Crítica | Maze Runner: Prova de Fogo - Uma Sequência Ruim
Se o primeiro filme da franquia Maze Runner nos introduziu a um modo muito mais primitivo e visceral das inúmeras narrativas pós-apocalípticas que se tornaram marca registrada do século XXI, não posso dizer que sua continuação obteve o mesmo sucesso em manter o frenético ritmo dos corredores do labirinto. E é de forma triste que um longa com tamanho potencial tenha se rendido à mediocridade e abraçado todos os convencionalismos do gênero de ação, criando um espetáculo muito interessante de ser acompanhado - até a página dois.
A continuação da saga se inicia com um pequeno prólogo quase inteiramente pautado em câmera lenta e com algumas novas investidas que não foram exploradas no longa original - o que é bem interessante, considerando que essa nova estética mais simétrica representa um breve momento de amadurecimento para a direção de Wes Ball. Apesar da montagem bem fragmentada, optar por esse caminho ajuda a criar uma atmosfera tensa para o cosmos arquitetado por James Dashner, autor dos romances em questão; aqui, o cineasta usa de forma contida plongées absolutos e planos detalhe para mostrar o cenário caótico no qual os protagonistas estão inseridos, e até mesmo combina os enquadramentos com uma fotografia mais desbotada e que resgata outras produções do gênero. O uso da luz dura também contribui para a reafirmação da sociedade pós-apocalíptica que agora se mostra mais intensa em comparação com o “paradisíaco” labirinto no qual os protagonistas outrora moravam.
Diferentemente da ambiência tensa e sombria construída com grande esmero na iteração predecessora, aqui já vemos a influência inenarrável das distopias futuristas que, sem sombra de dúvida, começam a traçar mais paralelos com franquias audiovisuais e até mesmo literárias que se iniciaram no século passado e perduram de forma saturada até os dias de hoje. Se em 2014 Maze Runner ocupava um patamar equivalente a Jogos Vorazes, no ano seguinte ele começou a transmutar-se em uma reciclagem monótona e que não enxerga o próprio potencial, preferindo muito mais inclinar-se para obstáculos psicológicos a aceitar sua despretensão. Conforme passamos a saber tanto no final de Correr e Morrer quanto no primeiro ato de Prova de Fogo, o mundo mais uma vez sofreu com uma catástrofe natural - o superaquecimento do globo pelo Sol, o que varreu qualquer possibilidade de vida fora de instalações específicas e que deu margem para o surgimento de um terrível e irrefreável vírus.
Ao menos essa é a história contada pelos agentes da WCKD, uma organização que raptou diversos jovens e os colocou em mortais simuladores - os labirintos. Os sobreviventes a esse experimento foram resgatados por um grupo rebelde e levados para uma facilidade muito mais segura e cuja promessa de permitir-lhes retornar para a vida que conheciam foi feita e reafirmada pelo charmoso Janson (Aidan Gillen), uma figura tão misteriosa quanto seu próprio nome - ao menos em teoria. Entretanto, é óbvio que um de nossos protagonistas, Thomas (Dylan O’Brien), desconfiaria das intenções estranhamente benevolentes de um grupo do qual nunca ouviu falar - e essas suspeitas se agravam com o inexplicável afastamento da forasteira Theresa (Kaya Scodelario) de seu grupo.
Ao final do ato inicial, os personagens que já conhecemos, com a adição de rostos novos, já conseguiram escapar de forma quase inverossímil da facilidade, correndo para as paisagens desérticas do que uma vez já foi conhecida como a cidade de São Francisco, em uma roupagem em ruínas e amedrontadora. A ideia é chegar até as montanhas, onde um outro grupo de sobreviventes montou acampamento e deseja sobreviver por conta própria. Entretanto, como também já podemos imaginar, os nossos heróis irão passar por obstáculos complexos e até mesmo mais mortais que os enfrentados no labirinto: dessa vez, não há refúgio para escapar, visto que a construção apocalíptica exala perigo o tempo todo, principalmente pela presença dos Cranks - seres humanos infectados que se transformaram em criaturas horrendas, canibais e ferozes.
A ideia seria satisfatória o suficiente se tivesse ao menos alguma coisa original dentro de seu escopo; entretanto, toda a identidade imagética puxa elementos de outros longas-metragens, incluindo Resident Evil: Extinção e Battle Royale. Desde a escolha da paleta de cores, que restringe-se ao uso de tons mais quentes em uma saturação que não causa angústia, mas incomoda pelos motivos errados, até a composição dos planos, todas as escolhas estéticas não são originais, ainda que um enquadramento ou outro seja belíssimo e poético. Algumas sequências são bem emocionantes por privarem-se da exposição e prezarem pelo foreshadowing, mas esses momentos não seguem uma cronologia ou uma progressão compreensiva, funcionando como peças soltas.
Todo o filme é movido pelo excesso de planos abertos e pela presença interminável de cenas de ação - que são adornadas com a câmera na mão e pelos planos-sequência - em detrimento de um cuidado com diálogos que também envolvam o espectador ou que até mesmo permitam que nos emocionemos com os sacrifícios mais uma vez presentes dentro desse complicado escopo. A entrada de novos personagens, como Aris (Jacob Lofland) e Brenda (Rosa Salazar) é muito bem-vinda, mas de que realmente adianta a presença de personalidades tão distintas se essa exploração permanece na superficialidade? Ora, Aris talvez seja uma das figuras mais inteligentes e mais versáteis dentro do filme, e sua presença de cena é tão ínfima quanto a de personagens descartáveis.
Prova de Fogo é, eventualmente, uma aula de como não fazer uma sequência digna para uma franquia em potencial que tinha tudo para dar certo. Desde sua amálgama de distopias futuristas até o desperdício de um elenco de ponta - incluindo as presenças de Patricia Clarkson e Giancarlo Esposito -, a continuação de Maze Runner é sofrível, por falta de outra palavra que o descreva.
Maze Runner: Prova de Fogo (Maze Runner: The Scorch Trials – EUA, 2015)
Direção: Wes Ball
Roteiro: T.S. Nowlin, baseado na obra de James Dashner
Elenco: Dylan O’Brien, Thomas Brodie-Singer, Kaya Scodelario, Ki Hong Lee, Jacob Lofland, Alexander Flores, Rosa Salazar, Giancarlo Esposito, Patricia Clarkson, Aidan Gillen
Gênero: Ação, Ficção Científica
Duração: 131 min.
https://www.youtube.com/watch?v=e8CYt6pw4Gg
Crítica | Vende-se Esta Casa - (Mais) Um Filme Ruim
O gênero terror preza pela completa catarse por parte do público, normalmente submetido a eventos de pura angústia e falta de esperança, despertando descargas de emoção que perduram durante toda a duração de determinada obra e até mesmo mais. Normalmente, essa vertente narrativa traz uma ambientação sombria ou que, olhando de modo mais profundo, oferece o necessário para que eventos sobrenaturais ou inesperados possam acontecer de forma crível e até mesmo para permitir que nós duvidemos da segurança de nossos próprios lares - e também é de modo quase previsível associar essas ambiências a, por exemplo, casas mal assombradas e milenares que carregam histórias de tirar o fôlego.
Não é nenhuma surpresa que contos considerados reais, como as entidades de Enfield combatidas pelo casal Ed e Lorraine Warren e até mesmo o secular e sangrento pano de fundo da mansão em Amityville tenham sofrido adaptações para os cinemas e para a televisão em franquias que ou penderam para o sucesso e para a originalidade, ou então para o fracasso total que reafirmaram mais uma vez a saturação do gênero. E de forma quase dolorosa é isso o que justamente em Vende-se Esta Casa - uma obra que não tem direção, identidade ou funcionalidade dentro de um escopo extremamente desgastado.
