Crítica | Santa Clarita Diet: 3ª Temporada - Uma Dramédia Suburbana

Santa Clarita Diet não teve um dos começos mais promissores do extenso catálogo original da Netflix. Sua proposta original por vezes cedeu a um excessivo gore em detrimento de uma narrativa convincente e um pano de fundo que ousasse desconstruir o gênero zumbi. Claro, não podemos tirar mérito de Victor Fresco de humanizar um personagem que, normalmente, é visto como inimigo – e dar ênfase para suas claras referências a obras como Todo Mundo Quase Morto. Tal qual foi nossa surpresa quando a série foi renovada e nos entregou uma deliciosa e hilária segunda temporada – carregada por um elenco incrível e um roteiro propositalmente autoexplicativo e sarcástico com diversos temas. E, continuando em uma onda de melhorias, o terceiro ano conseguiu renovar a si mesmo e transformar uma comédia pastelão em uma dramédia familiar nem um pouco convencional.

Sheila (Drew Barrymore) e Joel (Timothy Olyphant) já perceberam há muito tempo que suas suburbanas vidas em Santa Clarita jamais voltarão ao normal. Afinal, depois da inesperada transformação de Sheila, ambos entraram em uma jornada “espiritual” para livrar o mundo de pessoas horríveis – lê-se aqui: nazistas, racistas e preconceituosos – e, ao mesmo tempo, alimentar a morta-viva. O que eles não esperavam é que esse novo cosmos não é recheado apenas de preocupações interiores, mas também de complexos obstáculos, que já dão as caras no prólogo do primeiro episódio (um grupo de cientistas russos que deseja estudar os “zumbis conscientes” para fins mercadológicos). E, como se isso não bastasse, a família Hammond também lida com a ameaça iminente de uma seita conhecida por Cavaleiros da Sérvia, cuja missão é exterminar essas mortais criaturas.

A princípio, Fresco teria um prato cheio para realizar seus experimentalismos cênicos e narrativos – mas ele não se contenta com apenas a arquitrama épica em questão. Além disso, o criador adiciona um tempero religioso materializado no pequeno culto que Anne (Natalie Moraes) cria após presenciar as habilidades divinas que Deus concedeu a Sheila – e que ameaça expor sua condição ao restante do mundo, atraindo olhares indesejados e que podem colocar um fim à sua imortal vida. E é claro que ele também não se esqueceria das aventuras inesperadas de Abby (Liv Hewson) e Eric (Skyler Gisondo), que devem continuar lidando não apenas com a manutenção do segredo da família, mas fugir de investigações criminais que os ligam diretamente à explosão da usina de energia da cidade.

Sim, tudo parece muito confuso. É provável que, no momento em que o público tenha tomado ciência das múltiplas tramas que se aglutinam nesse novo ano, seja tarde demais. Entretanto, diferente do que podemos imaginar, Fresco faz um ótimo uso de tudo a que nos apresenta, arquitetando ótimos arcos, finalizando-os em conclusões aprazíveis e abrindo margem para uma próxima temporada que, levando em consideração o chocante cliffhanger, tem muito a nos entregar. Mas mais interessante que tudo talvez seja o modo como a competente equipe criativa do show canalizou seus esforços para unir o melhor da comédia e do gore em um único espaço, revitalizando sua própria carga identitária.

Ao longo de dez breves episódios, o universo de Santa Clarita se expande progressivamente e passa a englobar personagens que até então foram ofuscados pelo brilho e pela química que Barrymore e Olyphant carregavam. É claro que o duo não deixa de nos envolver com uma relação tão pura e natural que consegue perpassar pelos obstáculos mais enigmáticos de todos, mas o casal de adolescentes também alcança um protagonismo considerável conforme passam a cultivar novos sentimentos. A amizade improvável eventualmente os aproximou de modo intenso, abrindo uma brecha para um possível romance que pode ou não dar certo: por um lado, melhores amigos que se apaixonam esbarra com força no convencionalismo melodramático das séries televisivas; por outro, o próprio discurso de Abby mostra que ela não sabe como se sente e que ainda o enxerga como uma espécie de irmão.

De qualquer forma, especulações sobre o futuro de Santa Clarita ainda são muito precipitadas – é preciso que nos concentremos no agora. E, de modo geral, o momento presente nunca foi tão envolvente e satisfatório quanto antes. A múltipla aglomeração de contos carrega uma duplicidade surpreendente e funcional, encontrando a composição início-meio-fim dentro dos trinta minutos ao mesmo tempo que se estende e dialoga com episódios anteriores e posteriores. E dessa forma que rostos como Jean (Linda Lavin) e Tommy (Ethan Suplee) não são meros acidentes imagéticos que taparam buracos eventuais, mas aliados importantes que contribuem para a resolução epopeica de mais um arco envolvendo os Hammond.

Seguindo os passos de produções como The Good Place e Unbreakable Kimmy Schmidt, a obra de Fresco se respalda na irreverência cênica, fazendo críticas de modo explícito para cativar seus fãs. É claro que aqui, as ironias insurgem com menos força e com um propósito diferente das conterrâneas, mas mesmo assim auxiliam no dinamismo estético. Sheila constantemente tem diálogos com Joel sobre o envolvimento de Abby em seu complicado cotidiano, e, como resposta, a sagaz filha mostra uma forte independência que, na verdade, não é abalada pela decisão paternalista do casal – e traz mais elementos lúdicos para serem explorados ao longo dos capítulos.

Santa Clarita Diet volta com força para mais um ano repleto de rebeldias televisivas que reafirmam sua belíssima evolução com o passar dos anos. Novamente, a coesão é a principal arma que o show carrega consigo e, num interessante paradoxo, é através dessa verossimilhança que as infinitas e bizarras possibilidades ganham terreno fértil.

Santa Clarita Diet - 3ª Temporada (Idem, EUA - 2019)

Showrunner: Victor Fresco
Direção: Ken Kwapis, Marc Buckland, Adam Arkin, Steve Pink, Jaffar Mahmood, Jamie Babbit
Roteiro: Aaron Brownstein, Simon Ganz
Elenco: Drew Barrymore, Timothy Olyphany, Liv Hewson, Skylar Gisondo, Mary Elizabeth Ellis, Linda Lavin, Ethan Suplee, Natalie Moraes
Episódios: 10
Duração: aprox. 30 min. cada episódio


Crítica | Santa Clarita Diet: 2ª Temporada - O Apreço pela Comédia

Crítica | Santa Clarita Diet: 2ª Temporada - O Apreço pela Comédia

Santa Clarita Diet chegou ao leque de conteúdos originais Netflix em meados de fevereiro do ano passado sem qualquer campanha massiva de marketing e trazendo um tema consideravelmente clichê sobre o qual tratar: os mortos-vivos. Entretanto, levando em conta que a série cômica teria como protagonistas os adoráveis e carismáticos Drew Barrymore e Timothy Olyphant como o casal Sheila e Joel Hammond, não poderíamos esperar nada além de uma perspectiva às avessas e que poderia funcionar bastante. Mas ao respaldar-se essencialmente nos excessos do gore e criar uma atmosfera presunçosa em certos aspectos, a primeira temporada falhou em sua premissa e nos apresentou um conteúdo diferente do que prometera.

Felizmente, as coisas mudaram de forma drástica quando o surpreendente sucesso por parte do público permitiu que o show fosse renovado para sua segunda temporada - e o showrunner Victor Fresco aproveitou essa margem para reformular toda a estética apresentada e mergulhar de forma divertida e natural no sub-gênero da comédia pastelão, arquitetando um cosmos único e que definitivamente permitiu uma repaginada completa na controversa comunidade de Santa Clarita. O resultado não poderia ter sido melhor: além de uma história mais consistente e perscrutada com sacadas geniais dentro do âmbito da tragicomédia, Fresco e o time criativo por trás da série conseguiram superar as próprias expectativas e nos deliciar com algo que vai muito além de sangue e matança descontrolados.

Iniciando de onde paramos no último season finale, Sheila permanece acorrentada no porão para que não tenha nenhum surto canibal e não mate mais ninguém até que o antídoto - que na verdade irá refrear os sintomas de seu estado morto-vivo - esteja pronto. E para que isso finalmente tenha um fim, a família Hammond precisa desesperadamente encontrar a bile de um sérvio para completar essa “cura”, mas as coisas se tornam cada vez mais complicadas: Joel, após ter uma crise de nervos e destruir a casa do Diretor Novak (Thomas Lennon), é levado a um hospital psiquiátrico, no qual será mantido por pelo menos 72 horas até estar “apto a retornar à sociedade sem representar qualquer perigo”. A filha do casal, Abby (interpretada pela aplaudível Liv Hewson), também está em seu próprio arco, buscando um protagonismo que lhe foi renegado na iteração anterior e tornando-se uma das figuras mais fortes da série.

Dentro de um escopo de quase trinta minutos, é complicado aprofundar-se em determinada trama ou subtrama por muito tempo sem cair na monotonia. Entretanto, diferente de uma sitcom, a série não possuía seus episódios fechados em si e busca referências em outras comédias de estrutura similar, como Silicon Valley e Unbreakable Kimmy Schmidt, expandindo cada uma das vertentes narrativas para pontos inimagináveis e que funcionam por estarem desprovidos da excessiva pretensão. Eventualmente, essas ramificações acabam de modo satisfatório e ao mesmo tempo abrem portas para a entrada de outros personagens e mais respaldo a seus protagonistas - o que funciona em quase sua completude.

Fresco parece ter compreendido o potencial de sua criação e resolve abraçar intrinsecamente as quebras de expectativas. Ao contrário do que havia tentado realizar no ano passado, ele não ousa demais e prefere manter-se em uma zona de segurança que, ainda que busque alguns clichês - como a regra da negação tripla para que a jocosidade se endosse -, eles funcionam plenamente. Os beats e as viradas, por mais que em determinado ponto se tornem premeditáveis, são fluidos e não forçam o entendimento do espectador em nenhum ponto - o que também prepara o território para o abandono do gore, cuja estética movia todo o plot dos Hammond na temporada anterior e que, agora é utilizado em uma dosagem bem mais interessante e suportável.

Como já mencionado, o showrunner e até mesmo os roteiristas buscam referências histórias para criar seus personagens - estendendo a mão para os ideais da commedia dell’arte e relendo-os em uma amálgama mais complexo e menos arbitrária. Logo, não espere encontrar estereótipos ficcionais, mas personagens tão palpáveis quanto nós e que apenas embarcaram em uma jornada sobrenatural, encarando-a como um mero obstáculo dentro de seus cotidianos. É justamente aí que o riso e o ridículo encontram uma linha conjunta e convergem em algo mágico - pessoalmente, me peguei rindo em diversos momentos por essa abordagem impossível e inegavelmente metafórica para os problemas que enfrentamos no dia a dia.

A insurgência dos coadjuvantes também é bem pensada e não jogada como vimos anteriormente. Aqui, temos um tempo suficiente de cena para explorar relações românticas e que adicionam uma agradável camada ao arco compartilhado entre Abby e o jovem nerd Eric Bemis (Skyler Gisondo), que tornou-se um agregado da família por ajudá-la a buscar perspectiva nova à situação de Sheila. Os dois trazem uma incrível química para a cena e também são agraciados com momentos que oscilam entre o drama e a comédia e que funcionam para dar uma continuidade necessária a dois blocos distintos e paralelos.

Estamos falando aqui de uma história que tem como pano de fundo mortos-vivos: logo, explorar a mitologia acerca dessas criaturas tão horrendas e que também sofreram uma relativa humanização dentro da série, era uma jogada mais que óbvia. Mantendo-se fiel ao estranho e bizarro livro que a família encontrou e que trazia informações relevantes sobre essas características sobre-humanas, a trama também evoca outros zumbis que não foram “criador” pela protagonista, mas que compartilham uma gêneses relacionada a ingestão de perigosos moluscos que também vieram da Sérvia e que são muito mais resistentes de outros da espécie. É claro que, jogando as informações em um texto como esse, parece um tanto quanto risível tal saída, mas a série deixou de se levar a sério para brincar com essas impossibilidades e nos levar a crer em algo palpável o suficiente para prosseguir a história.

