Crítica | Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?
Até que ponto conseguimos definir o que é real ou não? Será que o contraste entre o natural e o artificial é tão forte como pensamos? Ou será que todos esses conceitos são mais fluidos do que aparentam e seus limites são apenas linhas tênues que, por ventura, podem deixar de existir? Tais questionamentos sempre estiveram presentes nas obras de Philip K. Dick (como bem visto na compilação de contos Realidades Adaptadas), e em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (Do Androids Dream of Electric Sheep?), o natural e o artificial se mesclam em um amálgama que acaba com qualquer linha divisória definível.
Publicado originalmente em 1968, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? conta a história de Rick Deckard, um caçador de recompensas que precisa de dinheiro para adquirir um animal de estimação de verdade, substituindo sua ovelha elétrica, algo que elevaria seu status perante a sociedade. A tão esperada oportunidade surge quando Deckard aceita o trabalho de perseguir e ”aposentar“ seis androides fugitivos.
No livro, houve uma guerra atômica que devastou a Terra, deixando o planeta coberto por uma poeira radioativa que dizimou inúmeras espécies da fauna e flora terrestre. Com a maior parte da população emigrada para as colônias interplanetárias, a Terra se tornou um local decadente e sujo, lar de uma sociedade sem esperanças e nem pensamentos além de seu próprio tempo presente.
Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? trata essencialmente sobre artificialidade. Isso se prova logo no início, quando a mulher de Deckard utiliza uma máquina geradora de emoções, permitindo que a pessoa escolha a quantidade de determinada emoção que deseja sentir naquele momento. Nesse sentido, fica clara a artificialidade dos sentimentos humanos, mas os próprios sentimentos também não são frutos de nosso meio e definidos por ele? Um exemplo disso são as muitas culturas que reagem à morte de alguém com felicidade e celebração, enquanto outras se comportam de maneira oposta na mesma situação. Nesse caso, os sentimentos são definidos pela cultura em que o indivíduo está inserido e não inerentes ao ser. O quanto disso, de alguma forma, também não é artificial e fabricado?
Outro ponto importante é a questão ética e moral dentro da trama. Deckard tem a missão de ”aposentar “ – um eufemismo para destruir ou matar, dependendo de como o leitor interpreta a obra – os androides, mas conforme avança em suas ações, o caçador de recompensas começa a se questionar e ser questionado sobre a moralidade de suas atitudes. Afinal, de uma forma ou de outra, os androides possuem vontade e sentimentos próprios. Tirando o prazo de validade definido e o modo de concepção, como diferencia-los do próprio Deckard?
Alguns modelos mais novos destes seres artificiais recebem, inclusive, uma memória implantada que os faz pensar que são humanos. Por mais que sejam falsas, até onde isso os difere de seres humanos no tempo presente da história, a ponto de serem julgados como meros objetos descartáveis? Afinal, as pessoas também têm seu grau de artificialidade.
Sendo assim, a obra também flerta com os conceitos de realidade individual e coletiva. Até onde a memória pode ser engolida pelo consenso geral, fazendo com que não signifique mais nada para o indivíduo, mesmo que tenha sido responsável por defini-lo? Seria a própria realidade uma escolha puramente consensual? O cérebro humano é capaz apenas de detectar uma parte mínima do espectro eletromagnético. O modo como o ser humano percebe o mundo é falso. De que forma esta percepção não nos torna cegos para a visão do todo que compõe o que chamamos de real?
Dentro de várias passagens da obra, notamos esses questionamentos sobre até onde o artificial se difere do natural e até onde este não seria uma evolução da naturalidade, de modo que no futuro – ou no presente, dependendo da interpretação do leitor – tudo seria artificial, inclusive as pessoas, mesmo que não tenham conhecimento disso.
Mesmo com esse imenso leque de discussão sobre artificialidade e separação daquilo que é ou não real, Philip K. Dick repete os mesmo problemas de ritmo de outros de seus romances (como comentado na análise de Fluam, Minhas Lágrimas, Disse o Policial). As partes mais filosóficas se intercalam com longas – e até cansativas – passagens de perseguição e subtramas que não fazem muita diferença para a obra como um todo. Uma comprovação de que a narrativa do autor funciona muito melhor em contos do que romances. Isso de nenhuma forma diminui o grau conceitual e a importância da história, mas atrapalha um pouco a fluidez da leitura.
A adaptação cinematográfica é muito diferente do texto original, mas possui outros questionamentos que o tornam tão contundente quanto.
Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? aborda questões filosóficas e questiona a maneira corriqueira que percebemos determinados conceitos. Perguntas sobre o que define o ser humano, realidade e artificialidade relativa permeiam toda a obra e provam que Philip K. Dick falava de um mundo imaginário, muito mais parecido com o nosso do que realmente enxergamos… Ou gostaríamos de enxergar.
Via: Formiga Elétrica
Escrito por Gustavo Clive Rodrigues
Kristen Stewart é cotada para protagonizar remake de "As Panteras"
De acordo com a Variety, Kristen Stewart, atriz conhecida pelos trabalhos na saga Crepúsculo, é a principal cotada para protagonizar o remake em desenvolvimento de as As Panteras.
Ele interpretaria uma das três agentes secretas que tanto o seriado quanto o filme apresentam em diferentes aventuras. O processo de casting já iniciou e a Sony só quer nomes grandes para estrelar o filme incluindo Lupita Nyong’o.
O filme é previsto para o começo de 2019, com direção de Elizabeth Banks (A Escolha Perfeita). Esse seria o primeiro blockbuster que Stewart faria desde 2010. A atriz se afastou de projetos grandes depois da polêmica envolvendo Rupert Sanders em Branca de Neve e o Caçador.
Crítica | LEGO Ninjago: O Filme - O Primeiro Tropeço da LEGO nos Cinemas
Uma hora, titãs caem. Não demorou muito para o império cinematográfico da LEGO se consolidar. Com apenas dois sucessos fenomenais como Uma Aventura LEGO e Lego Batman: O Filme, a Warner a empresa dinamarquesa de blocos de montar conseguiram mostrar como é possível retrabalhar clichês para contar ótimas histórias.
Rapidamente, viraram uma das franquias mais lucrativas de animação dos últimos anos, além da boa média crítica. Porém, com LEGO Ninjago: O Filme temos a primeira reviravolta neste cenário até então otimista. A linha Ninjago da LEGO foi uma grande febre no começo dos anos 2010 conseguindo até mesmo emplacar diversos seriados da marca explorando as aventuras do sexteto de ninjas Kai, Jay, Cole, Lloyd, Nya e Zane sob a tutela do mestre ninja Wu.
Assim como Bionicle, a LEGO provava que suas novas ideias rendiam lucros exorbitantes, além de permitirem explorar culturas fora do padrão ocidental e dos brinquedos licenciados de outras marcas. Logo, não demoraria nada até a LEGO e a Warner investirem em uma produção cinematográfica dessa linha.
Ao contrário dos outros dois filmes, Lego Ninjago entra sorrateiramente, escondido sob a névoa de outro lançamento importante que já resenhamos: Kingsman – O Círculo Dourado. Quando nem o marketing se anima em vender o filme, podemos prever que algo não está indo bem. E de fato, Lego Ninjago é uma experiência medíocre.
Oportunidade Perdida
Outrora, os pontos mais altos dos filmes LEGO eram seus roteiros repletos de sacadas rápidas, nenhum medo do ridículo, além da subversão de expectativas pelo uso do nonsense, além de contar boas histórias. Lego Ninjago teria esse grande potencial não fosse a quantia assustadora de pessoas que assinam seu roteiro: nove, incluindo dois dos três diretores da obra: Paul Fisher e Bob Logan.
Apesar de não ser a regra, é costumeiro que filmes escritos por muitas mãos tendam a resultar em obras de baixa qualidade e bastante fragmentadas mostrando a condensação quebradiça das várias ideias do texto.
Infelizmente, desse clichê, Lego Ninjago não consegue se safar ou revolucionar seu uso. O filme, na verdade, começa mal, bem mal, se assemelhando a obras B infantis dos anos 1990. Em uma clara concessão para exibir a imagem de Jackie Chan explicitamente, somos apresentados a um jovo ordinário entrando em uma antiga loja orienteal de mistérios – sim, como em Gremlin. Lá esse jovem deprimido por não ter amigos encontra Jackie Chan que se põe a contar a história da lenda de Ninjago.
Um prólogo completamente desnecessário e sem-graça que consegue quebrar a imersão do filme, pois os diretores tratam a imagem da cena como se tivesse consciência de quem Jackie Chan é e representa. Passada essa interrupção desnecessária, o verdadeiro filme começa do modo que está na moda em blockbusters contemporâneos: com pressa, muita pressa.
Rapidamente conhecemos o conflito primordial do nosso protagonista, Lloyd, o ninja verde líder do sexteto de ninjas protetores de Ninjagos. Ele é filho do grande vilão Garmadon que vive dentro de um vulcão localizado a poucos metros das praias da cidade. Diariamente, Garmadon ataca Ninjago na tentativa de dominar a cidade, mas sempre é derrotado pelos ninjas. Lloyd, portanto, tenta conciliar sua vida normal na qual todos o odeiam por ser filho do vilão mais temível da cidade, enquanto treina secretamente com seus únicos amigos, os outros cinco ninjas, e seu tio, Mestre Wu, para salvar a vida dos cidadãos de Ninjago.
Ao contrário das outras obras que se valem de clichês para nos surpreender com ótimas sacadas, Lego Ninjago conta uma história clichê. Lloyd é clássico arquétipo do personagem ovelha negra que todos odeiam. Porém, estranhamente, o filme não nos joga em uma clássica jornada do herói como em Uma Aventura LEGO.
Aqui, Lloyd já é um grande ninja e atua diariamente para salvar a cidade das garras de seu pai, o vilão Garmadon – uma relação bastante engraçada que salva o filme do desastre completo, principalmente pela mimese mais realista do jogo de paternidade bizarro visto com Luke Skywalker e Darth Vader.
Tudo que envolve o vilão carismático realmente é ótimo e muito divertido. A comédia praticamente só funciona quando ele está em cena. Já a maioria dos outros personagens, não possuem muito propósito ou mini arcos de desenvolvimento. Já são apresentados ao estilo tosco de Esquadrão Suicida e possuem pouquíssima relevância na narrativa, não auxiliando o herói em praticamente nada. Fica bem claro que o propósito de todos os personagens ao longo de toda a história é voltado para o desenvolvimento e venda de playsets.
Aliás, este talvez seja o principal problema de Ninjago: é um filme claramente feito sob demanda do contratante. Logo, mesmo que seja uma produção caprichada visualmente, sentimos uma grande falta de interesse da equipe em realizar algo notável, pois é uma obra extremamente segura e antiquada, com piadas óbvias e muitas vezes repetitivas.
Até mesmo Jackie Chan como Mestre Wu é pouco aproveitado com presença mínima em tela. Há também uma característica peculiar de Lego NInjago ser dois filmes em um. E isso nos leva para o próximo tópico.
Quando nem a paródia funciona
A primeira metade de Lego Ninjago exibe com clareza a falta de vontade dos nove roteiristas em fazer um mínimo de trabalho de pesquisa para trabalhar com boas paródias. Nota-se, evidenteamente, que a equipe dos ninjas e seus mechas tem inspiração clara em grupos super sentai e de seriados tokusatsu, além de uma inspiração nos clássicos Godzilla dos filmes japoneses.
Enquanto a identidade visual disso é bem absorvida, nunca temos a paródia em ação ou o alvorecer de um humor inteligente – um deslize tanto da direção quanto do texto. Nem mesmo o lado dos filmes kung fu do cinema chinês é aproveitado com Mestre Wu, um desperdício completo. Já com Garmadon, vemos uma fissura clássica de vilões de seriados super sentai, aliado com a paródia de Com 007 só se Vive Duas Vezes por conta do antagonista ter seu covil maligno localizado no interior de um vulcão, além da sua relação com seus generais numerados. Detalhe: a trilogia Austin Powers também tem influência nessa paródia bem-sucedida.
Porém, o filme sofre uma reviravolta em seu miolo que coloca o roteiro em novos rumos de jornada clássica motivada por um mcguffin. Nem mesmo assim, vemos Lloyd e seus amigos ganhando mais contorno ou relevância tanto que Garmadon se torna uma presença necessária para salvar os atos restantes que também não conseguem injetar frescor algum na trama além de flashback contando a história do vilão.
Entretanto, mesmo assim, essa segunda metade é vastamente superior à primeira por enfim dar uma chance da trama desacelerar e conseguir dar mais personalidade para os personagens - em particular, o ninja robô de gelo, Zane, é um desastre completo.
Aliás, é curioso notar que a versão dublada do filme sofre com piadas localizadas que não funcionam. Isso é uma surpresa visto que a dublagem brasileira tinha superado a original nos outros longas. Em um cinema lotado de crianças e adultos, raramente pude ouvir um entusiasmo vindo do público como acontecia com frequência nos dois anteriores.
Da parte técnica, é evidente que temos uma produção bastante caprichada em temos de efeitos e animação. Mesmo que os diretores não explorem muito a cidade em si e seus interiores, é possível notar todo o cuidado criativo aplicado no design dos cenários e da cidade em si. Com poucas sacadas e expressividade na condução do filme, o trio também se comporta de modo pouco inspirado apenas comportando a linguagem cinematográfica bê-à-bá. Não há experimentações com metalinguagem e quebra de regras como outros diretores já haviam feito antes. Porém, quando os bons momentos finalmente surgem, os diretores sabem como valorizar isso, incluindo o clímax emocional do filme. Aliás, o sentimento de pressa é reverberado por conta de alguns efeitos serem realizados apenas em computação gráfica convencional. Por exemplo, explosões, espirros de água e fumaça agora não são mais feitos com as tradicionais pecinhas do brinquedo como acontecia nos dois filmes anteriores.
