Artigo | A geração do Facebook precisa (re)descobrir Seinfeld

Muito antes de a tirania politicamente correta espalhar-se como uma praga pela dramaturgia de humor, houve uma série cômica que antecipou o mal estar da sociedade culturalmente patrulhada. Antes de hashtags virarem ferramenta de comunicação, houve "the yada-yada" e seus múltiplos usos. Uma série que "viralizava" antes mesmo que a expressão adquirisse o significado que tem hoje, "Seinfeld" foi tão revolucionária e desafiadora que alguns de seus princípios permanecem intocados - como a regra informal de jamais finalizar um episódio com "abraços" (ou a situação dramática que reinstaura o equilíbrio perdido), o que mesmo seriados desafiadores e elaborados como "The Office" e "Brooklyn Nine-Nine" não conseguiram igualar.

Para quem não sabe exatamente do que se trata, "Seinfeld" foi uma típica sitcom norte-americana (daquelas com claque após as piadas) apresentada durante nove temporadas (entre 1989 e 1998) e que rivaliza na memória de quem tem mais de 30 anos com "Friends", por exemplo. Embora esta última permaneça na história da dramaturgia da TV como um sucesso charmoso e nostálgico, não há termo de comparação entre ambas além do retrato de uma mesma cidade (Nova York), época e formato. Enquanto "Friends" sempre foi uma comédia de situações típica, romântica, sem nunca abdicar dos costumeiros laivos de sentimentalismo, "Seinfeld" foi do princípio ao fim uma crônica ácida da comunidade liberal (no sentido norte-americano do termo), pequeno-burguesa, do final de século, neurótica, refém de códigos de conduta social, cultivando relações pautadas em aparência e interesses mesquinhos e obcecada pela vida alheia. Na verdade, uma irônica premonição do que se tornaria a imensa comunidade que vivencia, no século XXI, a rotina virtual em grupo.

Vencedora de inúmeros prêmios Emmy e Globos de Ouro, a série deixou de existir pouco antes de uma inevitável decadência. Um de seus criadores (ao lado de Larry David), Jerry Seinfeld, rejeitou a milionária proposta de continuar estrelando a atração por saber que seria impossível ir ainda mais longe do ponto aonde haviam chegado. Uma decisão inteligente que ajudou a tornar o seriado numa mitologia perene e que permanece atual mesmo num período quando mudanças ocorrem mais rapidamente do que podemos antecipar.

Sua premissa ficou conhecida como uma "série sobre o nada", em que o bate-papo aparentemente irrelevante entre seus quatro protagonistas (o cômico profissional que dá nome ao programa, seu amigo de infância fracassado e inseguro George Constanza, seu vizinho amalucado Cosmo Kramer e sua ex-namorada eventualmente ninfomaníaca Elaine Benes) é a maior atração.

Seria um desperdício de raciocínio, entretanto, reduzir "Seinfeld" a um "seriado de personagens", uma vez que muitas das situações apresentadas individualmente em cada episódio têm importância tão grande quanto a mera caracterização dos protagonistas. Muitos deles, inclusive, dificilmente seriam produzidos hoje, quando mesmo as atrações de ponta obedecem a rígidos códigos morais determinados pela agenda politicamente correta. Quem arriscaria em 2016 fazer piada com assistentes sociais afroamericanas autoritárias de nome "Rebecca De Mornay" (o mesmo nome de uma atriz loira dos anos 1990), com feriados hispânicos, com militantes LGBT que espancam apoiadores que se recusam a usar "fitas" durante uma passeata, com mendigos que rejeitam "muffin tops", com uma descendente de nativos americanos que se ofende a cada três frases do pretendente caucasiano, com funcionários públicos que impedem um pobre contribuinte de descartar seu lixo em simplesmente qualquer lugar dentro da cidade, e assim por diante?

