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Matheus Fragata

Crítica | A Chegada

Obs: texto enorme. É um dos maiores do site. Análise contém spoilers significativos.

Há certos desafios na vida de qualquer jornalista que se aventure pelas bandas da crítica das artes. Decerto existe muito conteúdo mastigado e facilitado que até mesmo podem condicionar nosso pensamento para níveis mais empobrecidos. A baixa qualidade cinematográfica deste biênio quase que consegue nos vencer pelo cansaço.

Felizmente, tanto em 2015 e 2016 tivemos obras do cineasta mais promissor dessa década, o canadense Denis Villeneuve. E sempre, em todos seus filmes, é um enorme desafio escrever sobre as obras, pois exigem um conhecimento extra fílmico ferrenho para compreender suas diversas simbologias.

Mesmo tendo acompanhado sua carreira há alguns bons anos, só fui analisar uma parte de sua filmografia no ano passado com o texto de Sicario, um filme de roteiro razoável que foi salvo pela direção exímia de Villeneuve.

Agora sem Deakins como parceiro na fotografia, é chegada a hora de ver se Denis Villeneuve não é apenas uma breve sensação. Para quem ainda duvidava de sua competência exemplar, A Chegada extermina qualquer limiar de dúvida. Estamos presenciando mais um clássico contemporâneo para a renascença da ficção científica de qualidade.

Afirmo isso com a maior tranquilidade possível. Tendo a gratificante oportunidade de rever ao longa em uma pré-estreia, fui preparado para absorver muito mais do que havia visto na cabine. Um velho hábito retornou: levar meu caderno de anotações para a sessão, a fim de colher o máximo possível das excelentes imagens que havia visto na cabine, mas que corriam o risco de sumir entre diversos pensamentos corriqueiros.

Então aviso agora, o texto será longo, pois não gostaria de perder a oportunidade de destrinchar o excelente filme que A Chegada é. Encare esse texto mais como um enorme artigo do que uma crítica propriamente dita. Como um Tudo que nós pudemos decifrar de A Chegada, mas com pitacos inerentes a uma análise cinematográfica. Caso só queira a recomendação, tenha a plena segurança de encontrará uma daquelas pérolas cinematográficas que, com sorte, temos uma vez a cada ano de lançamentos.

Mas se está a fim de embarcar em um texto minucioso que tenta explicar efetivamente o porquê de A Chegada ser uma excelente obra, lhe convido para dividir essa experiência sensacional: falar sobre o melhor longa desse ano.

A História da sua vida

A Chegada, na verdade, é uma adaptação do conto Story of Your Life escrito em 1991 por Ted Chiang, um romancista consagrado de ficção científica. Quem fica a cargo de trabalhar na adaptação é Eric Heisserer, um ótimo roteirista para oferecer a liberdade criativa tão necessária à Denis Villeneuve para brincar com simbologias cada vez mais complexas. Aliás, digo que a adaptação de Heisserer é mais feliz em contar a história do que o próprio conto original. Muito do conteúdo é inédito, pinçando apenas alguns conceitos e conflitos da história de Ted Chiang.

Acompanhamos a história da linguista Louise Banks que é chamada de supetão pelo Coronel Weber para ajudar na comunicação com seres alienígenas que chegaram à Terra. Com a escalada crescente da neurose, caos e desconfiança da humanidade e entre as nações, Louise e seu colega cientista, Ian, precisam correr contra o tempo para conseguir encontrar métodos de comunicação escrita e verbal com os misteriosos visitantes e descobrir o verdadeiro propósito dessa assustadora visita.

Sempre digo que é dez vezes mais difícil elogiar um bom trabalho do que criticar de fato. O roteiro de Heisserer é justamente um desses casos brilhantes de alta complexidade. Há sempre duas vertentes dentro de qualquer história de ficção científica que envolva contato extraterrestre. Uma é a tradicionalíssima do pessimismo cósmico – filmes como Enigma do Horizonte, Enigma do Outro Mundo, Alien, Prometheus são exemplos claros de mensagens sobre como tudo pode dar errado quando há contato imediato com inteligências externas ao planeta.

A outra, da linha otimista, define filmes como E.T. O Extraterrestre, Contato e Contatos Imediatos de Terceiro Grau. Em A Chegada, as coisas tendem a ser mais complicadas, pois orbita muito no suspense se é uma grande história de aniquilação ou elevação – daí a grande eficiência do horror construído nas primeiras sequências por Villeneuve.

Todo a proposta do longa circunda a questão da índole dos alienígenas e essa é justamente a grande vantagem do texto de Heisserer: a pluralidade de opiniões. Isso é dividido através dos poucos núcleos da obra que podem ser categorizados em “comunicação, ciência e militarismo”. Os personagens se comportam de acordo com suas funções narrativas nunca transgredindo o espaço um do outro.

Mesmo que haja a escolha óbvia de favorecer o discurso da protagonista, representante máxima do diálogo e opositora ferrenha da resposta militar, sempre há outro lado para criar o tão necessário atrito para o drama mover-se. Então, assim como diversas outras obras, A Chegada aposta em dramas de escopo humano e em conflitos de escopo global.

Aliás, Heisserer é brilhante em capturar tão bem a essência geopolítica do conflito gerado pela invasão. Ele taxa atitudes muito plausíveis sobre certos países, mantendo os ocidentais e o Japão como os mais receptivos e abertos ao diálogo com as criaturas. A Chegada, surpreendentemente, rende uma ótima aula de geografia.

Isso é colocado com inteligência pela estrutura nada convencional do roteiro do longa. E como já foi avisado, o texto conterá muitos spoilers e eles começam já no próximo parágrafo.

A descrença de começos e finais

O começo do filme trabalha a partir do poder da síntese. Louise narra sobre sua percepção do tempo. Claramente trata-se de uma voz over com a personagem já situada em um espaço futuro às imagens apresentadas. Ali é fundamentado um conflito que nos leva acreditar ser sobre um backstory da personagem, seguindo a linha clássica e clichê do personagem que perdeu tudo e que só lhe resta o trabalho para seguir em frente, com aparente niilismo como companheiro.

É eficiente e compramos o drama da morte da filha de Louise. De fato, cremos que se trata da introdução do drama que provavelmente levará Louise a uma catarse ao fim do longa – como ocorre em diversos outros filmes. Dois exemplos claros de começo dramático para gerar catarse na resolução são Up e Guardiões da Galáxia, filmes populares para ilustrar a sua linha de raciocínio.