O Bloco mais Fraco
Lego Ninjago: O Filme é um filme falho que não consegue viver a altura de seus predecessores. O desperdício de boas ideias é realmente cruel com este filme que esbanja potencial para criar uma franquia por si só. Perturba notar que o longa não consegue dialogar bem com as características autorais que estavam fazendo esses filmes tornarem-se verdadeiramente memoráveis.
De certa forma, fica a impressão da equipe criativa não ter assistido as obras anteriores ou de que estavam sob um controle criativo tão rígido da produção que o resultado saiu como sempre acontece nesses casos: uma obra sem identidade que conta uma história banal que o público já está cansado de engolir, além de uma falta de cuidado com 80% dos personagens do filme.
Excetuando a grande graça que é ver a animação dos bloquinhos LEGO, a trilha musical, algumas sacadas visuais e Garmadon, não há muito o que apreciar verdadeiramente aqui. Apenas um filme comum e tranquilo que os pais podem levar as crianças sem a menor pretensão de assistir a algo que provavelmente já tenham visto antes. É como dizem... o terceiro filme é sempre o pior. Nem mesmo desse clichê, Lego Ninjago consegue se safar.
LEGO Ninjago: O Filme (The LEGO Ninjago Movie, EUA, Dinamarca – 2017)
Direção: Charlie Bean, Paul Fisher, Bob Logan
Roteiro: Bob Logan, Paul Fisher, William Wheeler, Tom Wheeler, Jared Stern, John Whittington, Hilary Winston, Dan Hageman, Kevin Hageman
Elenco: Jackie Chan, Dave Franco, Fred Armisen, Kumail Nanjiani, Michael Peña, Abbi Jacobson, Zach Woods, Justin Theroux, Olivia Munn
Gênero: Animação Infantil, Comédia, Aventura
Duração: 100 min.
Crítica | Cisne Negro
Tchaikovsky foi um grande compositor russo que viveu até os 53 anos. Durante sua vida compôs inúmeros concertos, sinfonias, óperas e balés sendo os mais famosos “A Bela Adormecida”, “O Quebra Nozes” e “O Lago dos Cisnes”. Mesmo com grande prestígio na carreira, levava uma vida pesada e triste, provavelmente as causas de suas músicas inquietas e revoltadas. Ele era homossexual e como todo gênio, era louco. Apesar de sua vida curta, deixou um enorme legado para humanidade. Suas músicas encantam e emocionam todos que já as ouviram pelo menos uma vez na vida e, aproveitando este legado, Darren Aranofsky reinterpreta “O Lago dos Cisnes” em “Cisne Negro” um filme que certamente deixará seu queixo caído.
Nina é uma bailarina excepcional que trabalha em uma companhia de balé em Nova Iorque. Um dia, um diretor renomado de óperas aparece em sua companhia e convoca todas as bailarinas para fazer um teste para sua mais nova reinterpretação de “O Lago dos Cisnes”. Para conseguir o papel, Nina terá que fazer o Cisne Branco – um papel que exige leveza e inocência, porém também terá que interpretar o Cisne Negro – malicioso e sensual. Por fim, Nina consegue o papel principal da peça, mas tudo isso pode acabar quando outra bailarina, Lily, chega e se encaixa perfeitamente para o papel de Cisne Negro. Isto resulta uma rivalidade extrema entre Lily e Nina que passa a dar tudo de si para aperfeiçoar seu Cisne Negro e garantir seu papel de Rainha dos Cisnes.
O cisne psicológico
O roteiro de Mark Heyman e Andres Heinz surpreende a cada instante, deixa o espectador apreensivo, ansioso e aflito a respeito do desfecho da jornada de Nina. Tudo começa com seus personagens ricos e traumatizantes. Nina é infantilizada e superprotegida pela mãe – e aparentemente virgem. O resultado disto é sua obsessão por competir e ser a melhor no que faz, sempre buscando a perfeição. Fora isso, assume uma viciante covardia em seus erros, desculpando-se por nada. Graças a essas características, torna-se obcecada para fazer a melhor apresentação já vista do Cisne Negro e tem muita dificuldade, em ser sensual, graças ao olho zeloso e doentio de sua mãe, que insiste em tratá-la como menina. E conforme o roteiro evolui, a personagem vai ficando cada vez mais louca e centrada em seu papel – o famoso caso que o ator não sai do personagem, vide Heath Ledger. Para completar, também sofre de uma suspeita cleptomania.
Lily é uma espécie de antagonista não assumida da história. Ela enxerga as fraquezas de Nina e as utiliza para deixá-la mais paranóica, tentando tirar o papel da protagonista. O diretor do balé, Thomas Leroy, aproveita e assedia sexualmente as bailarinas que permitem que ele as faça de objetos sexuais para conseguir os principais papéis das peças. E por fim a personagem mais rica, a mãe de Nina, Erica. Uma bailarina que desistiu da carreira graças à gravidez precoce. Arrependida pelo passado desconta em Nina sua indignação e a obriga (indiretamente) com terror psicológico a ser a melhor da companhia. O interessante de Erica é que no início da projeção o espectador é influenciado a odiá-la por causa do tratamento que dá a Nina. Mas durante o filme, Nina fica paranóica completa (louca mesmo) e sua mãe parece ganhar mais sanidade em compensação, ou seja, há uma inversão de papéis entre mocinho e vilão. Típico de loucura a dois (folie à deux).
O roteiro é ousado por adentrar um universo que poucos filmes já tentaram – o do balé. No caso, é retratado com uma atmosfera extremamente competitiva, cheia de assédios sexuais e psicológicos, inveja entre as bailarinas, o abandono de artistas antigas e o esforço físico que elas realizam. Ele também cita a rotina “ritual” das moças: costurando sapatilhas, trocando solas, atando os dedos dos pés com esparadrapos, estalar os dedos, os pés calejados e os problemas de juntas.
Elenco formidável
Não é por menos que Natalie Portman foi indicada ao Oscar deste ano — ela está absolutamente incrível! Após anos trabalhando com George Lucas e sua inexpressiva Padmé Amidala, finalmente recebe um papel capaz de mostrar seu valor. Portman criou um psicológico profundo para sua personagem, sempre fazendo caretas de choro e de fragilidade. Vale destacar o trabalho que ela teve para aprender a dançar o magnífico balé apresentado nas telas, mesmo tendo estudado balé desde os quatro anos de idade. E, claro, o maior destaque do filme durante o clímax onde sua expressão facial e corporal muda por completo, dando uma elegância e dramaticidade estonteante para a cena. Certamente, entregou-se de corpo e alma para esse papel.
Mesmo com uma protagonista incrível, os coadjuvantes não fizeram feio. Vincent Cassel está muito bem como o tarado da companhia. Ele exclama suas frases de maneira interessantíssima, como se fossem chibatadas estalando nas costas de Nina, sempre a provocando de alguma maneira para tirar o melhor dela (nos dois sentidos). Mila Kunis está progredindo em sua atuação – ainda não atingiu seu melhor desempenho, mas sua química com Portman é ótima, vide a cena ousada e erótica do filme. Sua personagem é o oposto de Nina, é extrovertida, mentirosa, drogada, desleixada, sensual e perfeita para ser o Cisne Negro na peça.
Barbara Hershey merece um destaque porque ela é quem rouba a cena a todo instante. Seu amor doentio pela filha dá calafrios a quem assiste. Ela também é superbipolar e chantagista com Nina. Sua relação com a filha é sempre interessante, passa de uma calmaria para um tom ameaçador com um timing perfeito. Outra atriz que deve ser lembrada é Ksenia Solo (Veronica), seus olhares maliciosos e cheios de ódio para Portman são obras de mestre. Winona Rider também aparece no meio do longa com direito ataques de estrela e esfaqueações faciais.
A beleza do cisne
Indicado ao Oscar, Matthew Libatique é um mestre de fotografia. Se não era, tornou-se. Durante o início do filme, ele filma tudo no estilo a là handycams que deixa a imagem instável a todo instante. Isto resultou em lance físico entre filme/espectador como se nós estivéssemos acompanhando todo o esforço de Nina como um personagem da trama. Conforme o filme se desenvolve, ela começa a ficar estática de pouco a pouco e deixa as tremidas de lado, distanciando o espectador da protagonista quando ela atinge sua meta e vira um ser intocável e “perfeito”.
Ele desafia o maior medo de todos os fotógrafos que se prezem – os espelhos. Seu trabalho com os espelhos é inacreditável, achando ângulos impossíveis para a câmera não aparecer (ou foi removida digitalmente). Esses espelhos ampliam o cenário, a profundidade das cenas e deixam o espectador perdido entre os rodopios de balé de Portman.
Além disso, insere diferentes tipos de iluminação. Repare que no apartamento de Nina tudo é sombrio e obscuro, na companhia a iluminação é clara e, subitamente, fica melancólica nos acessos de loucura da garota. E, por fim, ela assume descaradamente um modelo teatral na primeira cena do filme e durante seu clímax – nesta parte ocorre o plano mais bonito que já vi na vida (quase tive um infarto).
A direção de arte consegue ser tão soberba quanto à fotografia. Em todos os cenários da companhia, há constante contraste entre o branco e o preto, inclusive nos figurinos, enquanto Nina usa um uniforme branco rosado, Lily veste um preto escuro, ou seja, uma bela personificação do bem e do mau, do ingênuo e do esperto, etc. Também realiza um trabalho incrível na casa de Nina, especialmente em seu quarto infantil e no atelier sinistro de Erica.
Os efeitos visuais apesar de distintos e seletos são elegantes e bem executados. As tatuagens, as pinturas e a metamorfose animada da pele da protagonista são magníficas, fora a animação do clímax que é de tirar o fôlego.
O renascimento de Tchaikovsky
Clint Mansell entregou um trabalho inacreditável em suas composições. Finalmente um filme assume a música clássica como principal atração e fazia tempo que isso não acontecia. Elas conseguem instigar o espectador a cada cena e perturbá-lo aos poucos entrando literalmente na loucura de Nina.
Várias vezes as belas sinfonias de Tchaikovsky são utilizadas. Para quem conhece, sabe que as músicas dele começam calmas e lentas, mas durante um milésimo de tempo tudo fica agitado e barulhento. Uma verdadeira gama de sentimentos. Todo esse emocional do compositor, foi muito bem utilizado no filme e dá para sentir a turbulência de emoções de Tchaikovsky durante o filme.
And the Oscar goes to…
Darren Aronofsky é um diretor masoquista. Ele perturba o espectador psicologicamente e fisicamente, atormentando-o aos poucos e deixando-o em eterna aflição até o fim do filme, exatamente como em O Lutador. Aronofsky adora expressar a violência de seu filme através dos seus closes fechados nas feridas de Nina.
É ousado em suas cenas de sexo quase explícito. Até as de suspense são extremamente bem dirigidas e nunca entregam o mistério logo de cara para o espectador, ou seja, o desfecho de cada cena é imprevisível.
Seu olho supervisor na edição é eficiente e milimetrado. E o resultado disto é um filme extremamente fluido embora perturbador, o mais legal da edição é que ela sempre contextualiza com a música ou com a própria cena com uma sincronização perfeita. Infelizmente, preferiu cortar boa parte da apresentação final do ballet o que foi realmente uma pena. Portman solta uma frase no fim do filme: “I was perfect…”. Sim Aronofsky, este filme provavelmente foi a obra de sua vida, mas não duvido nada que este diretor surpreendente nos encante com outra história outra vez.
O Baile do Cisne
Não perca seu tempo se perguntando se vale à pena ou não assistir uma obra-prima como esta, simplesmente vá. Ele é pesado, masoquista, perturbador e fará você refletir durante algumas boas horas. Lembre-se que esta é uma experiência cinematográfica. Ou seja, o filme não terá o mesmo impacto, principalmente a música, se você assisti-lo por meios indignos da internet.
Mãe! | Entenda a Alegoria Religiosa do Filme
Spoilers!
Darren Aronofsky é um dos realizadores contemporâneos mais felizes em sua assinatura cinematográfica. Acredito que aqui, temos finalmente o ápice dessa culminação autoral que vinha desenhando ao longo de todos os outros filmes.
Mãe! é um filme de proposta experimental e totalmente pessoal. De modo claro, é um exorcismo dos próprios demônios pessoais do diretor. Não é de hoje que Aronofsky aborda a fé e o cristianismo em suas obras. Aqui, temos o fim de uma trilogia sobre essa questão divina – os outros são Noé e A Fonte da Vida.
O longa é uma grande alegoria sobre o Antigo e o Novo Testamento segundo a Sagrada Bíblia, tendo um foco narrativo muito enfático na parte do Antigo Testamento. Logo, a personagem de Jennifer Lawrence é a Mãe Natureza em contato íntimo com seu lar, a Terra, o planeta. Seu marido, Javier Bardem, é Deus, o grande poeta e criador de tudo e todas as coisas. Juntos, vivem neste paraíso rústico e idílico, isolado de tudo.
O cinismo já é notado na abertura do longa com o estabelecimento de conflitos primordiais. A Mãe é bastante solitária (repare em todas as vezes que acorda sozinha no quarto) tentando inspirar Deus a criar novas obras, porém Ele sofre com um bloqueio criativo. A trata friamente, quase nunca dorme ao seu lado. Sua musa inspiradora não arranca um suspiro de graça e inspiração.
Pura, imaculada, angelical e inocente, a Mãe deixa Deus com seus problemas enquanto trabalha firmemente para restaurar e fortalecer a Casa que outrora foi destruída por um grande incêndio. Das cinzas, apenas restou um precioso Cristal guardado no escritório de Deus (Paraíso, Jardim do Éden).
A normalidade cotidiana quase perfeita aos olhos da Mãe é interrompida de súbito. Um visitante indesejado surge sem aviso prévio. É o primeiro homem, é Adão. Vivido por Ed Harris, o homem é completamente moribundo, doente e cheio de vícios (álcool e cigarro), mas consegue despertar uma grande paixão em Deus que se fascina pelas histórias contada pelo homem. Nós, espectadores, presos à Mãe, nunca escutamos essas histórias. Deus é mais interessado em sua grande criação, criada à Sua semelhança, feita também para completar um vazio existencial – embora ele saiba, no fundo, que o homem é imperfeito.
