Provavelmente quando muitos cinéfilos ouvem a palavra aventura, imediatamente pensam na figura de Indiana Jones. A criação de George Lucas e Steven Spielberg no final da década de 70, logo após o primeiro ter levado seu amor pelas soap operas e romances espaciais ao cinema com o Star Wars original, nasceu desse desejo similar da dupla em resgatar elementos de seu passado: no caso, as sessões matinês de aventura que os dois cineastas tanto gostavam quanto criança.
A aventura de gênero Swashbuckler, ou “herói de capa e espada”, muito presente nos antigos serials e revistinhas pulp. É até curioso quando traçamos um paralelo com o cinema contemporâneo, onde cineastas como J.J. Abrams ou os irmãos Duffer, de Stranger Things, sempre miram no passado e na nostalgia para contar novas histórias, e justamente naquelas iniciadas por Lucas e Spielberg. Porém, ainda que rendam um bom entretenimento e aquela agradável descarga de saudosismo, nenhum deles foi capaz de criar algo novo e influente quanto o que a dupla atingiu em Os Caçadores da Arca Perdida.
A trama principal começa quando Indiana Jones (Harrison Ford), que divide seu tempo entre professor universitário e arqueólogo explorador, é acionado pelo governo americano para ajudar em uma tarefa decisiva contra o movimento nazista. Soldados de Adolf Hitler estariam atrás de um objeto místico conhecido como a Arca da Aliança, uma relíquia bíblica onde Moisés teria guardado as tábuas dos Dez Mandamentos originais. Nas mãos de Hitler, a Arca representaria um grande poder, e a capacidade de vencer as forças Aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. Assim, Jones e um grupo de exploradores são enviados em uma corrida contra o tempo para encontrar a arca perdida antes dos nazistas.
De Volta para o Passado
Receita clássica dos matinês adorados por George Lucas, o trabalho do roteirista Lawrence Kasdan é dos mais consistentes. Partindo do argumento de Lucas e Philip Kaufman (que trouxe a ideia da Arca da Aliança para o projeto, após uma sugestão de seu… dentista), o autor de O Império Contra-Ataca e O Despertar da Força faz um excelente trabalho ao se manter no básico: praticamente todos os personagens de Os Caçadores da Arca Perdida são baseados em arquétipos, mas nenhum deles carece de personalidade.
O próprio Indy é um dos personagens mais célebres do cinema americano, encaixando-se no perfil do herói de ação clássico, mas com diversas peculiaridades que o tornam especial, desde seu senso de humor ácido, seu jeito desajeitado para atingir um objetivo e também sua inteligência. Todos os vilões são propositalmente rasos e maniqueístas, com o nazismo incorporando todo o mal da Terra de forma cartunesca, mas que jamais soa estranho nessa proposta.
E saudações ao dentista de Philip Kaufman, pois a Arca da Aliança é um dos macguffins mais fascinantes que o gênero já nos trouxe. É uma relíquia de conceito intrigante e que foge do óbvio, e não é de se espantar que nem Lucas nem Spielberg tenham achado algo tão único quanto a Arca nas três continuações que viriam a seguir. Kasdan usa esse objeto místico e constrói uma trama engenhosa a seu redor, com os personagens tendo que enfrentar diferentes “etapas” e encontrar outros artefatos que os levem até ela, como o medalhão sob posse da Marion Ravenwood de Karen Allen.
A mistura de aventura escapista, drama histórico e até thriller de espionagem, vindo com uma inesperada reviravolta sobrenatural é uma aposta feita de forma tão segura, e que viria a influenciar – e ainda o faz – diversas produções e filmes na mesma linha, mas com pouquíssimos atingindo um resultado parecido.
Mago da Direção
Mas por mais que eu fale sobre o roteiro, não há como negar que este é um filme feito por sua direção. Steven Spielberg estava em um dos momentos mais espetaculares de sua carreira, saindo do sucesso de Contatos Imediatos do Terceiro Grau e o subestimado 1941 – Uma Guerra Muito Louca, e comandando o clássico E.T. – O Extraterrestre logo após sua experiência com Indy. Em Caçadores, Spielberg faz seu primeiro filme assumidamente de ação, mesmo que Encurralado, Tubarão e 1941 tivessem lá suas setpieces, aqui é uma aventura pipoca do início ao film, e esta é uma categoria na qual o cineasta viria a se tornar um especialista.
A cena de abertura por si só é uma aula sobre como se introduzir um personagem e seu universo, com a câmera de Spielberg mantendo um mistério sobre a identidade de Indy – a fotografia de Douglas Slocombe habilidosamente cobre o rosto de Ford com sombras- , mas construindo sua personalidade e sua figura icônica através de enquadramentos que retratem sua coragem e demonstrem suas habilidades; vide os planos fechados do chapéu, da jaqueta de couro e do chicote no cinto longo antes do protagonista sacá-lo contra um agressor. Visual storytelling do mais puro, e Spielberg então parte para o suspense aventuresco ao ilustrar Indy e o único companheiro restante (um jovem Alfred Molina) a invadir um templo antigo e buscar um artefato perdido, o que resulta na imagem clássica do herói sendo perseguido por uma bola gigante.