Heisserer cria essa cortina de fumaça por conta da inserção do conflito majoritário logo depois dessa introdução. Uma professora que vive isolada em sua rotina centrada que nem mesmo se altera depois da chegada dos alienígenas – como se vivesse em um período pós-traumático. Com a vinda do convite do exército para Louise liderar a equipe tradutora, a personagem deixa o isolamento pela primeira vez.

Chega a ser bastante engraçado notar como o roteiro é extremamente simples – assim como o de Sicario, mas melhor elaborado. Ao pegar uma premissa tão forte, obviamente que há a sedução completa do interesse do espectador.

Há sequências inteiras que dependem somente da competência de Villeneuve em transformá-las na tradução perfeita em termos de linguagem visual – exemplo: A equipe entra na nave dos alienígenas. Essa rubrica de ação é revertida em uma sequência de quase dez minutos silenciosos dentro do filme.

Também, por isso, é impressionante a pouca quantidade de diálogos para desenvolver os personagens, pois muitas das coisas são sintetizadas pela eficiência visual. Nisso que também há o mérito de Heisserer: ele não duvida da inteligência do espectador com exposição intensa. Somente uma vez que há uma explicação didática de Louise para o público compreender de sua escolha em se comunicar através da escrita em vez da fala.

Mesmo tirando Louise do isolamento de sua rotina, a personagem é jogada novamente para o isolamento do campo militar anexado às proximidades da nave. Heisserer e Villeneuve trabalham bem nesse conceito de isolamento em contraste da especialidade profissional de Louise se centrar na comunicação. Nos poucos diálogos que temos entre a protagonista e Ian, há alguma reflexão do paradoxo.

Depois de estabelecer os primeiros contatos e sessões com os alienígenas, Heisserer apresenta o conceito que define o longa: os “flashbacks” que na verdade se tratam de visões, de flashforwards. Eles são inseridos cirurgicamente na trama, aparecendo somente depois que Louise faz contato com os heptapods sem a roupa protetora de contaminação, removendo uma das barreiras que dificultam a comunicação. É uma subversão da consciência sobre a narrativa comum, linear, que todo o espectador carrega.

No modo que é apresentado, facilmente o espectador se confunde, acreditando que se tratam de flashbacks de Louise se recordando de momentos-chave no convívio com a filha que já fora apresentada na introdução do filme. Por isso, quando ocorre a virada brutal no terceiro ato, que é provocado o choque ao entendermos que Louise, na verdade prevê o futuro.

Isso pode parecer um conceito jogado para quem não viu a obra, mas na verdade se trata de uma construção muito apurada de narrativa.

A cada nova sessão ou momentos que a dupla continua o trabalho no QG, Heisserer insere as visões, já as utilizando para resolver algumas dificuldades de Louise com o trabalho da tradução. Em outro sonho, apresenta outra didática ao espectador de que diversos idiomas moldam o raciocínio silencioso e, portanto, Louise estaria se aproximando do raciocínio dos heptapodes conforme aprende mais sobre sua linguagem, ganhando outra percepção do tempo. Uma percepção não-linear.

Também importa citar que o sonho gera, propositalmente, interpretações falsas para induzir o espectador ao erro em crer em um possível desfecho previsível e clichê como colocar o testemunho de Louise em cheque inferindo insanidade ou de que a mulher fará alguma loucura por alguma espécie de domínio da mente exercido pelos alienígenas – assim como em Body Snatchers.

Heisserer torna o conto de Ted Chiang mais cinematográfico, encaixando clímaces e conflitos. Para favorecer o discurso constante sobre a dualidade da linguagem, seja como instrumento unificador representado pelo núcleo Louise, Ian e os heptapódes, ou como arma de destruição e incitação ao ódio. Portanto há sim um antagonista para ilustrar a dicotomia.

Este é representado pelo capitão Marks, um dos militares que acompanham os cientistas durante as sessões. As únicas cenas que abandonam o ponto de vista de Louise são destinadas para justificar a motivação de Marks em agredir os pacíficos alienígenas. São dois breves momentos. Acompanhamos uma ligação com sua mulher em prantos e aterrorizada com a chegada dos invasores e também da desordem social. A outra ocorre mostra Marks e um comparsa assistindo a um discurso de um jornalista independente que incita a violência contra os alienígenas.

Graças a animosidade causada pelo terrorismo de Marks em explodir a câmara dos encontros, o mundo entra em caos encerrando a rede de comunicações e colaboração para dividir o conhecimento adquirido nos encontros das onze naves restantes. Então,a China declara guerra. É justamente aí que entra o fator mais divisivo na análise desse roteiro.

Heisserer usa a “arma” dada pelos alienígenas, o vocabulário extraterrestre que oferece as premonições, para resolver o clímax do filme. Mas como a estrutura é muito bem definida anteriormente, não é adequado desqualificar taxando o recurso como um deus ex machina, afinal já é justificado na narrativa, seja com o encontro final catártico com o heptapod ou pelo uso das visões anteriores.

O que pode incomodar é o modo abrupto que a resolução é apresentada, como se os outros personagens que Louise interage nas visões já tivessem consciência de sua habilidade. Porém, não fosse essa conveniência, dificilmente a cena teria o mesmo impacto.

Uma fraqueza do texto é o personagem Ian, encarnado com competência por Jeremy Renner. Ian seria o lado racional da trama, explorando a ciência que as criaturas poderiam oferecer. No conto original, Ian é mais proativo nas sessões, tentando descobrir como funciona a ciência dos alienígenas, das leis matemáticas e sobre o planeta dos seres. Mas aqui, esse lado cientifico fica em total escanteio. Ao menos, é fácil sentir empatia pelo personagem por servir sempre como apoio de Louise, além dele ter um papel fundamental para definir o propósito dos aliens na Terra.

Aliás, Heisserer é totalmente original em desenvolver essa grande cadeia de ação e reação, oferecendo respostas concretas sobre o motivo das naves terem chegado ao planeta – algo inexistente no livro.

Nesses quesitos da escrita de Heisserer é possível analisar separadamente. Já o resto clama por uma interpretação maior das excelentes simbologias que Denis Villeneuve apresenta em seus enquadramentos, na sua direção nada menos que exemplar e histórica com A Chegada.

A consagração de um gênio

Se analisar o roteiro de Heisserer já é complicado, imagine discorrer sobre a direção de Villeneuve, um diretor já conhecido por suas profundas marcas autorais e de forte presença criativa na concepção visual das suas obras.  Na verdade, assim como em Sicario, o roteiro de Heisserer depende muito da competência de Villeneuve para funcionar de modo eficiente.