Adão fica na casa por um dia e entra no escritório de Deus que apresenta o cristal sagrado – a maçã proibida no Jardim do Éden. Quando Adão tenta tocá-la, Deus o proíbe. Adão obedece, pois ama e teme Deus e a Palavra. Enquanto isso, a Mãe provê a casa, arrumando já a desordem crescente causada pela sujeira e falta de cuidado do homem, além de servir Adão como pode.
Da Costela, vem o pecado
Em um dos melhores momentos da obra, vemos Mãe acordar de súbito a noite (novamente sozinha no quarto). Ela escuta as tosses incessantes de Adão e vai investigar o que acontece. Ao chegar no banheiro, se depara com Deus confortando o homem e sua angústia, pois Deus ama sua criação.
Na encenação, se o espectador piscar, vai perder um detalhe importantíssimo. Assim que Mãe vê o que acontece, percebemos que há um ferimento nas costas de Adão que logo é encoberto pelas mãos do Poeta/Deus. Ali, Aronofsky já dá o indício que Eva logo surgirá, pois falta uma costela em Adão.
Dito e feito. No alvorecer, Eva chega. E na interpretação de Aronofsky, Eva e o Diabo já são um só. Por mais que Adão seja um incomodo, nada supera a malícia de Eva, interpretada por Michelle Pfeiffer. A personagem tenta cumprir o papel da Mãe como anfitriã, mas é desastrada é mais prejudica do que ajuda. Não demora nada para também abusar da paciência da Mãe.
Como também representa o Diabo, Eva passa a incutir duvidas na cabeça da Mãe, ridicularizando a falta de desejo de Deus por ela e pelo sexo. Enquanto tenta agradar a dona da casa, Eva também só prejudica o ambiente e intoxica o lugar até entrar no Paraíso com Adão e cometer o pecado original: quebrar o cristal sagrado. Deus, furioso, os expulsam do escritório, segura os cacos daquele totem, sangra em seus restos e decide isolar seu lugar de trabalho. Nunca mais o homem pisará ali. Enquanto isso, Mãe procura o estranho casal que já está ocupado transando em outro cômodo.
Como perceberam, Aranofsky faz “pulos” narrativos de uma situação para outra. A lógica estabelecida na narrativa clássica geralmente exige a ação e então uma reação. Tivemos a ira divina e o enxotar do casal de primeiros homens, mas de modo nenhum vemos eles com seu próprio drama. Adão e Eva não lamentam ter decepcionado seu criador que tanto adoram. Eles agem com completa indiferença e já se ocupam com uma nova atividade pecaminosa.
Paralelamente a isso, Aronofsky busca construir a relação melhor desenvolvida do personagem: da Mãe com a casa. Desde o começo da alegoria, vemos o contato íntimo da Natureza com a Terra. Uma ligação realmente única. Ela sente a saúde cardíaca da casa minguar conforme o tempo de permanência do homem ali aumenta.
Nós, as pragas da Criação
O segundo ato da obra ainda pode funcionar bem para o espectador que não sacou diretamente a alegoria do filme. Basicamente, Aronofsky escalona o mesmo raciocínio empregado até então, levando a história para novo limites de estranhamento e desconforto.
Aqui, os diálogos já tornam a alegoria mais evidente com as discussões da Mãe com Deus, contestando o motivo pelo qual Ele não toma qualquer postura diante dos abusos dos visitantes. Fora isso, a própria narrativa já fica menos ambígua, frisando mais que a história se trata mesmo de uma alegoria. Isso é evidenciado pela presença de Caim e Abel, que invadem a casa reclamando sobre a herança que seria deixada por Adão.
Obviamente, Caim acaba matando Abel no meio da confusão. Deus, Adão e Eva socorrem Abel e o levam para o hospital deixando a Mãe sozinha na casa. Se fossemos focar sobre o tal do “terror” da obra, essa seria a parte mais assustadora, pois o assassinato “corrompe” ou acelera a degradação da casa, afinal um dos maiores pecadas foi cometido na Casa de Deus, já enfraquecida.
Aqui, nitidamente podemos sentir os sacrifícios que Aronofsky faz para preservar o experimento cinematográfico de modo puro. Nessa altura, já estamos na metade do filme e praticamente nada foi devidamente desenvolvido do modo que estamos habituados a ver.
Por conta dos personagens serem parte dessa enorme alegoria, também se tornam completamente restritos a ela. Aronofsky preserva a todo momento essa pureza casta e trabalhadora da Mãe, dona de casa e esposa companheira. É através das nuances da excelente atuação de Jennifer Lawrence que sentimos a frustração da personagem em não conseguir provocar o fascínio em Deus do modo que os homens causam.
Até o final do filme, a Mãe não tem ciência que faz parte da alegoria, que ela própria também é uma criação de Deus. Infelizmente, a virada desse reconhecimento não é tão potente como poderia ser. A personagem ainda cumpre, benevolamente, sua função primordial de alegoria até mesmo em seus instantes finais, já ciente da divindade do marido. Seu amor pelo Criador é o mais puro possível, indo até as últimas consequências para comprovar isso.
Voltando ao miolo do segundo ato, ele se comporta bastante como um filme de terror sobrenatural ou de casa mal-assombrada. São momentos curtos que encaixam bem na cronologia do Antigo Testamento, mas envolvem o lado mais comercial da obra: a apresentação de algumas pragas do Egito enquanto Deus está ausente na casa. Novamente, ela apenas sente que tudo está errado e deseja que as coisas voltem ao normal, quando não haviam homens na casa, apenas ela e o marido.
A interpretação de Aronofsky é bastante niilista acerca da humanidade. De todos os homens e mulheres que passam na casa, apenas um se importa em cuidar e tratar a Mãe com respeito. Quando enfim o surrealismo realmente acontece, durante o velório de Abel com a chegada de milhares de visitantes bizarros, vemos apenas a pior face da humanidade, ainda que um pouco comportada se comparada ao clímax do filme.
Diversos pecados surgem na cena, ferindo todos os dez mandamentos. A humanidade é perversa, caótica e parece esquecer completamente do propósito original daquela reunião. Diversos povos, etnias e idiomas surgem, mas todos os homens ignoram e desdenham dos comandos e ordens da Mãe, tentando proteger a casa a todo custo.
O pretexto da justificativa é repetido diversas vezes: Deus nos ama, Deus abriu sua casa e coração para conosco, Deus mandou dividir. Todas essas frases belas soam totalmente hipócritas diante de sorrisos debochados, depravação e lixo que surgem daquela situação. O homem deixa Mãe ainda mais impotente com esse pretexto.
Para interromper esse enorme atropelamento narrativo e não jogar a história do seu em completo caos, o diretor-roteirista se vale do episódio do Dilúvio (sim, o de Noé) para restabelecer a ordem – isso ocorre quando um casal quebra uma pia ainda não cimentada, após Mãe avisar diversas vezes para não sentarem sobre o lugar. Nesse ponto, Adão e Eva já se foram e nunca mais retornam na história.
Então, convenientemente, o diretor-roteirista finalmente desenvolve o conflito latente entre Mãe e Deus com um confronto direto em diálogo que também torna a alegoria mais óbvia. Depois da briga, Deus finalmente intercede ao desejo da Mãe: se tornar realmente mãe. Aqui, vale mencionar que temos o primeiro fade out do longa, mas ao contrário do que estamos acostumados, Aronofsky dissolve a tela para o branco pacífico e sereno, já anunciando a gravidez da protagonista e uma breve paz.
Quando Deus se dá conta que será pai e não mais o Pai, a inspiração volta e o bloqueio narrativo some. Finalmente começa a escrever um novíssimo poema: o Novo Testamento. Mas não interessa a paz a Aronofsky. A crítica do diretor sempre visa o caos e mesmo nessas cenas que antecedem a loucura do clímax, temos Mãe interagindo com a casa que, mesmo restaurada, já está corrompida em suas fundações – pelo sangue maldito do assassinato de Abel e também pelo isqueiro perdido de Adão. Ou seja, as marcas do homem se tornaram uma só com a casa, apesar dos esforços da Mãe em preservá-la.
Logo, algumas experiências sobrenaturais voltam a ocorrer, exatamente com as assombrações que ela testemunha quando fica sozinha na casa. Mesmo explodindo de grávida, Mãe permanece solitária. Deus está empenhado em sua nova escrita, na sua nova criação. Para Aronofsky, a Palavra vale mais que o menino Cristo ainda não nascido. Portanto, a alegoria sofre algumas alterações: a Mãe continua representando a Natureza, mas agora também faz a parte de Maria na narrativa bíblica.
Apesar deste abandono, Mãe parece estar em verdadeira paz e completamente realizada. No dia que Deus finalmente termina sua obra “perfeita”, a protagonista decide fazer um farto jantar em comemoração. Entramos enfim no terceiro ato e tudo vira uma montanha-russa ascendente insana.
Chega o Apocalipse
Nunca antes na escrita de Aranofsky tínhamos visto algo tão intenso e provocador durando tantos bons e terríveis minutos. Enquanto os dois atos inteiros conseguem dar conta de metaforizar o Antigo Testamento e suas diversas passagens, o diretor decide colocar todo o Novo Testamento em questão de minutos para encerrar a obra de modo extremamente chocante.
A decisão é bastante acertada, pois nos pega totalmente despreparados, criando uma extensão de sentidos e sentimentos raríssimas vezes antes vista nos cinemas. Nessa enorme loucura estabelecida com o clímax, o espectador torna-se um com Mãe e Aronofsky finalmente torna seu cinema pura experiência.
Para justificar os acontecimentos, Deus recebe uma ligação de sua editora (Espírito Santo) – interpretada por Kristen Wiig, avisando que seu novo escrito é o seu maior sucesso. Mãe fica surpresa e decepcionada em descobrir que Deus já tinha mostrado seu novo trabalho para outros e que as pessoas já estavam consumindo essa novidade.
Como tinha mencionado acima, todos os personagens sofrem da natureza imperdoável da alegoria dessa interpretação religiosa de Aronofsky. Já sabemos que a Mãe é boa e pura e que a humanidade é desprezível. Mas e Deus? Para o diretor, Deus é um narcisista completo, hipócrita, inconsequente e despreparado por ceder o livre-arbítrio. Sua história é caótica justamente porque a história da Criação segue sempre sendo escrita por mãos diferentes, com tintas diferentes.
No filme, Deus não intercede no destino dos acontecimentos. Ele gosta de observar e conhecer as histórias novas criadas pelos homens. Deus aprecia o caos. Deus também é o Diabo – vemos a imagem do Criador rabiscada com chifres depois da morte de Abel (uma crítica de que até mesmo sob seu próprio teto, Ele é permissivo com homem a ponto de cometer o maior dos crimes sagrados).
Ou seja, ter ou não a presença de Deus é um grande tanto faz como tanto fez nessa leitura proposta pelo diretor, pois Ele se porta de modo indiferente, apesar de não se sentir desse modo. É um Deus solitário, imperfeito, egocêntrico que cria apenas para angariar mais e mais adoração. Aronofsky vê que o amor da divindade nada mais é do que a causa da própria miséria humana, da miséria de tudo e da frivolidade da vida.
E para debatermos Deus e o paradoxo lógico da Criação nunca poder ser de fato perfeita, entraremos em um nível de discussão filosófico que não cabe aqui, mas em outro artigo. É esse o nível da reflexão que o diretor propões com Mãe! Algo realmente fantástico e fascinante somente por trazer a tona um debate tão interligado com essência da nossa humanidade. Nos levar a pensar no Divino e no nosso papel no Cosmos e aqui na própria Terra.
Tudo isso por conta desse derradeiro terceiro ato nada menos que perfeito. Na noite do jantar, ocorre uma nova invasão na casa da Mãe. Deus novamente não se preocupa com a esposa – essa característica é plenamente compreensível por conta da Natureza ser uma Criação primordial e, logo, obsoleta com o alvorecer da humanidade, de propósito que já infere subjugação da anterior, afinal é assim como Ele diz: Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra! (Gênesis 1:28)
Nesse cenário, Mãe já está derrotada mesmo que ainda carregue Cristo dentro de si. A casa é novamente povoada por uma turba ainda maior que a anterior. Novamente, tudo é vilipendiado, consumido e destruído enquanto Deus festeja o sucesso de sua Palavra com os homens.
A partir do momento que um personagem diz a seguinte frase para a Mãe: A obra dele é única! Ela se comunica com todos, mas cada um a sente de modo diferente, Aronofsky elabora o resumo de toda a história da humanidade – de um modo bastante semelhante a A História da Humanidade como retratada por Milo Manara em icônica arte. A história começa com a fundação da fé judaico-cristã – só na vertente cristã, existem mais de 34 mil igrejas que interpretam a Bíblia de modos distintos.
O que antes não havia, agora existe: diferentes líderes surgem para pregar a palavra do Senhor. Ao finalmente encontrar Deus no meio de toda a movuca, Mãe dá o ultimato: ou tira todos dali agora, ou lidará com o Apocalipse. Deus continua passivo como sempre e o Apocalipse se inicia. Através de imagens perturbadoras de Fome, Pestilência, Guerra e Morte a cada cômodo da casa tomada enquanto Mãe perambula desesperada salvando os cacos, Aronofsky cria seu melhor momento na direção da obra.
A montagem é assustadoramente eficiente e invisível tornando toda a sequência visual realmente única. É ver para crer, pois se trata do indizível cinematográfico. Me estender em palavras para descrever o que ocorre é totalmente redundante. A sequência apenas respira quando a Editora, o Espírito Santo, encontra Mãe no meio dos destroços dos aposentos arruinados da casa.
Ao contrário do que muitos devem pensar, creio que este seja o momento mais importante do filme, pois traz à luz a crueza da mensagem do filme. Subentende-se que nessa sequência, a humanidade avança por eras até o Apocalipse. Na ausência de Deus – repare que quando ele ressurge, alguns homens bradam: Ele voltou! Ele não nos abandonou! –, é o Espírito Santo, o viabilizador da Palavra divina, quem comanda as coisas na casa – o diretor então, finalmente, admite algum senso de ordem e hierarquia diante da anarquia que se instalava na casa.