A despedida inesquecível, o desfecho tragicômico do seriado, se dá no episódio derradeiro, no qual seus quatro protagonistas acabam presos por obra de uma lei municipal absurda, após darem risada de um morador com problemas de sobrepeso enquanto este é assaltado.

Muito além de rir de vítimas fáceis do humor da TV (o caipira, a beata, o capitalista inescrupuloso, a gostosa burra e arrivista), "Seinfeld" expandiu o tema da comédia para a comunidade ligada à produção de cultura, aos formadores de opinião, à elite intelectual do leste da América (mas poderia ser de qualquer outro lugar), aos artistas, críticos de arte, fãs de jazz e balé, militantes de cafeteria, juízes da consciência alheia, "benfeitores" mesquinhos, cientistas tirânicos, acadêmicos e formuladores de "políticas públicas", revertendo o espelho cômico para capturar a imagem de quem está habituado a rir dos outros - mas nunca de si mesmo.

Ao trazer à tona o lado mais imperfeito (e, portanto, genuinamente humano) de grupos sociais ora intocáveis, "Seinfeld" humanizou, através do riso iconoclástico, a todos nós. Sua experiência permanece na história do entretenimento como um fenômeno aparentemente inigualado, quando hoje, rimos apenas do que é "permitido" - ou rimos nervosa e sorrateiramente, com medo das convenções sociais, de mágoas tolas e incontornáveis, da polícia do humor, da judicialização da espontaneidade, o que de forma alguma fez do mundo "um lugar melhor".

"Seinfeld" está disponível no Brasil num box completo com as nove temporadas distribuídas em 33 DVDs. Há ainda um curioso livro chamado "Seinfeld e a Filosofia: Um Livro sobre Tudo e Nada", da editora Madras, que procura analisar a série abordando diferentes episódios da perspectiva de pensadores como Nietzsche e Wittgenstein. Este site, em inglês (http://www.seinfeldscripts.com/), oferece uma vasta visão das temporadas, com detalhes, curiosidades e um arquivo com os 180 roteiros originais.


Artigo | Por que os blockbusters dos anos 1990 eram melhores que os de hoje?

O que mudou no cinema de ponta de Hollywood, naquilo que a indústria faz de realmente melhor (ou ao menos aquilo que é virtualmente impossível de ser igualado por qualquer outra cinematografia), entre a última década do século passado e os dias de hoje?

Bem, os filmes converteram-se de puramente físico-químicos (no suporte) e mecânicos (na encenação) para predominantemente digitais na captação e mesmo na composição (ao menos em se tratando das grandes produções de Hollywood). As imagens em geral têm um aspecto menos orgânico e muitas cenas assemelham-se àquelas também encontradas em videogames: façanhas que deveriam ser atingidas fisicamente hoje podem ser vencidas de uma sala com ar condicionado.

Blockbusters continuam muito caros e a expectativa a respeito de seu desempenho de bilheteria cresce a cada temporada. Por outro lado, hoje há uma variedade de janelas e mercados a serem explorados que não havia antigamente.

Quando o “Independence Day” (ID4, de 1996) original foi lançado, ainda me lembro da espera alimentada por trailers, cartaz e aquelas oito fotos que faziam parte do display tipicamente localizado na porta das salas para atrair os espectadores. Havia mais cinemas de rua que hoje em dia, então o espectador fortuito, capturado por uma “promessa de filme”, misterioso e desconhecido, era uma presença importante para os exibidores. Tal espectador nada tinha a ver com o cinéfilo ultrainformado do cinema de hoje, o caçador de spoilers que parece ter o roteiro de um filme que ainda sequer estreou decorado na cabeça: as salas realmente dependiam de práticas típicas do varejo para conquistar clientes-espectadores.