Então, a partir disso, o diretor trabalha com conceitos chave que guiarão toda a análise que faremos aqui: amor, destino, ignorância, sagrado, divino, elucidação, caos, ódio, isolamento, união, medo, dicotomia da comunicação, linguagem escrita, corporal, falada e, principalmente, cinematográfica.

O que espanta, especialmente quem já conhece Villeneuve de outros filmes, é uma grande reformulação de sua marca autoral. Na teoria e na concepção de um longa, sempre martelamos que o primeiro plano de seu filme tem de ser um dos mais importantes. Como se trata de Villeneuve, é correto afirmar isso, pois o principal discurso de transformação reside no plano de abertura.

Através de um travelling, o diretor captura o teto de uma sala enquanto, lentamente, inclina a câmera em direção a uma enorme janela cuja estrutura forma algumas molduras. Através dela, vemos um longínquo horizonte. Na narração, Louise afirma sua descrença sobre começos e finais – já a maior pista da não-linearidade do filme. Importante lembrar sobre esse enquadramento, tão importante que já deixo a imagem aqui, pois fará parte da principal simbologia do filme:

Depois, há a sequência sintetizando a vida da filha de Louise. É uma mudança extremamente abrupta para a fotografia e para o estilo de direção que ele está acostumado. Toda a sequência evoca as técnicas de Terrence Malick em A Árvore da Vida, mantendo cores levemente saturadas, com câmera bastante móvel e curta profundidade de campo.

Tudo isso confere o ar onírico, sagrado e pouco natural desse segmento. Aliás, na conclusão, antes de inserir um fade out, já temos outra metáfora visual que conversará com as discussões sobre tempo que guiarão o terceiro ato do filme. Na imagem, Louise caminha com passos trôpegos e desolados em um corredor circular, no sentido horário, passando por diversas portas que podem representar a marcação das horas.

A mesma introdução marca Louise em estado de libertação, fora da barreira representada pela janela. A filha liberta Louise. E a composição romântica de Max Richter, On The Nature of Daylight ajuda a demarcar isto, pois é uma peça paradoxal: bela e fúnebre ao mesmo tempo.

Eficiente na confusão mental sobre a natureza desse segmento, Villeneuve casa as cores monocromáticas, pálidas e cinzentas do luto para a chegada de Louise na faculdade e sua completa indiferença à agitação provocada pelos noticiários e dos alunos amontoados nos corredores. É uma excelente encenação para mostrar que a protagonista é, de certa forma, uma pessoa infeliz e isolada. Somente após diversas interrupções dos poucos alunos em sala de aula que ela finalmente descobre que o mundo está mudado para sempre.

Não levará muito tempo para o diretor começar a dar os acenos de respeito para alguns cineastas consagrados na ficção cientifica. O primeiro é para Spielberg com um breve plano sequência de Louise se dirigindo até seu carro.

Quando ela retorna à casa, novamente o plano de abertura do filme estampa a tela. Dessa vez, vemos Louise emoldurada nas divisórias que demarcam o centro da janela e do enquadramento. É possível tirar múltiplas interpretações para a função das molduras. A mais coerente é a demonstração gráfica de aprisionamento e isolamento da personagem que sempre observa o horizonte, mas nunca o transgrede.

O mesmo enquadramento da janela aparece pela última vez nesse ato no momento que o coronel Weber aterrissa o helicóptero militar nas proximidades da casa de Louise para levá-la até a concentração. Finalmente a ordem natural da rotina é quebrada. Vemos o helicóptero trespassar as molduras da janela indo em direção ao horizonte. É o começo da mudança completa que a protagonista sofrerá na jornada.

A Chegada

Assim que o helicóptero chega nas proximidades do acampamento, novamente Villeneuve faz um oner homenagem a la Spielberg. É um plano aéreo revela a concentração de curiosos que, além de ser separada dos invasores pela barreira militar, também é dividida por uma espessa névoa. Depois, temos o oner propriamente dito, mostrando para o espectador pela 1ª vez com clareza a nave invasora, a “concha”.

Novamente, ali, temos outro vislumbre sobre como Villeneuve é um cineasta completo, se equiparando com David Fincher, Christopher Nolan e Quentin Tarantino – os três que conseguem fazer a melhor união entre o cinema mainstream com a pureza artística. A encenação é brilhante.

Explico, a câmera paira justamente sobre um bendito vale que é parcialmente encoberto pela mesma névoa que desce das montanhas. A névoa que encobre o vale e parte da concha é branca e pura já servindo de foreshadowing da atmosfera esbranquiçada onde os heptapódes habitam. Conforme o Villeneuve movimenta o plano, circundando o acampamento, a névoa torna-se mais sombria e espessa. Ou seja, enquanto direcionada para a nave, infere uma atmosfera suspeita, mas que é tranquila, pacifica pela coloração branca. Quando estampa o terceiro plano do enquadramento do acampamento humano, é sombria, portanto, refletindo toda a ignorância, medo e propensão à violência da humanidade em um momento tão estressante.

A nave estar estacionada sobre um vale também não é mero acaso. Assim como muitas coisas, há um propósito bem definido, buscando evocar uma simbologia. O vale, simbolicamente, é o complemento das montanhas – que sobem em direção ao divino. Já o espaço côncavo/plano de um vale é um receptáculo natural para o vem do céu. Em uma correlação ainda mais simbólica, é onde a alma humana se encontra com o Divino para gerar revelações e catarses místicas, sagradas – segundo o Livro dos Símbolos. E é justamente isso que acontece no decorrer do filme.

Logo, todo o ambiente iluminado, ainda que ameaçador, do vale entra em contraste direto com a escuridão dos interiores das instalações militares. É um dos grandes usos metafóricos da excelente iluminação do diretor de fotografia Bradford Young que honra o cargo deixado pelo ilustre Roger Deakins.

A partir dali, após um breve estabelecimento do núcleo humano no acampamento que ao mesmo tempo representa o escopo global do conflito e também do drama intimista, Villeneuve se prepara para apresentar uma sequência aterradoramente simples, mas fantástica: o 1º contato dos protagonistas com a nave e com os alienígenas. Isso é dividido brilhantemente em duas partes: o ingresso à nave e a chegada dos heptapódes.

Quando o grupo se aproxima, descobrimos que a nave levita, nunca encostando ou danificando o solo. Para entrar nela, é preciso o uso de elevador. Novamente, outra simbologia poderosa. O divino, representado pelos alienígenas, não facilita o acesso para a humanidade, se comunicando como iguais. Ao contrário, a humanidade, representada obviamente pelo núcleo dos cientistas, precisa elevar, ascender, evoluir para entrar em contato com outra inteligência.