A trama tem um início interessante, porém com uma premeditação quase certeira: uma família equilibrada e feliz logo sofre com a trágica morte do patriarca (interpretado por Aaron Abrams) e é obrigada a enfrentar uma série de fluxos emocionais que impactam dia após dia em seus cotidianos, levando-os inclusive a não conseguir permanecer na casa em que vivem por motivos financeiros e psicológicos e a procurar um novo lugar para morar - que é oferecido por um parente em comum. O novo lar fica localizado em uma cidade interiorana, no alto de uma montanha isolada de qualquer centro urbano e que naturalmente pede por obstáculos dos mais variados. Naturalmente; isso não quer dizer que a história criada por Matt Angel e Suzanne Coote faça o que se espera, tentando atirar para outra direção e errando todo e qualquer alvo visível.
O grande problema do filme é talvez o desejo dos diretores, que coincidentemente fazem pontas no filme e são responsáveis pelo roteiro, de transcrever um conto vazio para as telas da Netflix - e talvez essa seja a única coisa que o afaste de ser um simulacro ainda pior que Amityville - O Despertar, outro longa-metragem totalmente desnecessário e que em nada inova. E mesmo que ambos carreguem essa semelhança, o dirigido por Franck Khalfoun ainda consegue utilizar-se de algumas sacadas cômicas para mostrar sua completa falta de preciosismo; já a nova produção original do serviço de streaming é irritantemente presunçosa e deseja se tornar algo que não irá ser nem com todas as investidas possíveis dentro de gênero que explora.
O filme é monótono; superficial; permanece em uma zona de conforto que não ousa e nem busca ousar pelo simples fato de não saber aonde ir. Essa permanência dentro de um cosmos fechado é movido apenas por objetivos que não fazem o mínimo sentido e quebram qualquer possibilidade de conexão e coerência narrativa. A complexidade dos personagens, que também não insurge em nenhum momento, reafirma a inexistência de qualquer fatos humanitário e ínfimo que seja para se tornem palpáveis o suficiente e passíveis para que possamos compreender suas angústias, suas aspirações e seus traumas. É claro que não podemos exigir muito de um filme de pouco mais de uma hora e meia e que busca nas premissas mais antigas dos thrillers uma saída menos burocrática; mas é absurdo pensar que não há tratamento, seja na história, seja na concepção estética, que o faça ter uma faísca sequer de brilho ou de originalidade.
Não há nem mesmo os pressupostos laços entre mãe e filho, os únicos remanescentes de uma filha conturbada. Dylan Minnette e Piercey Dalton encarnam respectivamente Logan e Naomi Wallace e, se o primeiro ato do filme dá a entender que seu relacionamento tem possibilidade de ser explorado, até mesmo para os eventos que ocorrem ao decorrer do longa, esse foco logo se perde para diálogos sem qualquer nexo. Em determinado momento, no auge do que se entenderia como “suspense psicológico”, ambos os personagens atacam um ao outro buscando encontrar uma forma de não se martirizar e canalizar a raiva e a angústia que sentem desde a morte do marido/pai. Mas tudo é conduzido de forma tão asséptica que a inexpressividade e as atuações canastronas nos colocam num estado forçado de letargia pura - em outras palavras, permanecemos tão inexpressivos quanto aqueles que performam bem diante de seus olhos.
As coisas não param por aí: esse escopo interno insurge também na figura de um assassino desconhecido, que não sabemos de onde veio, para onde vai ou qual a sua real motivação para os novos residentes da casa na montanha. Isso sem falar que a narrativa se vale de um pano de fundo ridículo, por falta de outra palavra - a visitação aberta para possíveis compradores. Não é possível compreender a inserção de tal subtrama na obra, visto que ela não impacta em nenhum momento na organicidade dos protagonistas e do enfrentamento de seu adversário.
Angel e Coote também falham miseravelmente na construção da atmosfera de terror. Não sabemos o que esperar, e não pelo fato da história ser intricada o suficiente para se tornar ambígua e subjetiva, mas sim pela inexistência de algo para ser aguardado: tudo ocorre na mais perfeita paz - ora, o filme nem se quer se reverencia para os clichês do gênero com os jump scares - e só engatam de forma frenética no terceiro ato, onde uma sucessão de eventos sem sentido também coloca um fim para o arco de todos os personagens de forma brusca e desnecessária, e que não causa nenhuma reação aparente no espectador.
Vende-se Esta Casa é uma obra podre e nem pode ser considerado como um simulacro dos filmes de terror ou dos thrillers psicológicos nos quais tenta se inspirar. Sua pretensão exacerbada o transforma em algo vazio e que não é digerível por absolutamente nada, nem pelos fãs do mais gore ou do mais caricato. E se houvesse uma lista prematura dos piores longas do ano, garanto que este estaria nas primeiras posições - sem sombra de dúvida.
Vende-se Esta Casa (The Open House, EUA – 2018)
Direção: Matt Angel, Suzanne Coote
Roteiro: Matt Angel, Suzanne Coote
Elenco: Dylan Minnette, Piercey Dalton, Sharif Atkins, Patricia Bethune, Matt Angel, Suzanne Coote, Aaron Abrams
Gênero: Suspense, Terror
Duração: 91 min
Crítica | O Touro Ferdinando - As Mensagens Otimistas de Carlos Saldanha
Carlos Saldanha sempre teve a habilidade de pegar ideias e piadas aparentemente sem qualquer chance de sucesso e consegui-las colocar dentro de um escopo narrativo que realmente funcionasse. Temos, como exemplo, as franquias Rio e A Era do Gelo, que buscam explicações irracionais e inverossímeis para resgatar uma cultura própria e que são, em sua maior parte, pautadas na comédia escrachada - e mesmo com a irrefreável decadências de tais animações, não se pode negar que elas fizeram um sucesso estrondoso o qual já se mantém por quase duas décadas.
Como novo projeto, Saldanha resolveu canalizar seus esforços e sua considerável capacidade artística para animação a uma das obras infantis mais famosas de todos os tempos - O Touro Ferdinando. Baseando-se no livro de Munro Leaf, ilustrado pelo icônico Robert Lawson, a narrativa gira em torno do personagem-título, um pacífico animal que nunca teve a predisposição de seus companheiros e semelhantes a lutar nas famosas arenas espanholas contra a aparente invencibilidade dos toureiros, preferindo muito mais misturar-se ao odor e à beleza das flores, utilizando-as como forma de escape da cruel realidade em que vivia.
Seguindo um padrão coming-of-age da maioria das jornadas do herói, Ferdinando (dublado originalmente pelo incrível John Cena), está em uma “zona de conforto” forçada; em outras palavras, ele se vê dentro de um cosmos que conhece, mas com o qual não se identifica, sendo motivado apenas pela figura do pai (Jeremy Sisto), um exuberante touro respeitado, reconhecido - e obviamente odiado - pelos outros animais adultos dentro do rancho principal da trama. É claro que o pai espera que seu filho se espelhe nele, mas seu tenro coração compreende as angústias do pequeno Ferdinando acerca de aventurar-se nos perigos das touradas. Entretanto, emergindo como o principal ídolo do protagonista, ele tenta convencê-lo de que o destino está traçado, de forma cândida e protetora. As coisas mudam drasticamente quando o pai é escolhido como o touro a ser enfrentado pelo famoso El Matador em uma incrível luta, nunca retornando para casa e deixando-o sozinho dentro de um ambiente hostil.
