Os anos 1950 continuariam sendo generosos para Elia Cazan mesmo depois de cravar os enormes sucessos de Uma Rua Chamada Pecado e Sindicato de Ladrões. Apesar de não fazer parte do panteão das obras-primas do famoso dramaturgo, Vidas Amargas é por si um longa bastante histórico, pois traria a primeira interpretação em grandes produções hollywoodianas do lendário James Dean.
Kazan traria mais uma grande adaptação de um clássico da literatura americana com Vidas Amargas. O enorme romance de John Steinback atravessa décadas contando com linhas narrativas paralelas em uma história verdadeiramente burocrática. Praticamente inadaptável, Kazan decidiu formar um filme inteiro diante de uma característica perturbadora bastante única do livro e adaptar livremente diversas das outras partes. Enquanto o resultado em geral é ótimo, fica nítido que esta ideia fraqueja conforme o longa avança.
As Escolhas de um Homem
A adaptação de Paul Osborn pega o elemento mais curioso do livro: o destino misterioso da mãe do protagonista Cal Trask (Dean), filho do rico fazendeiro Adam (Raymond Massey). O problemático rapaz, aparentemente, vive seus dias vadiando na cidade, perseguindo uma nada simpática senhora dona de um bar local. Mesmo com a desaprovação de todos, incluindo de seu querido irmão Aron (Richard Davalos) e de sua cunhada Abra (Julie Harris). Entretanto, suas suspeitas acerca da mulher misteriosa logo se comprovam, trazendo verdadeiro desiquilíbrio para toda sua família.
Osborn concentra muito desse drama apenas a cargo da encenação de Kazan. Como todo bom roteiro, os personagens são explorados camada a camada, revelando novas características até nos minutos finais da obra. Por isso, apresentar justamente o protagonista em uma dúbia perseguição contra uma senhora, já é algo bastante inusitado para o cinema da época – em linha com a pegada subversiva que Kazan seguia com seus filmes.
Dentre os três longas, este certamente é o que conta com o protagonista mais difícil, afinal Dean foi perito em trazer figuras jovens perturbadas repletas de ódio reprimido aliadas de uma docilidade curiosa. Cal é justamente isso, um pequeno mistério bastante compreensível. O mistério envolvendo sua mãe é o cerne de uma procura eterna pelo afeto do pai que praticamente o ignora, sempre o preterindo diante de Aron, o filho “bom” totalmente idealizado.
O conflito basicamente é uma releitura inteligente sobre a tragédia do Éden, trazendo a rivalidade entre Caim (Cal) e Abel (Aron) para conquistar o amor de Deus resultando no fatricídio de Caim contra seu irmão. Apesar de não ser exclusivamente o conflito mais importante, a relação entre Cal e Aron é funcional por conta da presença de Abra que logo se vê envolvida entre dois amores, além dos arquétipos se inverterem conforme o filme chega à sua conclusão.
Essa mudança de comportamento é melhor trabalhada em Cal, afinal vemos toda a batalha do personagem em se tornar uma pessoa boa, renegando a natureza malévola que outros cidadãos injustamente atribuem a ele, uma pessoa claramente perturbada por não poder contar com a ajuda de ninguém. Nesse cenário, Cal é um protagonista excelente, pois ele guia toda a narrativa com base nas suas escolhas: procurar a mãe, empreender, almejar amores impossíveis. E a cada conquista transformadora, Cal acaba machucando a vida de terceiros.
Aliás, da mesma forma que Uma Rua Chamada Pecado trazia um retrato familiar totalmente aniquilado, temos um trabalho tão visceral quanto em Vidas Amargas já que Osborn mostra os Trask como uma família disfuncional, mas vivendo sob um véu de normalidade. É curioso como o filme aborda o tema do casamento arruinado em uma época na qual o “sonho americano” ainda era forte. Mas mais curioso ainda é o fato de Adam ter sido abandonado pela mulher, sendo obrigado a sustentar os dois filhos enquanto trabalhava no campo.
Vanguarda Clássica
Isso pode ser considerado vanguardista até mesmo para os padrões da Hollywood contemporânea, então imagine só na época. A polêmica é ainda maior no romance, já que a esposa de Adam simplesmente decide virar a maior prostituta da cidade, negando o carinho que o marido lhe ofereceria no lar, pois acreditava que seria um aprisionamento insuportável. Infelizmente, como Osborn se concentra somente em desenvolver Cal, o longa acaba sem muitos dos detalhes importantes para justificar melhor certas mudanças e motivações para outros personagens secundários.
É uma pena que isso ocorra e debilite o longa quando nitidamente há diversas longas sequências que poderiam ser cortadas ou reduzidas para dar lugar a um envolvimento maior de Cal com seu irmão e pai. Isso é desperdiçado para mostrar uma euforia pré participação dos EUA na Primeira Guerra Mundial e na perseguição de imigrantes alemães na cidade. Esse desvio de narrativa, no final, pouco importa para o saldo geral do longa.
A força narrativa somente é retomada durante o cruel terceiro ato, repleto de desgraças premeditadas até descambar a um forte melodrama eficiente para a cena final na qual Cal e Adam têm uma conversa honesta depois de anos. Ambos são totalmente transformados pelas escolhas do protagonista que só encontrou a reconciliação na dor, na desgraça.
Já na direção, Kazan realiza um de seus trabalhos mais expansivos, já que a produção recebeu um bom orçamento, além de ser filmada em cores. A escolha já é justificada em primeiro momento nos créditos iniciais nos quais o diretor mostra paisagens paradisíacas do Vale de Salinas, associando o lugar com um pedaço bonito do Éden. Seu esforço de encenação marcado pela movimentação certeira dos atores pelos cenários enquanto a câmera passeia imperceptivelmente continua apurado.
Isso também é demonstrado pelo talento inegável da decupagem da perseguição inicial, elaborada sempre em profundidade de campo com Cal espreitando a senhora a cada curva das esquinas. O mesmo ocorre na sustentação dos planos em momentos cruciais de suspense nos quais a fotografia se transforma, trazendo enormes sombras projetadas pelo protagonista, simbolizando toda a angústia e amargor que existem dentro de si – algo relativamente inspirado nas sombras do Expressionismo Alemão.
Durante a cena final, apenas com enquadramentos simples, o mesmo tema é resgatado, mas por conta da direção muito competente dos atores, Kazan cria uma atmosfera tão marcante que chegou a influenciar obras contemporâneas como A Origem. A encenação comanda tudo para o dramaturgo totalmente interessado em retirar o melhor desempenho possível de seu elenco. O cineasta também parte para o inusitado com a inserção de planos holandeses sempre que filma um diálogo conflituoso. Embora o efeito seja já muito antiquado, por vezes realça o desequilíbrio naquelas relações, mas a repetição desses enquadramentos acaba incomodando pelo exagero.
Há Alguma Lei?
Vidas Amargas não é um filme perfeito, tampouco uma obra-prima, mas certamente os acertos comportados por uma estreia explosiva de James Dean, além de uma narrativa intrigante satisfatoriamente desenvolvida pelo talento de Elia Kazan em arquitetar cenas memoráveis, se torna um dos filmes do mais alto escalão da carreira do diretor. O emocionante drama dessa família destruída e da redenção amaldiçoada certamente merece ser redescoberto.
Vidas Amargas (East of Eden, EUA – 1955)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: John Steinback, Paul Osborn
Elenco: James Dean, Julie Harris, Raymond Massey, Burl Ives, Richard Davalos, Jo Van Fleet
Gênero: Drama
Duração: 117 minutos