Novamente, nessa dilatação temporal, Villeneuve busca proclamar o sagrado ao enquadrar em plano detalhe o toque de Ian na casca externa da ‘concha’. É um plano que pede para ser comparado com A Criação de Adão, a obra máxima de Michelangelo na Capela Sistina. Mesmo que o plano seja para mostrar o deslumbramento entre um contato sagrado entre a ciência e a crença de Ian, há um flerte cínico do diretor quando o tato é interrompido no momento que a plataforma é alinhada com a abertura da nave. Ali, brevemente, o dedo divaga no vazio misterioso, sombrio, jogando o personagem para a cruel realidade.

Com os planos azimutais, o diretor novamente emoldura os personagens entre enquadramentos que mostram o conhecido e terrestre em contraste ao desconhecido, muito iluminado, extraterrestre.

Na suspensão da gravidade, a protagonista quebra a ordem natural pela 1ª vez. No que antes exigia a elevação, se transforma em um túnel com o fim iluminado – ordenamento sagrado novamente.

É justamente nessa excelente dicotomia do ser ou não ser que Villeneuve arregaça as mangas e mostra o verdadeiro poder catártico da trilha musical do sempre excelente Johann Jóhannsson. A música simplesmente reflete o estado de espirito e ebulição psicológica dos personagens. Repare, toda vez que o plano é centrado nos personagens, a música é mais calma, porém assim que o diretor insere o contraplano, exibindo o fim do túnel, Jóhannsson explode a trilha com tons assustadores, magnéticos e desagradáveis.

Enquanto estamos no porto seguro, no conhecido, refletido pelo Homem, a música se comporta. Já ao mirar o desconhecido e possivelmente perigoso, ocorre a excitação instrumental. Simples, eficiente e inteligente. Por isso que o roteiro do longa é uma peça de análise um tanto complexa, pois Villeneuve utiliza diversos recursos simbológicos para expressar os personagens sem recorrer ao uso de palavras, de exposição.

Importante lembrar que essa é a cena de maior espírito Kubrickiano que veremos no longa. Difícil não relacionar com o embate final entre Dave e HAL em 2001: Uma Odisseia no Espaço.

O Contato

Quando finalmente os personagens ingressam na câmara que ocorrem as reuniões com os extraterrestres, o diretor faz questão de esclarecer que ordenamento natural continua quebrado, afinal os personagens estão de ponta cabeça, usando o teto como piso. O próprio design da câmara evoca essa dimensionalidade confusa, pois qualquer canto da sala pode ser tomado como teto ou piso.

É justamente nessa cena que ocorre a grande metáfora do filme inteiro, sobre o amor ao cinema. Aqui é necessário o resgate, na memória do espectador, do primeiro enquadramento que Villeneuve apresenta: o centralizado, da janela e suas molduras. Coloque em contraste direto com a similaridade do enquadramento, também centralizado, do vidro que separa o lado onde ficam os humanos e o lado onde estão os heptapódes.

O lado de lá, é branco, emoldurado por um enorme retângulo de bordas arredondadas. No enquadramento, Villeneuve pega, por enquanto, parte das paredes negras do teto e do solo. Eis que, nessa comparação, o cineasta cria uma metalinguagem. O vidro preenchido pela fumaça branca vira um anteparo, assim como a tela do cinema, brincando com a razão de aspecto do filme, gravado em cinemascope e, portanto, contando com a presença do letterboxd para mostrar a imagem completa.

Ou seja, as bordas negras que emolduram a tela branca remetem diretamente às bordas da correção de aspecto da sala de cinema que você provavelmente assistirá ao filme. Nessa correlação, ele torna tanto os personagens em espectadores e vice-versa. Afinal, é o momento-chave do primeiro ato. É a chegada dos alienígenas, da revelação de sua biologia pela 1ª vez para todos nós, seja na diegese quanto no espaço extra fílmico.

Mas o que isso tem a ver com o enquadramento que abre o filme? Muito, como veremos conforme o longa progride. Durante as três primeiras sessões que acompanhamos Louise e Ian, Villeneuve evita diversificar sua decupagem e encenação. E assim como tudo em A Chegada, existe um propósito simbológico para tanto.

A encenação dos primeiros contatos é centrada no receio amedrontador. Os personagens, encapsulados e isolados pelos trajes, mal se movem e não se aproximam do vidro onde os alienígenas estão. Então, naturalmente, os enquadramentos são afastados, bastante abertos. O diretor apenas se rende aos closes e planos detalhe para valorizar a majestosa atuação de Amy Adams e de suas diversas expressões: primeiro de medo para seguir até a alegria reconfortante – onde vemos a personagem sorrir pela primeira vez no filme ao estabelecer uma forma de contato com as criaturas.

Ao contrário da janela da casa de Louise, onde o diretor a emoldurava separando-a do resto e do horizonte, o vidro da câmara não possui nenhuma estrutura que emoldure ou isole a personagem, muito embora ela esteja isolada do contato físico com as criaturas. Aos poucos, Villeneuve passa a enquadrá-la entre os heptapodes. A personagem, enfim, perde a grande amálgama do isolamento que emanam dos seus enquadramentos.

Isso ocorre a partir do terceiro contato. Nele, Louise já está mais à vontade com as criaturas, abandonando a escuridão que permeia o fundo da sala onde a equipe se concentra – como se julgassem a distância como porto seguro.

Ela caminha em direção a Abbott e Costello – os alienígenas, para justamente o lado que emana a luz. Nesse sentido, outra simbologia toca o filme. A escuridão demarca a ignorância e a iluminação branca é justamente o conhecimento, da elevação do estado de consciência que afetará Louise.

Uma apresentação apropriada

Villeneuve demarca somente no visual a decisão de Louise em retirar o traje, de remover uma condição limitadora de isolamento. Tudo é baseado no canário que é trazido nas sessões. Para que o espectador entenda o uso narrativo do pássaro, o diretor exige certo conhecimento histórico. Em épocas de revolução industrial e das escavações nas minas de carvão, canários eram utilizados para sinalizar qualquer gás tóxico não identificado pelo olfato humano. Por conta dos pequenos pulmões, morriam mais rapidamente, avisando a todos mineiros de um vazamento de gás venenoso.