Sem dúvida alguma, um dos principais ápices permite o retorno da brevíssima aparição de Nathan Fillion como Gary West, o qual fora assassinado por Sheila no episódio piloto. Entretanto, apenas a sua cabeça reaparece e entra como importante arquétipo para compreendermos o lado humano do estado “não-vivo” de certos personagens e permite a arquitetura de um gancho ainda mais cômico. Tal investida puxa consigo uma exploração maior do gradativo relacionamento entre a Xerife Anne Garcia (Natalie Moraes) e a insana femme fatale Lisa Palmer (Mary Elizabeth Ellis), mãe de Eric, cuja química também é aplaudível.

Eventualmente, Fresco cede a alguns erros do passado ao colocar em várias sequências justapostas a explicitação da superforça e da excessiva e incontrolável fome de Sheila. Apesar da quantidade de corpos desmembrados, sangue jorrando para todos os lados e alguns momentos de pura ânsia, ele sempre consegue recobrar o fio da meada ao mostrar que a situação da nossa anti-heroína na verdade pode estar piorando, mesmo após tendo injetado a suposta cura. Isso aumenta quando chegamos ao miolo da temporada, e felizmente cai em uma propriocepção e consegue driblar futuros equívocos.

A segunda temporada de Santa Clarita Diet é tão surpreendente quanto a primeira, com o diferencial de que não precisa de um respaldo supersaturado para buscar o sucesso inalcançável. Ao deixar de se levar tão a sério e abraçar as suas raízes cômicas, a série tornou-se muito mais atraente aos céticos olhos do público e da crítica e representou um respiro de originalidade para o conteúdo de uma plataforma marcada por seus altos e baixos.

Santa Clarita Diet - 2ª Temporada (Idem, EUA - 2018)

Showrunner: Victor Fresco
Direção: Ken Kwapis, Marc Buckland, Adam Arkin, Steve Pink, Jaffar Mahmood, Jamie Babbit
Roteiro: Aaron Brownstein, Simon Ganz
Elenco: Drew Barrymore, Timothy Olyphany, Liv Hewson, Skylar Gisondo, Mary Elizabeth Ellis, Richard T. Jones, Joy Osmanski, Ramona Young
Episódios: 10
Duração: aprox. 30 min. cada episódio

https://www.youtube.com/watch?v=J4zP2I0PkUE


Crítica | Desventuras em Série: 2ª Temporada - A Trêmula Luz no Fim do Túnel

Crítica | Desventuras em Série: 2ª Temporada - A Trêmula Luz no Fim do Túnel

Cuidado: spoilers à frente.

Querido leitor,

Há poucas coisas que chamam tanto a atenção como a tragédia. Ainda que venhamos a nos comover copiosamente sobre a jornada de desventuras de alguém ou de um grupo de pessoas, não podemos negar que cada um de nós carrega um apreço pelo desastre e por ver “o circo pegar fogo” - não é nenhuma surpresa, pois, que os noticiários sejam carregados de notícias pesarosas em uma constância muito maior do que deveríamos prezar, alimentando um sentimento de empatia que tristemente permanece adormecido em nós até que seja tarde demais. E é absurdo pensar que é essa série de eventos infelizes é um dos principais motores que permite a esse mesmo público discorrer sobre uma efêmera e mascarada compaixão que é tão verdadeiro e puro quanto uma perna-de-pau.

Não é surpresa que essa contraditória e aversa paixonite tenha chamado a atenção de nomes bastante misteriosos - e um desses nomes certamente faz soar uma vaga e estranhamente acolhedora memória em nós, leitores e espectadores: Lemony Snicket. Snicket, ou Daniel Handler, como prefiram chamá-lo, percebeu que o jeito mais fácil de envolver certa massa de pessoas era usando uma coisa que chamamos de psicologia reversa, induzindo-a a fazer exatamente o oposto do que se espera. Não é nenhuma surpresa que sua fabulosa e conhecida franquia de romances intitulada Desventuras em Série traga um narrador-onisciente pautado no excessivo pessimismo para mantê-los vidrados da primeira à última página, discorrendo sobre as infelicidades de três órfãos cujas vidas não passam de uma bola de neve de horrores: Violet, Klaus e Sunny Baudelaire.

O sagaz trio perdeu os pais em um misterioso incêndio e desde então foi obrigado a lidar com as mortais investidas de seu primeiro e mais próximo tutor, o ardiloso Conde Olaf, que mais parece ter tido sua caracterização arrancada das páginas de romances sobrenaturais que de qualquer outra perspectiva realista. Sua des-jornada também é constante e, não importa o quanto tentem escapar ou o quão cruéis os eventos ao redor dela sejam, aquele que lê cada uma das páginas minuciosamente escritas não consegue desviar a atenção e chegue até mesmo a se sentir mal por causa disso. E o que acontece quando essa mesma embriaguez expande-se para o meio audiovisual?

Bom, ainda que carregada de inúmeros deslizes e até mesmo algumas perspectivas mais suavizadas para não chocar a audiência de forma tão impactante, a primeira temporada da série homônima, realizada pela gigante do streaming Netflix, definitivamente cativou uma quantidade muito considerável de pessoas e as deixou ansiosas para as próximas adaptações televisivas - e qual foi nossa surpresa quando descobrimos que a nova iteração não adaptaria apenas quatro, mas cinco dos próximos livros assinados por Handler. E dizendo isso como fã dos romances e do longa-metragem, posso dizer que também fiquei animado, mesmo com a mediocridade de seu ano de início; afinal, teríamos uma perspectiva que nunca antes havia sido retratada e que poderia funcionar muito bem - ou tornar-se um belo de um fracasso.

Felizmente, Barry Sonnenfeld, retornando como o showrunner do seriado, parece ter aprendido com deslizes passados e tentou, na medida do possível, manter-se fiel à estética do humor negro e ácido criado pelo autor, canalizando suas incríveis metáforas e sacadas narrativas para uma versão mais estilizada, por assim dizer - mesmo que não abandonando alguns irritantes trejeitos.

SOFRIMENTO NO COLÉGIO INTERNO

O novo ano de Desventuras em Série clama por mais infortúnios. Isso já é claro desde o princípio e tornou-se ainda mais claro com o estúpido gancho da season finale, no qual nossos injustiçados heróis cantam uma ode de desesperança àqueles que os acompanharam até agora. E, de novo, somos reintroduzidos ao cosmos idealizado por Handler através da sempre bem-vinda aparição de Patrick Warburton como Snicket, ou o narrador, ou o todo-poderoso que na verdade tem como função explanar para o mesmo público sedento por tragédias todas as infelicidades que acometem os órfãos Baudelaire - partindo de sua entrada na Escola Preparatória Prufrock.

É de praxe dizer que, bem como a iteração anterior, o show retorna com uma promessa interessante de melhorar as coisas, sejam os porcos efeitos de CGI, seja a manutenção de uma estética mórbida que poderia ter sido emprestada e homenageada do longa-metragem de 2004. Aqui, Violet (Malina Weissman), Klaus (Louis Hynes) e Sunny (Presley Smith) se veem pela primeira vez bem longe da conturbada mente de seu primeiro tutor, sentindo-se ao mesmo tempo protegidos e impotentes dentro das fortificadas paredes da instituição educacional - isso é, até encontrarem-se com uma das figuras mais irritantes e desprezíveis dentro do universo desventuresco: a arrogante e excessivamente doce Carmelita Spats (Kitana Turnbull), a “queridinha” do vice-diretor do colégio que não faz nada além de infernizar os nossos protagonistas.

Sua construção é on point, não apenas ao resgatar suas reais intenções por trás do doce e tétrico semblante pueril, mas também por fazer bom uso de elementos estilísticos mal colocados em episódios anteriores; um deles, por exemplo, é a utilização da cor rosa como vestimenta-base, cuja cor havia sido já escolhida de modo equivocado para Violet em Mau Começo. O adorno fabulesco certamente conversa com a personalidade contraditória de Carmelita, aumentando sua complexidade, enquanto a outra garota retorna para um estado melancólico do cinza, do azul e do vinho - seguindo um forte padrão junto a seus irmãos.

Este é apenas o começo de seu sofrimento, visto que as coisas continuam a piorar com a entrada do hilário Roger Bart como o Vice-Diretor Nero, cuja caracterização também é impecável. O problema, aqui, reside em outro aspecto: seus trejeitos e maneirismos. Levando em consideração a obra de Handler, que também fica responsável por se autoadaptar às telinhas, seria óbvio procurar uma certa mescla entre terror e drama dentro de seus personagens, visto que o escape cômico permaneceria encoberto por uma névoa dúbia de outros antagonistas. Entretanto, não conseguimos levar nenhuma das ameaças de Nero, seja pelas expressões faciais do ator ou por sua repetitiva quebra de expectativa - indicando um problema que foi carregado desde o ano passado: o uso da comédia em detrimento do trágico.

Esses deslizes, entretanto, são brevemente ofuscados pela entrada de outros três personagens importantíssimos para a desenvoltura do arco dos Baudelaire. Um deles é a carismática bibliotecária que atende pelo nome de Olivia Caliban (Sara Rue), cuja aparição simplesmente não existe dentro dos livros originais, mas que torna-se um elemento-surpresa muito curioso e interessante. Ela, aliado à dupla de ex-trigêmeos Duncan (Dylan Kingwell) e Isadora (Ava Lake) Quagmire, é um dos poucos momentos de esperança que surgem no caminho dos protagonistas e talvez um dos poucos amigos que realmente se tornam valiosos para sua proteção - e tais coadjuvantes também servem como brecha para analisar o segredo envolvendo a família Baudelaire, os incêndios criminosos e as misteriosas peças de quebra-cabeça que volta e meia aparecem.

Entretanto, não estamos falando aqui de uma trama de mistério como qualquer outra, e sim uma marcada por erros. Muitos erros. Não apenas propositais, mas alguns que poderiam ser evitados e mesmo assim aparecem mais frequentemente do que o necessário ou permitido - e nesse caso menciono a primeira aparição de Neil Patrick Harris como o antagonista Conde Olaf. Mais uma vez, o vilanescos homem utiliza sua trupe e um de seus risíveis disfarces para se aproximar dos Baudelaire e de sua fortuna, encarnando o bizarro Treinador Genghis que logo toma conta de toda a história. O problema é basicamente o modo como o ator resolver se entregar ao papel: confiar em seu charme excessivo e múltiplas quebras narrativas para envolver aqueles que o assistem (de novo).

De qualquer forma, a primeira dupla de episódios tem uma estética aplaudível quando pensamos no escopo geral. Temos o resgate de um cenário em completa decadência - que se mantém pela temporada inteira e cuja saturação entra em uma curva crescente gradativa e proposital - e uma das rendições mais fiéis aos livros: a caracterização do complexo escolar como um gigantesco cemitério, desde os prédios em forma de lápide até as planícies secas e mortas que causam calafrios até mesmo no mais cético dos espectadores.

A ESTÓRIA ERSATZ

Sonnenfeld dá às graças de se afastar da cadeira de direção e colocar um nome inesperado para a adaptação de O Elevador Ersatz: o responsável pelo design de produção da série, Bo Welch. O artista é conhecido por seu trabalho em inúmeros filmes como Edward Mãos-de-Tesoura e Beetlejuice - então ainda que ele não honrasse os livros com sua direção, ao menos teríamos um deleite cênico para os olhos. Felizmente, Welch consegue superar várias expectativas e permite até mesmo que Handler tenha uma liberdade criativa ainda maior dentro de sua própria criação, focando em pontos mais desejados e respaldando o crescente suspense acerca do mistério principal.

Eventualmente, Olaf escapa pela quinta vez das mãos das autoridades - e parece que seu representante máximo, o canastrão Sr. Poe (K. Todd Freeman), precisa ser mais conciso na hora de prendê-lo e chamar oficiais reais ao invés de fazer justiça com as próprias mãos -, levando consigo os irmãos Quagmire e tirando, de novo, qualquer resquício de esperança dos Baudelaire em encontrar respostas. Desse modo, uma patrulha citadina é instaurada em busca do vilão enquanto Violet, Klaus e Sunny são entregues às mãos de outro distante tutor - o casal Squalor, que habita o último andar do sinistro edifício localizado na Rua Escura, 667. Ao perceberem que tal ambiência não é nada como os que já visitaram, visto que é fortemente marcada por aquilo que está na moda ou fora dela, os três são obrigados a subir quarenta e seis andares de uma sinuosa escada “porque utilizar elevadores está out” até chegarem ao apartamento em questão.

