Em 2003 o futuro dos filmes live-action da Disney mudaria para sempre. Naquele ano, mais precisamente em 29 de agosto, estreou Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra baseado em um passeio temático dos parques megalomaníacos da companhia. Creio que na época, tinha apenas nove anos – uma idade fácil de se impressionar e não muito exigente com entretenimento. O resultado não poderia ter sido outro, me encantei com o universo apresentado pelo filme e por seus personagens inesquecíveis. Três anos depois a franquia retorna com um filme inferior ao primeiro e no ano seguinte, o terceiro longa destrói a reputação da cinessérie por causa de seu ritmo irregular, história maçante, metragem absurda, diálogos chatíssimos, segmentos infinitos – vide a parte do “sonho de Jack Sparrow” e várias outras falhas. Finalmente, a série volta com um ar renovado neste quarto filme.
Novamente sem seu querido Pérola Negra, Jack Sparrow continua a procurar a Fonte da Juventude. Após passar em Londres para ajudar Mr. Gibbs, o pirata reencontra uma paixão do passado e, consequentemente, acaba embarcando no Queen Anne’s Revenge – navio do pirata mais temido por todos piratas, o Barba Negra. Lá ele descobre que sua ex-namorada é filha de Barba Negra e que os dois estão determinados em encontrar a tal Fonte já que o pirata corre risco de morrer, mas para isso, é preciso encontrar itens para um ritual macabro. Enquanto isso, Barbossa – agora corsário do reino Inglês, tenta capturar Sparrow com outros planos em mente.
Desbravando os sete mares
O roteiro de Ted Elliot e Terry Rossio se comporta mais como uma relembrança das características marcantes da série do que uma proposta de reinvenção criativa. O espectador vai encontrar piadas inteligentes, os clássicos planos de fuga improvisados de Sparrow, impasses de armas, reviravoltas repentinas e a imprevisibilidade da narrativa. Esses aspectos começam a dar claros sinais de desgaste criativo, mas ainda conseguem divertir o publico. Porém o maior problema dos roteiristas é o primeiro ato da fita que termina quando Barba Negra finalmente aparece. Lotado de diálogos redundantes, vazios e chatos, poucas sequências agitadas, uma história enrolada e lenta, o início do filme abandona o espectador no ócio – aguentar a primeira parte do filme é uma dádiva de que você pode se orgulhar depois da projeção.
A história deste quarto filme soa muito vazia – a sensação no fim do filme de que pouca coisa interessante foi contada é muito forte. Sparrow não tem um motivo real para continuar a busca pela Fonte e Barba Negra é o antagonista mais ameno e fraco da franquia. Isso é fácil de reconhecer por causa de uma cena em que Barbossa ainda mostra os traços malignos de sua personalidade. Aliás, ele continua sendo o personagem mais interessante do filme e a causa de sua busca pelo vilão desperta a atenção da plateia.
Outro aspecto curioso do enredo é o abandono de vários personagens que fazem falta na história como a dupla de piratas Pintel e Ragetti ou a antiga tripulação do Pérola. Os personagens novos não têm tanto carisma como os antigos e causam certa antipatia com o público, por exemplo, a sereia Syrena e o clérigo Philip. Estes substituem Will e Elizabeth no arco romântico obrigatório da narrativa. Apesar de o roteiro proporcionar um fundo mais trágico e apaixonado que poderia facilmente conquistar o espectador, seus personagens pouco ajudam e assim acabam completamente excluídos – repare que Philip não tem outra razão de existência na trama além dessa.