No filme, a função é a mesma. Louise, antes de remover o traje, observa o mesmo canário que acompanhou todas as visitas. Percebe que ele está perfeitamente normal e toma a decisão libertadora.

Livre do medo a das amarras do traje que também restringiam sua visão, Louise caminha até encostar no vidro. O heptapóde faz o mesmo estabelecendo o contato mais pessoal até agora. Nisso, Villeneuve finalmente abandona o jogo centralizado que mantinha na decupagem das cenas do encontro. Mimetizando diretamente outro plano apresentado no começo do filme, da janela da casa, constrói um plano lateral exibindo o “aperto de mãos”. É um passo cinematográfico importante para estabelecer a relação de proximidade da protagonista que finalmente tem vontade de estar do lado de lá, tentando atingir o horizonte que antes era limitado pelas molduras de sua janela.

 A partir desse encontro que Villeneuve e Heisserer começam a jogar as visões na tela. A primeira delas acontece logo depois desse encontro próximo e “humano”. No devaneio, só é possível observar a nuca da criança que virá a ser a filha de Louise observando uma criatura negra e distorcida – que lembra a anatomia dos aliens, na profundidade de campo totalmente desfocada.

Além dos encaixes das visões sempre serem bem estabelecidos no roteiro, Villeneuve faz questão de elaborar mudanças visuais para cada uma das diversas que permearão a obra até sua conclusão. A primeira é a mais confusa. A segunda já é menos, mostrando a menina mais nitidamente embora os planos recortem partes da cena enfatizando as brincadeiras da garota com instrumentos que remetem também à biologia do aliens, seja na cor ou nos membros.

Na terceira visão, ocorre o primeiro diálogo. E assim por diante até que Louise entenda que as visões estão diretamente ligadas com a evolução das traduções da linguagem alienígena.

Quando Villeneuve destina sua decupagem para criar tensão, nós sabemos que teremos um verdadeiro aprendizado em linguagem. Quem não se recorda das tensas torturas de Hugh Jackman contra Paul Dano? Ou da excelente sequência em Juarez de Sicario? Aqui ocorre em dois grandes momentos.

O primeiro é baseado no contraste das ações de Louise e de Marks – consciência vs. Ignorância. O que torna a cena da explosão tão especial é justamente a contraposição das ideias, além de afirmar a perfeita sintonia entre o heptapóde e Louise, já que ambos escrevem juntos, no idioma alienígena, pela 1ª vez.

Villeneuve enquadra com inteligência inserindo Louise justamente entre Abbott e Costello enquanto permanece no meio da imagem do ideograma. Na mesma cena temos a união que a missão tanto procurava, mas que ao mesmo tempo causa a profunda ruptura. Aliás, somente com o trabalho em áudio, o diretor traça o destino estúpido de Marks. Motivado a salvar sua família, o soldado acaba morto no tiroteio e esquecido na narrativa.

A partir da destruição de parte da concha, do súbito isolamento na comunicação entre os países agora dominados pelo medo, da iminência da guerra provocada pela ignorância e falta de visão, Villeneuve arquiteta a maior simbologia do filme, ainda remetendo à primeira imagem da janela na sala.

Quando Louise atende o chamado de sua visão e parte para a cápsula da nave, o diretor encaminha bons enquadramentos no momento de sua chegada. Dois planos close do rosto de Amy Adams mostram a cápsula se abrindo simbolizando, enfim, uma mente “aberta”, sem limites.

É justamente nessa cena que Louise finalmente passa a ver o “todo” e não somente uma parte dele como era condicionado por: as molduras de sua janela e, posteriormente, pelas bordas que limitavam o lado de lá, nunca mostrando as verdadeiras formas dos heptapódes. Com o todo, Louise atinge o horizonte, ela finalmente está diante das molduras, não mais atrás delas ou dentro de outros enquadramentos limitadores. Está totalmente imersa no grau de consciência representado pela cor branca que preenche todo o enquadramento entrando em contraste direto com o alienígena.

Nisso, temos a revelação de todo o corpo gigantesco de Abbott e ali, Louise começa a compreender o “todo”, conseguindo enxergar o tempo de modo não-linear. Nas visões subsequentes, ela ganha o domínio de sua consciência no futuro, podendo alterar uma realidade presente.

Na conclusão de seu trabalho, Villeneuve ainda emplaca uma simbologia mais clichê, com uma única tela de notícias dando origem à diversas outras para sugerir a consolidação de que o mundo estava unido de novo. Porém o mais belo é terminar o filme com a exata mesma sequência e trilha musical de seu início configurando o tal do palíndromo, em licença poética, que fora referenciado quando a filha de Louise pergunta por que recebeu o nome Hannah.

Como já vastamente discutido nesses trechos dedicados à direção de Denis Villeneuve, é impossível não afirmar o grau de excelência que o diretor alcançou neste trabalho. Ainda há diversos outros detalhes menores como a concepção do vocabulário alienígena, da concepção visual das criaturas, dos diversos contrastes criados pela montagem e até mesmo dos figurinos que referenciam outras obras clássicas de ficção cientifica. Porém, caso eu fique explorando tudo isso, o texto, já imenso, não terá fim.

Na guerra não há vencedores. Apenas viúvas.

Com A Chegada, o Cinema ganha mais uma valiosa adição para o gênero de ficção científica. Seu discurso constante sobre libertação e linguagem é tão valioso que transcende até mesmo sua forma ao conseguir expandir a sala de cinema como uma figura de comunicação ativa na obra. É um tipo de experiência única que merece sua atenção enquanto está em cartaz, pois Villeneuve torna essa obra excelente na sua assinatura máxima como cineasta completo.

Um filme que salva um ano tão fraco como de 2016 no quesito de lançamentos comerciais oferecidos por Hollywood. De longe, A Chegada é o filme de melhor qualidade que o cinema norte-americano conseguiu nos oferecer nesse ano, chegando como fortíssimo concorrente para a disputa do Oscar.