E é só então que somos introduzidos ao otimista Jerome (Tony Hale) e à sua esposa, Esmé (Lucy Punch), dois personagens que conseguem nos envolver desde o primeiro momento. Enquanto Jerome busca uma interação mais protetora acerca dos novos protegidos, sua esposa preocupa-se apenas com o fato de que “ter órfãos está super na moda” - e isso é tristemente cômico e episódico até mesmo para uma criação de Handler.

Sem sombra de dúvida os novos capítulos valem muito mais a pena por sua incrível preocupação imagética que pela história em si. O plot principal gira em torno dos Baudelaire se reencontrando com Olaf, agora disfarçado do personal stylist e “amigo” do casal Gunther, e percebendo que os raptados Quagmire podem estar escondidos no mesmo prédio em que se encontram - e é a partir disso que o roteirista/autor delineia uma narrativa baseada nas ambíguas imagens que cria; ersatz, afinal, é uma palavra alemã que significa “substituído” - e garanto que durante as duas partes desse bloco, somos apresentados a diversas mentiras.

Note a padronização nas linhas e nas figuras geométricas que nos relembram de um cela de prisão, conversando com a situação em que os Baudelaire se encontram.

Entretanto, permita-me elogiar repetitivamente o trabalho de Welch ao canalizar uma rendição teatral única para a série, utilizando muito bem de suas habilidades estéticas com a paleta de cor vermelha. Diferentemente de outras peças audiovisuais que trazem a mesma presença marcante desse tom, aqui ele é utilizado com um propósito único e que funciona de cabo a rabo: seja em sua tradução para o salmão ou até mesmo para alguns filtros mais pastéis, a atmosfera criada não é da costumeira paixão ou da ardência sentimental, mas sim de um apreço pelo perigo que chega a ser doloroso. Ainda que em alguns momentos o preto e o branco propositalmente ofusquem-no, o vermelho aparece em pequenas pincelas para indicar a iminência explícita do perigo (Olaf) e de máscaras que, mais cedo ou mais tarde, irão cair (como a revelação da real identidade de Esmé).

A construção de cada um dos cenários também é pensada com exímia inteligência, trazendo para todos os enquadramentos linhas uniformes e padronizadas, além de figuras geométricas em uma overdose orgásmica muito bem colocada. A intercalação de colunas pretas e brancas ou até mesmo da opção por um soalho que nos relembre de um tabuleiro de xadrez clássico permitem que o espectador entenda a seriedade do “jogo” no qual os Baudelaire estão envolvidos e como suas vidas estão para sempre atadas a serem perseguidas por forças externas e nada escrupulosas.

Nem tudo são flores, querido leitor, e também faço deste modesto texto uma crítica às desnecessárias investidas da série em explorar uma versatilidade que todos nós já conhecemos acerca do incrível elenco. O nome de Patrick Harris é conhecido sim nos palcos da Broadway e em diversas produções musicais - então por que forçar uma entrada tão artificial quanto uma sequência de dança e canto que não apenas nega a natureza psicótica de Olaf, mas o torna estrambólico? E talvez o pior seja essa falta de percepção e a repetição do mesmo erro alguns capítulos mais à frente com O Espetáculo Carnívoro.

A CIDADE DA ESPERANÇA PERDIDA

Caso o leitor ache que O Lago das Sanguessugas representou um declive em Desventuras em Série, provavelmente não se aventurou nas graças desses próximos dois episódios: é quase inegável que você possa encontrar alguma crítica ou resenha que dê certo aclame para a adaptação de A Cidade Sinistra dos Corvos - ainda mais se procurar em alguns sites estrangeiros e mainstream, visto que qualquer história meia-boca que fale de superação e fé causa uma comoção coletiva; mas esqueça qualquer elogio de grande peso a partir deste parágrafo e até o final desta seção. É praticamente impossível encontrar alguma coisa boa nessa pequena, porém valiosa e desperdiçada fatia de decepção que a Netflix nos entregou.

O sétimo livro da franquia é um de seus mais mórbidos, ainda que permaneça em uma zona de conforto monótona - a começar por seu símbolo principal: o corvo. A ave negra sempre foi utilizada como mau agouro, e dentro de um escopo essencialmente inclinado à tragédia, não poderia ter um tratamento muito ornamentado. Entretanto, Handler habilmente consegue transformá-la, ao menos nas páginas, em um arquétipo mensageiro de grande valia para nossos órfãos - ainda que ceda a investidas do estilo deus ex machina (uma expressão utilizada com bastante louvor e didática pela série). O problema é como essa história é contada em meio a tantos absurdos e erros imperdoáveis.

A começar pelos efeitos especiais.

Acho que não foi desde Once Upon a Time que um show trouxe uma preocupação duvidosa e questionável acerca do trabalho em CGI, preferindo poupar recursos e mão de obra em prol de uma narrativa mais impactante e importante que a “mera” busca pela verossimilhança. Entretanto, ao contrário da série de fantasia em questão, este show não tinha nenhum motivo para não trazer o mínimo de cuidado às telas, ainda mais levando em consideração seu estilo teatral e com diversas homenagens a Wes Anderson ao longo do caminho, incluindo a marcante paleta de cores e o apreço exagerado e justificável pela simetria cênica. Mas de que adianta toda essa bagagem cultural se o que observamos tem como pano de fundo uma literal miscelânea não editada e não finalizada de fundo verde e efeitos toscos? Ora, é quase possível enxergar o chroma key estourando diante de nossos olhos - e até agora não consigo entender quem Sonnenfeld pretendia enganar ao criar o amanhecer e o alvorecer mais falsos e incogitáveis dos últimos anos.

A história também não envolve mais uma vez pelo excesso de canastrice. Um dos personagens introduzidos ainda nesta temporada, o charmoso espião, taxista e voluntário - como são chamados os membros da organização secreta que move a trama principal - intitulado Jacques Snicket (soa familiar?), é completamente desperdiçado e encontra uma ruína odiosa nas mãos de Olaf e de sua mais nova comparsa, Esmé. Nathan Fillion pode ter feito um trabalho imenso ao trazer ares de Casablanca e ...E o Vento Levou, mas seus esforços parecem ter encontrado uma barreira ao adentrar um arco insosso até mesmo para os fãs mais assíduos da série - e que chega a ser vergonhoso, por falta de outro adjetivo.

Nem mesmo a caracterização da vila é aprazível o suficiente. Podemos notar com certa curiosidade um isolamento proposital da cidadela em relação ao resto do mundo, cujos valores medievais conversam com a ideologia amish e são traduzidas em vestimentas bem pensadas, mas cada um dos personagens pertence uma massa amorfa que sai de lugar nenhum para chegar a nenhum lugar - isso sem falar da completa perdição do tutor Hector (Ithamar Enriquez), tão memorável quanto um pedaço de cascalho. Ao menos as coisas terminam bem para os Quagmire - coisa que não podemos dizer do vicioso ciclo de desgraças dos Baudelaire.

O REQUINTE HOSTIL

Violet, Klaus e Sunny parecem ter um desolado imã para o perigo e para o caos. Em um tempo relativamente breve, eles passaram de pobres órfãos que lidavam com a perseguição interminável de um homem com monocelha e tatuagem de olho no tornozelo para três assassinos responsáveis pela morte nada acidental de um homem inocente que agora tentam encontrar seu caminho no meio do nada. Chega a ser doloroso observá-los lutar contra tanta adversidade - mas atire a primeira pedra quem não morreria para vê-los em mais uma desventura.

E é do modo mais escabroso e inimaginável que o trio de sofridos heróis finalmente chega ao decadente Hospital Heimlich, estranhamente localizado no meio do nada e que não parece contar com o mínimo de infraestrutura para manter seus pacientes e sua equipe de médicos. Logo nos primeiros minutos do sétimo episódio, a série parece ter se comprometido um pouco mais com os efeitos especiais e criado uma arquitetura palpável dentro de suas limitações - e que mais se assemelha a uma gigantesca tumba vertical que qualquer outra coisa. Até mesmo a fachada está caindo aos pedaços, e a segunda instalação do edifício permanece inacabada e prestes a desmoronar ao sopro de uma ventania mais forte.

Pelo menos eles acreditam estar a salvo de Olaf. Acreditam, veja bem. Pois se há algo que Handler nos ensinou ao longo de treze mórbidos livros e adaptações para o cinema e a televisão é que o mundo sempre dá voltas e aqueles que nos desejam o mal sempre estão à espreita e prontos para dar o bote quando menos esperamos. Ainda que não esteja premeditada dentro do itinerário Baudelaire, o grupo de crianças encontra abrigo em meio a uma comissão excessivamente feliz de voluntários - não os mesmos que pertencem à organização secreta, mas outros - que têm como missão levar um pouco de felicidade aos pacientes internados nas facilidades médicas, mesmo que suas condições sejam irremediáveis. Aqui já notamos um contraste muito mais elaborado que o visto em iterações anteriores, principalmente pelo jogo de cores: enquanto esses personagens descartáveis ganham uma profundidade cênica pelas cores vivas e complementares entre si, o Hospital mergulha cada vez mais na frieza do azul-esverdeado, reafirmando uma atmosfera depressiva e nem um pouco convidativa.

As releituras de O Hospital Hostil definitivamente representam uma melhoria em relação aos dois episódios predecessores, seja em termos estéticos, seja na mobilidade narrativa. Allan Arkush assume a cadeira da direção e brinca com algumas identidades que ainda não foram vistas em Desventuras em Série, resolvendo retratar o cenário principal como um palco dos clássicos do terror. E não é à toa que ele consegue arquitetar uma homenagem interessante com sequências de crescente suspense, quebrando a densa atmosfera com algumas piadas muito bem-vindas e uma atuação de Patrick Harris que se afasta dos convencionalismos do personagem canastrão que criou - tudo bem, Olaf é canastrão por si mesmo, mas não há necessidade de levá-lo para um nível acima. Aqui, o ator consegue abraçar um pouco mais do drama, ainda mais respaldado pela loucura e insanidade de Esmé, e ganha complexidade ao invés de se fundir aos estereótipos vilanescos.

O arco dos irmãos Baudelaire também encontra brechas para ser melhor analisado e aprofunda as questões familiares que foram mantidas durante tanto tempo em segredo - incluindo a revelação chocante de que um dos membros da família não morreu no incêndio criminoso e está à solta, escondendo-se por aí. Analisando de uma perspectiva externa, podemos encarar essa virada de modo ocasional; todavia, o modo como essa informação chega ao espectador e até mesmo aos personagens é construído com tanta fluidez que os eventuais problemas são deixados de lado - e não podemos nos esquecer do incrível cliffhanger que nos é deixado ao fim da primeira parte.

O respeito com o qual a obra de Handler é tratada é o ponto-chave para que o terreno seja preparado para investidas inovadoras, se pensarmos no uso e no abuso de estilos diferenciados para a arquitetura principal da série. Em determinado momento, Klaus e Sunny se disfarçam para salvar Violet de uma possível craniotomia - e a sequência é pautada em um drama muito necessário para se afastar da ambiência estilizada. Arkush até mesmo constrói enquadramentos simbólicos e que prezam pelo plongée absoluto, aumentando a extensão do olhar para a sala de operações em forma de arena e ressignificando seu diálogo com a ideia de um lugar marcado pela opressão e pelo espetáculo. E, como se não bastasse, até mesmo as construções finais alcançam certa inovação ao colocar os Baudelaire a literalmente centímetros das garras de Olaf em sua trupe com a conclusão desse bloco.

ESPETÁCULO DO SACRIFÍCIO

Desventuras em Série é uma obra oscilante, por assim dizer - palavra que aqui significa “algo que transita entre o bom e o ruim, cheio de altos e baixos que podem confundir o espectador em certos níveis”. Ainda que seja predominantemente satisfatório e que tenha conseguido trazer o nome por trás de todo o cosmos único e envolvente para trabalhar diretamente com a adaptação, tal show parece se recusar a abandonar certos extremismos e vícios de linguagem - incluindo uma abordagem simplista e infantiloide que por vezes renega toda a característica depressiva e angustiante de seu material original. E isso se repete nos dois últimos capítulos dessa nova temporada, mesmo que se reencontre nos momentos finais para uma conclusão que beira o épico.