A Editora assume um tom com Mãe até então antes nunca visto. Finalmente encontramos a Inspiração! Agora é hora de dar fim nessa loucura toda! A Editora decide dar fim à vida da protagonista, pois vivenciou toda a consequência da loucura originada pela Criação – lembrando que como a Natureza vem antes do homem, ela acaba inspirando a criação do mesmo. Na lógica do filme e dessa interpretação, a Editora sabe que se dar fim ao primórdio da Criação, não haverá homem e, portanto, haverá paz.
Para Aronofsky, a Palavra é perfeita, pois se mantém integra e decide sujar as próprias mãos quando se faz necessário. Ela é mais perfeita que Deus, pois Ele é conivente com o desmando das próprias Leis. Ele é um hipócrita.
Porém, obviamente, Mãe é salva. Primeiramente pelo único homem gentil que logo depois é morto. Só então Deus surge, camuflado entre outros, e a leva novamente para o Paraíso cujas portas são arrombadas pelo próprio Divino. Lá, enfim, Cristo nasce.
Humanos... Miseráveis, Humanos
Assim como em Noé, Aronofsky visa trabalhar a tensão de um suspense incerto. Nós já conhecemos a natureza de Deus nesse ponto e sabemos que ele pegará Cristo assim que a Mãe vacilar. Ele oferecerá para a turba de fanáticos que aguarda silenciosamente do lado de fora. Uma nova Criação, a mais perfeita de todas, trazendo assim ainda mais adoração.
Ela perde a guerra contra o sono. Ela perde seu único filho. E acorda sozinha.
Deus entrega a criança para os zelotes e fieis que a envolvem até matá-la – assim como na Bíblia, Cristo é enviado à humanidade para morrer e transformar. Em desespero, a protagonista avança contra os homens para encontrar o corpo do filho já parcialmente devorado, literalmente, pelos fiéis – alusão clara ao fundamento da Igreja Católica e do ato de comungar o “Corpo de Cristo”.
É o primeiro momento de pura revolta e ódio na personagem pura até então. A casa finalmente está morta, assim como o espírito de Mãe. Porém, antes de irromper ao assassinato de alguns homens e depois ser brutalmente espancada em resposta – a imagem é poderosa e bastante perturbadora, há um ponto crucial que desenvolve o personagem de Deus. E é justamente por conta disso que vejo o comentário de Aronofsky sobre a divindade menos cruel do que ele aparenta ser.
Para entendermos o desenvolvimento desse personagem, é preciso sacar que o mesmo se encontra no contraste entre as duas passagens mais importantes para Ele: a destruição do cristal e da morte de Cristo. Quando o cristal é destruído, Deus é tomado por uma fúria restritiva. Aqui, com a morte do filho, acontece o oposto. O personagem lamenta o fato e chora, mas clama para que Mãe compreenda a necessidade do perdão.
É preciso perdoar para evoluir. E Deus parece aprender isso ao longo da jornada. Ele frisa que Jesus vive, mas agora nas lamúrias da humanidade que tenta redimir seus pecados. Nesse momento, é curioso notar como a obra se torna realmente redonda. Em diálogos anteriores com Eva, Mãe reconhece que só “dá e dá e dá...”, nunca recebendo nada em troca, apenas angústia e sofrimento – esse diálogo se dá no porão da casa.
Ali, naquele ponto crucial, Mãe já não aguenta mais dar. A hora do fim realmente chega. Reencontrando o isqueiro perdido de Adão, a protagonista corre para o porão, no qual anteriormente encontrara um tonel gigantesco de combustível em uma parte incendiada da casa. Mesmo com Deus implorando para que ela não exploda toda a Criação, Mãe o ignora e encerra tudo que havia ali, se sacrificando em conjunto.
Porém, se ainda restava alguma dúvida anterior ao espectador sobre a natureza bíblica da alegoria, ela se encerra com a conclusão do filme que se trata da mesma sequência da abertura. Deus carrega a protagonista incendiada que admite ainda amá-lo. Ela se sacrifica e entrega o coração ainda pulsante para Ele. O órgão se desfaz em cinzas e dá origem ao cristal que inspira Deus a retomar toda a Criação novamente. A Casa é restaurada e uma nova Mãe acorda no quarto.
Mas há Somente Isso?
De fato, não. A alegoria religiosa é a que Aronofsky mais trabalha, além de ser a alma do filme, mas é possível tirar inúmeras interpretações sobre o que acontece na casa.
É possível tirar desse filme uma mensagem ambientalista importante, sobre como a humanidade destrói o próprio planeta , uma crítica ao culto à personalidade, na criação de falsas celebridades, no vazio existencial humano, na nossa incapacidade empática, na defesa da propriedade privada, na importância da originalidade, do mercado artístico em si, entre tantas outras.
Também há elementos do filme que não consigo encontrar uma correspondência clara para a metáfora que Aronofsky constrói. A principal delas é o pó amarelo que Mãe dilui na água sempre que se sofre de um mal súbito. Nada no longa realmente sustenta algo sólido que podemos inferir como ocorre no caso da alegoria com o Antigo Testamento. O curioso é que a protagonista joga todo o "remédio" fora assim que sente a certeza de estar grávida. Então podemos depreender que o pó era um tranquilizante de certa forma, além de colaborar com sua fertilidade supostamente.
Outro elemento curiosíssimo que muita gente irá se perguntar é, se existe o Paraíso e a Terra, onde raios está o Inferno nessa alegoria? Evidentemente que o Inferno é o porão da casa, sendo o demônio representado muito pela humanidade diversas vezes. Mãe sempre tem os piores encontros com atividades sobrenaturais e diálogos impuros quando está no porão. O instrumento de destruição também fica no subsolo da casa, além dele ser o único cômodo realmente intocado quando todo o resto já está em ruínas.
E você? O que interpretou de mãe!? Conte para a gente nos comentários logo abaixo.
Alegoria Apocalíptica | O Final de "mãe!" explicado
O que pensar do final insano de mãe!? Certamente é um dos clímaces mais intensos que Aronofsky já escreveu ao longo de sua carreira repleta de filmes poderosos e tão impactantes quanto.
Porém, para compreender o final em sua totalidade, é preciso entender a alegoria religiosa que o diretor sustenta durante o filme todo. Expliquei ela em detalhes tanto na crítica como em um artigo dedicado.
Mas caso queira uma versão mais enxuta e menos detalhada da coisa, então estamos no lugar certo. Primeiro, basta entender que o final do filme adapta tanto o Novo Testamento quanto uma interpretação pessimista da História da Humanidade focando apenas em depravações, violência e diversos cultos à personalidade.
Enfim, vale mencionar uma breve contextualização aos estranhos para a alegoria que mãe! traz. Javier Bardem é Deus, um poeta em crise de criatividade mais interessado no amor dos homens representados por Adão e Eva (Ed Harris e Michelle Pfeiffer) do que na sua inspiração original, a Mãe Natureza ou Gaia vivida por Jennifer Lawrence, que batalha diariamente para restaurar e preservar a casa dos dois (uma metáfora para a Terra).
Escalada ao Caos
Nunca antes na escrita de Aranofsky tínhamos visto algo tão intenso e provocador durando tantos bons e terríveis minutos. Enquanto os dois atos inteiros conseguem dar conta de metaforizar o Antigo Testamento e suas diversas passagens, o diretor decide colocar todo o Novo Testamento em questão de minutos para encerrar a obra de modo extremamente chocante.
Para justificar os acontecimentos, Deus recebe uma ligação de sua editora (Espírito Santo) – interpretada por Kristen Wiig, avisando que seu novo escrito (aka o Novo Testamento) é o seu maior sucesso. Mãe fica surpresa e decepcionada em descobrir que Deus já tinha mostrado seu novo trabalho para outros e que as pessoas já estavam consumindo essa novidade. Porém, ela ainda decide preparar uma ceia completa para comemorar a nova conquista de seu marido narcisista.
Na noite do jantar, ocorre uma nova invasão na casa da Mãe. Deus novamente não se preocupa com a esposa – essa característica é plenamente compreensível por conta da Natureza ser uma Criação primordial e, logo, obsoleta com o alvorecer da humanidade, de propósito que já infere subjugação da anterior, afinal é assim como Ele diz: Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra! (Gênesis 1:28)
Nesse cenário, Mãe já está derrotada mesmo que ainda carregue Cristo dentro de si. A casa é novamente povoada por uma turba ainda maior que a anterior. Novamente, tudo é vilipendiado, consumido e destruído enquanto Deus festeja o sucesso de sua Palavra com os homens.
A partir do momento que um fã ensandecido diz a seguinte frase para a Mãe: A obra dele é única! Ela se comunica com todos, mas cada um a sente de modo diferente, Aronofsky elabora o resumo de toda a história da humanidade – de um modo bastante semelhante a A História da Humanidade como retratada por Milo Manara em icônica arte. A história começa com a fundação da fé judaico-cristã – só na vertente cristã, existem mais de 34 mil igrejas que interpretam a Bíblia de modos distintos.
O que antes não havia, agora existe: diferentes líderes surgem para pregar a palavra do Senhor. O manuscrito original do novo poema é tratado como uma relíquia adorada, além de Deus passar a marcar seus fãs com os dedos sujos de tinta. Ao finalmente encontrar Deus no meio de toda a muvuca, Mãe dá o ultimato: ou tira todos dali agora, ou lidará com o Apocalipse. Deus continua passivo como sempre e o Apocalipse se inicia. Fragmentos de Fome, Pestilência, Guerra e Morte são apresentados enquanto Mãe caminha pela casa, totalmente desnorteada tentando se salvar sem compreender direito como toda a situação caminhou para uma anarquia completa. Vemos guerras civis, protestos, tráfico humano, doenças diversas e divisões surgindo dentre os humanos que passaram a habitar a casa já em ruínas.
Ao contrário do que muitos devem pensar, creio que este seja o momento mais importante do filme, pois traz à luz a crueza da mensagem do filme. Subentende-se que nessa sequência, a humanidade avança por eras até o Apocalipse. Na ausência de Deus – repare que quando ele ressurge, alguns homens bradam: Ele voltou! Ele não nos abandonou! –, é o Espírito Santo, o viabilizador da Palavra divina, quem comanda as coisas na casa – o diretor então, finalmente, admite algum senso de ordem e hierarquia diante da anarquia que se instalava na casa.
A Editora assume um tom com Mãe até então antes nunca visto. Finalmente encontramos a Inspiração! Agora é hora de dar fim nessa loucura toda! A Editora decide dar fim à vida da protagonista, pois vivenciou toda a consequência da loucura originada pela Criação – lembrando que como a Natureza vem antes do homem, ela acaba inspirando a criação do mesmo. Na lógica do filme e dessa interpretação, a Editora sabe que se dar fim ao primórdio da Criação, não haverá homem e, portanto, haverá paz.
Para Aronofsky, a Palavra é perfeita, pois se mantém integra e decide sujar as próprias mãos quando se faz necessário. Ela é mais perfeita que Deus, pois Ele é conivente com o desmando das próprias Leis. Ele é um hipócrita. Porém, obviamente, Mãe é salva. Primeiramente pelo único homem gentil que logo depois é morto. Só então Deus surge, camuflado entre outros, e a leva novamente para o Paraíso cujas portas são arrombadas pelo próprio Divino. Lá, enfim, Cristo nasce.
A Culminação do Fim
Assim como em Noé, Aronofsky visa trabalhar a tensão de um suspense incerto. Nós já conhecemos a natureza de Deus nesse ponto e sabemos que ele pegará Cristo assim que a Mãe vacilar. Ele oferecerá para a turba de fanáticos que aguarda silenciosamente do lado de fora. Uma nova Criação, a mais perfeita de todas, trazendo assim ainda mais adoração. Após agonizantes minutos sempre pautados pelo barulhinho incômodo de uma sineta escondida no quarto, dias se passam no quarto e Mãe, pela primeira vez, sente a necessidade humana do descanso – repare que antes, sempre ao menor indício de barulho, a protagonista já levanta da cama muito disposta a investigar o que ocorre.
Ela perde a guerra contra o sono. Ela perde seu único filho. E acorda sozinha.
Deus entrega a criança para os zelotes e fieis que a envolvem até matá-la – assim como na Bíblia, Cristo é enviado à humanidade para morrer e transformar. Em desespero, a protagonista avança contra os homens para encontrar o corpo do filho já parcialmente devorado, literalmente, pelos fiéis – alusão clara ao fundamento da Igreja Católica e do ato de comungar o “Corpo de Cristo”.
É o primeiro momento de pura revolta e ódio na personagem pacífica até então. A casa finalmente está morta, assim como o espírito de Mãe. Porém, antes de irromper ao assassinato de alguns homens e depois ser brutalmente espancada em resposta – a imagem é poderosa e bastante perturbadora que visa criar um paralelo da humanidade destruindo o planeta, há um ponto crucial que desenvolve o personagem de Deus. E é justamente por conta disso que vejo o comentário de Aronofsky sobre a divindade menos cruel do que ele aparenta ser.
Para entendermos o desenvolvimento desse personagem, é preciso sacar que o mesmo se encontra no contraste entre as duas passagens mais importantes para Ele: a destruição do cristal e da morte de Cristo. Quando o cristal é destruído, Deus é tomado por uma fúria restritiva. Aqui, com a morte do filho, acontece o oposto. O personagem lamenta o fato e chora, mas clama para que Mãe compreenda a necessidade do perdão.
É preciso perdoar para evoluir. E Deus parece aprender isso ao longo da jornada. Ele frisa que Jesus vive, mas agora nas lamúrias da humanidade que tenta redimir seus pecados. Nesse momento, é curioso notar como a obra se torna realmente redonda. Em diálogos anteriores com Eva, Mãe reconhece que só “dá e dá e dá...”, nunca recebendo nada em troca, apenas angústia e sofrimento – esse diálogo se dá no porão da casa.