Assistir A Chegada produz exatamente o mesmo efeito que Louise Banks experimenta em seus contatos imediatos com os alienígenas. Há, com certeza, um efeito de elevação de consciência devido às exigências do longa em nos fazer decifrar tantas simbologias inteligentes ordenadas pela encenação. É pureza e beleza cinematográfica como há tempos não se via.


by Matheus Fragata

Crítica | Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2

Assim como Star Wars e O Senhor dos Anéis, a saga Harry Potter marcou uma era. Uma década se passou desde “A Pedra Filosofal” e agora tudo acaba depois de oito filmes. É triste ver a cinessérie mais lucrativa da história do cinema chegar ao fim. Foi interessante observar como Rupert, Watson e Radcliffe deixaram de ser crianças e como os filmes foram amadurecendo. A série também acompanhou o fim da minha infância e agora o quase fim da minha adolescência. “A Câmara Secreta” foi o primeiro filme legendado que vi na minha vida então é impossível dizer que “Harry Potter” não foi importante para mim e, por isso, o término da sessão do último filme foi uma experiência triste. Foram 1178 minutos, aproximadamente 20 horas, de Harry Potter ao longo de 10 anos, mas vamos nos concentrar nos últimos 130 minutos desta saga que encantou vários espectadores com sua magia única e especial.

Harry Potter acabou de enterrar Dobby em uma encosta próxima ao Chalé das Conchas, mas não há tempo para lamentar. Potter, Weasley e Granger precisam invadir Gringotes com o auxílio de Grampo para destruir a quarta Horcrux que sela uma parte da alma amaldiçoada do Lorde das Trevas. Porém, o grupo terá muitos problemas para encontrar a quinta Horcrux. Ela se encontra perdida em algum lugar secreto de Hogwarts. Todavia, Harry não sabe que sua invasão desencadeará uma batalha violenta na escola, agora supervisionada por Severo Snape. Será neste evento histórico que o destino de dois mundos será definido no combate mortal entre Harry Potter e Lord Voldemort.

Uma história de gerações

Steve Kloves é um roteirista maleável, imaginativo e ousado, por isso tenho grande afeição por este profissional. A cada diretor que entrava na franquia, Kloves mudava o estilo de sua escrita respeitando as exigências de cada um. Desde o super detalhado roteiro de “A Câmara Secreta” ao resumido de “O Enigma do Príncipe”. Porém seu trabalho em “As Relíquias da Morte: Parte 1” foi exemplar. Com diálogos interessantes e seletas cenas de ação, conseguiu manter a atenção do espectador ao decorrer do filme monótono. Entretanto seu trabalho no último filme da série foi de superar qualquer expectativa. Kloves não perde tempo para situar o espectador que nunca viu algum filme de HP ou àquele que não se lembra de alguns detalhes. Portanto é uma boa dica rever algumas aventuras anteriores antes de conferir a conclusão da saga.

Este é um dos roteiros mais fiéis a história do livro. Depois de assistir ao filme, reli os capítulos correspondentes. Por incrível que pareça, Kloves foi mais atencioso em algumas passagens do livro do que a própria J.K. Rowling. As cenas que se passam na Câmara Secreta não existem na obra original e a batalha de Hogwarts não recebeu o detalhamento épico do filme. Os diálogos ficaram praticamente intocados – 85% deles foram transcritos diretamente do livro. Não há dúvida que as longas conversações e essência narrativa ficaram para o penúltimo filme. Agora o que é a força motriz do roteiro são as várias cenas de ação. Isso é evidenciado pelo resumo de várias conversas importantes como a que ocorre entre Dumbledore/Aberforth e Harry. Entretanto, graças a isso, Kloves deixa toda a história muito bem amarrada, lógica, interessante, rápida e óbvio, divertida. Infelizmente, comete algumas decisões bem duvidosas. Por exemplo, quando remove o diálogo fantástico que ocorre no livro entre Voldemort e Harry.

Surpreendentemente, esses resumos dos capítulos encaixam muito bem para o desenvolvimento do roteiro. O segmento das memórias de Snape ficou mais fluído no filme do que no livro. Existem outras diferenças originais entre as duas obras. Ele deu mais atenção para alguns dos personagens coadjuvantes como Neville e McGonagall, além de inserir reviravoltas imprevisíveis fantásticas.  Kloves também é criativo ao relacionar o inédito efeito gradativo da destruição das Horcruxes entre o protagonista e o antagonista. Ele também não perde muito tempo da narrativa desenvolvendo Rony e Hermione – essa meta já atingiu seu ápice na primeira parte do filme.

As piadinhas deram lugar ao drama. Kloves assemelha a direção de Snape na escola com regime fascista absoluto. É notável perceber os dois arcos narrativos do longa. Um acompanha Harry, Rony e Hermione procurando a Horcrux em Hogwarts. Outro, que mostra o desespero do antagonista, é o brinde mais legal do filme. Com isso, Harry e Voldemort ganham uma profundidade nunca vista antes na série. O vilão passa a ficar mais complexo e amedrontador ao utilizar o eficaz terror psicológico e matar aliados com muita violência evidenciando o nervosismo do personagem. Já Harry sofre e amadurece com a morte de vários amigos. O protagonista também consegue se tornar mais verossímil quando faz uma pergunta infantil, mas extremamente delicada para seus parentes. Fora isso, o roteirista tem a oportunidade de revelar segredos obscuros da vida do garoto.

Porém, o aspecto mais interessante do roteiro são as pausas acentuadas entre as sequências de ação. São nelas que ele encontra oportunidade de responder várias questões deixadas ao longo da série. Uma que deixou muitos fãs do livro revoltados com a “Parte 1” era a ausência da dúvida de Harry a respeito da figura bondosa de Dumbledore – nesta parte, Harry chega até a odiá-lo. Kloves tem o direito a sua réplica neste filme com uma frase arrebatadora. Só existe uma questão que não é bem trabalhada no filme. O alarde sobre o patrono de Snape não é minuciosamente explicado podendo plantar dúvidas na cabeça de alguns. Quando estava relendo o livro encontrei a resposta óbvia.

O que o roteiro tem de melhor acaba sendo seu maior problema. A grande fidelidade com os capítulos escritos por J.K. Rowling não permite que o roteiro encontre outras formas de chegar ao clímax da obra. Por isso, o filme se concentra demais em Harry e Voldemort e não acompanha os outros personagens como Fred, Gina, Luna, Thomas, McGonagall, Filios, Slughorn lutando na batalha de Hogwarts. Isto foi um erro que Fran Walsh não cometeu ao adaptar “O Senhor dos Anéis” para as telonas. Em todos os intermináveis filmes desta série, o espectador não ficava concentrado apenas em Frodo, Sam e Gollum. Diversas vezes acompanhávamos Aragorn, Legolas, Gimli,  Gandalf, etc. explodindo alguns orcs e elefantes no campo de batalha. Mesmo assim, os poucos erros de Kloves não comprometem o desenvolvimento brilhante do filme.