Em O Espetáculo Carnívoro, temos uma leve pausa no jogo de gato-e-rato entre as duas partes da história principal, visto que o antagonista se vê enfrentando um dilema muito maior: o fato de um dos pais Baudelaire estar vivo e ameaçar todos os planos que tinha de roubar a fortuna da família e sair vitorioso após uma série de crimes. Encontrando refúgio em um quase abandonado circo chamado Caligari - e que faz menção a um dos clássicos do expressionismo alemão, O Gabinete do Dr. Caligari -, ele busca respostas com a vidente Madame Lulu, cuja personagem é interpretada novamente por Sara Rue sob a máscara de Olivia que vestiu anteriormente. É interessante analisar como sua construção não nos permite adivinhar quem realmente é até o momento certo, adicionando mais camadas de agradabilidade narrativa a quem assiste.

Basicamente esta é a única subtrama que realmente importa dentro do último duo de capítulos; claro, podemos também levar em consideração as pequenas manifestações dos comparsas de Olaf acerca de seus problemas pessoais, ou a incessante e insuportável busca de Esmé por um açucareiro desaparecido, ou até mesmo pelo time de aberrações que habita o circo. Mas nada isso importa pelo fato de não ter desenvolvimento necessário para criar qualquer tipo de vínculo com o público; tudo converge para as tentativas dos irmãos de encontrar mais respostas e delinear um plano para encontrarem o pai ou a mãe - ainda não se sabe qual dos dois sobreviveu ao incêndio. Desse modo, qualquer outra subtrama torna-se ofuscada.

As aproximações imagéticas também são um problema; ao invés de manter o contraste entre os inúmeros microcosmos que carregam cada qual uma característica própria, a ambiência principal é uma mistura da Cidade dos Corvos com o Hospital Heimlich, além de evocar elementos que se referem a cenários já utilizados - até mesmo o tempestuoso casebre de O Lago das Sanguessugas. O resultado final, porém, é apenas o mesmo do mesmo, não ousando como poderia e reintroduzindo algo que foi mencionado e que deveria ser abolido o mais rápido possível - os números musicais. Por Deus, Patrick Harris já é a voz que lidera a introdução, não é necessário mantê-lo cantando o tempo todo.

O brilho do roteiro fala mais alto conforme nos aproximamos do final. Em uma saída orquestrada tanto por Olaf quanto por Esmé, Handler percebe que pode fazer jus ao que criou ao não nos poupar dos sacrifícios, por mais tristes e sangrentos que sejam. Felizmente não optando por uma autoexplicação excessiva como a vista durante a morte de Tio Monty ou de Tia Josephine na temporada anterior, aqui permanecemos com a incrível insurgência de um foreshadowing que é completada pelos poéticos monólogos de Snicket, deixando que as peças se juntem pela imaginação e pela capacidade lógica do espectador. É uma forma literária de brincar com alguns elementos cinematográficos e que não é usada com a frequência que deveria.

Outro ápice que se mostra necessário ter o devido reconhecimento é o gancho para a terceira e última temporada. Quando temos a certeza de que mais um círculo se fechou, o destino brinca cruelmente com os órfãos Baudelaire e dessa vez os separa do modo mais sarcástico e trágico possível, colocando Violet e Klaus em uma prisão sobre rodas e à beira de um penhasco literal: desde o princípio, a ardilosa mente do vilão havia percebido que estava com suas mãos na família, porém manteve-se cético até os momentos finais e conseguiu fazer o que bem queria: livrar-se dos obstáculos maiores - aparentemente.

ÚLTIMA CHAMADA

É assim, querido leitor, que essa mais nova desventura encontra sua conclusão: nossos heróis embutidos em outra jornada marcada por infelicidades, perdas e desesperança - cujos elementos são refutados por grande parte dessa epopeica série que tanto deixou a desejar ano passado.

Chega a ser admirável o modo como Sonnenfeld e Handler lidaram com grande parte dos erros, acreditando em um potencial que havia sido perdido e que, magicamente, foi resgatado através de entradas mais concisas e palpáveis para uma impossibilidade cênica que já se tornara marca do show. Mesmo com erros imperdoáveis - incluindo a maldição que aqui lanço sobre Cidade dos Corvos -, o segundo ano de Desventuras em Série é satisfatório.

Entretanto, mais do que nunca percebemos o apreço que carregamos pelo trágico. Como explicado nos primeiros parágrafos desta análise, são os infortúnios tão dolorosamente explícitos e constantes que nos deixam vidrados, correndo-nos por dentro e vívidos pelo próximo capítulo. Uma sociedade do espetáculo que tristemente necessita dessa infeliz satisfação para se comover - e cuja luz no fim do túnel na verdade não passa de chamas de um passado traumático.

Desventuras em Série - 2ª Temporada (Idem, EUA – 2018)

Showrunner: Barry Sonnenfeld
Direção: Barry Sonnenfeld, Bo Welch, Allan Arkush, Loni Peristere
Roteiro: Daniel Handler, baseado na série de livros do pseudônimo Lemony Snicket
Elenco: Neil Patrick Harris, Patrick Warburton, Malina Weissman, Louis Hynes, K. Todd Freeman, Presley Smith, Usman Ally, Matty Cardarople
Episódios: 10
Duração: aprox. 42 min. cada episódio

https://www.youtube.com/watch?v=ZACeECxDhYk


Crítica | Camila - A Incrível Envolvência do Pop Latino

O mundo da música é marcado por mudanças, talvez mais claramente que as outras vertentes artísticas como o cinema, a literatura, a televisão, entre outros. É claro que, dependendo da época sobre a qual falamos, precisamos analisar o contexto histórico e socioeconômico que permitiu que tais transições - bruscas ou não - encontrassem espaço para se concretizarem, mas dentro do escopo musical, isso acontece com mais frequência do que realmente deveria. E ano passado, todo o cenário ao qual estávamos acostumados, principalmente aos fãs do mais puro pop contemporâneo, sofreu um baque inesperado com a dissolução do grupo conhecido como Fifth Harmony após a saída não-premeditada de uma de suas lead singers, Camila Cabello.

Entre picuinhas e discussões, Cabello resolveu investir em sua carreira solo e desde então vem fazendo mais sucesso que a girlband que deixara para trás, procurando uma identidade própria que conversasse com suas raízes e até mesmo com as mensagens que gostaria de deixar para a crescente gama de fãs que acompanham seu trabalho desde o princípio. E então a concretização de seus sonhos finalmente tomou forma com o lançamento de seu primeiro álbum de estúdio, intitulado Camila - e que não poderia ter um melhor título, visto que essencialmente expressa os desejos românticos mais sexys e envolventes da cantora.

De forma geral, sua re-estreia no cenário artístico já sofria há um tempo uma generalização positiva. A concretização dessas previsões, entretanto, vai além do que se esperava, principalmente se levarmos em conta que os singles promocionais do disco poderia representar a nata das composições - e felizmente fomos apresentados a uma situação muito bem equilibrada entre altos e baixos. Os vocais de Cabello, como sempre, permanecem em uma falha proposital que transita entre o suave contralto mas encontra-se de forma aplaudível no soprano - e também é digno nota dizer que sua tecedura é capaz de tramitar as mais belas baladas de amor em contraposição à ardência de faixar mais dançantes e sensuais.

É até uma surpresa agradável dizer que Camila se inicia com Never Be The Same. A influência do techno pop, que tornou-se extremamente difundido com a chegada da era digital, se mostra de forma clara principalmente no prelúdio e nas transições; porém, é realmente e versatilidade da voz da artista que rouba o foco, começando em um tom mais grave, encontrando-se de forma momentânea nos falsetes e retornando para um ótimo refrão. Apesar da predominância do sistema modal e de uma familiar e gradativa premissa, essa previsibilidade não consegue ofuscar a envolvência da cantora. E isso não se mantém apenas neste single, alastrando-se também para músicas como Into It e In the Dark: ainda que não tenham uma evidência tão clara sim, a amálgama entre um tom mais brando e os falsetes se repete de forma satisfatória, mesmo traçando paralelos com cantoras conterrâneas como Ariana Grande e Selena Gomez.

Apesar disso, o álbum perde um pouco de seu brilho com a emergência de All These Years. A princípio, a faixa quase épica, que narra a história do retorno de um amor perdido e de que como os sentimentos do eu lírico não mudaram mesmo após vários e vários anos, é deliciosa de ser ouvida. Sua atmosfera inebriante restringe-se aos poucos avanços do arranjo musical, permanecendo fincado ao bucólico violão elétrico com algumas investidas techno. Entretanto, se pegarmos a essência da música, essa história romântica e até mesmo emocionante é varrida para debaixo do tapete: afinal o escopo produzido é muito semelhante a uma faixa tão amena quanto, intitulada Love Yourself, de Justin Bieber. A progressão musical segue o mesmo padrão, incluindo as viradas, os crescendos e o desfecho; se não fosse pela dissonância entre Cabello e Bieber - e por alguns maneirismos caprichosos ao final do último ato -, poderíamos estar lidando até mesmo com um caso de cópia ou mimésis estranhamente bem-intencionada.

Camila volta a atingir seu ápice quando investe fortemente em baladas mais lentas e permeadas pelo piano clássico. Essa fusão à prima vista desordenada de inúmeros instrumentos - de cauda, de corda e até mesmo de percussão - é na verdade a estética identitária do disco, o qual preza pelo melhor do melhor e pela criação de algo que atinja um grande número de pessoas, seja aqueles que se afeiçoem mais a hinos de sofrimento e desapego, do amor incondicional e atemporal ou da sensualidade exacerbada. Something’s Gotta Give é um desses espasmos inusitados que explora a capacidade emocional da artista e cria algo tocante, utilizando-se de elementos mais modernos para contar uma narrativa sobre reciprocidade. Essa ambiência logo encontra mais uma vez uma apatia conformista proposital e incrivelmente bem colocada com Real Friends, que conversa de certa forma com a música anterior ainda que de forma mais sutil e irônica - e mais pautada no clássico violão.

O ápice do álbum é, sem dúvida alguma, a originalidade com a qual Cabello trata suas raízes. Sabe-se que a cantoria tem descendência cubana e, levando em conta a relevante liberdade que lhe foi concedida para a produção de seu primeiro disco solo, o fato de ter abraçado sua própria história como arco geral é uma jogada muito interessante e que funciona em sua maior parte. Inside Out e sua encantadora premeditação parece uma joia bruta quando comparada, por exemplo, com She Loves Control, um conto de empoderamento marcado por uma estética ao mesmo tempo nostálgica e modernizada para um ritmo que ainda encanta qualquer um que o ouça.

Havana, o principal single do álbum que inclusive tornou-se um sucesso inesperado entre o público e a crítica, é a declaração de amor de Cabello às suas matrizes latinas. A música mais uma vez é configurada com uma roupagem pop dançante e que avança timidamente para vertentes eletrônicas, mas que logo é refreada pela presença das inúmeras características cubanas: nessa arquitetura musical muito bem delineada, temos as extensas variações e heranças da Europa e da América Latina mesclados em uma abordagem eletroacústica entre jazz, rock, mambo, salsa e merengue. Essa diversidade não apenas é muito bem-vinda como também fornece uma prematura identidade para a cantora, que pode explorar seu infinito potencial de vários modos.

Uma estreia memorável e inédita é talvez a principal característica a ser concedida para Camila. Permitindo que uma jovem e incrível voz como a dessa artista consiga se aventurar por caminhos nunca imaginados, é mais que óbvio que sua saída do grupo que a tornou famosa, mas a endossava em uma reciclagem musical, não poderia ter vindo em hora melhor.

Nota por faixa:

  • Never Be The Same - 5/5
  • All These Years - 3,5/5
  • She Loves Control - 4/5
  • Havana - 5/5
  • Inside Out - 3,5/5
  • Consequences - 3,5/5
  • Real Friends - 4,5/5
  • Something's Gotta Give - 4,5/5
  • In The Dark - 4/5
  • Into It - 4/5
  • Never Be The Same (Radio Edit) - 5/5

Camila (Idem, EUA – 2018)

Gravadora: Epic/Syco
Lead: Camila Cabello
Composição: Camila Cabello, Adam Feeney, Leo Rami Dawod, Jacob Ludwig Olofsson, Noonie Bao, Sasha Sloan, Brittany Hazzard, Ali Tamposi, Brian Lee, Andrew Watt, Pharrell Williams
Gênero: Pop Latino, Techno Pop
Faixas: 10
Duração: 36 min.