Fincando-se à mesma ideia vista em Quem Quer Ser um Milionário? ou até mesmo os convencionais clichês em Lion - Uma Jornada para Casa, Ferdinando acaba escapando de seu cárcere, tentando encontrar um jeito de encontrar seu pai. O resultado é sua chegada não predestinada a uma pequena fazenda na qual vivem a pequena Nina (Julia Saldanha) e seu pai, resgatando o então bezerro da morte certeira e dando-lhe um lar muito mais pacífico e paradisíaco. E é justamente aí que a jornada do herói começa a ganhar ainda mais forma, principalmente se levarmos em conta que a narrativa inteira é permeada por obstáculos a serem enfrentados pelo personagem principal como forma de encontrar uma reviravolta epifânica para sua vida - a qual, de modo infeliz, nunca realmente ocorre.
Acontece que o touro sempre teve em mente um objetivo, e ele o encontra ao final do primeiro ato. Logo, é de se esperar que Ferdinando mantenha e proteja o refúgio pelo qual tanto sonhou e viva sua vida sem preocupações - isso até ser capturado e levado para o mesmo rancho do qual escapou, mas agora repaginado com algumas mudanças e a entrada de mais touros e rostos não familiares. O “retorno às raízes” mais uma vez desencadeia traumas no protagonista, que tem que lidar com inseguranças e até mesmo as ameaças de seus companheiros, mesmo que sua formosura e imponência sejam de extrema necessidade para o ambiente determinista em que vive. Ferdinando não é violento por natureza - e assim que percebe a vontade de retornar para sua real casa, ele mais uma vez se vê lutando pela mesma coisa de antes. É claro que a história eventualmente torna-se repetitiva, ainda mais por se tratar de uma arquitetura voltada para o público infantil e que precisa das infames e clichês mensagens de apoio e autoestima para construírem sua personalidade.
É interessante notar, talvez de modo pejorativo, que quase todos os personagens seguem o mesmo arco: Valiente (Bobby Cannavale), o arqui-inimigo de Ferdinando, logo entra numa subtrama de redenção que o torna um dos aliados mais próximos e de extrema importância para a resolução final, incluindo a salvação dos outros companheiros do iminente abate - afinal, esse é o destino que os aguarda caso não alcancem o status de “lutador” apto para as arenas. O único a não passar por esse processo é o personagem-título, visto que o endossamento de sua personalidade é realizada no começo do longa, sofrendo nada mais que algumas lapidações e ápices de altruísmo, transformando-o no herói utópico.
Sem sombra dúvida, é Kate McKinnon quem rouba a cena na animação: dando vida à irreverente e completamente insana cabra Lupe, uma figura que realmente é a definição de escape cômico. Resgatando inúmeras referências da cultura pop e até mesmo dos costumes espanhóis, ela rende-se às desconstruções estereotípicas e insurge como um deleite para os olhos. Lupe rouba todas as sequências de pura quebra de expectativa quanto mais dramáticas, e talvez seja uma das únicas a realmente ter um arco diferenciado dentro do escopo de Saldanha: a busca pela aceitação e pelo amor, negando a “tarefa” à qual foi designada para mostrar um lado não conhecido por aqueles que convivem consigo.
Os clichês não se restringem apenas ao escopo narrativo, expandindo-se até mesmo para a composição estética. Todas as delineações animadas estão enraizadas em algo que não parece pronto, e sim em vias de ser finalizado - e essa despreocupação imagética deixa margem para que a fotografia, ao invés de prezar pelo intimismo entre os personagens, seja mais panfletária que qualquer outra coisa, mostrando a atmosfera paradisíaca da fazenda em que Ferdinando mora em contraste com o gradativo locus horrendus do rancho de treinamento.
Em suma, O Touro Ferdinando é um filme fofo, com uma mensagem fofa que é transmitida por personagens fofos. Mas não passa disso: toda a sua premissa com grande potencial eventualmente não faz jus à obra de Leaf, deixando a desejar em sua própria completude. Essa é uma investida interessante para a carreira de Saldanha - e mesmo com o esforço que depositou no longa, não é a certa para alavancar toda a sua habilidade.
O Touro Ferdinando (Ferdinand, EUA, 2018)
Direção: Carlos Saldanha
Roteiro: Robert L. Baird, Tim Federle, Brad Coperland, baseado na obra de Munro Leaf
Elenco: John Cena, Kate McKinnon, Bobby Cannavale, Jeremy Sisto, Jerrod Carmichael, Julia Saldanha, Raúl Esparza
Gênero: Animação, Comédia
Duração: 108 min.
Crítica | Roda Gigante - A Decadência de Nossas Escolhas
Há certos convencionalismos dentro da carreira de inúmeros cineastas que aprendemos a apreciar, como as construções intimistas de Alfred Hitchcock, que brinca com o zoom in e a distância focal da câmera, ou com a explicitação sangrenta de Quentin Tarantino. Entretanto, isso talvez ocorra de forma mais endossada dentro das obras de Woody Allen, cuja principal característica é a criação de personagens muito complexos, dotados de uma verborragia difícil de ser acompanhada em certos momentos e que possuem uma necessidade inenarrável de se explicarem. É isso o que acontece com sua mais nova iteração, Roda Gigante - mas não necessariamente acompanhado de conotação negativa.
De forma instantânea, a narrativa nos transporta para meados da década de 1950, mais precisamente para a onírica e saturada Coney Island, lugar onde os sonhos se tornam realidades e cada um de seus “residentes” é praticamente um personagem extraído de histórias em quadrinhos ou filmes clássicos. Ao menos olhando de fora; mas movendo-se através dos corredores à beira-mar do parque de diversões, pessoais reais se escondem por trás de toda a arquitetura colorida e alegre, vestidas com figurinos teatrais desbotados ou empoeirados - e esse é o caso de Ginny (Kate Winslet), uma garçonete que, diferentemente do que esperamos dentro de um filme do gênero, já teve grande sucesso nos palcos da Broadway e abandonou uma vida de glamour e aventuras para buscar a salvação e a estabilidade.
Desde o primeiro momento em que vemos a mulher de meia-idade correndo para juntar seu ganha-pão diário, percebemos que algo está errado. Ela mantém-se em uma rotina estressante e ao mesmo tempo monótona, vivendo em um pequeno apartamento acima do parque, dentro do qual ainda busca um refúgio para as constantes enxaquecas e distúrbios de violência do marido Humpty (Jim Belushi), o qual trabalha como operador de carrossel. É interessante ver como um lugar tão convidativo e agradável como aquele emerge como o principal responsável pelas manifestações físicas e psicológicas de seus protagonistas, que enxergam Coney Island como uma prisão sem muros cuja única salvação é a praia que se estende para além da roda-gigante. Entretanto, Ginny diz para si mesma que Humpty a salvou de uma morte precoce, resgatando-a de um momento obscuro da vida onde havia traído seu primeiro e único amor e desperdiçado a chance de ser realmente feliz às custas de um caso efêmero.
As coisas mudam com a chegada inesperada de Carolina (Juno Temple), filha renegada de Humpty que retorna para a vida do pai após se meter em uma enrascada mortal; acontece que, assim como Ginny, Carolina decidiu abandonar os valores e a educação prezados pela família para seguir seu coração, casando-se com um gângster e mergulhando em inúmeras jornadas de autodescobrimento e perigos apenas para descobrir que não era exatamente aquilo o que desejava. Diferente da salvação forçada na qual a personagem de Winslet entrou, a jovem já desejava por algo estável, uma família completa, com filhos, comida posta na mesa todo dia e uma carreira de sucesso.