Ali, naquele ponto crucial, Mãe já não aguenta mais dar. A hora do fim realmente chega. Reencontrando o isqueiro perdido de Adão, a protagonista corre para o porão, no qual anteriormente encontrara um tonel gigantesco de combustível em uma parte ainda incendiada da casa, escondida de sua restauração. Mesmo com Deus implorando para que ela não exploda toda a Criação, Mãe o ignora e encerra tudo que havia ali, se sacrificando em conjunto.
Porém, se ainda restava alguma dúvida anterior ao espectador sobre a natureza bíblica da alegoria, ela se encerra com a conclusão do filme que se trata da mesma sequência da abertura. Deus carrega a protagonista incendiada que admite ainda amá-lo. Ela se sacrifica e entrega o coração ainda pulsante para Ele. O órgão se desfaz em cinzas e dá origem ao cristal que inspira Deus a retomar toda a Criação novamente. A Casa é restaurada e uma nova Mãe acorda no quarto, totalmente ignorante da sua condição de refém de um ciclo doentio de criações malfadadas existentes apenas para suprir o ego e carência de um egoísta.
Lista | As Referências do Cinema de Horror em 'Until Dawn'
Sabemos que Until Dawn praticamente já virou história para boi dormir depois de tanto de seu lançamento. Porém, em um ímpeto, achando que saciaria minha vontade por produtos do nicho do Terror, acabei revisitando a obra. Na época, sem a oportunidade, não listei as consideráveis referências cinematográficas que o jogo carrega em sua história.
Tinha feito um post similar com Resident Evil 7 e agora surge a oportunidade perfeita para mencionar essas obras. Quem já se aventurou a terminar Until Dawn, percebeu que o game visa simular uma experiência de terror slasher dos anos 1980 e 1990 usando diversas plots para construir sua própria história.
Portanto, veremos alguns tópicos narrativos que envolvem spoilers. Se ainda não zeraram o game, melhor não ler, pois alguns pontos são cruciais dessa jornada.
Psicose
A primeira referência do jogo é escancarada no rosto de qualquer gamer que já tenha visto esse clássico do mestre do suspense Alfred Hitchcock. Assim como no filme, a personagem que acreditamos ser a protagonista acaba morrendo após alguns momentos de narrativa. No início de Until Dawn, controlamos Beth, uma das irmãs gêmeas de Joshua. Após uma brincadeira que dá errado, tanto ela quanto Hannah acabam caindo de um precipício e morrem.
No clássico, Marion Crane é morta pelo psicopata enquanto toma um banho no seu quarto no Motel Bates.
O Iluminado
A clássica machadinha para arrombar portas faz presença quando Matt e Emily arrombam a sala de controle do periférico.
O Chamado 2
No filme da Samara, os protagonistas são assombrados por uma horda de cervos e veados no meio da estrada. No jogo, Matt e Emily têm um encontro exatamente igual com esses animais na beira de um precipício. Essa cena, aliás, é crucial para o jogador manter os nervos nos eixos, pois pode acabar matando um dos personagens.
Halloween, Jogos Mortais, Pânico e Eu Sei O Que Vocês Fizeram no Verão Passado
Esse quarteto praticamente define mais da metade da narrativa do jogo, até descobrirmos a identidade do psicopata mascarado – trajando macacão e máscara bem similares a de Mike Myers de Halloween.
Enquanto os personagens lutam para se salvar de diversas armadilhas mortais muito similares da Jigsaw em Jogos Mortais, temos diversas relações entre eles remoendo erros do passado que resultaram na morte de alguém como acontece em Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado.
Quando enfim descobrimos que o psicopata é na verdade um dos integrantes do grupo jovem, notamos na hora a semelhança da reviravolta final de Pânico, excelente filme de Wes Craven.
Abismo do Medo
Depois do jogo superar a narrativa do psicopata com um payoff módico e bastante óbvio, o lado verdadeiramente sobrenatural de Until Dawn surge com as criaturas chamadas Windigo, uma espécie de mutantes magricelas superpoderosos que oferecem mais ação ao game.
Além da referência óbvia a Jurassic Park da característica da visão das criaturas – só podem te ver caso se mova, assim como os dinossauros do filme, o design e origem dos bichos remontam ao feeling de Abismo do Medo, no qual diversas jovens ficam presas em uma gruta cheia de criaturas exatamente iguais aos windigos.
No filme, a narrativa dos mutantes canibais é melhor explorada e apresentada do que no jogo.
Apesar da história relativamente grande, o grosso das referências do cinema de horror de Until Dawn é basicamente isso. E vocês? Identificaram mais alguma coisa que deixamos passar? Deixe seu comentário abaixo!
Crítica | Mãe! - O Novo Testamento de Darren Aronofsky
A expectativa é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que pode gerar resultados exorbitantes para produtos muito aguardados, também pode trazer a mais profunda das decepções. Obras de “terror” geralmente sofrem nas mãos do marketing dos grandes estúdios. Mãe! é mais um desses casos trágicos de marketing profundamente desonesto.
Portanto, estejam avisados: mãe! não é um filme de terror profundo como tanta gente espera. Na verdade, está longe disso. A história que traz o esforço da personagem de Jennifer Lawrence lidando com convidados indesejados em sua casa vai muito além do que podíamos esperar.
Para quem é estranho às obras de Darren Aronofsky, então o choque será ainda mais duro e cruel. Acima de tudo, seu novo filme é uma grande experiência cinematográfica acompanhado de um comentário crítico relevante enquanto tece leituras existenciais e niilistas sobre a humanidade, religião e o futuro. Logo, é um dos filmes mais relevantes do ano por conseguir trazer um nível de reflexão pós-sessão tão pertinente e profundo.
A História da Vida e de Tudo
Darren Aronofsky faz um filme de fé. A narrativa de mãe! se sustenta em uma enorme alegoria – por enquanto, não falarei qual. Basicamente, a história é essa alegoria. A personagem de Jennifer Lawrence é a nossa única guia e ponto de vista no cotidiano interrompido de sua casa quando um homem misterioso surge, pedindo ajuda ao seu bom marido, um poeta famoso e renomado.
O roteiro de Aronofsky é bastante peculiar em si, apesar de se valer de uma estrutura bastante clássica de histórias de horror sobre vulnerabilidade e corrupção sobrenatural. Enquanto a paz da casa é perturbada pelos outros novos residentes, vemos nossa protagonista investigar e descobrir características perturbadoras. O curioso é que os primeiros dois atos se comportam de modo bastante clássico, porém, assim que chegamos ao terceiro e último ato, tudo se desenvolve de modo extramente acelerado englobando tantos eventos que é impossível entender tudo o que acontece em uma só visita ao cinema. Particularmente, é o ponto mais alto da obra e da direção de Aronofsky que, em seu trabalho de câmera, cria uma sequência tão bem amarrada na montagem que praticamente temos a ilusão de ver um plano-sequência elaborado diante de nossos olhos.
Nela, uma sucessão de acontecimentos caóticos acontece a cada cômodo da casa enquanto acompanhamos Lawrence caminhando completamente perdida em uma residência já totalmente alterada. Para ter uma noção do quão bem realizado é esse momento, é digno comparar com as transições mais felizes e fantásticas de Arca Russa, filme de Sokurov gravado totalmente em um plano-sequência real. Mas novamente repito, em Mãe!, não há o uso dessa técnica. A montagem apenas confere essa ilusão perturbadora chocante de tão eficiente que é.
Aliás, perturbação é a palavra-chave de mãe! Toda a atmosfera criada pela estética rígida do diretor é sufocante, completamente incômoda enquanto a história se aprofunda cada vez mais em um surrealismo crescente e caótico. Nunca abandonamos a casa e logo viramos tão reféns quanto Lawrence conforme as coisas desandam e desabam. Não existe controle narrativo da protagonista completamente perdida em meio aos acontecimentos. Tudo é realmente caótico com acontecimentos que se atropelam a todo momento.
Basicamente mãe! é isso. Uma experiência cinematográfica desagradável na qual sentimos toda a angústia da protagonista transmitida com muita competência por Jennifer Lawrence em sua interpretação que carrega o filme nas costas.
A estética visual de Aronofsky delimita completamente as possibilidades do longa também. A câmera está sempre agarrada à personagem mostrando o que ela é e o que ela vê – tudo sempre com planos próximos e closes enormes para mostrar a personagem, enquanto os outros planos seguem o ponto de vista afastado da personagem (seu desconforto a afasta do marido e dos visitantes).
O mesmo se dá nos termos sonoros de mãe! Aronofsky busca o hiper-realismo no áudio tanto que a edição e mixagem sonora deste longa certamente se destacarão na época das principais premiações da temporada. Não ouvimos o que Lawrence não escuta – principalmente os diálogos dos estranhos com seu marido, mas todos os barulhos decrépitos e bizarros da casa são transmitidos com extrema clareza. O som nos conta o quão estranho é o marido para a mulher, enquanto a casa está intimamente ligada com ela. Essa relação entre casa e protagonista é a principal alma do filme, residindo uma das maiores forças da alegoria.
Mas como perceberam, comentar sobre mãe! sem falar objetivamente sobre que ele é, se torna um desafio completo. Isso, na verdade, é uma das fraquezas do filme. Se tirarmos complemente a graça de sua alegoria, o longa não funciona como uma típica história de entretenimento como outros grandes filmes que conseguem conciliar os dois planos em um só: ter uma boa história e funcionar metaforicamente tão bem quanto.
De certa forma, até mesmo o próprio filme reconhece isso, mas não assume sua verdadeira identidade até a sua última cena, afinal, não seria mercadologicamente interessante entregar o ouro para o espectador logo em seus primeiros atos. Isso, porém, não torna o longa desonesto. As pistas são fornecidas a todo o momento pelo visual, por frases soltas importantes em diálogos e, principalmente, pelo som.
O espectador mais ligeiro irá abandonar imediatamente o filme em sua importante função narrativa e embarcar na imersão alegórica que o diretor propõe. Porém, caso não o faça a tempo, no momento da revelação final, somente vazio e ira existirá nessa experiência. Você pode se sentir enganado e frustrado por ter vivenciado apenas uma boa experiência de angustia, mas não uma grande história por si.
Por essa condição, mãe! será o filme mais divisivo da carreira inteira de Aronofsky, além de ser um dos mais polêmicos do ano. Nessa história de invasão e caos, resta apenas amor e ódio em seu final.
Perturbação da Fé
A partir desse ponto, não há mais motivo de ficarmos em meias palavras com mãe! Spoilers permearão o resto da análise.
Darren Aronofsky é um dos realizadores contemporâneos mais felizes em sua assinatura cinematográfica. Acredito que aqui, temos finalmente o ápice dessa culminação autoral que vinha desenhando ao longo de todos os outros filmes.
Mãe! é um filme de proposta experimental e totalmente pessoal. De modo claro, é um exorcismo dos próprios demônios pessoais do diretor. Não é de hoje que Aronofsky aborda a fé e o cristianismo em suas obras. Aqui, temos o fim de uma trilogia sobre essa questão divina – os outros são Noé e A Fonte da Vida.
O longa é uma grande alegoria sobre o Antigo e o Novo Testamento segundo a Sagrada Bíblia, tendo um foco narrativo muito enfático na parte do Antigo Testamento. Logo, a personagem de Jennifer Lawrence é a Mãe Natureza em contato íntimo com seu lar, a Terra, o planeta. Seu marido, Javier Bardem, é Deus, o grande poeta e criador de tudo e todas as coisas. Juntos, vivem neste paraíso rústico e idílico, isolado de tudo.
O cinismo já é notado na abertura do longa com o estabelecimento de conflitos primordiais. A Mãe é bastante solitária (repare em todas as vezes que acorda sozinha no quarto) tentando inspirar Deus a criar novas obras, porém Ele sofre com um bloqueio criativo. A trata friamente, quase nunca dorme ao seu lado. Sua musa inspiradora não arranca um suspiro de graça e inspiração.
Pura, imaculada, angelical e inocente, a Mãe deixa Deus com seus problemas enquanto trabalha firmemente para restaurar e fortalecer a Casa que outrora foi destruída por um grande incêndio. Das cinzas, apenas restou um precioso Cristal guardado no escritório de Deus (Paraíso, Jardim do Éden).
A normalidade cotidiana quase perfeita aos olhos da Mãe é interrompida de súbito. Um visitante indesejado surge sem aviso prévio. É o primeiro homem, é Adão. Vivido por Ed Harris, o homem é completamente moribundo, doente e cheio de vícios (álcool e cigarro), mas consegue despertar uma grande paixão em Deus que se fascina pelas histórias contada pelo homem. Nós, presos à Mãe, nunca escutamos essas histórias. Deus é mais interessado em sua grande criação, criada à Sua semelhança, feita também para completar um vazio existencial – embora ele saiba, no fundo, que o homem é imperfeito.
Adão fica na casa por um dia e entra no escritório de Deus que apresenta o cristal sagrado – a maça proibida no Jardim do Éden. Quando Adão tenta tocá-la, Deus o proíbe. Adão obedece, pois ama e teme Deus e a Palavra. Enquanto isso, a Mãe provê a casa, arrumando já a desordem crescente causada pela sujeira e falta de cuidado do homem, além de servir Adão como pode.
Da Costela, vem o pecado
Em um dos melhores momentos da obra, vemos Mãe acordar de súbito a noite (novamente sozinha no quarto). Ela escuta as tosses incessantes de Adão e vai investigar o que acontece. Ao chegar no banheiro, se depara com Deus confortando o homem e sua angústia, pois Deus ama sua criação.
Na encenação, se o espectador piscar, vai perder um detalhe importantíssimo. Assim que Mãe vê o que acontece, percebemos que há um ferimento nas costas de Adão que logo é encoberto pelas mãos do Poeta/Deus. Ali, Aronofsky já dá o indício que Eva logo surgirá, pois falta uma costela em Adão.