Crítica | Cheek to Cheek - O Incrível Duo de Gaga e Bennett

O jazz surgiu no final do século XIX como um movimento norte-americano de contracultura, emergindo como uma das principais características do crescente empoderamento da cultura negra em Nova Orleans. E bom, se tal entidade artístico-musical primeiro deu-se como uma afronta para o classicismo elitizado, não é nenhuma surpresa que Lady Gaga, após receber duras críticas com seu álbum ARTPOP (o qual foi redescoberto anos depois com um apoio incontestável), tenha migrado bruscamente para essa vertente criativa, aliando-se a um nome muito conhecido e com o qual já havia trabalhado antes: o incrível e talentoso Tony Bennett.

Em 2011, Bennett e Gaga realizaram sua primeira parceria, com a performance de The Lady is a Tramp em Duets II: The Great Performances. Após o lançamento oficial, à época representando uma versatilidade incrível para a cantora que acabava de sair de sua era de autoaceitação com Born This Way, os críticos ovacionaram de modo nem um pouco premeditado a amálgama onírica de duas vozes tão diferentes - uma mais ríspida e inclinada para o tenor, e outra fincada no contralto coloratura. Três anos depois, o cantor, tendo se filiado de modo quase fraternal à artista, convidou-a para realizar um projeto intitulado Cheek to Cheek, no qual os dois se juntariam para regravar o suprassumo do jazz e do blues em um disco totalmente diferente, modernizado e nostálgico ao mesmo tempo. O resultado não foi apenas uma investida espontânea, mas também uma união feita por mãos divinas.

O álbum inicia-se com o animado e nova-iorquino Anything Goes, nos transportando para a década de 1930 em uma Manhattan que acabava de sair da I Guerra Mundial e preparava-se para adentrar em mais um conflito bélico. A atmosfera familiar e acolhedora é própria dos pequenos pubs noturnos da metrópole, permitindo que o ouvinte inclusive imagine-se sentado à frente de um balcão amadeirado, enquanto sente o acre cheiro de cigarros e uísque à medida em que o saxofone, o piano e a suave bateria mesclam-se em uma composição emocionante. Espere também ouvir os convencionais e tão aguardados solos instrumentais, conduzidos com tamanha maestria que fica difícil não querer se levantar da cadeira e arriscar alguns passos para acompanhar a fluidez com que os acordes são construídos. Em I Won’t Dance, essa euforia toma ares similares, mas um pouco mais sutis e agradáveis de ouvir em um momento de calmaria.

O lead single homônimo para o título do disco é um de seus incríveis ápices. Orquestrado de forma dúbia, a faixa começa na forma de uma melódica balada romântica, servindo apenas como prólogo para a entrada dos instrumentos próprios do jazz, caminhando gradativa e paralelamente ao crescendo da voz de Gaga e ao poder de manutenção grave de Bennett, cuja fusão adiciona ainda mais complexidade e emoção para o resultado final. É até mesmo possível ouvir as influências contemporâneas do pop nessa música, perscrutadas pela identidade da cantora e que contrastam brilhantemente com o escopo geral do álbum.

Apesar da ambiência alegre, Cheek to Cheek também resgata as incríveis epopeias trágicas que acompanharam a história desse gênero musical, cuja principal ideia era também fornecer uma visão mais humana para o cenário artístico da época ao criar narrativas de sofrimento amoroso, abandono e cessão às drogas e ao álcool como forma de fugir da cruel realidade. Não é surpresa, pois, que mais uma trilogia emerja da colaboração entre Gaga e Bennett, entretanto com seus próprios solos. Ela entrega-se a uma história em que encontra uma ruína iminente e obrigada a abandonar sua felicidade e aceitar a solidão em Lush Life. “Eu costumava visitar todos os lugares alegres para experimentar a vida”, ela diz na primeira estrofe, realizando uma ode para os bares de jazz frequentados por tristes rostos femininos. A priori, ela sente-se bem, principalmente com a aparição de uma figura estranha e misteriosa, mas que parte com a mesma rapidez que aparece, deixando-a sozinha e com a certeza de que “estava errada de novo”.

Mesmo com a composição esperançosa, ela sempre retorna para seu sofrimento interno. E conforme a bateria dá lugar a um arco basicamente formado por violoncelos e violinos, Gaga mais uma vez se vê nos pubs que outrora frequentava com alegria, terminando a tragédia dizendo que irá aproveitar a vida e apodrecer com as pessoas que também estão sozinhas. Em uma contrapartida irônica, Bennett dá a resposta cândida, não como a figura misteriosa supracitada, mas sim como um espectador que a enxerga platonicamente como uma dama a ser cortejada, mas que carrega um triste semblante em Sophisticated Lady.

O álbum encerra-se de uma forma catártica. Em uma rendição teatral e com ares latinos, Bang Bang (My Baby Shot Me Down) configura-se como o segundo solo de Gaga para a totalidade do disco. Usando e abusando de sua tecedura vocal, ela permite-se deslizar através das notas, adornadas com os sons em crescendo do trompete clássico e até mesmo do bumbo, para contar uma das histórias mais intimistas da persona que encarna: um tour de force que a acompanha desde a infância, onde conheceu o amor de sua vida. Não sabemos se esse amor permaneceu no âmbito fraternal ou se ele evolui para algo romântico, mas não é isso o que importa. A real mensagem vem com a chegada do último ato da música, o qual configura-se como a explosão de sentimentos internalizados pela cantora, deixando-se levar pela frustração de ter perdido alguém sem qualquer motivo e que a destruiu. Até mesmo o jogo de palavras com o título da música é extremamente bem pensado, referindo-se tanto à brincadeira de mocinho-bandido, passando pelo assassinato da pessoa que ela amava e como isso a impactou de forma irreversível.

Cheek to Cheek é uma obra para os séculos: uma tragédia, uma comédia, um louvor ao jazz, nostálgico e modernizado, trazendo duas das maiores vozes de todos os tempos em uma combinação emocionante e fluida. Gaga e Bennett transformam música em magia nesse disco - e não podemos deixar de nos sentir saudosistas ao pensar que esse duo talvez tenha feito essa única obra e não volte a trabalhar novamente.

Nota por faixa:

  • Anything Goes - 5/5
  • Cheek to Cheek - 5/5
  • Nature Boy - 4,5/5
  • I Can't Give You Anything But Love - 4/5
  • I Won't Dance - 4,5/5
  • Firefly - 4,5/5
  • Lush Life - 5/5
  • Sophisticated Lady - 5/5
  • Let's Face the Music and Dance - 4/5
  • But Beautiful - 5/5
  • It Don't Mean a Thing (If It Ain't Got That Swing) - 4,5/5
  • Bang Bang (My Baby Shot Me Down) - 4,5/5

Cheek to Cheek (Idem, EUA – 2014)

Gravadora: Streamline, Insterscope
Lead: Lady Gaga, Tony Bennett
Composição: Cole Porter, Irving Berlin, Eden Ahbez, Jimmy McHugh, Dorothy Fields, Jerome Kern, Oscar Hammerstein II, Otto Harbach, Cy Coleman, Carolyn Heigh
Gênero: Jazz
Faixas: 12
Duração: 38 min.


Crítica | ARTPOP - Uma Ode ao Sexo, às Drogas e à Criatividade

ARTPOP talvez seja o álbum mais controverso de Lady Gaga. Não apenas por afastar-se completamente do dance pop e do eletro rock típicos de seus álbuns anteriores, endossados com uma investida mais metal em Born This Way, mas por falar abertamente sobre assuntos considerados tabus pela sociedade mais conservadora e retrógrada. Não é à toa que, à época de seu lançamento, a cantora declarou ironicamente que iria revolucionar o cenário musical - e ela de certo modo fez isso, não pela construção das faixas do álbum, visto que todas partem da mesma base, mas sim por trazer à tona assuntos que são discutidos pelas pessoas, só não publicamente. E também não é nenhuma surpresa que o disco tenha se tornado um fracasso de crítica e tenha sido redescoberto recentemente como um dos mais subestimados da cantora.

Fincado completamente no synthpop, uma versão mais visceral e eletrônica do pop clássico, o álbum em si fala sobre crimes passionais, sexo, drogas e, em seu escopo total, sobre a criatividade. Em diversas faixar, Gaga utiliza sua reputação e as crescentes críticas ao seu estilo e às suas mudanças identitárias para mostrar que é uma artista completa, uma participante da indústria do entretenimento que preza pela originalidade e que, ao mesmo tempo em que conversa com os fãs, também conversa consigo mesma. Não é à toa que, após o lançamento de The Fame Monster, a cantora tenha preferido utilizar de acontecimentos pessoais para criações cada vez mais intimistas.

Aura é a música que abre o álbum. Iniciando-se com técnicas de influências musical western, principalmente a presença dos mariachis, Gaga disserta sobre sua própria criatividade, a qual está protegida por um véu metafórico que também serve como refúgio para sua aura artística. Não é à toa que essa insanidade emerge inúmeras vezes pelas risadas dissonantes no começo e pelo uso de alteradores eletrônicos de voz em certas partes, conferindo uma aproximação ao electronic dance music que não só torna a faixa interessante de ser analisada, mas também envolvente. E se essa crueza é vista com certa cautela aqui, em Applause, o lead single do álbum, nota-se um grande amadurecimento da própria Gaga, a qual faz uma homenagem para seus fãs - os little monsters - e abraça os aplausos que recebe com tanto carinho, não se importando com duras críticas que recebeu em sua carreira.

A criatividade defendida com unhas e dentes pela cantora não se restringe apenas à sua persona, mas também alastra-se àqueles que sempre participaram de sua vida e permitiram que insurgisse como o ícone que é hoje. Pode-se falar, então, que a extensão de sua personalidade finca-se nos próprios figurinos irreverentes e completamente chocantes que utiliza, saudados com imensa ovação nas incríveis composições de Fashion! e Donatella: enquanto uma fala com grandiloquência sobre o trabalho dos designers e sobre sua capacidade de tradução materialista os desejos mais inerentes do ser humano, a outra explana-se como uma ácida crítica ao mundo em que modelos são submetidas para aproximar o onírico dos meros mortais (“Você comeu apenas uma salada hoje; boulangerie”, ela diz em certo momento da segunda faixa).

As drogas também entram como parte importante dessa fase de Gaga, principalmente a maconha. Em diversas momentos, é possível ver como as propriedades tranquilizadoras dessa planta permitiram que as músicas da cantora fossem compreendidas muito além da superfície - uma apologia sincera e clara. Mary Jane Holland utiliza um dos inúmeros sinônimos para a droga e inclusive fala sobre o infundado tabu acerca dela e que acompanha as gerações mais velhas (“Eu sei que mamãe e papai me acham uma bagunça total”); Jewels N’ Drugs, por sua vez, traz isso para um mundo mais elitizado, permeado pelo escambo e pela uso de produtos mais pesados por aqueles que conseguem adquiri-los. Até mesmo Dope utiliza-se como base a planta, apesar de ter um foco melódico muito mais emocional, dizendo que o eu lírico necessita do amor de alguém que esnobou em detrimento da inebriante e passageira sensação que as drogas lhe garantem.

ARTPOP também é um disco humano; ele fala de pessoas, de como a influência delas, tanto no âmbito psíquico quanto no físico, contribuem para o endossamento de Gaga como pessoa. Seja desesperada por “uma cura” perante alguém que prometeu amá-la e depois a abandonou, em MANiCURE, ou apenas escolhendo passar uma única noite com um amante que poderá levá-la nas mais diversas aventuras, como Gypsy, ela preza pela companhia e não gosta de se sentir sozinha. Essa assunto, por mais que não seja visto com maus olhos, não é comentado de forma tão aberta por estar associado a momentos de fraqueza, até hoje condenados por uma parcela da sociedade firmada no patriarcado.