Hoje, como se sabe, os blockbusters são pensados como franquias que ultrapassam em muito o setor cinematográfico. Busca-se a todo tempo uma integração entre filmes e uma infinidade de subprodutos (audiovisuais ou não), que antecedem e se mantêm mesmo após a carreira de cada título no circuito. Um filme puxa outro: um plot durante a projeção só é suficientemente compreendido por sua ligação com outro título, mesmo em linguagem diferente (HQ, por exemplo). Aparentemente, o consumidor de filmes desavisado (aquele do parágrafo anterior, que vê um filme qualquer porque o cartaz chamou sua atenção), que convive com a narrativa por no máximo 120 minutos, e retorna a sua vida real, foi dando espaço a um espectador permanente, vivente numa zona cinzenta entre seu cotidiano e o imaginário dos grandes lançamentos. Suas demandas são radicalmente distintas e seu próprio perfil intelectual e psicológico, seus anseios e maneira como se relaciona com a realidade, acabaram por influenciar a forma como os enredos são pensados e apresentados de volta.

É curioso notar que essa transformação das práticas do mercado – especialmente com a revolução provocada pelas redes sociais – encontra alguma tradução correspondente nas telas. Os grandes lançamentos continuam tendo heróis e vilões, mas eu realmente penso que alguma coisa mudou e que os w da década de 1990 espelhavam a natureza e as expectativas do “homem comum”, o que não acontece mais hoje em dia particularmente pelo fato de que o “homem comum” é o pária de uma geração nascida e acostumada ao paradigma (ou à mera ilusão) da diferenciação eventualmente possibilitada pela expressão nas próprias redes sociais.

Vamos tomar como exemplos ID4 e “Armageddon” (1998). São, como se disse, em diferentes graus segundo o ano quando foram produzidos, obras onde o elemento essencialmente cinematográfico está mais presente se compararmos aos blockbusters da atualidade. Ou seja: o espetáculo baseado em encenar-marcar-filmar-montarsobrepõe-se aos instrumentos de manipulação digital que permitem, hoje, não raro dispensar esse processo em direção direta ao resultado final (e quando aquilo for definitivamente deixado de lado, terá morrido o cinema afinal). Mas tal ponto é evidentemente determinado pelo estado de coisas tecnológico de cada época e que se sobrepõe ao mero ato de realização cinematográfica. Dois anos mais novo, “Armageddon” já é bem mais digital que ID4, por exemplo.

Na tela, blockbusters antigos celebram a jornada e a vitória possível do indivíduo de alguma forma ordinário e desprovido de melhores recursos (científicos, econômicos) que suas próprias galhardia e presença de espírito. Em ID4, o mundo é salvo por um nerd divorciado, um aviador esquentadinho, um político que na verdade é um militar de baixa patente e um alcoólatra momentaneamente sóbrio; em “Armageddon”, quem salva a humanidade é o mais improvável grupo de técnicos de escolaridade mediana, trapaceiros e rednecks. Nestes dois casos, é o americano típico de classe média (baixa) que corrige os erros e a incapacidade crônica de lidar com o apocalipse representada pela CIA (ID4) e pela NASA (“Armageddon”) – enquanto os agentes da primeira têm informação (mantida secreta), mas lhes falta coragem, os estudiosos da segunda têm a técnica, mas nenhuma vivência: duas qualidades que sobram nos heróis improváveis. Estes são também altamente refratários à burocracia e aos regulamentos impostos pela autoridade (ou pela “elite”), preferindo sempre improvisar a agir de acordo com o livro de regras que eles mesmos não aprovariam. Em ambos os casos, eles não respondem diretamente a nenhuma “irmandade” a não ser aquela informalmente construída pela amizade entre indivíduos em sua rotina.

Em boa parte dos mais célebres blockbusters da atualidade, o imaginário proposto corre em sentido oposto: protagonistas (heróis ou não necessariamente) são bruxos com varinhas mágicas, vampiros eventualmente indestrutíveis, herdeiros de famílias milenares, elfos de olhos azuis, mutantes com poderes sobrenaturais, fisiculturistas alienígenas indestrutíveis, membros de poderosas sociedades secretas ou – na melhor das hipóteses e certamente na melhor das franquias – um bilionário fantasiado.