Dito e feito. No alvorecer, Eva chega. E na interpretação de Aronofsky, Eva e o Diabo já são um só. Por mais que Adão seja um incomodo, nada supera a malícia de Eva, interpretada por Michelle Pfeiffer. A personagem tenta cumprir o papel da Mãe como anfitriã, mas é desastrada é mais prejudica do que ajuda. Não demora nada para também abusar da paciência da Mãe.
Como também representa o Diabo, Eva passa a incutir duvidas na cabeça da Mãe, ridicularizando a falta de desejo de Deus por ela e pelo sexo. Enquanto tenta agradar a dona da casa, Eva também só prejudica o ambiente e intoxica o lugar até entrar no Paraíso com Adão e cometer o pecado original: quebrar o cristal sagrado. Deus, furioso, os expulsam do escritório, segura os cacos daquele totem, sangra em seus restos e decide isolar seu lugar de trabalho. Nunca mais o homem pisará ali. Enquanto isso, Mãe procura o estranho casal que já está ocupado transando em outro cômodo.
Como perceberam, Aranofsky faz “pulos” narrativos de uma situação para outra. A lógica estabelecida na narrativa clássica geralmente exige a ação e então uma reação. Tivemos a ira divina e o enxotar do casal de primeiros homens, mas de modo nenhum vemos eles com seu próprio drama. Adão e Eva não lamentam ter decepcionado seu criador que tanto adoram. Eles agem com completa indiferença e já se ocupam com uma nova atividade pecaminosa.
Paralelamente a isso, Aronofsky busca construir a relação melhor desenvolvida do personagem: da Mãe com a casa. Desde o começo da alegoria, vemos o contato íntimo da Natureza com a Terra. Uma ligação realmente única. Ela sente a saúde cardíaca da casa minguar conforme o tempo de permanência do homem ali aumenta.
Nós, as pragas da Criação
O segundo ato da obra ainda pode funcionar bem para o espectador que não sacou diretamente a alegoria do filme. Basicamente, Aronofsky escalona o mesmo raciocínio empregado até então, levando a história para novo limites de estranhamento e desconforto.
Aqui, os diálogos já tornam a alegoria mais evidente com as discussões da Mãe com Deus, contestando o motivo pelo qual Ele não toma qualquer postura diante dos abusos dos visitantes. Fora isso, a própria narrativa já fica menos ambígua, frisando mais que a história se trata mesmo de uma alegoria. Isso é evidenciado pela presença de Caim e Abel, que invadem a casa reclamando sobre a herança que seria deixada por Adão.
Obviamente, Caim acaba matando Abel no meio da confusão. Deus, Adão e Eva socorrem Abel e o levam para o hospital deixando a Mãe sozinha na casa. Se fossemos focar sobre o tal do “terror” da obra, essa seria a parte mais assustadora, pois o assassinato “corrompe” ou acelera a degradação da casa, afinal um dos maiores pecadas foi cometido na Casa de Deus, já enfraquecida.
Aqui, nitidamente podemos sentir os sacrifícios que Aronofsky faz para preservar o experimento cinematográfico de modo puro. Nessa altura, já estamos na metade do filme e praticamente nada foi devidamente desenvolvido do modo que estamos habituados a ver.
Por conta dos personagens serem parte dessa enorme alegoria, também se tornam completamente restritos a ela. Aronofsky preserva a todo momento essa pureza casta e trabalhadora da Mãe, dona de casa e esposa companheira. É através das nuances da excelente atuação de Jennifer Lawrence que sentimos a frustração da personagem em não conseguir provocar o fascínio em Deus do modo que os homens causam.
Até o final do filme, a Mãe não tem ciência que faz parte da alegoria, que ela própria também é uma criação de Deus. Infelizmente, a virada desse reconhecimento não é tão potente como poderia ser. A personagem ainda cumpre, benevolamente, sua função primordial de alegoria até mesmo em seus instantes finais, já ciente da divindade do marido. Seu amor pelo Criador é o mais puro possível, indo até as últimas consequências para comprovar isso.
Voltando ao miolo do segundo ato, ele se comporta bastante como um filme de terror sobrenatural ou de casa mal-assombrada. São momentos curtos que encaixam bem na cronologia do Antigo Testamento, mas envolvem o lado mais comercial da obra: a apresentação de algumas pragas do Egito enquanto Deus está ausente na casa. Novamente, ela apenas sente que tudo está errado e deseja que as coisas voltem ao normal, quando não haviam homens na casa, apenas ela e o marido.
A interpretação de Aronofsky é bastante niilista acerca da humanidade. De todos os homens e mulheres que passam na casa, apenas um se importa em cuidar e tratar a Mãe com respeito. Quando enfim o surrealismo realmente acontece, durante o velório de Abel com a chegada de milhares de visitantes bizarros, vemos apenas a pior face da humanidade, ainda que um pouco comportada se comparada ao clímax do filme.
Diversos pecados surgem na cena, ferindo todos os dez mandamentos. A humanidade é perversa, caótica e parece esquecer completamente do propósito original daquela reunião. Diversos povos, etnias e idiomas surgem, mas todos os homens ignoram e desdenham dos comandos e ordens da Mãe, tentando proteger a casa a todo custo.
O pretexto da justificativa é repetido diversas vezes: Deus nos ama, Deus abriu sua casa e coração para conosco, Deus mandou dividir. Todas essas frases belas soam totalmente hipócritas diante de sorrisos debochados, depravação e lixo que surgem daquela situação. O homem deixa Mãe ainda mais impotente com esse pretexto.
Para interromper esse enorme atropelamento narrativo e não jogar a história do seu em completo caos, o diretor-roteirista se vale do episódio do Dilúvio para reestabelecer a ordem – isso ocorre quando um casal quebra uma pia ainda não cimentada, após Mãe avisar diversas vezes para não sentarem sobre o lugar. Nesse ponto, Adão e Eva já se foram e nunca mais retornam na história.
Então, convenientemente, o diretor-roteirista finalmente desenvolve o conflito latente entre Mãe e Deus com um confronto direto em diálogo que também torna a alegoria mais óbvia. Depois da briga, Deus finalmente intercede ao desejo da Mãe: se tornar realmente mãe. Aqui, vale mencionar que temos o primeiro fade out do longa, mas ao contrário do que estamos acostumados, Aronofsky dissolve a tela para o branco pacífico e sereno, já anunciando a gravidez da protagonista e uma breve paz.
Quando Deus se dá conta que será pai e não mais o Pai, a inspiração volta e o bloqueio narrativo some. Finalmente começa a escrever um novíssimo poema: o Novo Testamento. Mas não interessa a paz a Aronofsky. A crítica do diretor sempre visa o caos e mesmo nessas cenas que antecedem a loucura do clímax, temos Mãe interagindo com a casa que, mesmo restaurada, já está corrompida em suas fundações – pelo sangue maldito do assassinato de Abel e também pelo isqueiro perdido de Adão. Ou seja, as marcas do homem se tornaram uma só com a casa, apesar dos esforços da Mãe em preservá-la.
Logo, algumas experiências sobrenaturais voltam a ocorrer, exatamente com as assombrações que ela testemunha quando fica sozinha na casa. Mesmo explodindo de grávida, Mãe permanece solitária. Deus está empenhado em sua nova escrita, na sua nova criação. Para Aronofsky, a Palavra vale mais que o menino Cristo ainda não nascido. Portanto, a alegoria sofre algumas alterações: a Mãe continua representando a Natureza, mas agora também faz a parte de Maria na narrativa bíblica.
Apesar deste abandono, Mãe parece estar em verdadeira paz e completamente realizada. No dia que Deus finalmente termina sua obra “perfeita”, a protagonista decide fazer um farto jantar em comemoração. Entramos enfim no terceiro ato e tudo vira uma montanha-russa ascendente insana.
Enfim, o Fim
Nunca antes na escrita de Aranofsky tínhamos visto algo tão intenso e provocador durando tantos bons e terríveis minutos. Enquanto os dois atos inteiros conseguem dar conta de metaforizar o Antigo Testamento e suas diversas passagens, o diretor decide colocar todo o Novo Testamento em questão de minutos para encerrar a obra de modo extremamente chocante.
A decisão é bastante acertada, pois nos pega totalmente despreparados, criando uma extensão de sentidos e sentimentos raríssimas vezes antes vista nos cinemas. Nessa enorme loucura estabelecida com o clímax, o espectador torna-se um com Mãe e Aronofsky finalmente torna seu cinema pura experiência.
Para justificar os acontecimentos, Deus recebe uma ligação de sua editora (Espírito Santo) – interpretada por Kristen Wiig, avisando que seu novo escrito é o seu maior sucesso. Mãe fica surpresa e decepcionada em descobrir que Deus já tinha mostrado seu novo trabalho para outros e que as pessoas já estavam consumindo essa novidade.
Como tinha mencionado acima, todos os personagens sofrem da natureza imperdoável da alegoria dessa interpretação religiosa de Aronofsky. Já sabemos que a Mãe é boa e pura e que a humanidade é desprezível. Mas e Deus? Para o diretor, Deus é um narcisista completo, hipócrita, inconsequente e despreparado por ceder o livre-arbítrio. Sua história é caótica justamente porque a história da Criação segue sempre sendo escrita por mãos diferentes, com tintas diferentes.
No filme, Deus não intercede no destino dos acontecimentos. Ele gosta de observar e conhecer as histórias novas criadas pelos homens. Deus aprecia o caos. Deus também é o Diabo – vemos a imagem do Criador rabiscada com chifres depois da morte de Abel (uma crítica de que até mesmo sob seu próprio teto, Ele é permissivo com homem a ponto de cometer o maior dos crimes sagrados).
Ou seja, ter ou não a presença de Deus é um grande tanto faz como tanto fez nessa leitura proposta pelo diretor, pois Ele se porta de modo indiferente, apesar de não se sentir desse modo. É um Deus solitário, imperfeito, egocêntrico que cria apenas para angariar mais e mais adoração. Aronofsky vê que o amor da divindade nada mais é do que a causa da própria miséria humana, da miséria de tudo e da frivolidade da vida.
E para debatermos Deus e o paradoxo lógico da Criação nunca poder ser de fato perfeita, entraremos em um nível de discussão filosófico que não cabe aqui, mas em outro artigo. É esse o nível da reflexão que o diretor propões com Mãe! Algo realmente fantástico e fascinante somente por trazer a tona um debate tão interligado com essência da nossa humanidade. Nos levar a pensar no Divino e no nosso papel no Cosmos e aqui na própria Terra.
Tudo isso por conta desse derradeiro terceiro ato nada menos que perfeito. Na noite do jantar, ocorre uma nova invasão na casa da Mãe. Deus novamente não se preocupa com a esposa – essa característica é plenamente compreensível por conta da Natureza ser uma Criação primordial e, logo, obsoleta com o alvorecer da humanidade, de propósito que já infere subjugação da anterior, afinal é assim como Ele diz: Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra! (Gênesis 1:28)
Nesse cenário, Mãe já está derrotada mesmo que ainda carregue Cristo dentro de si. A casa é novamente povoada por uma turba ainda maior que a anterior. Novamente, tudo é vilipendiado, consumido e destruído enquanto Deus festeja o sucesso de sua Palavra com os homens.
A partir do momento que um personagem diz a seguinte frase para a Mãe: A obra dele é única! Ela se comunica com todos, mas cada um a sente de modo diferente, Aronofsky elabora o resumo de toda a história da humanidade – de um modo bastante semelhante a A História da Humanidade como retratada por Milo Manara em icônica arte. A história começa com a fundação da fé judaico-cristã – só na vertente cristã, existem mais de 34 mil igrejas que interpretam a Bíblia de modos distintos.
O que antes não havia, agora existe: diferentes líderes surgem para pregar a palavra do Senhor. Ao finalmente encontrar Deus no meio de toda a movuca, Mãe dá o ultimato: ou tira todos dali agora, ou lidará com o Apocalipse. Deus continua passivo como sempre e o Apocalipse se inicia. Através de imagens perturbadoras de Fome, Pestilência, Guerra e Morte a cada cômodo da casa tomada enquanto Mãe perambula desesperada salvando os cacos, Aronofsky cria seu melhor momento na direção da obra.
A montagem é assustadoramente eficiente e invisível tornando toda a sequência visual realmente única. É ver para crer, pois se trata do indizível cinematográfico. Me estender em palavras para descrever o que ocorre é totalmente redundante. A sequência apenas respira quando a Editora, o Espírito Santo, encontra Mãe no meio dos destroços dos aposentos arruinados da casa.
Ao contrário do que muitos devem pensar, creio que este seja o momento mais importante do filme, pois traz à luz a crueza da mensagem do filme. Subentende-se que nessa sequência, a humanidade avança por eras até o Apocalipse. Na ausência de Deus – repare que quando ele ressurge, alguns homens bradam: Ele voltou! Ele não nos abandonou! –, é o Espírito Santo, o viabilizador da Palavra divina, quem comanda as coisas na casa – o diretor então, finalmente, admite algum senso de ordem e hierarquia diante da anarquia que se instalava na casa.
A Editora assume um tom com Mãe até então antes nunca visto. Finalmente encontramos a Inspiração! Agora é hora de dar fim nessa loucura toda! A Editora decide dar fim à vida da protagonista, pois vivenciou toda a consequência da loucura originada pela Criação – lembrando que como a Natureza vem antes do homem, ela acaba inspirando a criação do mesmo. Na lógica do filme e dessa interpretação, a Editora sabe que se dar fim ao primórdio da Criação, não haverá homem e, portanto, haverá paz.
Para Aronofsky, a Palavra é perfeita, pois se mantém integra e decide sujar as próprias mãos quando se faz necessário. Ela é mais perfeita que Deus, pois Ele é conivente com o desmando das próprias Leis. Ele é um hipócrita.
Porém, obviamente, Mãe é salva. Primeiramente pelo único homem gentil que logo depois é morto. Só então Deus surge, camuflado entre outros, e a leva novamente para o Paraíso cujas portas são arrombadas pelo próprio Divino. Lá, enfim, Cristo nasce.
