Não acontece com tanta frequência, mas vira e mexe e aparece um filme como Vício Inerente. Sétimo filme do cineasta único Paul Thomas Anderson, oferece uma narrativa torta, confusa e que indubitavelmente vai deixar uma grande parcela do público perdida em sua viagem chapada e desconexa de 2h30. Não é uma experiência das mais confortáveis – e também não diria satisfatória – mas certamente provoca fascínio, e seu efeito é impossível de ser esquecido tão cedo, especialmente quando voltamos para experimentá-la novamente.
Adaptada pelo próprio PTA da obra homônima de Thomas Pynchon, a trama… Bem, é difícil, mas vamos tentar organizar isso de forma coesa: A trama começa quando o detetive hippie Larry “Doc” Sportello (Joaquin Phoenix) é surpreendido por sua ex-namorada Shasta (Katherine Waterston), que pede sua ajuda quando descobre o complô da esposa de seu amante, Mickey Wolfmann (Eric Roberts), para trancafiá-lo num hospício e conquistar sua fortuna. Paralelamente, Doc analisa dois casos que se relacionam com Wolfmann de alguma forma: o sumiço de um saxofonista (Owen Wilson) e a fuga de um guarda-costas que estaria envolvido com neonazistas, indo até mesmo dentro do departamento de polícia.
Estruturalmente, Vício Inerente é uma bagunça, mas curiosamente isso não precisa ser um defeito – dependendo do ponto de vista. Suas tramas misturam-se através de diálogos malucos, extremamente líricos (uma marca da obra original de Pynchon) e repletos de gírias, o que compromete o fluir da narrativa e a compreensão da trama geral (eu, por exemplo, tive que ler um resumo do filme para compreender todos os seus pontos de virada e conexões entre histórias). Podemos dizer que a narrativa acelerada, com um zilhão de personagens e acontecimentos, é um reflexo da própria mente de Doc, dominado pela paranoia e lentidão de seu constante uso de maconha – e a fotografia de Robert Elswitt sabiamente aposta em sequências em que o personagem encontra-se cercado por neblina, prestando também a devida homenagem ao visual icônico do cinema noir, ao mesmo tempo em que mantém a influência stoner ao criar imagens levemente surreais.
Colocar a platéia sob os olhos de um entorpecido é um experimento interessante, e PTA mantém sua técnica invejável ao apostar em longos planos e enquadramentos fechados, muitas vezes centrado apenas em diálogos que vão ramificando-se de maneira curiosa (uma provocante cena em particular que envolve Doc e Shasta é desde já um dos pontos altos da carreira do cineasta). As consequências e surpresas são muitas, e o humor caricato do filme é acertadíssimo; ainda mais pela performance noiada de Joaquin Phoenix, completamente imerso no papel do detetive. O elenco estelar ainda conta com ótimas presenças de Josh Brolin, Owen Wilson, Martin Short e a já citada Katherine Waterston, cuja mera presença sensual em cena já é absolutamente hipnotizante.
Todos esses astros perdidos na jornada de Doc também contribuem para que PTA faça algo muito difícil: criar um universo palpável e que tenha vida dentro da tela. Na maior parte do tempo, novamente, não temos a visão completa de como todos se conectam ou o que exatamente estão fazendo ali, mas temos a sensação de estar vendo seres humanos reais. Se perder nessa bagunça, que se estende até mesmo depois de o caso central parecer concluído – de forma anticlimática, inclusive, para que Doc continue interagindo com essas pessoas e descobrindo novos detalhes sobre aquele mundo, e então puxando para sua relação pessoal com Shasta.
O filme acerta também na escolha de sua trilha sonora (tanto a instrumental abstrata de Jonny Greenwood quanto a vasta seleção de músicas da década de 70) e no design de produção, que explora com criatividade uma Los Angeles povoada por criaturas bizarras e coloridas à sua própria forma, contribuindo para o conceito discutido no parágrafo anterior, do universo palpável. Seja na surtada reunião hippie que simula a Santa Ceia de Michelangelo com pizzas ou o excêntrico culto descoberto por Doc ao longo da investigação, PTA acerta em sua representação e cria algo realmente peculiar.
Mesmo com inúmeras qualidades, Vício Inerente não funcionará completamente para todos, como filme e experiência. Tem momentos de verdadeira maestria cinematográfica, mas é um filme difícil de se acompanhar e fácil de se perder, e que certamente necessita de uma segunda visita. Mas uma coisa é certa, este insano filme de PTA só melhora com o tempo.
Vício Inerente (Inherent Vice, EUA – 2014)
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson, baseado na obra de Thomas Pynchon
Elenco: Joaquin Phoenix, Katherine Waterson, Owen Wilson, Josh Brolin, Eric Roberts, Reese Whiterspoon, Martin Short, Michael K. Williams, Benicio del Toro, Jena Malone, Joanna Newsom
Gênero: Noir, Comédia
Duração: 150 min