Mas é com o expressionismo inegável de Swine que esse querer pela companhia atinge um nível assustador. Em um ritmo sintético esquizofrênico e muito pesado, tanto os acordes em teclado quanto os crescendos posicionados de forma profusa na construção musical, a faixa fala basicamente sobre abuso sexual, o mesmo sofrido pela cantora por um produtor quanto tinha apenas 19 anos. Ela não liga para mais nada nesse ponto do álbum, e apenas preza por falar o que ficou preso em sua garganta por um tempo cruelmente longo.

Talvez o ápice do álbum venha com seu empoderamento. É um fato dizer que artistas femininas que falem abertamente sobre sua sexualidade são vistas como depravadas - e Gaga não apenas decide mover-se através dessas turvas águas, como também cria inúmeros afluentes para que artistas posteriores possam fazer a mesma coisa, incluindo Miley Cyrus e, mais recentemente, Selena Gomez. Em sua trilogia artística, o suprassumo musical que inclui Artpop, Venus e G.U.Y., a cantora permite-se realizar diversas referências a movimentos vanguardistas no mundo inteiro, buscando inspiração em Andy Warhol e na cultura greco-romana para criar um microcosmos sexual totalmente desprovido de preconceitos. Ao mesmo tempo em que aceita sua condição como um ser que necessita dos prazeres da carne, ela também almeja pelo controle da situação, podendo ir e vir quando quiser e escolher com quem e com quantos quer estar (“Eu quero o poder para te deixar, eu quero o controle desse amor”). Gaga não fala de obsessão, e sim de um poder pessoal que é de extrema importância para a sobrevivência humana.

Tudo culmina em Do What U Want, um dos singles promocionais que fez grande sucesso nas rádios. Aqui, ela tem plena consciência de que seu corpo pertence ao outro, mas seu coração, sua mente e seu livre-arbítrio não. Buscando referência de dominação e submissão já vistas em seu álbum anterior, essa faixa abre margem também para uma possível consequência da aceitação do sexo como força-motriz de diversos momentos do cotidiano, inclusive um apreço pelo impossível e pela traição onírica em Sexxx Dreams.

ARTPOP é uma obra essencialmente irreverente. Sua completude representa uma capacidade crítica e de aceitação nem um pouco ortodoxa para Lady Gaga, e o negativismo que recebeu acerca de seu lançamento apenas mostra o quanto a obra é importante para uma libertação mais do que necessária para aqueles que se escondem. Sua visceralidade, sua crueza e seu pouco convencionalismo musical são pontos que, além de marcarem uma mudança drástica em sua carreira, permitiriam uma futura autorreflexão que, em dado momento da vida, chega para todos nós.

Nota por faixa:

  • #Aura - 4/5
  • #Venus - 5/5
  • #G.U.Y. - 5/5
  • #Sexxx Dreams - 4/5
  • #Jewels N' Drugs - 3,5/5
  • #MANiCURE - 4,5/5
  • #Do What U Want - 3,5/5
  • #ARTPOP - 4,5/5
  • #Swine - 4/5
  • #Donatella -5/5
  • #Fashion! - 4/5
  • #Mary Jane Holland - 4/5
  • #Dope - 5/5
  • #Gypsy - 5/5
  • #Applause - 4,5/5

ARTPOP (Idem, EUA – 2013)

Gravadora: Interscope
Lead: Lady Gaga
Composição: Stefani Germanotta, Anton Zaslavski, Amit Duvdevani, Erez Eisen, Paul Blair, Hugo Leclerqc, Dino Zisis, Nick Monson, Herman Blount, Martin Bresso, William Grigahcine, Todd Shaw, Carl Mitchell, Clifford Harris, Robert Kelly, David Guetta
Gênero: Synthpop
Faixas: 15
Duração: 59 min.


Crítica | Joanne - A Dolorida Alma de uma Artista

Lady Gaga talvez seja a cantora mais versátil do mundo pop contemporâneo. Não apenas por seu alcance vocal e pela tecedura nas notas que proclama com tanta destreza e habilidade, mas sim por ser capaz de criar uma identidade nas mais diversas vertentes musicais que existem, desde o electro dance, passando pelo jazz e culminando, em 2016, em um primaveril folk intitulado Joanne. E mesmo que tenha sofrido duras críticas por suas investidas cada vez mais severas e mais transgressoras quando pensamos no endossado classicismo da construção de músicas - vide ARTPOP -, ela permaneceu verdadeira ao momento em que estava vivendo e aos seus valores e ideais.

Seu mais recente álbum de estúdio também emergiu como um divisor de águas, principalmente por ser muito bem recebido pela crítica especializada ainda que tenha desapontado alguns fãs. É fácil tomar as dores dos little monsters quando estes aguardavam ansiosamente o retorno da Mother Monster para o pop, mas a ideia aqui não é agradá-los, por assim dizer. Nesse novo disco, a artista permite-se finalmente explorar seus demônios interiores e intimistas de uma forma tão singela e sutil que fica difícil não se emocionar com as inúmeras odes à sua família e até mesmo aos seus amores passados. Em Joanne, ela se vê em um beco sem saída, do qual só conseguirá sair quando finalmente colocar em jogo exatamente o que lhe aflige, o que lhe impede de seguir em frente e o que mais lhe importa: aqueles que a cercam.

O título da obra não é escolhida ao acaso, assim como todos os outros. Se suas composições anteriores tratavam de forma aberta sobre ambição, desejo e criatividade, aqui Gaga resolve repousar em seu antro de criação e desvendar os mistérios de um passado marcado por mágoas e traumas, principalmente no que concerne à sua tia, Joanne Germanotta. Para aqueles que não estão familiarizados com o nome, ela foi a tia que a cantora nunca conheceu, cujo trágico desfecho emergiu após ser diagnosticada com lúpus e que lhe impediria de usar as mãos, ou seja, seus únicos instrumentos de trabalho - afinal, ela era uma artista plástica. E apesar das dores, sua mãe e avó de Gaga entendeu que a filha não poderia continuar vivendo sem fazer o que amava.

Ame as pessoas ao seu redor. E essencialmente essa premissa que resume a triste história acerca de Joanne. E é a partir disso que a cantora se lança em um território complicado que culmina em mais uma obra-prima, tão importante que se torna passível de incompreensão por grande parte do público. Talvez a música que empresta o nome para o título seja a mais tocante de todas - eu mesmo não pude deixar de segurar as lágrimas ao ouvir a composição fincada nos acordes suaves do violão, perscrutadas pela crueza da voz de Gaga: “pegue a minha mão. Fique Joanne. O céu não está pronto para você”. A letra inicia-se já com um impacto tremendo que não permanece em uma linearidade clássica, mas expande-se para um clímax que dialoga diretamente com a dolorida alma da artista.

E se o disco fala de pessoas, ele não se mantém apenas num âmbito saudosista, permitindo criar uma amálgama positiva e negativa, de lembranças memoráveis e carinhosas contrapostas e desilusões amorosas e “problemas do coração”. É com isso que emerge a trilogia principal de Joanne. Iniciando a saga, temos Perfect Illusion, uma investida que fala basicamente de um devaneio tido pelo eu lírico, o qual acreditou piamente no amor de seu parceiro, mas que depois percebeu, ainda que tarde demais, que tudo não passava de uma “perfeita ilusão”; mesmo dilacerada, Gaga ainda tenta resgatar algum sentimento bom do que teve com essa pessoa em Million Reasons, uma rendição quase onírica e que muda os solos de guitarra para a composição abrandada do violão (mais uma vez) em um louvor por algo que a faça mudar de ideia.

Não é nenhuma surpresa que, eventualmente, ela decida seguir em frente. Com um pé atrás e decidindo que irá viver a vida - ou seja, cometer mais erros que a levarão em um caminho diferente do que esperava. Em John Wayne, uma investida bem mais country para seu CD, ela utiliza-se de referências até mesmo cinematográficas, como o nome do ator que serve de inspiração para a faixa, para chegar à conclusão de que todo homem é um “John Wayne”, ou seja, um galanteador perigoso. E ao invés de se proteger de possíveis e futuras ilusões amorosas que outrora quebraram seu coração, decide simplesmente mergulhar de cabeça.

Sua maturidade psicológica e emocional emerge com Diamond Heart. Usando e abusando de suas habilidades vocais, que mantém-se em um nível esplendoroso e aplaudível principalmente por sua arquitetura rouca e ao mesmo tempo natural, Gaga diz que ela tem um coração tão impenetrável feito diamante, mas que brilha com um potencial a ser explorado. E essa dureza e frieza é fruto de um “cruel rapaz que me deixou mais forte”, provavelmente referindo-se àquele em que acreditou piamente, mas que lhe decepcionou. O brilhantismo desse álbum é a capacidade de conversar, nas mais inúmeras instâncias, com os anseios e medos das pessoas: o medo de amar e não ser correspondido, o medo de ficar sozinho, o medo de perder aqueles que ama sem realmente tê-los conhecido.

Angel Down é a música que mais abrange a dualidade entre caos e ordem, esperança e desconsolação: mudando bruscamente para o profundo ímpeto do piano clássico, com alguns toques folk (principalmente no tocante aos vocais), Gaga fala sobre a guerra. Não necessariamente referindo-se às grandes batalhas bélicas, mas também abraçando as crises interiores que todos nós temos ou um dia teremos, e como nos sentimos ao perceber que teremos que lidar e enfrentar isso mais cedo ou mais tarde, de modo solitário e que muitas vezes nos faz desistir de continuar. E ainda que busquemos um refúgio em nossas crenças e rezas, o anjo caído ainda está lá, esperando para ser resgatado ou notado por aqueles que, mesmo indiretamente, foram responsáveis pela trágica queda.

Pensar que o disco é essencialmente depressivo é cair em uma observação muito externa e superficial; a composição completa também está recheada com criações de reafirmação de amizades, fraternidade e até mesmo apoio nos lugares em que menos se espera encontrar. Se em Hey Girl, dueto feito entre Gaga e Florence Welch, preza pela sororidade e pelo empoderamento através de um discurso feminista, Come to Mama é basicamente um apelo pelo famigerado ombro amigo que tem como principal ideia consolar o inconsolável.

Não há como negar que a principal base para Joanne são as sensações: sejam melancólicas ou prazerosas, mundanas ou transcendentais, são as pessoas que Lady Gaga ama que mantêm as engrenagens do álbum girando, e que o transformam numa investida tão íntima que chega a ser difícil não se conectar com a sutileza das composições e a visceralidade de letras ao mesmo tempo emocionantes e complexas.

Nota por faixa:

  • Diamond Heart - 4/5
  • A-YO - 5/5
  • Joanne - 5/5
  • John Wayne - 4,5/5
  • Dancin' in Circles - 4/5
  • Perfect Illusion - 4,5/5
  • Million Reasons - 5/5
  • Sinner's Prayer - 5/5
  • Come to Mama - 4,5/5
  • Hey Girl - 4/5
  • Angel Down - 5/5
  • Grigio Girls (lançado na versão deluxe) -3,5/5
  • Just Another Day (lançado na versão deluxe) - 4/5

Joanne (Idem, EUA – 2016)

Gravadora: Interscope
Lead: Lady Gaga
Composição: Stefani Germanotta, Mark Ronson, Josh Homme, Hillary Lindsey, Michal Tucker, Beck Hansen, Kevin Parker, Florence Welch, Emile Haynie, Nadir Khayat, Josh Tillman
Gênero: Soft-rock, Dance-pop
Faixas: 11
Duração: 39 min.


Crítica | The Fame - A Triunfante Estreia de Lady Gaga

Stefani Germanotta, mais conhecida por seu nome artístico Lady Gaga, começou a criar um nome próprio ainda em 2003, quando apresentava-se em pequenos pubs empoeirados do Lower East Side, em Manhattan. Apesar da poderosa voz que trazia os maiores nomes do rock dos anos 1970 e 1980 de volta ao fragmentado cenário contemporâneo, permeado por uma crescente dominação do pop puro, foi apenas em 2008, com o lançamento de seu primeiro álbum de estúdio oficial pela Interscope, que ela veio a cair na graça popular e a viralizar de forma surpreendente até endossar a fama que possui até hoje.