O Fim do Começo de Tudo e Todas as Coisas
Assim como em Noé, Aronofsky visa trabalhar a tensão de um suspense incerto. Nós já conhecemos a natureza de Deus nesse ponto e sabemos que ele pegará Cristo assim que a Mãe vacilar. Ele oferecerá para a turba de fanáticos que aguarda silenciosamente do lado de fora. Uma nova Criação, a mais perfeita de todas, trazendo assim ainda mais adoração.
Após agonizantes minutos sempre pautados pelo barulhinho incômodo de uma sineta escondida no quarto, dias se passam no quarto e Mãe, pela primeira vez, sente a necessidade humana do descanso – repare que antes, sempre ao menor indício de barulho, a protagonista já levanta da cama muito disposta a investigar o que ocorre.
Ela perde a guerra contra o sono. Ela perde seu único filho. E acorda sozinha.
Deus entrega a criança para os zelotes e fieis que a envolvem até matá-la – assim como na Bíblia, Cristo é enviado à humanidade para morrer e transformar. Em desespero, a protagonista avança contra os homens para encontrar o corpo do filho já parcialmente devorado, literalmente, pelos fiéis – alusão clara ao fundamento da Igreja Católica e do ato de comungar o “Corpo de Cristo”.
É o primeiro momento de pura revolta e ódio na personagem pura até então. A casa finalmente está morta, assim como o espírito de Mãe. Porém, antes de irromper ao assassinato de alguns homens e depois ser brutalmente espancada em resposta – a imagem é poderosa e bastante perturbadora, há um ponto crucial que desenvolve o personagem de Deus. E é justamente por conta disso que vejo o comentário de Aronofsky sobre a divindade menos cruel do que ele aparenta ser.
Para entendermos o desenvolvimento desse personagem, é preciso sacar que o mesmo se encontra no contraste entre as duas passagens mais importantes para Ele: a destruição do cristal e da morte de Cristo. Quando o cristal é destruído, Deus é tomado por uma fúria restritiva. Aqui, com a morte do filho, acontece o oposto. O personagem lamenta o fato e chora, mas clama para que Mãe compreenda a necessidade do perdão.
É preciso perdoar para evoluir. E Deus parece aprender isso ao longo da jornada. Ele frisa que Jesus vive, mas agora nas lamúrias da humanidade que tenta redimir seus pecados. Nesse momento, é curioso notar como a obra se torna realmente redonda. Em diálogos anteriores com Eva, Mãe reconhece que só “dá e dá e dá...”, nunca recebendo nada em troca, apenas angústia e sofrimento – esse diálogo se dá no porão da casa.
Ali, naquele ponto crucial, Mãe já não aguenta mais dar. A hora do fim realmente chega. Reencontrando o isqueiro perdido de Adão, a protagonista corre para o porão, no qual anteriormente encontrara um tonel gigantesco de combustível em uma parte incendiada da casa. Mesmo com Deus implorando para que ela não exploda toda a Criação, Mãe o ignora e encerra tudo que havia ali, se sacrificando em conjunto.
Porém, se ainda restava alguma dúvida anterior ao espectador sobre a natureza bíblica da alegoria, ela se encerra com a conclusão do filme que se trata da mesma sequência da abertura. Deus carrega a protagonista incendiada que admite ainda amá-lo. Ela se sacrifica e entrega o coração ainda pulsante para Ele. O órgão se desfaz em cinzas e dá origem ao cristal que inspira Deus a retomar toda a Criação novamente. A Casa é restaurada e uma nova Mãe acorda no quarto.
Logo, com a conclusão que encerra um ciclo, é possível interpretar mais coisas dessa visão do diretor. A primeira é que testemunhamos apenas a Criação que conversa com nossa História. Não sabemos nada da anterior que chegou no mesmo fim fracassado que a nossa e nem sabemos se a próxima será tão abominável quanto a que acabamos de ver. Por isso, interpreto que o Deus de Aronofsky é um ser também de constante evolução. Ele aprende com os erros do passado, por mais imperfeito que seja. Pode ser que nessa nova iteração, as coisas tenham um final mais otimista, pois Deus foi transformado pela jornada anterior.
Também é interessante que o Criador não tenha controle algum sobre suas criações, incluindo Mãe. Mesmo diante da completa destruição, o Todo Poderoso nada pode fazer para impedir a força destruidora da Natureza – o lado emocional da personagem é sempre contrastado contra a racionalidade e defeitos humanos do marido.
Outro elemento curiosíssimo que muita gente irá se perguntar é, se existe o Paraíso e a Terra, onde raios está o Inferno? Evidentemente que o Inferno é o porão da casa, sendo o demônio representado muito pela humanidade diversas vezes. Mãe sempre tem os piores encontros com atividades sobrenaturais e diálogos impuros quando está no porão. O instrumento de destruição também fica no subsolo da casa, além dele ser o único cômodo realmente intocado quando todo o resto já está em ruínas.
Obsessão Autoral
Mas limitar Mãe! apenas nessa evidente interpretação é um erro. Mesmo que o filme talvez não funcione sem essa alegoria, Aronosfky é competente o suficiente para fazer a obra dialogar de modo, provavelmente, único com cada espectador.
É possível tirar desse filme uma mensagem ambientalista importante, uma crítica ao culto à personalidade, na criação de falsas celebridades, no vazio existencial humano, na nossa incapacidade empática, na defesa da propriedade privada, na importância da originalidade, do mercado artístico em si, entre tantas outras.
O filme de Aronofsky é vivo e cheio de reverberações únicas que trarão conversas por anos a fio. Por suscitar algo que mexa tanto com o espectador, o diretor já merece diversos louros.
Em termos estéticos, Mãe! também sofre da obsessão do diretor em ser fidelíssimo a proposta original da obra. A estética visual do filme é limitada pela escolha de fixar a câmera na protagonista, nunca se afastando demais, sempre a orbitando. O suspense acaba viciado na encenação que encomenda jumpscares óbvios, além do diretor não dar chance do espectador ver tudo o que se passa nas situações mais estressantes da obra por conta da rigidez da decupagem restritiva.
É uma escolha plenamente consciente e, como sabemos, Aronofsky deve pouco se lixar se achamos ruim ou não. O elemento cinematográfico é vívido e isso é o que mais importa, mesmo que desejássemos que a abordagem fosse mais criativa visualmente. Por causa disso, a metáfora do texto muitas vezes supera a metáfora visual. Tirando os momentos de silêncio, nos quais a narrativa é toda guiada pela imagem, podemos ver poesia na paleta de cores do filme.
Ao contrário de muitas outras obras, aqui temos boas escolhas que complementam a alegoria. Mãe sempre traja tons esbranquiçados e pacíficos enquanto a Adão e Eva e outros homens estão sempre vestindo cores escuras. Até mesmo as paredes brancas da casa evidenciam uma serenidade que a protagonista deseja incrementar com a escolha da tinta levemente dourada e próspera na continuação da reforma do lugar.
O diretor também busca mimetizar passagens que claramente homenageiam o clássico O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski. A sinopse dos dois filmes pode ser praticamente a mesma, inclusive: um casal é visitado por vizinhos misteriosos que provocam o afastamento de um ao outro, enquanto a esposa acredita que sua vida está em perigo.
Em termos sonoros, também faz muito sentido Aronofsky ter escolhido não incluir nenhuma trilha musical na obra. Além do desafio da encenação ser maior e ele provar se capaz de guiar a emoção do espectador sem nenhum recurso musical didático, o diretor cria em conjunto com os designers de som uma das melhores experiências acústicas do ano. Fora isso, a música é uma criação humana e não divina – e a música só surge na casa quando a humanidade está presente.
A Tragédia de um Poeta
Assim como o Deus de sua história, Aronofsky deve sofrer um amargo fracasso com Mãe!. Os motivos são mais do que evidentes: não é uma obra fácil e sua proposta pode desagradar perfeitamente até mesmo os mais capazes dos espectadores em compreendê-la.
Alguns podem achar ofensiva, enquanto outros a taxam de genial. Para mim, se trata da culminação autoral de Aronofsky. É obviamente pretensioso, com uma história que pode ser só alegoria, além da estética ser extremamente dura e nada habitual. Ao contrário de Dunkirk, único filme semelhante em sua audácia neste ano, Mãe! não se preocupa em oferecer um entretenimento universal.
Mãe! acaba então sendo uma peça brilhante de experiência cinematográfica, mas tão imperfeita quanto o nosso trágico Poeta narcisista trazido por Aronofsy.
mãe! (mother!, EUA - 2017)
Direção e roteiro: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer
Gênero: Drama, Thriller Psicológico
Duração: 121 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=ugn1gqGl7rs
Artigo | It: A Coisa e a Morte da Inocência
Spoilers!
O cinema americano tem se tornado cada vez mais apelativo, expositivo e verborrágico. Vive neste ano de 2017 uma de suas piores crises de bilheteria das últimas décadas, além de ter sobrevivido a um agosto completamente ausente de filmes que despertem a atenção do público.
Quando finalmente surge algo bom, muita gente fica incrédula e desconfiada pelo buzz gerado na internet e no boca-a-boca. Mesmo que 2017 não tenha brilhado tanto quando poderia na Sétima Arte, It: A Coisa tornou-se uma das melhores pérolas do ano.
A nova adaptação do clássico livro de Stephen King é sim um baita de um ótimo filme que novamente eleva o gênero do Terror sem a necessidade das firulas tradicionais que andam amaldiçoando exemplares cada vez mais fracos e sem sentido. E nós veremos um desses motivos primordiais aqui neste artigo.
O Terror onde Mais Importa
O discurso narrativo de It: A Coisa é bastante óbvio para o espectador mais atento: a morte da inocência. A jornada constitui no custoso amadurecimento de todo o grupo de pré-adolescentes durante as férias de verão na cidade de Derry, no interior do Maine, quando decidem investigar o sumiço de Georgie, irmãozinho do protagonista do filme, Bill.
Porém, ao contrário de muitas narrativas que envolvem um grupo, It: A Coisa consegue satisfazer plenamente as exigências mínimas do espectador em um ponto crucial de qualquer história: desenvolvimento de personagens.
Mas como isso é feito? Realmente, os diálogos têm sua função, mas caso tenha prestado bastante atenção, notará que a maior parte dos conflitos mais pesados e complicados é resolvido pela encenação bem-feita, através do “mostrar” e não no “contar. E isso é uma das características mais belas da Sétima Arte, o verdadeiro indizível cinematográfico que anda cada vez mais raro em produções supérfluas e verborrágicas.
O filme tem o papel de desafiar o espectador para que ele esmiúce o sentido das imagens. No caso de It, é uma das peças mais importantes para sacar os personagens. Nisso, não me preocupo em focar sobre o material original. Nunca li o livro de Stephen King e tampouco vi o telefilme de 1990.
O que interessa aqui é como o diretor Andy Muschietti consegue provocar uma compreensão maior na plateia apenas com o poder da síntese visual. Por isso, vamos dividir aqui em tópicos a jornada dos garotos, falando como o visual é o principal instrumento para que conheçamos o amago de suas aflições, medos e da morte de suas inocências, afinal, não é por menos que Pennywise seja um bicho-papão metamorfo.
Georgie
O pequeno Georgie é a alma e incidente incitante de toda a narrativa que circunda o Clube dos Otários. Em questão de pouco tempo, nos afeiçoamos pelo menino pelos medos comuns que ele compartilha com o espectador: a escuridão do porão de casa. É preciso que ele enfrente esse pequeno momento de pavor para que consiga a cera para fazer seu veleiro flutuar para brincar na chuva nas ruas de Derry.
Conquistando o pequeno triunfo, Georgie volta à segurança para seu irmão, aprende coisas novas, troca afeições e ligações poderosas e depois vai embora. Para nunca mais voltar. Através de uma correção de cor poderosa, o clima da chuva é bastante sombrio, como se a tempestade tivesse tirado toda a alegria de Derry ao castiga-la a tons acinzentados e deprimidos. Porém, Georgie é uma força contrária a tudo aquilo, afinal traja a colorida e vibrante capa de chuva amarela proporcionando luz na escuridão, uma leve alegria em meio ao choro dos céus.
Porém, isso não demora nada para ser revertido. Assim que o frágil barquinho de Georgie cai na escuridão do bueiro, a reviravolta é pontuada. O destino do garoto é o mesmo que o do brinquedo: se perder na escuridão – talvez para sempre.
Aqui, é extremamente importante que notemos algo que quebra os padrões depois estabelecidos pela narrativa: a abordagem de Pennywise. Ao contrário dos outros garotos com medos muito mais estabelecidos e pessoais, Georgie parece ser novo demais para que seja aterrorizado com figuras assombradas já conceituadas no imaginário popular.
De todos, Georgie é o mais ingênuo e menos vivido. Logo, A Coisa faz Pennywise se comportar como um pedófilo sedutor, oferecendo benesses, leves brincadeiras, prometendo comidas irresistíveis para qualquer criança. Mas a encenação nega tudo aquilo, afinal o palhaço está dentro de um bueiro de esgoto: destino de coisas podres e indesejadas e guardião de segredos escondidos.
Todavia, não é somente porque Pennywise está dentro do bueiro que temos a sensação de estranheza. Bill Skarsgard torna o palhaço bastante simpático e amistoso, mas também é sábio em fazer com os olhos de Pennywise virem para lados distintos, criando algo bastante incomodo e extraordinário. Aquela criatura não é normal e se esforça além da conta para manter a ilusão do palhaço além do tempo necessário.
A cor dos olhos, outrora profundamente azuis, muda para um amarelo nauseante e Skarsgard engrossa a voz. Porém, aqui, Georgie já sabe que há algo de errado com o palhaço e deseja ir embora. Pennywise fracassa em primeiro momento. Logo, é importante relembrarmos a primeira frase que o menino fala quando o barquinho cai no bueiro: Bill vai me matar!
Para não decepcionar o irmão, Georgie se arrisca a reconquistar o barco de papel, mas acaba com o braço devorado pela Coisa que depois a sequestra a arrastando para os confins da podridão. A alegria do menino é morta pelo tom cruel e violento do vermelho do sangue. E Georgie morre. Seja por amor ou medo, a mente do menino estava concentrada em seu irmão.
