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Crítica | Bruxa de Blair (2016)

É espantoso como toda uma novíssima geração de fãs dos filmes de terror simplesmente não conhece o original “A Bruxa de Blair” e, como tal, não pode reconhecer sua extensa e persistente influência sobre dezenas de filmes produzidos neste século, entre eles sucessos como “Atividade Paranormal” (2007), “REC” (2007) até títulos muito recentes como “A Forca” (2015).

Recordando: em 1999, Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, dois jovens cineastas (norte-americano e cubano, respectivamente), levaram a cabo uma operação cinematográfica sui generis, que consistia em soltar três atores numa floresta desconhecida munidos de câmera e bússola, e enviar a eles durante o processo instruções eventualmente contraditórias e assustá-los durante a noite com barulhos e objetos para que a filmagem de um documentário falso se tornasse o mais real possível.

O resultado foi a reinvenção moderna do “mockumentário”, na verdade uma junção entre o clássico “Canibal Holocausto” (uma infame produção italiana de 1980 e banida em diversos países) e “Aconteceu Perto de Sua Casa” (a comédia belga de humor negro de 1992) que inauguraria também uma era de filmes-eventos que transcendem sua rede de distribuição e acabam por ser incorporados irremediavelmente pela mídia e pela cultura popular (na época do lançamento, os realizadores deixaram aberta a possibilidade de o filme ser um documentário de verdade, o que provocou polêmica e alavancou as vendas do filme, até hoje um dos mais bem-sucedidos em relação a seu custo em toda a história do cinema).

O relativo esquecimento a respeito do filme de Myrick e Sánchez está certamente relacionado ao irônico fato de que ambos, após sacudirem a indústria de maneira quase que irreversível – ao, juntamente com “El Mariachi” (1992), abrir as portas da distribuição em larga escala ao cinema de “No-Budget” (um passo além, ou abaixo, do habitual “Low-Budget”) –, envolveram-se em uma série de projetos decepcionantes, o que, antes de atentar contra o talento da dupla, reforça o caráter inovador e impossível de ser integralmente replicado da experiência original. Embora nada a ser comparado com o esquecimento reservado ao similar “The Last Broadcast”, produção de 1998 que teria custado menos de mil dólares e cujo pioneirismo acabou sobrepujado pelo sucesso imediatamente subsequente de “Blair Witch Project”.

Ao contrário da continuação “A Bruxa de Blair 2-O Livro das Sombras” (2000), uma fracassada e apressada tentativa de criar uma franquia para o original, este novo “Bruxa de Blair”, que chega aos cinemas em 2016, é uma reedição bastante fiel da experiência de 1999 para um novo público que não sentiu o arrepio inevitável do pequeno e perturbador “The Blair Witch Project”. Embora a distribuidora avise que esta “não é uma refilmagem”, mas uma “continuação”, o tributo ao trabalho de Myrick e Sánchez está evidente na forma e na estrutura do novo enredo, que não dispensa até mesmo citações diretas do seu predecessor.

Na nova trama, James Allen McCune interpreta o irmão da cineasta desaparecida há 15 anos, numa floresta do estado norte-americano de Maryland. Ele está de volta ao local onde a irmã jamais seria encontrada, novamente acompanhado por uma (ou melhor, duas) equipe(s) de filmagem. Seu objetivo é finalmente descobrir o que realmente aconteceu com os desaparecidos do filme (documentário) anterior, depois de encontrar uma fita nova e que supostamente mostraria sua irmã numa casa no meio da floresta. Este não é o principal objetivo da cineasta Lisa Arlington (Callie Hernandez), mais preocupada em tirar da coisa toda um filme de sucesso para si mesma. A equipe se completa com um casal de técnicos (Brandon Scott e Corbin Reid) e é guiada por outro casal de nativos (Wes Robinson e Valorie Curry) que, por sua vez, tem seus próprios planos “cinematográficos” para a viagem que será feita coletivamente.

Evidentemente, o que poderia ser uma aventura de final de semana em grupo acaba perturbado por acontecimentos inexplicáveis, mentiras e uma confusão – ora proposital, ora não – entre o que é verdadeiro e o que é falso, testando os limites emocionais dos jovens (e da plateia).