Até mesmo a alma da série que eram os entraves explosivos entre os navios foram deixados de lado. Aliás, o filme todo carece de cenas memoráveis de ação que o consagrem na série. Entre tantas outras burradas do roteiro, também estão às soluções rasas, fáceis e ligeiras para diversos conflitos. Por exemplo, o clímax imprevisível do filme que é resolvido com muita correria sem o mínimo desenvolvimento. Novamente, erra em deixar Barbossa em terceiro plano do foco narrativo, além do pouco destaque de Angélica no filme. Mais um aspecto negativo é a relutância dos roteiristas em desenvolver Sparrow. Ele está se tornando aos poucos um personagem redundante e previsível e isso destrói o espírito inovador que tinha na trilogia original. Neste filme, eles tinham a oportunidade perfeita de evoluir o emocional de Jack com a condição de Barbossa, o reencontro com Angélica, e a amizade com Mr. Gibbs – este tem um papel importantíssimo para a narrativa. E, infelizmente, quando tenta solucionar o segmento das sereias de maneira complexa, acaba chateando o espectador porque novamente a utilização de efeitos visuais foi desperdiçada – as cordas encantadas do Queen Anne’s Revenge teriam “pescado” as sereias em menos de cinco segundos.
Entretanto, o filme possui alguns aspectos positivos. O segmento das sereias é a mais interessante do filme – absurdamente fantástica! Os diálogos entre Barbossa e Sparrow enriquecem a qualidade do filme. As poucas revelações do passado de Sparrow também satisfazem a curiosidade do espectador. As seletas cenas de ação conseguem empolgar e as referências aos filmes anteriores são um presente para os espectadores atentos. Fora isso, o casamento da narrativa fictícia com o período histórico é muito bem realizada. Também há a transformação hilária de Barbossa de pirata para corsário.
Yo Ho, Yo Ho! A pirate’s life for me
Johnny Depp mudou o conceito de atuação quando apresentou seu Jack Sparrow. O personagem cheio de tiques e manias rapidamente conquistou todos os espectadores ao redor do mundo. Graças à liberdade proporcionada pela direção e dos roteiristas, Depp fez o mais carismático personagem de toda franquia. Mesmo com três experiências vivendo Sparrow, consegue surpreender novamente. Aqui, continua com os traços marcantes do personagem como seu jeito único de andar, sua postura, a inclinação de seu corpo, seus inúmeros tiques nervosos, seu sotaque indistinguível e acima de tudo a fantástica linguagem de seus olhares que se comunicam com o espectador. Apesar de manter todos estes traços marcantes do personagem, arrisca diversas vezes novas expressões faciais e um grito ensurdecedor divertidíssimo.
Penélope Cruz não deixa ser ofuscada pela presença de Depp. Sua atuação é bem sensual, mas muito comportada por causa da censura PG-13. Ela é a presença definitivamente feminina que a série precisava. Cruz exala aquele ar espanhol apaixonante ajudado muitas vezes pelo sotaque latino carregado. Geoffrey Rush continua com seu carisma fantástico. Ele refaz totalmente o perfil de seu personagem graças a transformação que ele passou no intervalo do filme 3 ao 4. Rush aproveita inúmeras cenas para fazer tiradas cômicas muito inteligentes. Além disso, firma seu papel de maior antagonista da série. A maldade é charmosa em Barbossa. Suas expressões tanto físicas quanto faciais misturadas com a pronunciação ríspida e cheias de curvas de sua fala dão uma dimensão muito forte da personalidade do personagem.
Ian McShane nãofaz jus à reputação histórica de Barba Negra. Toda sua atuação é muito serena, imutável e elegante – características desprezadas por qualquer pirata. Nunca o espectador encontra momentos de ira e ódio como os de Bill Nighy quando incorporo Davy Jones. McShane deixa seu personagem muito cortês se portando como um cavalheiro ajudado pelas expressões de aparente cansaço físico. Barba Negra é o vilão mais fraco e educado de toda cinessérie aparentando ser mais um vovô do que um pirata tirano temido por todos.
Sam Claflin e Astrid Berges-Frisbey substituem Orlando Bloom e Keira Knightley. Os dois são tão ruins que é praticamente impossível analisá-los. As expressões de dor de barriga de ambos os atores cansam nos primeiros minutos que entram em cena. Eles até tentam fazer um esforço e criam um sotaque horrível. Claflin e Frisbey conseguem causar saudades de Bloom e Knightley no espectador para ter uma idéia da dimensão da falta de carisma deles. O resultado de disso foram os personagens mais chatos e insuportáveis da franquia. Keith Richards e Judi Dench em suas participações especiais relâmpago atuam com mais vontade do que estes seres abismais.
