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Crítica | Turandot no Theatro Municipal de SP – Uma Turandot cheia de cores e energia

O Teatro Municipal de São Paulo apresenta a sua última ópera do ano, Turandot, que Puccini morreu (em 1924) antes de terminá-la por completo. Finalizada por outros compositores, a versão que o Teatro nos mostra é a mais tradicional, realizada pelo compositor Franco Alfano.

Turandot é como as outras óperas de Puccini: música suntuosa, ambientação que flerta com o exotismo, uníssonos vocais e orquestrais, uma narrativa mais declamada e estática que dinâmica. Não muita coisa acontece em termos de entrecho. Turandot é uma princesa gélida que faz um desafio aos seus pretendentes: se eles acertarem três perguntas que ela formula, eles a ganham em casamento. Se errarem, decapitados serão, o que é a praxe de muitos anos. Mas o Príncipe Calaf, assim como outro protagonista pucciniano, Cavaradossi (da ópera Tosca), é um jovem destemido e apaixonado, e aceita o desafio, após se encantar pela estranha princesa. Contra tudo e todos Calaf move a narrativa. Pang, Ping e Pong, os três que são uma espécie de bufões nessa ópera, tentam demovê-lo a todo custo, porém inútil (os cantores que os interpretam estão muito bem nessa apresentação, diga-se de passagem). Calaf bate o gongo aceitando o desafio, acerta-os e propõe um enigma seu à relutante consorte. Ao final, desfaz a gelidez, arrogância e reticência de Turandot, que descobre afinal o que é o Amor.

teatro e palco em Leipzig.

Este texto fará, além da crítica ao espetáculo por ora encenado em S. Paulo, um paralelo com duas outras montagens que vi. A primeira, no próprio Teatro Municipal, em 1996, da qual tenho vaga lembrança. E a montagem do Oper Haus de Leipzig, em abril de 2017. Na comparação das três, em relação ao espetáculo, ouso afirmar que a encenação do TMSP atual é a melhor. Vou tentar dissecar os motivos, e espero que o leitor tenha a oportunidade de checá-los por si.

O Turandot dirigido cenicamente por André Heller-Lopes (que é provavelmente o melhor encenador contemporâneo de ópera brasileiro, no meu entender) é um espetáculo que consegue, numa ópera sem muita ação, ser bem dinâmico. Isto se deve a vários motivos, a concentração do cenário num espaço menor, a boa movimentação dos cantores e coro dentro da cena, a beleza do cenário e da luz, que se revelam bastante dinâmicos e de bom gosto. Particularmente eu também aprecio o respeito da direção cênica pela concepção original da ópera, que se passa numa Pequim atemporal, meio fantasiosa e mítica. E os cenários, figurinos e luz corroboram esta visão. O diretor cita que se inspirou, em termos visuais, no filme Amor à Flor da Pele, do Wong Kar-wai, que foi fotografado, em cores fortes, pelo diretor de fotografia Christopher Doyle, numa fotografia que o catapultou, depois de aprimorar o mesmo estilo em filmes como O Americano Tranquilo (de Philip Noyce) e 2046 – Os Segredos do Amor, do mesmo Kar-wai, a trabalhar em Hollywood com o direotr Shyamalan em A Dama na Água, em 2006. Se no cinema, que leva uma carga de realismo atávico, funcionou, nessa ópera esta mistura de cor e contraste se adequa perfeitamente.

cenários e figurinos em Leipzig.

O cenário, com um ciclorama no fundo, consegue produzir bastantes contrastes de luzes entre o fundo em relação às luzes do palco e, aliado a um desenho cênico cheio de padrões, consegue dar dinamismo e remeter a esta China imemorial. Compare pelas fotos com a encenação de Leipzig, onde o cenário, em tons de preto e branco, assim como os figurinos, acabam por salientar o caráter estático do libreto. A apresentação de 1996 era mais tradicional, mais pomposa e grandiosa, porém menos dinâmica. Tinha a Eva Marton, excelente cantora, mas como espetáculo estava aquém do atual. Em 1996 havia um tradicionalismo que acabava por sufocar a encenação. Há outro fator que acaba, sem querer, por favorecer a atual apresentação. Com a ideia do cenário desenhado para que parte do coro fique “assistindo” o desenrolar da ação, com o ciclorama logo atrás deste cenário, isto acaba por reduzir o tamanho do palco. Se por um lado faz com que solistas e coro fiquem espremidos quando em tutti, quase sem espaço para a movimentação, por outro gera um efeito musical muito forte. O Teatro Municipal, comparado com teatros modernos como o de Leipzig ou o Teatro Renault, é menor tanto em relação ao tamanho do palco quanto em relação à distância do espectador deste. Desse modo, o público fica um pouco mais próximo da cena. Este fato, junto ao coro compactado e aos uníssonos de Puccini, acaba por gera um efeito emocional muito forte. Ainda outros detalhes ajudam a fortalecer a apresentação atual. Turandot está, durante boa parte da ópera, em cima de um pedestal móvel, que é deslocado para diferentes posições do palco por seus súditos. Se o palco foi reduzido pela cenografia, a direção cria uma movimentação extra para sair deste nó górdio. A performance em São Paulo é, então, recheada de soluções criativas para as dificuldades propostas pela ópera. É como se Turandot fizesse as questões espinhosas para a direção, e esta passasse no teste e desposasse a ópera.