O cinema mudou muito nas últimas duas décadas e este novo “Blair’ ensaia aderir a alguma forma de militância politicamente correta quando propõe um foco de conflito entre os cineastas nativos (red necks que expõem uma bandeira confederada) e o casal afroamericano que chega aparentemente de uma cidade maior, mas tal registro cede velozmente ao humor e o tema se desfaz. Não é este o foco do roteiro de Simon Barrett, nem da direção de Adam Wingard (dupla responsável pelo inteligente “Você é o Próximo”, de 2011). Seu olhar é muito mais próximo do original e seu objetivo parece ser replicar a sensação brutal de impotência diante do selvagem desconhecido que encontra na escuridão de uma floresta à noite sua perfeita tradução.

 A principal limitação do estilo “Found Footage” manifesta-se sempre que o ponto de vista da “câmera-atriz” mostra-se insuficiente para contar a história em todas as suas nuances. Aqui, tal problema é superado maliciosamente com a inserção das minúsculas câmeras auriculares, que tornam possível cobrir toda a ação necessária para a narração da história praticamente o tempo todo. Isso não impede, contudo, que a direção trabalhe muito bem o espaço externo, aquilo que se ouve, mas não se vê, e que é uma das bases do suspense presente o tempo todo.

Outro problema que o filme parece superar é o de se manter dentro de sua premissa mesmo tendo à disposição um orçamento de grande estúdio, o que não acontecia com a produção de 1999, que efetivamente era muito barata e não dispunha de recursos hoje elementares para Hollywood. Sem revelar muitos detalhes da trama para não comprometer os sustos e as surpresas, “Bruxa de Blair” não precisa de muito mais que o conceito brutal, primitivo, para provocar medo na plateia, e isso o eleva a um patamar aonde outros títulos do gênero repletos de firulas em computação gráfica (como “Mama”, de 2013) jamais sonhariam chegar.

Mesmo quando o enredo ameaça levar o filme para algum tipo de reedição de “Alien” ou quando, perto do desfecho, os efeitos especiais começam a aflorar (e os fãs mais entusiásticos do gênero temem, talvez, por algum final ao estilo J.J.Abrams, onde tudo se explicaria com a chegada de uma nave espacial, o que definitivamente não é o caso), a direção e o roteiro retornam o filme para sua linha mestra, a ponto de o protagonista repetir literalmente alguns trechos do roteiro original. Mais uma vez, este novo “Blair” desiste, felizmente, da tendência excessivamente digitalizada, artificial, que tem marcado a indústria nos últimos anos, e opta por momentos em que tudo que se precisa é dos recursos tipicamente cinematográficos (inclusive numa cena claustrofóbica que remete a outro filme valioso, “O Abismo do Medo”, de 2005).

Aqueles que possivelmente não estão familiarizados com o “Blair” de 1999 ou com o estilo originado dele possivelmente oscilarão, em alguns momentos, entre a incompreensão e o atordoamento diante das câmeras frenéticas e tremidas, repletas de sujeira e granulação, e serão intrigados pelo plano final (que também referencia o original, mostrando mais uma vez que, se esta nova trama continua a anterior, sua abordagem reedita a experiência com visível reverência).

Nada, entretanto, que atrapalhe ou comprometa uma sessão de cinema dotada de alguma originalidade e inegável competência ao dar continuidade a um dos mais bem-sucedidos experimentos em toda a história do gênero. “Bruxa de Blair” é garantia de entretenimento em duração precisa, sufocante, incômodo e, muitas vezes, apavorante. Tanto a produção de 1999 quanto a de 2016 terminam com um “pedido de desculpas” dos protagonistas pelos seus projetos malfadados.

Tais pedidos não se aplicam ao público, que em ambos os casos está diante de exemplares de cinema cada vez mais raros: filmes repletos de matizes e texturas naturais, pensados prioritariamente para a sala escura e cujos realizadores sabem lançar mão de recursos muito simples e genuinamente cinematográficos que continuam funcionando (a contraposição entre luz e trevas, preenchido e vazio, ruído e silêncio, movimento e paralisia), sem lembrar a todo tempo que o filme passou por dezenas de computadores antes de ficar pronto. O que seria exigido, além disso, de um simples filme de terror?

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Publicado por Daniel Moreno

Realizador audiovisual independente: diretor, roteirista e produtor. Ao ouvir o que eu tenho a dizer, você estará dando ouvidos a um discurso completamente diferente daquele de outros cineastas brasileiros. Aqui, não há espaço para estatismo e bajulação a governos.

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