Tudo depende da luz
Dariusz Wolski foi o diretor de fotografia dos três filmes anteriores e retorna novamente para o quarto filme. No inicio do longa, para retratar Londres como muitos cinegrafistas optam, utiliza tons esbranquiçados mortos e frios, alguns desfoques e faz questão de capturar as ruelas úmidas da água da chuva em contraste da atmosfera seca. Porém, assim que a história sai de Londres, sua fotografia torna-se escura e sombria ao extremo. A melhor modelagem de luz do filme ocorre logo no começo, quando Sparrow combate uma pessoa em uma taverna. Ali, o cinegrafista utiliza brilhantemente a contraluz modelando belas silhuetas – realmente uma coisa muito bela de se ver. Outro destaque é a utilização de fontes luminosas naturais, ou seja, a oscilação da luminosidade causada pelas chamas inconsistentes do fogo dá outra dimensão em algumas cenas, principalmente na que citei acima.
É interessante acompanhar como ele se transforma junto com a situação de Barbossa. Enquanto corsário, ela é continua com as características fotográficas apresentadas em Londres, tudo muito claro, branco e higiênico. Repare que assim que Barbossa sai do navio da marinha na Baía Whitecap, ela começa a escurecer ganhando uma textura pesada e densa. Mesmo com imagens muito escuras, a modelagem do fotografo é bem mediana.
Para disfarçar as perceptíveis cenas rodadas em set, Wolski exagera na dose de névoa. A maioria das imagens do filme é embaçada pela névoa do gelo seco deixando muito difícil de ver o que se passa na tela quase sufocando o espectador. Quando a luz finalmente volta a aparecer em sua fotografia, a sensação é de alívio. Para compensar o excesso de escuridão, o cinegrafista recompensa os olhos do espectador quando abre as lentes de suas câmeras. Os planos gerais do filme são belíssimos aparentando ser pinturas.
Como sempre a direção de arte e o figurino dão um show de participação. Os cenários grandiosos e a reprodução do navio Queen Anne’s Revenge são de tirar o fôlego. Destaque para o cenário da Fonte da Juventude, simplesmente indescritível de tamanha beleza paradisíaca. Os figurinistas continuam a confeccionar vestimentas memoráveis para os personagens. É interessante notar como as roupas se correlacionam com a personalidade dos personagens, vide o clássico traje de Jack Sparrow.
O filme perde muito nos efeitos visuais e na maquiagem – os dois são praticamente inexistentes durante o longa. Os poucos efeitos que ele possui não conseguem impressionar e não empolgam deixando difícil de acreditar que se trata da mesma equipe que construiu o redemoinho digital e a tripulação “molusquiana” de Davy Jones no terceiro filme.
Mal de Zimmer
O melhor compositor da atualidade é Hans Zimmer. Dentre de suas maiores especialidades estão criar temas originais, únicos, viciantes, variados e inesquecíveis. O primeiro filme da franquia foi também uma surpresa musical. Praticamente todas músicas de A Maldição do Pérola Negra são facilmente relembradas por qualquer espectador.
Infelizmente as composições deste filme desapontam visto que o compositor tem um talento e potencial assombroso. A trilha é praticamente reciclada da trilogia anterior, ou seja, os temas de maior sucesso tocam excessivamente durante o filme. Fora isso as poucas composições originais dificilmente empolgam e se destacam. A música que toca no segmento das sereias é muito criativa graças ao fundo musical composto por cantos “sereianos”, mas pela duração praticamente infinita, cai na repetição que cansa a platéia. O tema de Barba Negra é muito inferior ao de Davy Jones. Somente 25 segundos da composição são prazerosos de ouvir.