Roda Gigante é um filme que fala, de forma poética e shakespeariana, de decadência. Esse tema-base finca-se a todas as tramas e subtramas e inclusive insurge como o gatilho para as resoluções finais dos personagens, os quais conversam de certo modo com os vistos em Blue Jasmine. Mesmo assim, a alma artística ainda permanece nas carcaças dos protagonistas: Ginny vale-se de sua outrora superioridade e classe para dissertar acerca dos acontecimentos de sua vida, sobre suas atitudes, suas escolhas e até mesmo para dar conselhos a Carolina, uma figura que vem para lhe tirar ainda mais a paz e é, em sua própria perspectiva, mais um indício de instabilidade. A garota, por sua vez, parece uma bonequinha de porcelana frágil e exposta ao mundo, fadada a perder ainda mais sua inocência. O marido é o bruto italiano patriarcal que detém a sabedoria necessária para o funcionamento de sua família.
Todos emergem como estereótipos dos arquétipos criados por Allen: seus personagens são sim complexos, mas para si mesmos; para os outros, eles são frutos de algo que desejavam ser, e que nunca conseguiram. E tudo isso é narrado pelo charlatão, conquistador e pseudo-filósofo Mickey (Justin Timberlake em uma de suas melhores performances), o qual também tem o sonho de ser alguém, mas seu individualismo exacerbado o impede de enxergar além da caixinha. E as coisas ficam ainda mais complexas quando ele e Ginny começam a ter um relacionamento amoroso que vai contra tudo aquilo que ela passou a defender, levando-a por caminhos tortuosos e que culminam em nada além de tragédia.
A quantidade de diálogos metafóricos e simbólicos é quase normal para um filme de Allen. Entretanto, a investida em uma narrativa não tão envolvente quanto as outras é o principal deslize: o roteiro mantém-se firme e bem estruturado até a sutil virada para o último ato, no qual nem mesmo a amálgama química entre Timberlake e Winslet é capaz de salvá-lo de seus claros defeitos. E mesmo assim, ainda que o diretor peque em um de seus pontos mais fortes, ele ressurge com uma direção segura, perscrutada por incríveis planos-sequências que diminuem a amplitude de Coney Island e aumentam significativamente o cubículo residencial da família em questão, colocando-os ainda mais em um cosmos impossível de se escapar.
Além dessa fluidez cênica, as arquiteturas imagéticas optam pela montagem entre enquadramentos mais íntimos, resgatando as identidades teatrais e que praticamente permitem um único foco de luz em detrimento do cenário. Porém, essa facilidade de transição entre o geral e o específico é perscrutado pelo incrível trabalho de Vittorio Storaro. Se em Café Society Storaro prezava pela clara discrepância entre a riqueza e o glamour de Hollywood com o dourado e pela racionalidade exacerbada de Nova York com cores mortas, aqui ele permite-se criar: a iluminação ao mesmo tempo segue e não segue um padrão específico. Segue por ter como paleta principal as cores destoantes do parque de diversões, e não segue por permitir que todas se fundam em um ciclo constante e inquebrável que conversa com os anseios de Ginny.
A personagem de Winslet, a qual brilha mais uma vez com sua versatilidade e sua entrega total a uma figura disfuncional, histérica e sem qualquer certeza do que está fazendo, oscila entre todas as facetas do ser humano. Ela é linda e horrenda, verdadeira e falsa, e essa dualidade de emoções é reafirmada mais uma vez pela fotografia. Em uma determinada cena, ela está conversando com Carolina acerca dos sentimentos da jovem por Mickey, tentando dissuadi-la de uma possível “decepção amorosa”. O diálogo é quase ofuscado pelo trabalho de cores, que varia do frio ao quente, do vívido ao melancólico enquanto a protagonista se permite acompanhar um fluxo irrefreável de sensações.
Roda Gigante pode não ter a história mais comovente do mundo, mas certamente é um dos filmes mais maduros de Woody Allen. E com um trabalho estético tão soberbo quanto este, bem como seu elenco de primeira linha, os deslizes, ainda que não por completo, até conseguem ser ignorados.
Roda Gigante (Wonder Wheel – EUA, 2017)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Kate Winslet, Jim Belushi, Justin Timberlake, Juno Temple, Max Casella, Jack Gore, David Krumholtz, Robert C. Kirk, Tony Sirico
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 101 min.
Crítica | Bright - O Mesmo do Mesmo
Pense em um filme com grande potencial: uma obra que tem como pano de fundo disparidades raciais entre criaturas fantásticas e humanos, arquitetada sobre uma atmosfera moderna e que nos relembra das distopias futurísticas das vanguardas do século XX, além de resgatar elementos da ficção fantástica que tanto permeiam a imaginação humana. É claro que uma narrativa composta por tantos elementos destoantes entre si poderia encontrar grande sucesso, emergindo até mesmo como um novo sui generis para os blockbusters hollywoodianos, ou estar fadado ao fracasso iminente por sua clara pretensão. Bom, sinto informar que Bright, o mais novo original Netflix, infelizmente opta pela segunda opção.
A trama principal gira em torno de dois policiais de uma Los Angeles completamente repaginada e que traz à tona questões sociais de extrema importância até hoje, porém exploradas de forma indevida com diálogos autoexplicativos ou saturados de mensagens clichês. A comunidade élfica é detentora dos inúmeros privilégios por sua constante reafirmação de superioridade, subjugando os humanos para uma categoria ordinária e condenando a presença dos orcs, que representam os marginalizados dentro do escopo narrativo. E em meio a tantas lutas entre essas tribos - e que nos relembram dos conflitos do gueto de Miami do início dos anos 2000 -, a união entre dois policiais é encarada como inadmissível e condenável. O humano Daryl Ward (Will Smith) e o orc Nick Jakoby (Joel Edgerton) formam o conjunto mais estranho dentro da delegacia em que trabalham, e as coisas tomam um rumo ainda mais obscuro quando descobrimos em um breve prólogo que Jakoby é o responsável indireto do tiroteio que quase tirou a vida de Ward.
O primeiro ato funciona de forma perfeita: dentro de uma sociedade familiar, mas cujas regras tomam proporções muito diferentes das que estamos acostumadas, reserva-se o início do filme para apresentações necessárias. Além dos dois personagens, vemos o constante martírio do orc por sua condição física e até mesmo histórica - um “forasteiro” cuja história é conhecida por todos e que permite ao público se conectar com o personagem. Tudo é pincelado por uma fotografia essencialmente onírica, permeada por tons alaranjados e decadentes que conversam com o estado espiritual dos protagonistas durante boa parte da jornada.
As coisas mudam de forma drástica quando Ward e Jakoby são puxados de sua rotina, envolvida pela manutenção da paz entre os povos e pela constante subserviência aos elfos, quando em uma sequência bem construída, encontram um homem largado ao relento, empunhando uma espada enferrujada e dissertando sobre o retorno de certo Lorde das Sombras e como a magia da luz seria a única coisa capaz de destruí-lo. É claro que, levando em conta a descrença da dupla, eles encaram aquilo como um episódio de pura insanidade, mas essas falas na verdade profetizam a emergência de um poderoso e obscuro grupo élfico intitulado Inferni, cujo principal objetivo é permitir que as Trevas retomem controle do mundo.
E pronto, chegamos aos clichês. Como toda boa aventura sobrenatural, a jornada em que os protagonistas mergulham envolvem não a procura de um objeto místico, mas sim sua proteção. De quem, exatamente, descobrimos ao longo do segundo ato, o qual é marcado pelas clássicas cenas de “gato-e-rato”: sequências de perseguição com montagens abruptas e uma composição cênica que torna difícil compreender o que acontece. Os eventos tornam-se até mesmo cômicos depois de um tempo, visto que as rápidas e certeiras ações parecem terem sido arrancadas de outras obras como Profissão: Perigo. Tudo é tão bem coreografado que nos levamos a nos perguntar se estamos assistindo a um espetáculo de dança e movimentos acrobáticos ou a um filme de ação que definitivamente não preza pela verossimilhança.