É um cuidado estético e bem elaborado pelo jogo de câmera do cineasta, e que se mantém ao longo das outras inúmeras sequências de ação do longa. Entre tiroteios em butecos, corridas para se parar um caminhão e uma luta de punhos em uma pista de aviação, o que mais garante charme ao projeto é a forma como Spielberg confere humor à ação.
História clássica de bastidores, foi sugestão de Harrison Ford que Indy, ao ser encarado por um habilidoso espadachim no mercado do Cairo, simplesmente atire no oponente ao invés de começar uma luta elaborada com seu chicote – como dizia o roteiro originalmente. Um improviso sensacional que saiu do mero fato de Ford e diversos membros da equipe estarem enjoados por conta do calor e da comida local, e que perfeitamente acabou definindo um dos traços da personalidade de Indy.
Ao longo de outras duas cenas de ação, o herói “pede” para um dos oponentes esperar enquanto ele se prepara para voltar à briga, e casualmente responde a um dos colegas que o pergunta qual é o seu plano: “eu não sei, invento no caminho”. Frases e ações impagáveis, e que só Harrison Ford seria capaz de entregar com tamanho carisma e naturalidade, naquele que definitivamente é o papel mais marcante de sua notável carreira.
Sendo um exemplar dos anos 80, e literalmente iniciando a década, a esmagadora maioria dos efeitos especiais de Caçadores são feitos de forma prática. Temos bonecões de borracha e animatronics para servir como os capangas mortos, enquanto a necessidade de uma virada mais sobrenatural praticamente leva o filme a um caminho de terror trash. Qualquer um que tenha assistido ao filme quando criança está eternamente marcado pelas imagens dos nazistas tendo seus rostos retorcidos, explodidos e derretidos quando a Arca demonstra a magnitude e horror de seu poder, e Spielberg e sua equipe se divertem aqui.
Tudo bem que os matte paintings e projeções dos “espíritos” da Arca são imagens que hoje surgem consideravelmente datadas, mas ainda provocam impacto, assim como o efeito maravilhoso do nazista Ernst Toht (Ronald Lacey) literalmente virando um mingau diante de nossos olhos.
Com um cuidado especial para a ação, o que impressiona também é como Spielberg mantém seu mesmo olhar técnico para as cenas mais expositivas. Por exemplo, a cena em que Indy e Brody (Denholm Elliott) são abordados por agentes do governo, e o arqueólogo lhes explica o mito da Arca da Aliança, Spielberg filma boa parte do diálogo em um plano aberto com todos os quatro personagens ali, bem dispostos através de uma mise en scène que coloca os agentes – e o espectador – em uma sala de aula, onde Indy até usa do quadro negro para apresentar alguns conceitos que virão a ser importantes futuramente; uma exposição que não soa forçada, afinal o protagonista é de fato um professor.
Vemos também a marca de Spielberg se desenvolvendo, onde o cineasta trabalha em planos longos que sempre mudam a posição dos personagens e a movimentação graciosa da câmera, dando a forte impressão de que um corte aconteceu, mas permanecendo na mesma tomada. A iconografia também é um fator que Spielberg e Slocombe exploram com maestria, como na cena em que Indy visita Marion em seu bar, jogando uma gigantesca sombra sobre a moça, mas sendo Marion uma mulher destemida – e a mais memorável da galeria do arqueólogo – ela é muito capaz de se opor à presença de Indy, e a sombra vai logo se esvaindo ao longo da conversa.
E que tipo de crítica seria esta se nem ao menos mencionasse a trilha sonora de John Williams? Mago das músicas de Star Wars, o maestro já vinha trabalhando com Spielberg desde Tubarão, e não cansado de nos entregar temas memoráveis, ele atinge um dos ápices de sua carreira com a peça musical de Indiana Jones. É um tema alegre, aventuresco e até espalhafatoso, que sumariza todos os sentimentos e temas da franquia, além de oferecer também trilhas emocionalmente demarcadas, como o tema amoroso com Marion e a orquestra mais opressora e pesada para retratar os nazistas. Mais um trabalho de gênio, para variar.
Os Caçadores da Arca Perdida é um filme de aventura perfeito, sendo um dos exemplares mais dignos e perfeitos que o gênero já viu. Indiana Jones já nasce uma figura icônica, graças às boas ideias de George Lucas e o virtuosismo técnico de Steven Spielberg, que entrega seu primeiro grande filme de ação de forma divertida e inteligente, usando a nostalgia de um período muito específico para criar algo completamente novo. Um exemplo a ser seguido.
Os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark, EUA – 1981)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Lawrence Kasdan, baseado no argumento de George Lucas e Philip Kaufman
Elenco: Harrison Ford, Karen Allen, Paul Freeman, Ronald Lacey, John Rhys-Davies, Denholm Elliott, Wolf Kahler, Alfred Molina, Anthony Higgins
Gênero: Aventura
Duração: 115 min