Harry Potter, The boy who lived… Come to die

Assim como em “X-Men: First Class”, o núcleo de alta qualidade nas atuações é concentrado em três atores. Neste caso, o destaque fica por conta de Daniel Radcliffe, Ralph Fiennes e Alan Rickman. Radcliffe cresceu muito artisticamente e teve oportunidade de trabalhar em peças de teatro e ajudando muito a desenvolver sua capacidade dramática. Ele está absolutamente brilhante em sua atuação. Enfim, Radcliffe conseguiu aproximar a figura mítica e distanciada de Harry com a plateia muito bem. Pela primeira vez consegui observar expressões faciais complexas que conseguem transmitir o espectador toda a tensão que o garoto vive – as caras de sofrimento e medo são espetaculares. Por falha do diretor, Radcliffe não trabalha muito bem sua expressão corporal em diversas cenas. Porém, em outras, toda a insegurança do destino trágico do personagem é relevante na expressão nervosa de seu corpo.  Os olhares também são outro ponto alto de sua atuação. Procure reparar no olhar amedrontado que Radcliffe faz em diversas cenas. No clímax acontece o ápice da expressão do garoto e é nessa cena que ele prova sua força artística.

Finalmente, Ralph Fiennes provou ser a escolha certa para interpretar o icônico antagonista. Ele está soberbo encarnando seu personagem. Ao contrário de Radcliffe, Fiennes, com todos seus anos de experiência, dá um exemplo de atuação. Com o destaque proporcionado pelo roteiro, ele teve a oportunidade de construir um psicológico fantástico contando com diversos desdobramentos. Sua dicção rouca, ofídica e sibilante dá efeito a diversas frases que marcaram o filme. A gama de expressões que ator apresenta é incrivelmente vasta. Fiennes deixa bem claro que o antagonista também vive em um momento pavoroso e ameaçador. As expressões são inquietas e desesperadas e seus gestos começam a tornar-se bruscos ao decorrer do filme. Uma coisa fantástica que Fiennes realiza com maestria é a modelagem de seu olhar. No início do longa, Voldemort não tem uma expressão humana, mas a cada Horcrux destruída seu olhar fica mais comum. O ator também evidencia a falta de naturalidade do antagonista. Ele deixa claro que Voldemort só se importa com ele próprio. Isso é muito evidente no estranho abraço do vilão. Assim como Radcliffe, o ápice de sua atuação se encontra no clímax. O único ponto negativo de sua atuação é a ausência da marca registrada do personagem, os famosos gritos “NYYYYYEEEEAAAA”.

Alan Rickman mostrou um lado desconhecido do personagem pela primeira vez em uma atuação dificílima. A cena da penseira tem tanta força por causa da memória que o espectador tem da figura apática de Snape. Rickman desconstrói seu trabalho de dez anos para criar o personagem mais marcante e complexo da saga. Novamente o ar teatral fala mais alto. Nesta cena é visível a fluidez do controle de seu corpo deprimido combinado com o olhar perdido de seu rosto – são várias paixões juntas, é possível sentir o drama, a ira, o amor e a decepção de Rickman. O resultado disso é uma das partes mais emocionantes do filme. Apesar destas novidades fascinantes apresentadas pelo ator, ele ainda trabalha expressões antigas com a mesma naturalidade. O que acho mais legal deste aspecto da atuação dele é a dicção pausada de suas frases. Isso evidencia como o personagem seleciona cuidadosamente suas palavras. O melhor de tudo é que o roteiro explica a origem desta mania de Snape.

Rupert Grint e Emma Watson não apresentam muita coisa nova mantendo o padrão de qualidade dos filmes anteriores. Rupert ainda possui um timing cômico excelente e Watson consegue chorar novamente pela bilésima vez. Parece um mal deste filme, mas o ápice da expressão de praticamente todos atores ocorre no clímax. Rupert e Emma não fogem desta regra. Outra que retorna a boa forma é Maggie Smith. Sua atuação está mais energética e divertida. Finalmente a atriz deixou o pedestal e conseguiu conversar com a platéia. John Hurt é mais um atrativo que o elenco britânico grandioso tem a oferecer. Em apenas uma cena, Hurt conquista o espectador com seus traços misteriosos.

Matthew Lewis também recebe sua chance para brilhar. O garoto surpreende bastante e entrega seu melhor trabalho até agora. Elegante como sempre, Michael Gambon volta a encarnar Dumbledore. O time dos vilões também sabe impressionar. Helena Boham Carter tornou Bellatrix mais suportável graças a pequena participação. Logo no início do filme, Carter amplia sua atuação e prova sua flexibilidade ao adequar-se a diversos personagens. Entretanto, uma expressão me conquistou ao primeiro olhar. É uma pena que o plano dure pouco, mas o sorriso doentio da atriz é certamente cativante. Jason Isaacs continua a evoluir Lúcio Malfoy competentemente. O resultado de seu trabalho destacou o personagem, além de conferir um toque único e original. Tom Felton continua com a boa atuação apresentada em “O Enigma do Príncipe”.

O elenco de apoio também é muito bom. Formado por diversos atores britânicos, os coadjuvantes apresentam atuações variadas. Evanna Lynch, Helen McCrory, Ciáran Hinds, Bonnie Wright, Gary Oldman, Gemma Jones, Emma Thompson, Julie Waters, Mark Williams, Natalia Tena, Geraldine Somerville, Robbie Coltrane, David Thewlis e George Harris completam o grandioso elenco.

Lumos Maxima!

O português Eduardo Serra apresentou ao público a melhor fotografia da cinessérie em “As Relíquias da Morte – Parte1”. Mas o melhor de seu trabalho ficou para o final da saga. O cinegrafista opta por tons mortos, bucólicos, acinzentados, sóbrios e escuros. Ele retrata Hogwarts com cores tristes inferindo que a magia do local foi extinta. Sua fotografia é muito diferente da apresentada por John Seale em “A Pedra Filosofal”. No primeiro filme, Seale apresenta Hogwarts com cores amareladas fortes que transparecem a segurança que a escola oferece a Harry. Agora nenhum lugar é seguro para o protagonista. Serra deixa isso claro inserindo várias sombras nos cenários escuros.

A modelagem das sombras é outro espetáculo que evidencia a complexidade da fotografia. Em inúmeras cenas pude observar que as sombras projetadas pelos personagens eram inexistentes ou muito escondidas. Este efeito é um dos mais difíceis de realizar e Serra o recria com muita facilidade. Sua iluminação é muito delicada e minuciosa. Com o manejo sábio das luzes e das sombras nas faces dos atores, consegue reforçar o poder da atuação de cada um. Outro destaque de sua fotografia é a rapidez assustadora que ele consegue modelar a luz quando ela varia de um tom para outro.