Não é à toa que esse abismo tônico exista: David Ayer retorna na cadeira de direção, e parece trazer sua identidade de projetos anteriores mais uma vez, principalmente na composição imagética manchada por tons vívidos de dourado e laranja. Se em Esquadrão Suicida a falta de uma mão segura para acertar a narrativa e o tom do arco principal foi o principal deslize, ele parece cometer os mesmos equívocos aqui. Após o resgate da elfa Tikka (Lucy Fry), uma ex-Inferni que detém a varinha mágica capaz de libertar o Lorde das Trevas, toda a tensa atmosfera construída cai na mesmice e na monotonia, colocando os personagens em um constante looping de obstáculos que variam pouco, de uma gangue de humanos até uma gangue de trolls e culminando no enfrentamento de uma gangue de elfos. Não há desenvolvimento o suficiente para que a empatia existe - tanto que inúmeros sacrifícios são feitos, mas de forma descartável e apática.
Ainda que as cenas de luta sejam de exímia importância para uma narrativa como essas, elas são breves, impossíveis e engraçadas o suficiente para que a transparência de sensações seja inexistente. Em Atômica, longa protagonizado por Charlize Theron, os planos-sequências permitiram que tudo fluísse de forma incrivelmente prazerosa aos olhos do público; Ayer poderia ter optado pela mesma técnica para deixar essas sequências sensoriais, mesmo que não dotadas de um espaldar dialógico considerável, mas a preferência por uma edição picotada sufoca e incomoda.
E como se não bastasse, Noomi Rapace, encarnando a líder dos Inferni, Leilah, é a figura mais desperdiçada. Pelo trailer, achamos que seu papel será imprescindível para o retorno das forças das Trevas, mas ela é tão descartável quanto seus vassalos. Sua caracterização é digna de elogios, principalmente por conseguir mesclar referências das míticas criaturas - sua imponência e seus olhos magnéticos - com um vestuário que clama pelo clássico e pelo moderno ao mesmo tempo. Entretanto, Leilah é só ação, com duas ou três falas jogadas para lhe dar o mínimo de voz. Nem mesmo os tão aguardados monólogos vilanescos dão às caras aqui, deixando que sua primeira aparição seja tão “memorável” quanto sua premeditada ruína.
Edgerton é quem salva o filme. Sua presença de cena é ao mesmo tempo adorável, ingênua e corajosa, dando vida a um personagem que, ainda que seja bombardeado por maus-tratos e palavras de condenação - ele foi exilado do próprio clã por compactuar com os humanos -, ele mantém-se fiel aos seus princípios do início ao fim da narrativa, e ao mesmo tempo consegue criar um arco coming-of-age que adiciona complexidade em meio a tantas arquiteturas lineares. Isso sem falar em sua química com Smith que, para o melhor ou para o pior, traz grandes semelhanças com a franquia Os Bad Boys.
A resolução talvez seja o cúmulo da perdição cinematográfica dentro do longa. Não há confronto direto, mas sim uma amálgama de fortes luzes brancas que emergem de uma piscina com propriedades curativas e da varinha mágica. O enfrentamento de forças opostas é puramente reflexivo, em meio à fotografia estourada e à insistente câmera na mão, é apenas mais um modo de varrer para debaixo do tapete o potencial que poderia ser explorado.
Bright é mais um erro da Netflix para o final de ano. A história é redonda e compreensível em sua totalidade, mas são os outros aspectos que, unidos, transformam-se em uma bola de neve de equívocos enfadonhos e, para não perder a ironia, hilários.
Bright (Idem, EUA – 2017)
Direção: David Ayer
Roteiro: Max Landis
Elenco: Will Smith, Noomi Rapace, Lucy Fry, Joel Edgerton, Veronica Ngo, Jay Hernandez, Edgar Ramírez, Ike Barinholtz, Andrea Navedo
Gênero: Ação, Fantasia
Duração: 117 min
https://www.youtube.com/watch?v=Wd5XugFD-lc
Crítica | O Príncipe do Natal - Os Clichês Natalinos das Comédias Românticas
As festas de final de ano estão chegando, e o que isso significa? Isso mesmo: comédias românticas aos montes. Para a Netflix, o Natal e o Ano-Novo representam épocas perfeitas para a emergência em massa de inúmeros filmes de orçamento mediano e cuja história não passa de um simulacro de inúmeras narrativas muito conhecidas, incluindo os grandes sucessos Esqueceram de Mim e Simplesmente Acontece. Entretanto, parece que os diretores e roteiristas se esqueceram de que, se as histórias em questão funcionaram, é porque eram únicas e representavam uma mudança no cenário cinematográfico com investidas originais dentro de um gênero já saturado: usar e abusar de algo já criado é um risco não muito aconselhável a ser tomado.
De qualquer modo, Karen Schaler e Nathan Atkins não se importaram muito com os fatos e utilizaram suas habilidades criativas para idealizar mais um conto de fadas moderno, intitulado O Príncipe do Natal. A narrativa gira em torno de uma jovem jornalista que procurar deixar sua marca no mundo e sair da bolha de “lapidações textuais” dentro da qual está presa na editora em que trabalha. A oportunidade surge quando sua chefe a manda em uma viagem para o reino de Aldóvia para investigar as reais intenções do herdeiro do trono, tachado como playboy e irresponsável. Ao longo da trama, o que já é de se esperar, o que se iniciou com uma jornada puramente laboral transforma-se gradativamente em um romance além de seu tempo e que pode colocar em risco todos os valores defendidos por um governo que preza pela tradição e pelo conservadorismo.
Nada de novo, por enquanto. Apenas com a sinopse, é possível ver que o longa resgata inúmeras narrativas fantasiosas e clássicas, incluindo Cinderella, para arquitetar um escopo fílmico em um estilo descartável de rags-to-riches. Ainda que às avessas, é possível ver esse abismo social e cultural que separa os personagens em encarnações tão estereotipadas quanto a própria mensagem que defende e que traz no final. Rose McIver encarna a protagonista Amber Moore, cuja personalidade é esquecível, mas adorável durante os pouco mais de noventa minutos em cena. Ela tem um objetivo claro desde o princípio, conseguir abrir espaço em uma escalada impossível para tornar-se uma repórter que ultrapassa os limites do tabloide, ainda que tenha que procurar escândalos para isso ser possível. E levando em conta as histórias que circulam a família real, ela não será bem-vinda dentro do Castelo nua e crua, recorrendo ao útil e “acidental” disfarce da tutora que deveria cuidar da filha mais nova do Rei e da Rainha, mas que teve que cancelar seus planos.
Como sempre, a personagem principal da história terá alguns obstáculos para enfrentar. E ao contrário de outras obras do gênero que colocam figuras mais jovens como impedições rebeldes e destinadas a odiá-la, a Princesa Emily (Honor Kneafsey) na verdade não a aceita à prima vista; entretanto, em algumas sequências frenéticas e que perdem o ritmo próprio das comédias românticas, ela acabam se tornam amigas e aliadas em um estalar de dedos. Emily até mesmo descobre o disfarce de Amber, mas firma um acordo de contar tudo o que sabe para retirar o estigma que seu irmão, o Príncipe Richard (Ben Lamb). Por ser o mais velho, ele é destinado a ocupar o lugar do falecido pai, mas ao contrário do que dita as regras mais puras da monarquia, tem o direito de escolher ou não levar o peso da Coroa ao seu fronte. Ainda que mantido na superfície, é interessante levar em consideração que a personalidade desse personagem esteja marcada por uma dúvida que não engloba apenas seus desejos, e sim os anseios de uma nação inteira - porém, não posso levar essa análise ao cerne, visto que ela simplesmente não existe.