The Fame, como foi intitulada sua primeira obra completa, é talvez uma das maiores estreias de todos os tempos da música. Não apenas por representar uma mudança radical no cenário em questão, mas também por insurgir como uma híbrida paleta de composições sonoras que ao mesmo tempo forjaram uma originalidade faltante no meio digital, preenchendo uma lacuna há tempos aberta, além de não precisar mascarar as claras influências de nomes como David Bowie, Cher e Cindy Lauper, cuja contribuição para a indústria musical é inegável e relembrada até hoje.

A grandiosa narrativa épica composta por Gaga é uma ode ao amor e à ambição. Em outras palavras, ambos os conceitos estão relacionados em uma série de eventos irônicos e sarcásticos que desprezam sutilmente o outro em favor de uma autoaceitação dos desejos inerentes do ser humano - como visto, por exemplo, na faixa Beautiful, Dirty, Rich. Toda a composição é pautada nas fortes investidas contra aqueles que não corroboram com seu patamar - e a cantora faz questão de declarar repetidas vezes que a única coisa que realmente precisa é de forças para alcançar o que quer, independente se terá o apoio de outros ou não. Ao mesmo tempo em que deixa clara essa posição, Gaga também submete-se àquilo que não quer definitivamente como “meios para um fim” - em Again, Again, single não-oficial do álbum, a artista discorre sobre sua paixão por um homem que não pode ter e que retornou para assombrá-la com seu charme depois que ela encontrou outro alguém. É engraçado analisar que, mesmo com a suposta negação ao que realmente sente, ela considera deixar seu atual companheiro para se jogar nos braços dos “olhos castanhos e únicos”.

A epopeia abre com um dos maiores hits de sua carreira, Just Dance. Iniciando-se com uma batida dialógica do R&B, a faixa é uma ode à tranquilidade e ao divertimento, visto que gira em torno de um grupo de pessoas embriagadas em uma balada e que não se lembram do que realmente aconteceu. Gaga incisivamente repete “apenas dance, tudo vai ficar bem”, cuja frase é perscrutada por batidas mascaradas do hip hop em contrapartida ao dance music próprio do início dos anos 2000, incluindo os arranjos vocais ao mesmo tempo exuberantes e suaves. Toda a história progride através do álbum de forma quase psicológica, abandonando a cronologia de um coming-of-age para dar lugar a uma histeria obsessiva que é ocultada pelas graças da perseguição dos sonhos.

Apesar da perspectiva intimista, é possível traçar um início, um meio e uma conclusão trágica para a história que a artista nos apresenta. Em diversas faixas, incluindo a ode ao melhor estilo “Lauper encontra Os Embalos de Sábado À Noite”, Disco Heaven, Gaga quer mais que tudo mostrar-se relaxada, tranquila, como se estivesse embebida por uma inebriante atmosfera de pacificidade que pode ou não ser ameaçada por uma força externa. Eventualmente, essa barreira quebra-se e deixa margem para algo que ela definitivamente não esperava - uma pessoa que insurge como sua maior ambição e que, num estilo romântico, parece insondável e inalcançável.

Poker Face é o início de uma trilogia de autodescoberta e jogos de sedução. Uma das músicas mais lembradas da cantora gira em torno de uma sexy composição eletrônica com batidas do pop clássico e que conta a história das múltiplas faces de uma mulher - no caso, alguém cuja expressividade blasé não pode ser decifrada por aquele que tenta seduzi-la. Entretanto, esse ideal vai muito além do que diz a superfície, visto que relaciona-se inclusive com a própria história de Gaga, cuja bissexualidade admitida era outrora mascarada por seu enigmático comportamento. De qualquer forma, a “moral” se estabelece como seu alvo não conseguir ler seus olhos e entender realmente o que ela deseja.

Pode ser que, mais tarde, essa "sedução à distância" tenha dado lugar a algo mais visceral e carnal. Em LoveGame, a ambição da cantora se mostra clara até demais: ela o deseja. Ele a deseja. Os dois podem criar mágica quando se tocam - mas, realmente, de quem ela está falando? É possível que haja duas pessoas desconhecidas entre si que lutam para conquistá-la, e é essa dúbia interpretação que torna a faixa tão incrivelmente apaixonante, sem falar que, em comparação com as outras composições, ela é a mais carregada de contemporaneidade. Um processo de maturação tão complexo que se torna passível de más interpretações, mas que na verdade emerge como algo puro: sua melodia cativante deixa de lado a influência R&B e preza pelo electro, criando uma atmosfera envolvente e sexualmente tensa que conversa com o próprio tema do álbum.

A conclusão toma um rumo inesperado. Paparazzi não apenas disserta sobre ambição, mas fala sobre como o desespero e a obsessão podem ser mortais, tanto para aquele que sofre quanto para aquele que causa. “Eu irei te seguir até você me amar” é praticamente uma súplica religiosa de alguém que não pôde lidar com a dor de ser rejeitado ou ter tido seus sentimentos varridos para debaixo do tapete. Além da batida opressiva, que resgata elementos de Just Dance, Poker Face e até mesmo o louvor à fama que empresta o nome ao título da obra, a narrativa mostra o lado obscuro das relações entre fãs e celebridades e de como esse amor doentio insurge como uma ruína incontrolável. É interessante levar em conta a forma que o álbum carrega os acontecimentos, dando o pontapé inicial com um frenético ritmo sobre esquecer os problemas e finalizando-se em um ciclo vicioso e trágico.

 A redenção, nem tão bem aclamada assim, toma forma em Eh, Eh (Nothing Else I Can Say), uma melodia mista entre blues e pop que basicamente fala sobre desapego. “Tivemos um ótimo tempo, e desejo o melhor no seu caminho” é a frase que abre a composição, mostrando que o eu lírico, após ter encontrado uma grave decepção e sua mais mortal nêmeses, finalmente conseguiu deixar o causador de tudo ir embora - e não sabemos ao certo se esse “causador” é ele mesmo ou outra pessoa.

The Fame é algo único. Um disco diferente que traz faixar permeadas pelo melhor do disco, do glam e até mesmo rock. O álbum não é sobre quem você é - Gaga faria isso mais tarde com sua obra-prima -, mas como o mundo quer saber como você se expressa. Talvez possa parecer pedantismo demais, mas este é um movimento de arte que move o mundo e que, querendo ou não, fala das características mais inalienáveis do ser humano: a de ambicionar.

Notas por faixa:

  • Just Dance - 4/5
  • LoveGame - 4,5/5
  • Paparazzi - 5/5
  • Beautiful, Dirty, Rich - 4/5
  • Eh, Eh (Nothing Else I Can Say) - 3/5
  • Poker Face - 5/5
  • The Fame - 4/5
  • Money Honey - 3,5/5
  • Again, Again (lançado no Reino Unido) - 5/5
  • Boys Boys Boys - 3,5/5
  • Brown Eyes - 4/5
  • Summerboy - 4/5
  • I Like It Rough - 4/5
  • Starstruck - 3,5/5
  • Paper Gangsta - 3,5/5
  • Retro, Dance, Freak - 4/5
  • Disco Heaven (lançado no Brasil e no Japão) - 4,5/5

The Fame (Idem, EUA – 2008)

Gravadora: Insterscope
Lead: Lady Gaga
Composição: Stefani Germanotta, Nadir Khayat, Aliaune Thiam, Rob Fusari, Martin Kierszenbaum, Bilal Hajji, Brian Kierulf, Josh Schwartz
Gênero: Pop, Electro Rock, Techno, Dance
Faixas: 15
Duração: 60 min.


Crítica | Born This Way - A Obra-Prima da Autoaceitação

Em 2011, Lady Gaga já havia se firmado como um expansivo ícone da cultura pop contemporânea. Além da originalidade de suas músicas, cujo estilo também se reverenciava ao classicismo musical e irreverente das décadas de 1980 e 1990, sua paixão por falar exatamente o que pensa a colocou no centro de todos os holofotes, permitindo inclusive que sua figura fosse a mais representativa para a comunidade LGBTQ+, cujo principal obstáculo a ser enfrentado é a autoafirmação e a conquista de um espaço digno e reconhecido dentro da sociedade.

Mas é claro que a fama e o apreço de seus fãs, também recíproco, não poderia vir desprovido de críticas ferrenhas, tanto ao teor de suas composições - perscrutadas pela proximidade ao sexo, à ambição e à individualidade - quanto à sua estética pessoal, conhecida por ser totalmente fora dos padrões aos quais se estava acostumado. Logo, não é à toa que a cantora, em sua obra-prima, tenha lançado Born This Way como um ode à autoaceitação, a abraçar quem você realmente é sem se importar com as duras investidas daqueles que te cercam. E dentro de um contexto que aparentemente mostra-se mais retrógrado que progressista, criar narrativas, tanto literárias quanto audiovisuais, que sirvam de inspiração e de apoio para aqueles que se sentem desamparados, é praticamente uma benção, uma centelha de esperança dentro de um abismo obscuro e ameaçador.

O lead single homônimo de seu terceiro álbum de estúdio pode ser considerado um hino épico de resposta às críticas que não apenas ela recebe constantemente, mas sim que todos que são vistos como “anormais” e “aberrações” sofrem por terem coragem o suficiente de quebrar paradigmas seculares e, à prima vista, inquebráveis. O refrão, fazendo uma alusão à beleza única de cada uma das pessoas, repete inúmeras vezes a frase “eu sou lindo do meu modo, porque Deus não erra”, inclinando-se para uma vertente extremamente pessoal da cantora - a religiosa - para reafirmar que os indivíduos são livres para serem quem quiser e para agirem da forma como querem, visto que tem a sua liberdade e livre-arbítrio para caminharem por conta própria. Além da tocante palestra motivacional que apresenta ao público, a música já mostra um distanciamento considerável de seus álbuns anteriores, fincando-se mais em um dance-pop eletrônico que no techno. O resultado não apenas foi positivo, mas transgressor, sendo banido de inúmeros países cristãos.

Se essa canção já foi uma divisora de águas, Gaga apenas se supera com as outras bases de seu disco. Hair, um dos singles promocionais, é uma história de amor-próprio e enfrentamento muito envolvente, principalmente por sua arquitetura baseada em suaves notas de piano e saxofone clássicos que se mantém até o beat da segunda estrofe, retornando gradativamente para o forte techno-pop e alcançando seu ápice num incrível refrão. A faixa talvez seja uma das mais bem construídas de sua carreira, visto que utiliza-se de todo o potencial que possui e explora inúmeras habilidades vocais da artista. The Edge of Glory e Yoü and I entram como faixas muito necessárias e que, ao mesmo tempo, são complementares e conflituantes com a supracitada, não pelo teor narrativo, mas sim por sua composição musical que se mantém em um ritmo mais abastado e repetitivo propositalmente. Entretanto, essa possível monotonia é logo varrida para debaixo do tapete pela poderosa tecedura de Gaga e pela entrada de elementos inusitados - mais uma vez o saxofone.

Como já mencionado, a fé cristã é extremamente importante para a cantora. Não de uma forma institucional, mas sim dogmática: ao contrário da criação familiar que recebeu, ela não se baseia estritamente nas palavras de líderes religiosos para se entregar à crença de um Deus único e todo-poderoso, mas absorve aquilo que encara como imprescindível para sua própria evolução e coloca uma perspectiva individualista, inquietante e completamente repaginada com toques contemporâneos que vão desde a presença imagética de roupas de couro até a mistura de cantos gregorianos com o teclado sintético. Electric Chapel, Fashion of His LoveBloody Mary e Black Jesus + Amen Fashion são odes cristãs, a quadrúplice aliança, mas que não são ambientadas necessariamente dentro de um templo convencional: a “capela elétrica” refere-se às boates e às danceterias, locais onde o louvor à música e à expressão artística são elevadas a um nível extremo e extasiante; quanto às duas outras faixas, Gaga refere-se tanto ao momento em que conheceu um novo homem para amar, Jesus Cristo, quanto à crescente caracterização de “moda” que sua figura ganhou. “Jesus é o novo preto”, ela diz, várias e várias vezes.

Dentro dessa vertente, Judas, que também tornou-se single promocional para o álbum, emerge como uma das músicas mais afrontosas, não apenas por sua construção, mas também pela mensagem que passa: através de uma trama essencialmente descritiva, Gaga encarna a personagem de Maria Madalena para dizer que amava tanto a Jesus Cristo quanto a Judas Iscariotes, o “traidor” dos Apóstolos que tornou-se uma figura martirizada desde a Idade Média. Entretanto, colocando-se no papel de qualquer ser humano, a artista cria uma dissertação que analisa a aceitação de seu lado ruim e de seu lado bom, dois componentes da completude humana - “Jesus é minha virtude, e Judas é o demônio ao qual me inclino”.