No Oper Haus, o teatro e o palco eram bem maiores que o dirigido por Heller-Lopes. Em relação ao primeiro item, há fatores prós e contras. É favorável o desenho do teatro, já que uma das maiores vantagens das construções modernas (vide o Teatro Renault, de musicais, por exemplo) é que, não importa onde você se senta, a visão nunca é extremamente prejudicada. Nesta sala, em especial, sempre se possui uma visão quase inteira do palco. Onde sentei, das últimas fileiras do foyer e quase totalmente à esquerda, via uns 90% do palco. Quem senta no TMSP em algum dos cantos sabe que a visão do palco fica muito prejudicada. A acústica da Oper Haus é de bom padrão, se percebe muito bem os diferentes timbres. O problema é que, em geral, o espectador senta mais longe da cena, o teatro é mais comprido. O palco grande permite mais espaço para movimentação e ousadias no desenho do cenário. Assim, na apresentação alemã, uma ponte, como se pode observar na foto, separava a corte e Turandot dos súditos. Esta jogada, com a movimentação entre a frente e o fundo do palco, o povo embaixo e a corte acima dava uma dinâmica muito boa. O que prejudicava o espetáculo não era então a planta do cenário, mas sim seu desenho e uso das cores. A opção por se utilizar figuras geométricas, no caso hexágonos, como decoração, acrescido ao fato de tanto cenário e figurinos ser em preto e branco, acaba por anular o efeito da boa mise en scène, realçando um aspecto um tanto estático da ópera. Além disso, cria-se uma dificuldade enorme em se reconhecer as personagens, visto que as cores e vestimentas serem padronizadas. Não se sabe direito quem é povo ou quem é soldado. Os figurinos compõem-se de uma série de capas pretas, monótono. O caso clássico da cenografia e figurinos que mais atrapalham que ajudam. A ópera fica parecendo um quadro do Mondrian sem cor. Claro, há efeitos visualmente bonitos, como a morte de Liú, onde o sangue vermelho (que também era a cor do figurino de Turandot) banha a cena, Mas eram raros os momentos inspirados, a impressão geral é algo entre o militar e uma gangue de motociclistas, quadrado e marcado.

Para se ter uma ideia dessa montagem, há um link disponível aqui:

Talvez o leitor se assuste um pouco com a minha defesa de um espetáculo nacional frente a uma casa de ópera tradicional europeia. Não é para tanto. Dentro das apresentações de uma temporada, sempre há espetáculos melhores e piores. A ópera anterior no TMSP, Pélleas et Melisandé, foi soporífera. Turandot foi a melhor da temporada, quando as coisas dão certo. Em Leipzig, provavelmente o mesmo não tenha ocorrido. Outro detalhe: a comparação, até agora, se dá em termos puramente de espetáculo, onde o aspecto cênico ganha proeminência, ao menos em minha análise.

Se a análise levasse em conta o estritamente musical, Leipzig sairia em vantagem. Quem executa as óperas lá é a Gewandhaus de Leipzig, uma das melhores orquestras do mundo, dona de uma tradição centenária. É a única grande orquestra do mundo atrelada a uma casa de ópera. A Filarmônica de Berlim, Viena, Nova Iorque e a Concertgebouw de Amsterdã tocam óperas, mas apenas em apresentações especiais. Destarte, assistir a uma ópera com uma orquestra do calibre da Gewandhaus é evento raro. As cordas nunca ficam sobrepujadas pela massa de vozes, elas sempre marcando sua presença. Fortes, calorosas, afinadas, com precisão rítmica exemplar. Um staccato é um staccato, uma colcheia é uma colcheia. uma semicolcheia, uma semicolcheia. As percussões muito precisas, exatas. A orquestra também consegue ter alto volume nos tuttis, e ser delicada nos pianos, ou seja, tocar em volume bem baixo sem perder a qualidade. Assim, a performance, em relação à orquestra, foi perfeita em Leipzig. A Sinfônica Municipal, embora tenha se apresentado muito bem, não consegue suplantar a tradição.  

Em relação aos cantores, o destaque em São Paulo fica para o Calaf de David Pomeroy. Voz volumosa, boa atuação, agudos limpos, um porte bonito faz dele um príncipe resoluto, forte, decidido, apaixonado. Surpreendente é a atuação de Gabriella Pace como Liú, com agudos longos nos pianíssimos muito bem executados e com uma interpretação pungente. Esta personagem segue a tradição das mulheres abnegadas e leais em relação ao seu amor pelo personagem principal, como a Santuzza da Cavalleria Rusticana. A Turandot de Elizabeth Blancke-Biggs é puro poder. Com um volume impressionante, nunca fica sobrepujada pelos tuttis. A sua atuação, assim como sua performance vocal, é poderosa, mas sem muitas sutilezas. Não incomoda, pois Turandot é, como dito anteriormente, uma princesa gélida, o que coaduna com o desempenho de Elizabeth. Em Leipzig, os cantores também eram muito bons, embora a atuação da Turandot, excelente cantora, fosse um pouco estática.

Deste modo, o público paulistano tem uma boa oportunidade de ver uma montagem de ópera como deve ser: cativante, calorosa e emocionante. Não é sempre que isso ocorre. Coincidência ou não, os ingresso se esgotaram rapidamente, inclusive na récita extra. E fica a dica que, quando se escolhe uma ópera conhecida e a deixa ser realizada por uma boa equipe, sem leituras extravagantes, a tendência é ter um espetáculo que enche os olhos. Que brinda a temporada enxuta, de apenas quatro óperas, com um tom promissor. Queremos mais e melhores espetáculos. E que nem sempre a crise, a falta de dinheiro, significa espetáculos ruins. Um globo de luz pode gerar um efeito muito bonito, como na atual apresentação. Falta de dinheiro não gera necessariamente espetáculos ruins. Escolhas infelizes, sim.

Texto por Adriano Barbuto. Fotos de Luciama Marchi.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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