Os reais impedimentos são tão envolventes quanto uma folha de papel em branco: cheia de potencial, mas completamente desperdiçada. O primeiro deles, nem um pouco memorável, insurge na figura do primo da família, Conde Simon (Theo Devaney), o próximo na linhagem caso os rumores de que o Príncipe desejaria abdicar de seu cargo se concretizem. “Uma injustiça”, Emily diz quando Amber lhe pergunta se ela não poderia ocupar o trono. O conservadorismo e o patriarcalismo é mais um dos temas a entrarem para compor a rasa base do filme, e ainda sim permanece quase intocado a não ser por algumas breves menções.
Sem sombra de dúvida, a principal figura a tentar colocar um fim em toda essa história é a ambiciosa Baronesa Sophia (Emma Louise Saunders), uma sagaz e aparentemente inofensiva mulher que é chamada pela própria Rainha Helena (Alice Krige) para tentar colocar um pouco de juízo na cabeça de Richard, levando em consideração que ambos já tiveram um caso amoroso que não deu certo. Entretanto, é possível prever que suas intenções são outras: ela almeja pelo poder e pela glória muito mais que qualquer coisa, e finge amar quem estiver disposto a realizar os seus desejos de forma mais rápida. Eventualmente, o melodrama desnecessário do longa e sua narrativa “açucarada” a tornam tão ameaçadora quanto uma colher. Ela traz um discurso invasivo atrelado ao ódio por ter sido trocada, mas não age do mesmo modo que fala, permanecendo em uma onda de juras de vingança que nunca se cumprem.
Não se pode dizer que a passagem do segundo para o terceiro ato do filme deixe a desejar. Amber acaba descobrindo um segredo guardado a sete chaves pelo falecido Rei e que nem mesmo chegou às graças de sua esposa. É claro que a situação não é a mais original possível e nem sequer pensa em puxar algumas referências da construção envolvente de narrativas de mistério, mas é possível dar certo crédito pelo esforço. Mas logo depois que essa descoberta é feita, as alegações caem nas mãos de Simon e Sophia, os quais utilizam-nas para impedir que Richard concretize a coroação e seja humilhado na frente de todos.
Um acerto, um erro - e o arco de redenção. É óbvio que uma comédia romântica aos moldes mais clichês possíveis não manteria tudo no mais perfeito equilíbrio. Faz-se necessário ter o deslize para que, em uma última tentativa, a protagonista perceba que pode consertar o que fez sacrificando seu amor em nome dos sonhos de outrem. É basicamente isso o que acontece em meados do último ato. Todavia, o filme tão “natalino” quanto este não poderia acabar em uma atmosfera pesada: logo, espere sim ver o Príncipe saindo do conforto e da segurança de seu Castelo para resgatar uma donzela de sua monótona vida em Nova York e levá-la de volta para um sonho aparentemente impossível.
Em suma, O Príncipe de Natal é uma ótima pedida para preencher qualquer lacuna que existe em seu final de ano. Seus personagens lineares e unidimensionais, perscrutados por uma profusa e entediante narrativa, combinam-se em mais uma formulaica comédia romântica que adiciona pouco ou até mesmo nada para o gênero.
O Príncipe do Natal (A Christmas Prince, EUA – 2017)
Direção: Alex Zamm
Roteiro: Karen Schaler, Nathan Atkins
Elenco: Rose McIver, Ben Lamb, Alice Krige, Honor Kneafsey, Sarah Douglas, Emma Louise Saunders, Theo Devaney, Daniel Fathers
Gênero: Comédia, Romance
Duração: 92 min
Star Wars: Os Últimos Jedi | Diretor fala que Kylo Ren ainda pode se redimir
Cuidado: spoilers à frente.
Star Wars: Os Últimos Jedi trouxe Kylo Ren/Ben Solo escolhendo o caminho das trevas em um momento decisivo do filme, matando seu mestre Snoke e usurpando controle de toda a Primeira Ordem. Entretanto, a saga intergaláctica é bastante circular quando pensamos em arcos de queda e redenção dentro da família Skywalker, e o diretor Rian Johnson já está revelando que o Episódio IX tem espaço para Kylo encontrar seu caminho de volta para a Luz.
Em entrevista ao site IGN, Johnson afirmou que o antagonista pode encontrar sua redenção, pontuando que dentro da escala vista na saga Skywalker, Kylo não está nem perto de ser tão ruim quanto seu predecessor. "Você está brincando? Vader era pior que Kylo jamais será, acredito eu, e Vader conseguiu se redimir. Além disso, devo dizer que não estou envolvido com o roteiro do próximo filme. Sou apenas membro do público, assim como você, então quando falamos do que pode acontecer agora, é o que estou pensando".
Star Wars: Episódio IX trará algumas grandes ameaças e pontas soltas para serem resolvidas, e que foram traçadas em Os Últimos Jedi. Uma das maiores é a redefinição da natureza e do conflito entre luz e trevas, bem como a ideia de Kylo Ren tornar-se um Jedi Cinzento, balanceado entre os dois extremos da Força.
O mais recente filme da nova trilogia está atualmente nos cinemas. Confira nossa crítica com spoiler aqui!
Crítica | As Aventuras de Tadeo 2: O Segredo do Rei Midas - Uma Animação Esquecível
A jornada do herói é o conceito narrativo que move a maioria das histórias. Seja na literatura, no cinema, no teatro ou até mesmo na música, é possível traçar um paralelo sobre as inúmeras produções artísticas com o eu lírico, o qual sempre busca por um objetivo, uma ambição, e passa por obstáculos para conseguir alcançá-lo e finalmente concluir seu arco. É claro que, dependendo do teor da obra, essa características se mostra mais escancarada - como Star Wars e Harry Potter -, e em outras, mantém-se em um nível de sutileza - Réquiem para um Sonho. De qualquer maneira, os passos a serem seguidos pelos personagens seguem um padrão formulaico que, para entrar em um patamar de considerável notoriedade, deve ser visto, revisto e reformulado em novas perspectivas e com uma irreversibilidade psíquica ainda mais envolvente que a normal.
Talvez a vertente mais explorada acerca da jornada do herói seja a aventura mística. Criando um escopo fantástico e que transcende os conceitos de palpabilidade e verossimilhança, esse tipo de trama normalmente coloca personagens humanos dentro de uma viagem épica de autodescobrimento mascarada com a ideia de “salvação mundial” ou “busca pelo equilíbrio universal”. A franquia Indiana Jones talvez seja o melhor representante do que estamos falando aqui, trazendo o personagem-título em missões quase impossíveis que conversam com inúmeras mitologias milenares e até mesmo extraterrestres. E é a partir dessa premissa que As Aventuras de Tadeo 2: O Segredo do Rei Midas se constrói - não que isso tenha funcionado muito bem, infelizmente.
Tadeo Jones (Óscar Barberán) é um engenheiro aspirante a explorador. Após suas aventuras no primeiro As Aventuras de Tadeo, que incluíram uma visita a Macchu Picchu e o retorno de um rei múmia para seu povo, ele finalmente entrou para a faculdade de arqueologia de Chicago e tem como principal inspiração uma antiga colega, Sara Lavroff (Michelle Jenner), cujo sucesso iminente a deixou um tanto quanto inacessível. Logo a princípio, percebemos que a dupla possui uma história passada, um possível arco romântico que terá uma conclusão ou uma freada brusca com o passar do tempo. Como já podemos imaginar, essa distância entre os dois é uma das principais barreiras enfrentadas pela personalidade do protagonista, que não é lá grandes coisas, mantendo-se em uma superficialidade condescendente.
