não é nova. Na verdade, muita coisa aparenta ser reciclada diretamente de “Assassin’s Creed II”. Até o caso de amor tão perto e distante ao mesmo tempo já foi retratado. Isso não seria um problema se o desenvolvimento fosse bom. Mas não é o caso. Arno Dorian, o novo protagonista, muda sua forma de agir e pensar de forma brusca demais. Jamais é suficientemente explicada como a sede do personagem por querer matar Templários se deu em determinado espaço de tempo. Os lapsos temporais no início também não ajudam. 

Não há uma conexão emocional com o jogador em relação a luta de Arno, a morte de seu pai e padrasto e ao romance com Élise. Acontecimentos e objetivos vão e vem. Falta “momentum”. Também há uma carência por coadjuvantes com mais substância e presença. Dentro da Ordem dos Assassinos, por exemplo, apenas Pierre Bellec, o carismático mentor de Arno, se sobressai, rendendendo uma ótima reviravolta, mesmo que previsível, porém não tem suficiente espaço em tela. O mesmo vale para os personagens históricos. Marquis de Sade, Napoleão Bonaparte, Charles Sivert, Maximillien de Robespierre, todos subaproveitados, nunca atingindo o status de um Leonardo DaVinci. 

 

Sobra para a Élise segurar a onda dos coadjuvante seguindo a história “Romeu e Julieta” com Arno por ela ser uma templário e ele, um assassino. Conceito bem interessante, aliás é inédito até então, mas pouco aprofundado, sendo melhor aproveitado através das entrelinhas e detalhes. Por mais que Élise tenha uma personalidade forte, as cenas em que aparece sempre são no mesmo tom e com a mesma variante de diálogos ou atividades, nunca fugindo do padrão, perdendo o seu apelo em determinado momento.

Além disso, momentos cinematográficos prometidos em trailers não estão presentes. Se lembra da invasão popular a um dos castelos ao som de “Everybody Wants to Rule The World” no trailer da E3? Não há momentos assim aqui. Os que mais se aproximam disso são trechos que acompanham a fuga de Arno da prisão durante a famosa “Queda da Bastilha”, a escapada de um incêndio e um passeio a balão com Élise. A falta de epicidade em momentos mais complexos talvez seja a opção da Ubisoft de dar um trato mais intimista por parte da história ao contexto histórico. E é aí que entra o segundo ponto em que eu queria chegar.

Saindo da crítica a história previsível com desenvolvimento mal ajambrado, podemos entrar na análise do ponto que talvez seja o maior mérito do jogo junto de seu visual. Mas antes, uma reflexão.

Perceberam como Arno não foi tão bem recebido pelos jogadores? Já pararam para pensar qual seria o motivo? Ele é bem dublado? Sim, nas três versões que joguei. Ele é carismático? Sim, possui uma personalidade fácil de cair no gosto popular do sujeito boa pinta. Tem bons diálogos? Sim, bem humorados e ácidos. Enfrenta um conflito interno? Sim, fortíssimo, tanto quanto Connor. Ele é um badass? Não. E talvez aí esteja o maior problema, ele é um personagem humanizado, assim como Connor, que também não caiu no gosto popular. Se notarem, alguns dos personagens mais icônicos da história dos games são sempre os badasses, às vezes unidimensionais. Exemplos não faltam, Ezio, Nathan Drake, Marcus Fênix, Kratos, Capitão Price… 

Desenvolvimento nem sempre pode significar humanização de tal personagem. Se Ezio foi plenamente desenvolvido em sua trilogia, não dá para dizer que ele foi humanizado. Todos os contratempos, físicos e emocionais que chegavam para ele, eram resolvidos sem grandes dificuldades. Um personagem pouco vulnerável. Arno é o oposto disso, o personagem que erra o tempo inteiro, o mais suscetível a dúvida, o mais conflituoso, afastando da preferência do público que talvez não tenha amadurecido nesse sentido. Alguns o acham raso, eu acho o contrário, trata-se de um assassino imaturo e ingênuo que sempre se vê como uma bola de pingue pongue no meio da história, cheio de incertezas mesmo tentando ser um convencido – rendendo um excelente momento na campanha que ele abandona o manto. Creio que se ele fosse realmente bem desenvolvido como deveria através de um planejamento melhor de montagem de eventos e construção de catarse, estaríamos diante do melhor protagonista da série.