Detalhe, já estamos no décimo parágrafo para concluir um personagem que não chega a ter nem mesmo dez minutos de tempo de tela. Entenderam como o poder da imagem de um filme é transformador e importante para agregar o desenvolvimento inteiro de um personagem? E isso é só o começo.
Eddie
Eddie é um dos personagens que mais se destacam na aventura sombria pelo tom inteligente do humor marcado em suas falas. O garoto é o hipocondríaco do grupo, além de sofrer de uma asma constante.
A fragilidade da saúde marca o personagem superprotegido pela mãe que nada lembra uma figura saudável tanto no psicológico quanto no físico. É por meio de Eddie que temos uma ligeira apresentação do modo obsessivo e castrador que os adultos agem com as crianças. Praticamente nenhum maior de idade é representado de modo otimista, mas sempre em representações odiosas e cruéis.
A mãe de Eddie o superprotege de tudo e todos, removendo parte da experiência de vida do garoto ao confina-lo a tantos remédios e tortura diária em casa. O menino é praticamente induzido a acreditar ser extremamente doente e hipocondríaco – algo bastante cruel para castrar sua liberdade.
As primeiras aparições da criatura sempre pegam as crianças em seus momentos mais vulneráveis: quando estão isolados ou distraídos. Com Eddie, além disso tudo, ainda o inferniza justamente na hora de tomar os medicamentos. A personificação de Pennywise como um homem Leproso é bastante óbvia, além de caçoar do efeito inexistente daqueles medicamentos. O engraçado é que, assim como Georgie, antes de Pennywise surgir, Eddie também reclama que sua mãe irá mata-lo por ter perdido a hora dos medicamentos.
Admito que Eddie seja um dos personagens que menos se valem do poderio imagético do filme. Apenas temos o uso óbvio do Leproso como a personificação do medo exagerado de doenças com Eddie. Mas a maior graça da encenação ocorre em outros dois pontos simples.
A insistência da permanência do grupo dos Otários com o Loser assinado em seu gesso indicando a retomada do contato com os amigos que o leva a entrar em conflito direto com sua mãe controladora e, depois, no confronto final contra Pennywise quando o palhaço vomita dejetos nojentos na cara do menino que sente apenas uma só coisa: raiva. Eddie se liberta, pelo menos por um instante, de suas fobias para derrotar seu maior medo.
Richie
“Bip bip, Richie!”. Sim, o grande falastrão do Clube dos Otários é um dos que recebem o melhor traço da estética do filme para que compreendamos seus verdadeiros medos.
Ao contrário da maioria dos meninos, Richie não possui um segmento destinado a um primeiro encontro isolado com o palhaço e com seus verdadeiros medos. Apontado como falha por muitos críticos, creio que essa seja outra grande sacada por parte de Muschietti e dos roteiristas.
Richie possui sim seu encontro, mas acompanhado por Bill e Eddie em primeiro momento. O garoto que adora se autoafirmar através de comentários chulos e depreciativos tem um dos medos mais complexos de todo o grupo, mas “mente” em primeiro instante. Diz que é de palhaços, porém a Coisa prepara armadilhas psicológicas mais poderosas.
Quando o trio entra na casa decrépita onde a Coisa vive, não demora muito para que Richie encontre uma mensagem só para ele: um flyer de desaparecido contendo sua foto. Em uma cena anterior, vemos o grupo refletir sobre como os novos desaparecimentos fazem com as pessoas esqueçam dos anteriores, como se tivessem perdido importância.
O verdadeiro medo do menino é desaparecer e ser esquecido. E isso é perfeitamente condizente com o modo histérico e narcisista do menino expressado pelo seu senso de humor curioso. Quando Richie está isolado no quarto repleto de palhaços, reparem que os calafrios e atenção do menino estão concentrados no caixão no centro da saleta. A porta dele abre, apresentando o mesmo flyer encontrado anteriormente, mas com os dizeres “ENCONTRADO” escritos em sangue. Richie vê seu próprio simulacro e se desespera. O medo da morte é real.
Depois dessa sequência, nunca mais temos vislumbre do medo de Richie. Sua rotina após o desmembramento do grupo é a menos detalhada, porém, assim como os outros, o garoto supera seu maior medo ao notar que nunca seria esquecido pelos próprios amigos.
Beverly
Sem a menor sombra de dúvidas, Beverly é a personagem mais desenvolvida do filme inteiro sem a necessidade do uso de diálogos. O seu drama provavelmente é o mais complexo, pois toda a encenação das cenas em sua casa colabora para que o espectador acredite que ela é abusada sexualmente por seu pai – novamente, o horror real dos adultos que colocam a pureza e liberdade das crianças em cheque.
O drama de Beverly é inserido assim que a personagem é apresentada no banheiro da escola: uma menina que sofre com boatos de ter transado com diversos garotos mais velhos do colégio. O filme não martela isso, mas conforme a personagem cresce, sabemos que se trata de uma mentira.
Depois de comprar absorventes (sim, isso é importante), Beverly volta para sua sombria casa. Ali, no corredor, seu pai a encontra e toca nos cachos do cabelo ruivo dizendo “você ainda é a garotinha do papai, não é? ”. A conotação sexual é implícita e pelo desconforto da menina, fica claro que o homem faz essas investidas contra ela há algum tempo.
Tanto que na cena seguinte, Beverly corre ao banheiro para cortar os cabelos que agradavam ao pai, na tentativa de afastá-lo de si, de deixar de ser atraente para ele. Isso reflete a inocência da garota, acreditando que caso ela se torne “feia”, o pai deixará de perturbá-la. Porém, como sabemos, isso acaba o motivando a assediá-la ainda mais: “por que cortou os cabelos? Agora parece um menino. ”.
Enquanto a menina corta os cachos, o diretor nos oferece planos detalhes longos o suficiente para frisar a ação dos cabelos descendo pelo ralo. Não muito tempo depois, Pennywise finalmente aparece para infernizar a vida de Beverly. Ao contrário de todos os outros, o terror da menina é muito mais abstrato tanto que a Coisa não toma forma humanóide pela primeira vez.
Os cabelos jogados pelo ralo retornam e agarram a menina – uma metáfora visual para o medo de ser estuprada pelo pai. Os cabelos a forçam até a pia até vazar, ejacular uma torrente de sangue que quase inunda todo o banheiro – estão lembrados do desconforto da menina ao comprar os absorventes? O medo da garota é o de ser violentada pelo próprio pai em sua casa – certamente o mais pessoal e terrível de todo o grupo.
Com esse momento tão terrível e um cenário familiar péssimo, fica claro o motivo de Beverly se encantar tanto com o carinho e amor provido pelos seus novos amigos. Sua função no grupo também delimita outro tipo de morte de inocência nos garotos que começam a sentir outros sentimentos que vão além da amizade – como visto na cena do lago.
Então passamos a entender a importância da cena da limpeza do banheiro. Ela é um marco da união dos meninos contra a Coisa assim como Beverly acaba sendo no fim do fim do filme. Todos se unem para limpar o medo da menina e deixa-la mais segura. E é justamente pelo amor de seus amigos que ela consegue enfrentar a Coisa e, depois, seu próprio pai durante a tentativa de estupro.
Como ela derrota o medo dos outros e o seu próprio, a Coisa percebe que Beverly não pode mais existir se não acabará colocando sua existência em risco. Não é por menos que a menina é sequestrada justamente quando vence o pai. Porém, ao raptar a menina, a Coisa acaba provocando o efeito contrário: consegue unir ainda mais o grupo, agora totalmente motivado para exterminar de vez seus medos.
A Morte da Inocência
É através dessas situações expostas acima que a maioria dos pré-adolescentes de It: A Coisa consegue matar a inocência da infância e amadurecer através de uma jornada árdua e terrível. Como disso, a maioria desse desenvolvimento é centrada apenas na encenação inteligente, na sugestão e no ordenamento mais sábio dos medos das crianças que realmente a tornam únicas.
Outros personagens que não mencionei no artigo também possuem jornadas próprias e importantes. Até mesmo os antagonistas humanos na forma dos bullies sofrem em encarar os medos trazidos pela Coisa: como a homossexualidade de Patrick Hockstetter e o medo da rejeição ou do ódio mortal que Heny Bowers sente pelo pai rude.
Certamente vale ter um olhar aprofundado a este maravilhoso filme que Andy Muschietti nos trouxe. Vários elementos estão abertos para a interpretação do espectador e certamente há diversas outras maneiras de ver esses elementos que citei no texto. É por isso que ainda vale a pena acreditar no bom cinema. Mesmo que estejam cada vez mais raros, os grandes filmes surgem vez ou outra.
No caso de It: A Coisa, temos a felicidade dele ter alcançado grandiosa popularidade. E é por meio deste merecido reconhecimento instantâneo que o debate sobre Cinema se torna mais vivo, divertido e inteligente. Agora é hora de aproveitar esse excelente momento.
Crítica | Atômica - A Cidade Mais Fria
A primeira coisa que muitos espectadores curiosos devem ter feito depois de assistir a Atômica, novo filme com Charlize Theron, foi procurar o material que inspirou o filme. No caso, a HQ Atômica: A Cidade Mais Fria escrita por Antony Johnston e desenhada por Sam Hart.
Mesmo sendo medíocre, a adaptação do roteiro do filme é bastante fiel a graphic novel, além de conseguir resolver melhor o confuso final da obra. Logo, a sinopse é basicamente a mesma, mas sem alguns dos detalhes do longa que fazem a protagonista virar uma personagem mais complexa.
Lorraine é levada até o MI-6 para contar aos seus supervisores o que ocorreu em sua última e mais importante missão durante uma ida à Berlim enquanto o muro que dividia a Alemanha caia em 1989. Nela, Lorraine precisava descobrir onde estava uma lista contendo os nomes de todos os espiões atuantes de diversos países em Berlim depois de um assassinato misterioso de um colega de ofício. Para isso, conta com a ajuda desagradável de Percival, um espião fixo na cidade que já se enraizou demais para ser confiável.
Como era de se esperar, dificilmente quem não gostou do filme, encontrará muito apreço na HQ de luxo trazida pela Darkside em ótima edição. Apesar da narrativa ser menos burocrática que a do filme, o tom inspirado em obras de espionagem contemplativas como as de John le Carré (O Espião que Sabia Demais), não fazem bem muito bem a história que pretende ser mais densa, profunda e interessante do que é.
Os problemas, obviamente, permanecem os mesmos: os personagens ainda são deficitários e a protagonista continua bastante apática. Aqui, Percival é mais interessante que no filme, pois não se trata de uma figura caricata e detestável como a versão apresentada pelo longa. As coisas são mais cruas e se desenvolvem com notória rapidez. Em si, a HQ é uma leitura de menos de uma hora de tão rápida que é. Isso se dá pelos lados contrastantes da obra com longas passagens sem a presença de muito texto ou diálogos.
Johnston gosta de frisar a todo o momento a queda do Muro, das instabilidades políticas, das manifestações do povo e sobre a Guerra Fria deixando claro que tem orgulho de ter criado uma história situada neste momento histórico. Porém, de fato, pouco disso é utilizado a favor da narrativa para torna-la mais única. O momento só permite justificar as eventuais viradas sobre agentes duplos e a incerteza sobre quem devemos confiar.
Temos, inclusive, um caso de narrador não confiável. O testemunho de Lorraine para seus supervisores muitas vezes destoa do que é mostrado nos quadrinhos de flashback. Logo, nem mesmo esse recurso é utilizado de modo a provocar o leitor a ficar instigado e solucionar os mistérios e encontrar uma lógica nos acontecimentos por si. O autor se preocupa em contar apenas o mistério ou dos entraves da missão em vez de focar no que realmente importa como o desenvolvimento da protagonista, suas dificuldades e pequenos triunfos. Dificilmente o artista também pontua esses elementos pelas imagens da obra.
O que realmente ajuda a leitura é o fato da história ser mais enxuta e rápida, coisa que o filme falha para encher linguiça com cenas filler ou outras de ação. Aliás, o leitor mais atento e já conhecido da obra de John le Carré que mencionei acima, já deve ter sacado que a versão original de Atômica não chega perto de ter as grandiosas sequências explosivas do filme. O clima é muito mais próximo de um thriller tenso do que de uma história de ação,
A HQ é tão fria quanto seu título original. E para se valer disso, temos a arte minimalista de Sam Hart, apostando sempre em contrastes duríssimos do preto e branco. Os traços, por várias vezes, são bastante desleixados, mas possuem certa poesia. O desenhista opta na abordagem simplória, investindo pouco em cenário para dar foco nos jogos de iluminação vindos de hachuras e outras jogadas boas feitas no papel.
Nos muitos closes, o traço é também apático para os poucos personagens da história. Muitos deles possuem um design parecido que torna a compreensão dos fatos um tanto confusa em excesso para uma obra assim. Claro, pode ser que tenham achado genial deixar todo mundo parecido para transmitir as incertezas de confiança da protagonista. Porém, na prática, o cenário chega perto do caótico e confundir o leitor certamente não é o caminho da genialidade.
Com uma arte um tanto sem-graça e uma história enxuta e sem carisma, fico impressionado de A Cidade Mais Fria tenha chegado tão longe a ponto de até mesmo virar um longa-metragem. O consenso geral é basicamente o mesmo: os leitores praticamente não ligam muito para o que acontece na história, apenas apreciando uma narrativa rápida e tão pouco original dentro do gênero generoso da espionagem.
Apesar disto, caso tenha sido fisgado pela narrativa do filme, recomendo dar uma olhada na edição da Darkside que merece somente elogios: encadernação de capa dura, papel superior, impressão de alta qualidade, ótima tradução, além de um breve glossário para traduzir as expressões em alemão que foram mantidas conforme os desejos do autor da obra. No fim, Atômica ainda continua sendo uma obra para poucos admiradores. Infelizmente, desta vez, não participo desse grupo.