Agora mudemos para a trama mítica: Sara, em uma de suas expedições, parece ter encontrado o pergaminho para o Colar de Midas, um artefato divino concedido ao Rei que o permitia transformar tudo o que tocasse em ouro. Entretanto, esse dom desejado por muitos logo se mostrou uma maldição, visto que ele transformou sua própria filha numa estátua dourada e teve de abdicar de seus poderes espalhando os componentes do objeto em três templos distintos, para recuperar a criança. É claro que toda essa lenda é uma realidade cobiçada pelas mentes mais ambiciosas do mundo, incluindo a soturna figura de Jack Rackham (Miguel Ángel Jenner), que corrobora um plano com seus comparsas para raptar a exploradora e obrigá-la a achar o colar perdido.
O escopo formado é bem conhecido pelo público, incluindo o herói e sua ajudante, que emerge na dúbia e um tanto quanto irritante construção da assistente Tiffany (Adriana Ugarte). O vilão, uma encarnação de todos os antagonistas já vistos no cinema e na televisão - e caracterizado como tal, com uma expressão franzina e amedrontadora, um corpo robusto e uma voz tenebrosa -, a “donzela em perigo”, que no caso é a personagem mais inteligente e logo mostra-se muito mais forte que qualquer um ali e, como desfecho, não poderíamos nos esquecer do escape cômico. Teoricamente, esse arquétipo de quebra de tensão insurge com o retorno de um rosto conhecido, a Múmia (Luis Posada), cuja construção consegue arrancar risadas em diversos momentos, seja por sua falta de noção ou por sua irreverência histórica.
A priori, As Aventuras de Tadeo não parece ser um filme pretensioso, mas sim com o intuito de divertir satisfatoriamente um público infantil que se relaciona com um outcast e que se vê na possibilidade fazer aquilo que bem entender. Entretanto, após entrarmos na segunda metade da história, toda a história começa a se levar a sério demais - e isso não seria um problema caso houvesse uma mensagem a ser passada. Entretanto, como comentei no início do texto, sua inclinação e sua clara homenagem a outras obras do gênero transformam uma aventura com potencial para ser agradável em um simulacro adornado com diálogos autoexplicativos, uma fotografia redundante e pequenas resoluções que parecem cair do céu.
Como se não bastasse a amálgama desequilibrada de saídas ocasionais, o filme também peca no quesito identidade. Por vezes, a estética, que poderia muito bem se aproximar com As Aventuras de Tintin, de Steven Spielberg, abandona trejeitos clássicos e até mesmo algumas investidas originais para se firmar no panfletarismo. Os personagens viajam ao redor do mundo buscando as peças do colar perdido, isso é um fato; mas analisando mais de perto, estamos, na verdade, sendo expostos àquilo que já conhecemos.
Em suma, a nova animação da Paramount é esquecível. Uma reciclagem de obras de ação e de aventura que, em sua essência, não agrega em nada e chega a satisfazer bem pouco seu público-alvo - que definitivamente pode encontrar uma alternativa muito melhor se procurar com um pouco mais de atenção.
As Aventuras de Tadeo 2: O Segredo do Rei Midas (Tadeo Jones 2: El Secreto del Rey Midas, Espanha – 2017)
Direção: David Alonso, Enrique Gato
Roteiro: Jordi Gasull, Neil Landau, Javier López Barreira, Paco Sáez
Elenco: Óscar Barberán, Michelle Jenner, Adriana Ugarte, Luis Posada, Miguel Ánger Jenner
Gênero: Animação, Aventura
Duração: 96 min.
https://www.youtube.com/watch?v=jWn4eSvLyNs
Artigo | Por que a compra da Fox pela Disney seria ruim para os filmes
Há alguns meses, os estúdios Disney declararam que estavam com escopos iniciais de adquirir as propriedades intelectuais da 21st Century Fox. Em outras palavras, a companhia visava ao recolhimento dos direitos de criações que, essencialmente, pertenciam a si própria: afinal, sabe-se que essa grande indústria tem suas inúmeras divisões incluindo a Pixar, com a qual foca na realização de animações, a Lucasfilm, parceira com a qual produz a franquia Star Wars, e a Marvel, cujos direitos de alguns personagens haviam sido vendidos para a Fox - incluindo o panteão acerca de Quarteto Fantástico e X-Men.
Hoje, 14 de dezembro, o acordo finalmente foi fechado ao escandaloso preço de quase 60 bilhões de dólares, e já recebeu inúmeras críticas a respeito do monopólio cinematográfico e da clara "eliminação a concorrência", visto que as duas empresas representam seis dos maiores conglomerados midiáticos da indústria do entretenimento mundial. A guilda de escritores conhecida como Writers' Guild of America West inclusive fez uma pesada declaração dissertando acerca das leis protecionistas de livre-concorrência e de contrapor-se à fusão.
A negociação feita entre as gigantes hollywoodianas não representam apenas o começo de uma nova era para o cinema e para a televisão. É válido lembrar que os estúdios Disney são carregados com um estigma claro e cada vez mais endossado em relação a suas produções: é inegável dizer que a companhia traz um enfoque muito grande e limitador em narrativas de super-heróis ou aos moldes da ficção fantástica. Se pensarmos nas últimas produções lançadas - Thor: Ragnarok, Viva - A Vida É uma Festa e, para 2018, Uma Dobra no Tempo -, é fácil traçar um paralelo atrofiador para o real potencial com o qual o público lida. Tudo gira em torno do impossível e da certeza de um sucesso de bilheteria estrondoso.
Apesar das declarações que reforcem a liberdade criativa de roteiristas, produtores e diretores, seria ignorante pensar que não existiriam limites - limites esses que inclusive tornariam ainda mais difícil encontrar um lar para filmes que não se enquadrem nesse saturado padrão.
Os estúdios Fox, em comparação à Disney, possuem uma gama muito mais extensa de gêneros fílmicos e televisivos. Apenas em 2017, os longas-metragens atravessaram os extremos entre o drama baseado em fatos reais de Depois Daquela Montanha e retornaram para o mistério tragicômico de Assassinato no Expresso do Oriente - isso sem falar nas memoráveis e icônicas obras que a companhia permitiu chegar às telonas, como Arquivo X: Eu Quero Acreditar, O Diabo Veste Prada e O Fantástico Sr. Raposo. Os elementos dentro desses produtos audiovisuais são extremamente complexos e diferentes entre si - e, querendo ou não, seriam padronizados por uma recorrência over-the-top de sua mais nova compradora. Em outras palavras, filmes com indicação para maiores e que teriam uma potencialidade interessante até mesmo aos circuitos de festivais, sofreriam um brusco corte para permaneceram na "zona de conforto".
Mesmo com esse cenário aparentemente caótico, alguns produtores declararam que a fusão Disney-Fox emerge como um alerta de que a desbotada e antiga forma de fazer negócios está desaparecendo. Em entrevista ao site Variety, Mike Medavoy, CEO da Pheonix Pictures, declarou que "o modelo atual não consegue se sustentar. A Disney é que a está na melhor posição já faz alguns anos". De acordo com Medavoy, menos pessoas vão aos cinemas, e as companhias estão lucrando mais com a televisão; a indústria fílmica parece cansada e ultrapassada.
Mas nem todos estão "em luto" pelo acordo. John Sloss, fundador a Cinetic Media e agente de negócios, não espera que a fusão afete o cenário midiático com tanta força, visto que a imersão de companhias como Netflix e Amazon possibilitou o número de compradores de projetos audiovisuais, auxiliando inclusive a preencher uma lacuna com filmes como Mudbound e The Big Sick, cuja possibilidade de serem abraçados por estúdios tradicionais seria bem menor. Além disso, ambos estúdios possuem dinheiro para gastar e uma sede por conteúdo original que atraia usuários. A grande ansiedade que se apossa de Hollywood agora é baseado na incerteza da consolidação da grande mídia, ele diz, que é infundada.