Como se não bastasse, a cantora também abraça o seu lado compulsivo e permeado por “desejos da carne”, por assim dizer, ao construir músicas do estilo Scheiße e Government Hooker. Scheiße, iniciando-se com um prólogo inteiro cantado em alemão, dialoga com as estéticas vanguardistas de nomes conhecidos - incluindo a banda Rammstein - e aproveita para colocar seu toque único do synthpop, que viria a se tornar mais uma marca registrada de seus álbuns. A história foca num encontro sexual entre duas pessoas, na qual Gaga é a protagonista e, apesar de se mostrar como submissa e passível de fazer tudo o que o outro deseja, até mesmo conversando com alguns elementos do BDSM (Bondage, Dominação, Submissão e Sadomasoquismo), ela tem controle de tudo e não permite que outro alguém a julgue por sua sexualidade.

Government Hooker, nesse quesito, tem um afronte muito mais específico que leva as reações finais para um nível inenarrável. Na música, o eu lírico é livre para ser mal, para ser bom, para ser sexy e para se entregar completamente àquele ou àquela que a possui. E mesmo dentro desse jogo perigoso de sedução, o qual termina com uma completa rendição ao corpo e ao extremo do êxtase, ela ainda tem controle e autoestima suficientes para poder encarnar qualquer fantasia que seu par possua. De um modo claro e quase visceral, “desde que eu seja sua prostituta” é a frase que resume seus desejos, diferentemente da investida de Americano, uma narrativa essencialmente epopeica que evoca as grandes escapadas do romantismo literário em um tango eletrônico incrivelmente bem delineado e que expande até mesmo os horizontes do público.

Além do claro afastamento dos álbuns anteriores, Gaga tem uma liberdade quase completa em Born This Way, principalmente ao conseguir unir em um mesmo disco referências à ópera, ao disco e, principalmente, à corrosão imaginativa e musical do rock. O que o torna majestoso e memorável é que a cantora soa quente e humana; cada uma de suas faixas está adornada com detalhes emocionais e pessoais, insurgindo como fortes declarações cujas pesadas traduções soam como ecos de seu coração torcido e angustiado.

Nota por faixa:

  • Marry the Night - 4/5
  • Born This Way - 5/5
  • Government Hooker - 4,5/5
  • Judas - 5/5
  • Americano - 4,5/5
  • Hair - 5/5
  • Scheiße - 5/5
  • Bloody Mary - 4,5/5
  • Bad Kids - 5/5
  • Highway Unicorn (Road to Love) - 4,5/5
  • Heavy Metal Lover - 4/5
  • Electric Chapel - 5/5
  • Yoü and I - 4/5
  • The Edge of Glory - 4,5/5
  • Fashion of His Love (lançado na versão deluxe) -5/5
  • Black Jesus + Amen Fashion (lançado na versão deluxe) - 5/5
  • The Queen (lançado na versão deluxe) - 4,5/5

Born This Way (Idem, EUA – 2010)

Gravadora: Interscope
Lead: Lady Gaga
Composição: Stefani Germanotta, Nadir Khayat, Fernando Garibay, Jeppe Laursen, Paul Blair
Gênero: Pop, Electro Rock, Techno, Dance
Faixas: 14
Duração: 61 min.


Crítica | The Crown - 2ª Temporada

Crítica | The Crown - 2ª Temporada

A década de 2010 tornou-se uma das melhores para a cultura britânica. Não apenas pela emergência de múltiplas histórias da decadente nobreza anglo-saxônica e de suas peculiaridades sociais, como Downton Abbey, mas também pela retratação humanizada de uma das figuras mais controversas da história monárquica do Reino Unido - a da Rainha Elizabeth II. Em The Crown, uma das maiores joias do panteão Netflix, sua apresentação para um público acostumado ao estigma superficial da governanta é qualquer coisa menos convencional, mergulhando profundamente em sua vida pessoal, dissertando acerca de seus problemas íntimos e de sua condição como mulher tradicionalista dentro de um mundo bombardeado por drásticas e constantes mudanças.

Se a primeira temporada da série já marcou história, principalmente por ser uma das produções mais caras do serviço de streaming, o novo ano parece ter passado por um processo de lapidação extrema em que os aparentes erros foram completamente exterminados, varridos para debaixo da imensa tapeçaria da família real. Aqui, a fotografia que outrora poderia dar os ares de panfletária, opta por algo mais intimista, ao mesmo tempo em que preserva a grandiloquência e a majestuosidade dos cenários reais - Abadia de Westminster, Palácio de Buckingham, entre outros. Mas é claro que essa estética pura e emocionante não poderia atingir sua potencialidade máxima sem a ajuda de atuações soberbas.

Claire Foy, ganhadora do Golden Globe e do SAG Award de melhor atriz, retorna pela última vez como a monarca, numa segunda década de governo que, diferente da primeira - perscrutada por inúmeros nomes que tentavam derrubar sua credibilidade e taxá-la como inapta a ocupar o trono -, agora tem que lidar com a fragmentação da identidade humana. A narrativa se inicia em um tenso momento entre Elizabeth e seu marido, Philip (Matt Smith), também conhecido como o Duque de Edimburgo. Além do confronto ideológico entre as duas partes da relação - uma por se sentir infantilizado pelo poder nominal que a esposa carrega, outra por perceber que o pensamento de seu companheiro não condiz com o que prometera cumprir -, ambos tentam salvar o casamento da iminente ruína.

Primeiro, é necessário relembrar que o divórcio dentro da família real não é uma opção. Afinal, buscando princípios dogmáticos que remontam a relação de vassalagem do Estado pela Igreja da Idade Média, o rei e a rainha emergem como símbolos administradores que possuem a tarefa divina de manter a pacificidade de seu povo e garantir a estabilidade socioeconômica. Partindo desse princípio, que inclusive indica uma manutenção de valores extremamente ultrapassados à época do governo de Elizabeth, a separação entre a Rainha e o Príncipe seria visto como um escândalo e degradaria uma geração inteira - e até mesmo a própria nação. Não é nenhuma surpresa que ela resolva mandá-lo em uma viagem de um ano em um cruzeiro para cuidar de alguns assuntos da Coroa e permita que esse tempo afastados lhes forneça o necessário para voltar aos trilhos.

A priori, essa investida pode parecer superficial demais para uma narrativa com os moldes a que somos apresentados. Mas conforme os episódios se desenrolam, nota-se uma clara necessidade dessa aparência familiar e mais íntima e que dialogue nas mais diversas instâncias com as crescentes forças externas que ameaçam a força do governo e da própria figura de Elizabeth. A partir do final da II Guerra Mundial, o mundo tornou-se flagelado ao extremo, acentuando as diferenças outrora ideológicas e que, a partir do confronto armado, viria a se configurar como uma rixa histórica. A figura de Adolf Hitler é constantemente mencionada para deixar claro o ponto de vista liberalista e anti-nazista da Coroa britânica. Entretanto, mesmo com os inúmeros embates, progressos e involuções, uma figura de importância inenarrável permaneceu confinada em seus aposentos, alheia à chegada da modernidade e ao abandono dos princípios pré-Grandes Guerras, pautados no respeito, na submissão e na reverência: a própria Rainha.

Foy consegue transparecer de forma indiscutível os temores pelos quais a governante passou em uma de suas épocas mais turbulentas, mantendo a classe e a naturalidade com seus movimentos muito bem coreografados e transferindo a tensão para seu semblante. O crispar mais sutil dos lábios era o suficiente para desmistificar a inalcançável Rainha, retratada com uma expressão blasé por seus críticos mais ferrenhos. Em outras palavras, a monarquia, tão adorada por grande parte da comunidade inglesa, permanecia estagnada perante uma sociedade em exponencial progressão: não é à toa que a figura de Lorde Altrincham a.k.a John Grigg (John Heffernan), um jornalista apagado pelo sensacionalismo da imprensa que, apesar das feições vilanescas e de seus atos de humilhação, foi um dos maiores contribuintes para a reformulação dos ideais da Coroa, incluindo a aproximação de Elizabeth II para com seu povo e da extinção do abismo social instituído pela própria família real para se afirmarem como superiores.

É interessante como a composição imagética também segue essa “evolução forçada” da Rainha. Nos primeiros episódios, ainda que a luz dura do sol consiga penetrar os escuros aposentos do Palácio, os personagens permanecem amalgamados à própria arquitetura secular, como se pertencessem e tivessem vida a partir das fortes estruturas da monarquia medieval, sem capacidade de agirem por conta própria e instaurar mudanças necessárias. Conforme essa visão se amplia e Elizabeth e seu Parlamento começa a enxergar “fora da caixa”, os corpos se tornam mais delineados e dentro de uma clara distinção de planos. Em outras palavras, as icônicas figuras retomam seu poder sem tomá-lo de modo tirânico, mas sim abraçando os acontecimentos que os cercam.

Outra narrativa que funciona como ápice para a segunda temporada é a que diz respeito à irmã mais nova da Rainha, Margaret (Vanessa Kirby). Se seu arco no ano de estreia da série já era visto com olhares de pena e compaixão, a tragédia que cerca sua vida apenas aumenta. Afinal, a Princesa foi privada de casar-se com o homem que ama, o capitão Peter Townsend (Ben Miles), e resolveu afundar-se num solilóquio adornado com bebidas e cigarros para afogar suas mágoas. Sua personalidade devassa e rebelde entra em constante conflito cênico com a irmã, seja na representação imagética - roupas mais sensuais e de caimento ousado para Margaret, trajes mais andrógenos e “respeitosos” para Elizabeth -, seja nos ácidos diálogos que compõe seus ocasionais almoços.

As coisas mudam de forma brusca quando, durante uma pequena festa em que a Princesa consegue se despir do título que carrega consigo por onde vá, ela conhece o irreverente Antony Armstrong-Jones (Matthew Goode), fotógrafo pelo qual acaba se apaixonado. O desenvolvimento de sua relação pode até ter sido rápido, mas devemos nos lembrar que os dez episódios componentes da segunda temporada cobrem um período de uma década e devem ter um ritmo próprio para não caírem na monotonia. De qualquer forma, observar o início, o meio e a conclusão não-definitiva desse romance é uma obra de arte poética que resgata montagens de longas como Cidadão Kane e Casablanca - uma releitura mais sensual do classicismo cinematográfico.

Como se não bastasse sua grandiosidade, a série também tem o poder de mudar de tom sem toques bruscos. Em Vergangeheit, a narrativa épica fecha-se em uma bolha ao mesmo tempo íntima e vanguardista por revelar segredos que, à época, poderiam trazer uma vergonha milenar para a família real. De forma didática e nem um pouco pedante - muito pelo contrário, provando-se promissora e digna de ovações -, a narrativa gira em torno de documentos oficiais do fim da II Guerra Mundial que envolviam a figura já esquecida do Duque de Windsor, David (Alex Jennings), o qual renunciou ao seu cargo de Rei para ficar com a mulher que amava, sendo martirizado pelo egoísta abandono à nação.

The Crown era uma relíquia a ser admirada; agora, tornou-se um artefato envolvente e perscrutado por mistérios e histórias não contadas que devem sim ser ouvidas com a mais profunda atenção, não apenas para conhecimento e apreciação própria, mas sim para compreender-se uma perspectiva muitas vezes estigmatizada de uma família tão "normal" - em seus limites, é claro - quanto qualquer outra.

The Crown – 2ª Temporada (Idem, Reino Unido, Estados Unidos – 2017)

Criado por: Peter Morgan
Direção: Stephen Daldry, Benjamin Caron, Philippa Lowthorpe
Roteiro: Peter Morgan, Tom Edge
Elenco: Claire Foy, Matt Smith, Michael C. Hall, Victoria Hamilton, Vanessa Kirby, John Lithgow, Nicholas Rowe, Pip Torrens, Jeremy Northam, Ben Miles, Billy Jenkins, Matthew Goode
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama Histórico
Duração: 45 min.