Onde está o homem comum, com contas para pagar, pensão da ex-mulher, filha pré-adolescente problemática, namorada em dúvida se casa ou não? Não me venham dizer que é o adolescente picado por uma aranha que adquire habilidades espetaculares do dia para a noite.

De certo modo, colocadas de lado as qualidades eventuais (e elas, de fato, existem) dos blockbusters do século XXI, parece haver uma desistência, um enfastio, uma rendição à triste constatação de que homens comuns tornaram-se incapazes de fazer diferença, numa época em que “ser anônimo” equivale muitas vezes a simplesmente “não ser”.

Será esta uma tendência predominante ou apenas uma impressão provocada por meia dúzia de títulos em cada caso que não representaria o espírito de suas respectivas épocas? Não posso responder. Tudo que digo é que tenho certa saudade e relembro com nostalgia dos cartazes, dos displays, do caminho silencioso para uma sala de projeção vazia, uma terça-feira chuvosa em sessão de começo de tarde, a curiosidade e a prazerosa vulnerabilidade diante de uma trama desconhecida, de pouco saber a respeito do que me esperava na tela: de vez em quando, um cara qualquer como eu salvando o mundo entre uma cerveja e outra.


Os Bons Companheiros - Qual música era aquela?

Os Bons Companheiros - Qual música era aquela?

Na primeira aula do primeiro curso que um roteirista aspirante for freqüentar, é bastante provável que ele ouça duas recomendações importantes: a primeira delas é evitar escrever "Fulano pensa" nos cabeçalhos de suas cenas, como ele faria num texto literário comum; a segunda é "Não construa cenas em cima de canções" ou algo do tipo.

Embora a segunda regra tenha um fundamento prático (dificilmente um roteirista poderá afirmar com certeza que tal canção estará disponível mais tarde para ser inserida no filme propriamente dito), muitos cineastas têm prazerosamente quebrado tal regra em algum momento do processo de produção. Por causa disso, podemos saborear momentos musicais dentro dos enredos que, muitas vezes, marcam na memória muito mais que os filmes inteiros.

É difícil determinar quem primeiramente decidiu inserir uma canção pronta (e reconhecida) sobre uma cena de um novo filme, mas - ao menos modernamente - é Martin Scorsese um diretor pródigo em construir climas cinematográficos onde uma música popular sublinha as imagens ou lhes dota de localização temporal (e emocional), como nesta famosa sequência de "Os Bons Companheiros" com a faixa Layla (Derek and Dominos):

Todo mundo já deve ter passado pela experiência de ouvir uma música no rádio e ser remetido a uma sessão de cinema do passado, ou assistir a um filme e ficar até o final dos créditos para descobrir, afinal, "qual canção é aquela". Um australiano e um ucraniano criaram um divertido site que procura responder a questões como essa (http://www.what-song.com/).

Abaixo, seleciono alguns dos meus momentos prediletos em filmes (uns melhores, outros piores) onde canções enriquecem em muito a experiência cinematográfica.

"Song to the siren" (This Mortal Coil) em "Estrada Perdida", de David Lynch. A mesma canção é ouvida em "Um Olhar do Paraíso" de Peter Jackson:

"Relax" (Frank goes to Hollywood) em "Dublê de Corpo", de Brian De Palma:

Outro momento criado por David Lynch, em "Veludo Azul", com Roy Orbison e sua canção "In Dreams":

Aqui, o adorável momento ao som de "If there is something" (Roxy Music) em "Reflexos da Inocência":

"Ça plane pour moi" (Plastic Bertrand) em "O Lobo de Wall Street":

"Don't worry be happy" (Bobby McFerrin) em "Soldado Anônimo":

E finalmente a abertura de "Cães de Aluguel" com "Little Green Bag" (George Baker Selection):

E você, conseguiu descobrir, afinal, "qual música era aquela"?