Ok, agora podemos entrar diretamente no tal ponto. Qual o motivo de Arno estar em conflito? Bem, trata-se da decisão mais corajosa da Ubisoft – e talvez de qualquer desenvolvedora – na história de sua existência de retratar o período da Revolução Francesa pela perspectiva histórica que lhe é devida – gerando até a fúria de alguns políticos franceses. Enquanto alguns chamam de “visão conservadora” ou “contra revolucionária”, eu gosto de chamar de versão dos fatos. É de conhecimento de vários estudiosos que a Revolução Francesa trata-se, assim como tantos outros como a Inquisição, de um período moldado erroneamente por outros estudiosos, intelectuais e governantes como maniqueísta na base da pura e simples mentira e ocultação de fatos.

A palavra revolução sempre induz a um certo desconforto mental reflexivo, e com razão. A Francesa, no caso, acabou levando ao Terror e à ditadura napoleônica e a Bolchevique, que em poucos meses, degolou mais inocentes do que décadas de regime czarista.

Para entender o quadro, é necessário um paralelo com a revolução americana – esta que Gordon S. Wood descreve tão bem em seus livros. A diferença dos revolucionários americanos para os franceses é que os americanos não eram revolucionários impetuosos e violentos, constituindo o que Gertrude Himmelfarb chamou de “revolução relutante”. Diferentemente da francesa, a americana arraigou as suas reaquisições na tradição constitucional britânica da Magna Carta, abstendo de planos abstractos sem raízes no passado e na experiência acumulada ao longo das gerações, firmes na penetração de âmbito nacional do novo regime republicano que iriam fundar.

Além da revolta contra a expansão do poder estatal, os colonos americanos lutavam pelos direitos do homem comum, em detrimento de uma visão mais aristocrática européia, alimentando a ideia de que o mérito valia mais do que o berço. Uma poderosa ideia, da igualdade perante as leis, do “self-made man”, tão bem captada no panfleto famoso de Thomas Paine que inflamou a nação. 

Eles foram aptos de equilibrar o otimismo esperançoso de liberais como Paine e Jefferson com o ceticismo conservador de John Adams. Procuraram harmonia entre o extenso processo de descentralização de poder e uma determinada medida de permissão pragmática à esfera central, instigando o patriotismo dos americanos. Assentaram realce no homem comum, mas não jogaram no lixo a importância das elites, e sempre desconfiaram da democracia popular sem freios institucionais.

Ou seja, mesmo revolucionários, não havia entre eles um desejo de ruptura drástica com a cultura predominante na Inglaterra como houve nas demais revoluções. Não era subversiva. Um dos motivos porque somente esta deu certo. O conservador Edmund Burke realizou um exame de contexto, na véspera, em 1775, alegando que os americanos “temiam o desgoverno a distância e farejaram a aproximação da tirania em toda brisa maculada”, e, por isso, teriam antecipado o sofrimento antes que ele os atingisse.

Com o intuito de subversão de valores e cultura enraizado, a Revolução Francesa, de viés coletivista, não se sustentou sem a inevitável tramontana de durar e acabar da mesma forma selvagem que foi concebida. Autores como Simon Schama em “Cidadãos” já foram capazes de elaborar crônicas com um olhar mais honesto sobre o período. 

O que “Unity” faz é questionar o método revolucionário, colocando a figura de Arno como um jovem perdido no meio de um turbilhão de atos contraditórios. Enquanto um rei é decapitado, um revolucionário faz de tudo para manter o caos enquanto busca controle perseguindo artefatos como a Maçã do Éden, elaborando até acordos com opositores. O impacto é ainda maior se tratando de uma empresa de origem francesa. Bravo, Ubisoft, bravo. Uma pena que a iria totalmente na contramão dessa atitude um ano depois com Syndicate.

Concluindo a análise, fico feliz em ter dado uma segunda chance ao jogo do qual nunca imaginaria extrair tanto conteúdo. Trata-se de um espetacular marco visual como poucos e um produto que sim, sofreu pela obrigação de cumprir com a data de lançamento estipulada – o ideal deveria ter sido 1 ano depois, sacrificando um melhor desempenho técnico, funcionalidade de algumas mecânicas e desenvolvimento de personagens e narrativa mas que também ousou ao não somente dar ouvidos ao pedido dos fãs para que retornasse ao terreno mais urbano com maior foco na estratégia stealth recuperando a identidade da franquia no caminho como também tendo a coragem de exibir uma visão histórica sincera e não proselitista de um dos períodos mais conturbados da história humana. E isso, meus amigos, principalmente nos dias de hoje, faz qualquer errinho de programação padecer frente a afoiteza incriticável da encarregada pela unidade do Credo dos Assassinos. 

Redação Bastidores

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