Também fiquei impressionado ao escutar uma marchinha ridícula que ilustra a guarda real. Em contraponto, Zimmer se alia a dois espanhóis, Rodrigo & Gabriela, e consequentemente a mistura de seus estilos musicais são fantásticos. Em conjunto, os compositores criam temas que lembram muito o flamenco espanhol cheios de batidas rápidas e escalas crescentes e decrescentes nas cordas do violão elétrico utilizando de vez em quando algumas distorções inteligentes.
Adeus, Verbinski!
Este é o primeiro Piratas sem ser dirigido por Gore Verbinski. O antigo diretor havia perdido a cabeça no terceiro filme da franquia – totalmente acéfalo. O ego de Verbinski inflou e assim várias cenas de ação tomaram lugar da criatividade, diversão e da narrativa interessante. Para substituir antigo diretor, Rob Marshall assume o timão do navio. Marshall é conhecido pela estética impecável de seus filmes vide Chicago e Nine. Mas o diretor pouco mudou a concepção visual da série adotando a arte do antigo diretor sem preconceitos, talvez para poupar esforços e recursos do orçamento.
Adotando novas tendências, o diretor insere apenas um slow motion completamente desnecessário, além de rodar o filme em 3D estereoscópico – igualmente inexpressivo. Marshall aponta espadas e lança carvão flamejante na platéia nunca aproveitando o efeito para impressionar e divertir. Problemas no ritmo do filme são visíveis visto que o ato inicial da película demora uma eternidade a passar. A falta de pulso do diretor para com o elenco também é perceptível. Os atores antigos da franquia não possuem química alguma com os novos, excluindo McShane e Penélope Cruz.
A coreografia das batalhas é a mais bela de todos os filmes existentes, mas a artificialidade das cenas de ação acaba tornando-as previsíveis. Marshall deve ter treinado seus dublês e atores milimetricamente para tudo sair perfeito, ao contrário de Verbinski que deixava as lutas de espadas emocionantes, orgânicas e dinâmicas que prendiam o espectador na poltrona do cinema. Às vezes o diretor consegue surpreender no conjunto de suas cenas de ação como o interessante segmento da calorosa perseguição nas ruelas de Londres.
O modo que Marshall opera suas câmeras também é característico. No início do longa o público encontra diversas panorâmicas verticais herdadas de Verbinski que apresentam os cenários e as locações paradisíacas. Também é notável a preocupação do diretor em privilegiar a atuação de seus atores. Diversas cenas são rodadas com big closes que não deixam escapar um detalhe de expressão da face do elenco. Alguns desses closes também servem como tiradas cômicas caricatas, por exemplo, as imagens desconfortantes na face gorda do Rei George interpretado com muita vontade por Richard Griffiths.
Em Marés Estranhas
O novo Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas é melhor que seu predecessor, apesar de contar com muitas falhas que podem incomodar alguns. Ele consegue divertir e garante um bom entretenimento. As atuações de Depp e Rush, as composições originais de Zimmer e as piadas inteligentes são um ótimo motivo para conferir novamente a cinessérie. Além disso, também é uma experiência interessante ver Marshall na direção do filme. Porém a franquia começa a apresentar sinais severos de desgaste e esgotamento criativo.
Parece que a fonte da juventude da Disney finalmente parece secar. Uma prequela de A Maldição do Pérola Negra contando em detalhes e mantendo as características que consagraram a série sobre como Barbossa e a tripulação do Pérola se amotinaram contra Sparrow e adquiriram a maldição seria uma ótima idéia para continuar a franquia milionária que corre sérios riscos de perder-se em águas misteriosas.
Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides, EUA – 2011)
Direção: Rob Marshall
Roteiro: Ted Elliot, Terry Rossio
Elenco: Johnny Depp, Penélope Cruz, Ian McShane, Geoffrey Rush, Sam Claflin, Astrid Berges-Frisbey, Keith Richards, Judi Dench
Gênero: Aventura
Duração: 136 min