O grande ponto-chave da questão resume-se à gama a ser explorada pela Disney. Afinal, a Fox detém franquias de estrondoso sucesso mundial, incluindo Avatar e X-Men. Entretanto, a companhia também é responsável por longas-metragens que tem uma idealização muito mais volta para a corrida às premiações, como o recente The Post, dirigido por Steven Spielberg, e A Forma da Água, de Guillermo del Toro. Quem consegue imaginar esse robusto número de produções mais independentes ou que não se encaixem nos blockbusters sendo continuamente produzido pela idealização utópica do Magic Kingdom?
"Parece que haverá uma chance a menos de descobrir a magia de filmes que não seguem uma fórmula", declarou um produtor que se recusou a ser identificado. "O medo é que tudo se torne mais leve e adocicado".
Artigo | A Tenebrosa História de Ed e Lorraine Warren - e uma Menor de Idade
Não são apenas os fãs do gênero de terror que estão familiarizados com os nomes de Ed e Lorraine Warren. O casal, que ganhou reconhecimento mundial na década de 1970 por resolverem inúmeros casos sobrenaturais - incluindo as famosas aparições de Amityville e Enfield -, realizavam suas "ações benéficas" com o puro gosto de livrarem o mundo em que vivemos de espíritos malignos, apesar de terem um retorno financeiro altíssimo com a publicação nove livros e inúmeras palestras.
O nome do duo talvez tenha sido ainda mais imortalizado com a adaptação de suas histórias para os cinemas através das competentes mãos de James Wan, o qual idealizou a franquia Invocação do Mal e Annabelle, todas derivadas de assombrosas narrativas envolvendo possessões, bonecas demoníacas e uma constante busca pelo mal original. Os filmes, protagonizados por Vera Farmiga e Patrick Wilson, arrecadaram mais de 1,5 bilhão de dólares, e não entraram apenas para a lista dos longas-metragens mais bem-sucedidos da indústria hollywoodiana, mas tornaram-se memoráveis pelo retrato humanizado de seus protagonizados.
Mas até onde essa perspectiva dialoga com os verdadeiros acontecimentos?
Sabe-se que os filmes, adquiridos pelos estúdios Warner Bros., são baseado sim em fatos reais, ainda que nem todos acreditem piamente nas terríveis sequências além-vida que lidam com assuntos muito maiores aos que estamos acostumados. Entretanto, um recente artigo publicado pelo site The Hollywood Reporter pode ter refutado essa licença poética adquirida pela companhia - e garantimos que o buraco do poço é muito mais fundo do que se possa imaginar.
De acordo com a matéria, publicada primeiramente no dia 06 de dezembro de 2017 e repostada uma semana mais tarde, a felicidade do casal, transparecida com uma clareza inenarrável no filme, pode ser apenas mais uma máscara. Afinal, ao que tudo indica, o indestrutível amor entre Ed e Lorraine, reafirmado diversas vezes durante a narrativa principal, possuía um elemento a mais que permaneceu escondido por vários anos antes de finalmente insurgir como uma reviravolta: Judith Penney.
Aos 15 anos de idade, em meados da década de 1960, Penney era apenas uma jovem adolescente cuja vida mudou drasticamente ao conhecer o patriarca da família Warren, que, à época, trabalhava como motorista do ônibus da escola local de Monroe, Connecticut. E foi desse modo como os dois se conheceram e desenvolveram um "relacionamento amoroso" que levou Ed a convidá-la para morar com ele e com a esposa. Em uma declaração oficial feita em novembro de 2014, Penney falou abertamente que passou os próximos quarenta anos mantendo relações sexuais com ele e com a clara ciência de Lorraine. Inicialmente, a garota permaneceu num quarto à frente dos aposentos ocupados pelo casal, mas logo depois foi transferida para um pequeno apartamento acima da casa principal. "Uma noite ele dormia lá embaixo", ela disse. "E outra, lá em cima".
Ainda que sem uma declaração oficial, os estúdios Warner declararam não saber nada sobre isso. Ed faleceu em 2006, e Lorraine, que já enfrentava outras acusações juntamente a Gerald Brittle acerca da divisão dos lucros da franquia cinematográfica e dos direitos autorais não concedidos à companhia, está em meados de seus noventa anos, tornando-se incapaz de responder à emergência das notícias. Entretanto, documentos oficiais resgatados pelo THR mostram claramente que o acordo feito entre ela e a New Line Cinema, produtora dos filmes, foi bem mais sórdido que o imaginado.
Penney também ajudou a manter a reputação dos Warren como demonologistas, principalmente nos casos locais que ajudaram na disseminação de suas habilidades. Afinal, Ed era um estudioso do sobrenatural, enquanto Lorraine firmava-se como uma poderosa médium. Entretanto, a garota também poderia representar sua queda, visto que fazia parte de um passado e presente obscuros: dessa forma, a matriarca fechou um acordo com a produtora para manter o reconhecimento de Penney às escondidas, impedindo que qualquer apologia à pornografia infantil, prostituição, estupro e pedofilia manchasse o nome do marido.
Mesmo em 1963, ano oficial em que a jovem se mudou para a casa da dupla, o relacionamento entre um maior de idade e um menor era proibido - e os Warren quase foram expostos publicamente várias vezes. No mesmo ano, a garota foi presa após alguém reportar sobre o ocorrido para a polícia local. Ela passou a noite na delegacia e o detetive encarregado do caso tentou persuadi-la a assinar uma declaração admitindo o caso, mas Penney recusou-se a cooperar e foi reportada para uma instituição de delinquência juvenil no mês seguinte.
Em maio de 1978, beirando os trinta anos de idade, a jovem mulher acabou engravidando de Ed. Ainda no documento de 2014, Penney acrescentou que Lorraine conseguiu manipulá-la para abortar a criança, simplesmente porque a vinda do bebê iria arruinar toda a carreira que estavam construindo. Ela também disse que, apesar das devoções católicas e de sua fervura religiosa, os Warren prezavam pelo dinheiro muito mais que qualquer coisa - inclusive abandonando-a logo depois do procedimento em casa para continuar o trabalho. "Eles queriam que eu dissesse para todo mundo que alguém havia entrado em meu apartamento e me estuprado, e eu não faria isso. Eu estava muito assustada. Não sabia o que fazer, mas aborto. Naquela noite, eles me buscaram no hospital, me deixaram em casa sozinha e foram realizar uma palestra". Mesmo assim, Ed constantemente afirmava que Penney era "o amor" da vida dele.
E isso não era tudo: Lorraine também sofria abuso doméstico nas mãos do marido. Logo após o lançamento do primeiro filme de Invocação do Mal, o produtor Tony DeRosa-Grund enviou um e-mail aos executivos tanto da Warner quanto da New Line avisando que a história estava muito longa da verdadeira. Também iniciando um confronto jurídico após ser demitido sem justa causa das sequências e dos spin-offs da franquia, ele declarou que estava "horrorizado com o retrato nem um pouco realista entre Ed e Lorraine Warren". "Ed era um pedófilo, um predador sexual e um marido abusivo", ele escreveu. "Lorraine permitiu que Ed fizesse isso, mesmo sabendo que era ilegal, e que continuasse por quarenta anos. Eles mentiram em público".
A história pode ser uma mudança irreversível para nossa visão em relação ao casal Warren. Afinal, pelo que percebemos com todas as produções, sua química e sua paixão eram como uma fortaleza que inclusive os permitia seguir em frente perante os mais difíceis obstáculos. Agora, parece que a história tem uma lacuna, uma brecha obscura perscrutada com mentiras e atos horrendos.