A criatividade do cinegrafista também é posta a prova. Ele inova com diversos efeitos inteligentes de iluminação. Muitas vezes, Serra adiciona flashes de luz nas cenas. Alguns são lentos, suaves e duradouros enquanto outros são rápidos e violentos. Ele também inova com reflexos fantásticos resultando em imagens muito bonitas de se ver. Algumas vezes ele prefere usar distorções complexas e desfoques nos planos com efeitos criados pelas próprias lentes das câmeras.

Apesar do grande predomínio do cinza na fotografia do português, Serra modela outras cores ao longo do filme. O azul e a névoa são presentes em diversas cenas exteriores. Ele é proveniente do truque mais manjado do cinema e que todos cinegrafistas tem a obrigação de recriar. Trata-se da famosa “luz da Lua”. Até mesmo tons esverdeados, cor pouco explorada pelos cinegrafistas modernos, é presente no jogo de iluminação do longa. Já a névoa deixa os demais personagens do plano com uma aparência fantasmagórica. Entretanto, o mais impressionante de sua fotografia acontece quando tem a oportunidade de estourar tons brancos na tela – as sombras dos personagens também desaparecem nesta parte. A maior dificuldade de trabalhar com cores brancas é manter o padrão do tom na mudança de planos. É incrível observar como Serra mantém a mesma tonalidade do branco durante a cena inteira. Também na mesma cena, é possível distinguir leves sombras ao fundo da imagem. Assim ele consegue proporcionar profundidade e noção de perspectiva na cena.

Existem outros dois aspectos da fotografia que são interessantes de comentar. O primeiro é como o cinegrafista consegue oscilar a luz incidente na face dos personagens simulando a iluminação natural das velas ou chamas. O outro é a única cena que Serra satura as cores do filme – novamente o resultado é belo. Entretanto, há um porém em sua fotografia. O cinegrafista, na maioria das vezes, focaliza o primeiro plano deixando o fundo da imagem completamente desfocado. Até então está tudo certo, mas o filme foi convertido para o 3D estereoscópico e por isso o efeito sai pela culatra. Sem o segundo e o terceiro plano focalizado, a sensação de profundidade causada pelo efeito fica comprometida. Se o cinegrafista tivesse usado uma focalização diferente como o deep focus isso não teria acontecido. O primeiro filme da história a explorar devidamente este recurso de algumas lentes e câmeras foi o brilhante “Cidadão Kane”.

Os efeitos visuais também são um espetáculo. Eles conferem ao ambiente mágico e fantasioso do filme uma grande verossimilhança. Existem vários estúdios de animação gráfica na produção do filme e cada um dedica toda a sua atenção para criar um determinado efeito. As melhores CGs do filme são as que compõe o dragão – o melhor já feito até hoje, a estrutura do campo de força e da cobra Nagini – repare como esta reflete as luzes do cenário. Os raios que emanam das varinhas também recebem um detalhamento melhorado neste filme. Já a direção de arte consegue reproduzir fielmente toda a destruição de Hogwarts. O outro ponto alto deste aspecto técnico é a recriação da sala precisa que nunca deixa de me impressionar. Porém a maquiagem erra feio ao envelhecer os personagens que continuam com suas faces joviais – os únicos que convencem são o casal Potter.

Uma série de fatores

As músicas são a alma de toda produção cinematográfica. Quando são feitas com muita competência, conseguem se fixar em sua cabeça. O mestre de conseguir este efeito é John Williams. Suas composições fantásticas conseguem fazer com que o espectador relembre das cenas que acompanhavam as músicas. Com isso, Williams fixou várias músicas-tema na cabeça dos espectadores de inúmeros filmes sendo as mais notáveis de “Indiana Jones”, “Star Wars”, “Tubarão” e “Jurassic Park”. Ele também criou outro tema único em “Harry Potter”.

Por conflitos de agenda, Williams teve que abandonar o posto de compositor da série depois do terceiro filme. Patrick Doyle foi o segundo compositor da franquia e Nicholas Hooper foi o terceiro. Alexandre Desplat assumiu o cargo nas duas partes de “As Relíquias da Morte”e compôs uma trilha memorável e emocionante. Várias de suas composições remetem as músicas dos filmes anteriores da série. Mas isso não quer dizer que Desplat não foi criativo em sua trilha. O compositor foi muito ousado orquestrar músicas tristes e melancólicas em um filme lotado de ação – é muito comum encontrar trilhas energéticas e pulsantes em filmes deste gênero. Entretanto, sua escolha foi sábia, pois o que acontece em Hogwarts é um evento bem depressivo.

Desplat prova seu talento ao ter sucesso em conseguir deixar tambores e violinos em completa harmonia em uma das melhores composições do longa. Algumas músicas que acompanham Voldemort recebem um caimento ameaçador e instável, além de contar com um toque de suspense. E outras, que seguem a batalha de Hogwarts,  soam incrivelmente épicas – é impossível não vibrar ou perder o fôlego na cena clímax do filme. Porém a música mais bela é a que acompanha a cena das memórias de Snape. A brilhante sucessão de instrumentos da orquestra emociona. No início, prevalecem suaves escalas crescentes e decrescentes da flauta que transparecem a passividade da cena, mas conforme a música progride, coros lentos de violinos revelam uma atmosfera triste casando muito bem com a cena.

É muito interessante notar que o compositor utiliza diversos instrumentos incomuns nas trilhas sonoras atuais. Ele esquenta as cordas das harpas, o metal de sininhos, flautas e trompetes, a garganta dos majestosos corais, entre vários outros. Mesmo com uma trilha fantástica, bem orquestrada e emocionante, a música de Desplat não consegue superar a força das lembranças que a música tema da série traz. Nas sessões que fui, pude escutar vários espectadores se lavarem sob suas lágrimas nostálgicas provocadas pela inesquecível trilha de John Williams.

567 minutes of David Yates                         

O aspecto mais original de toda a saga Harry Potter foi a mudança de diretores dos projetos. E todas as escolhas foram certas. Chris Columbus era ideal para iniciar a aventura do bruxo. Seus traços infantilizados e bobos conquistaram os pequenos espectadores. Depois veio o fantástico Alfonso Cuáron, o cara que definiu a forma que a cinessérie iria tomar. Os filmes tornaram-se mais sombrios e maduros após sua direção. Já Mike Newell garantiu um quarto filme explosivo e inquieto. E por fim, David Yates terminou o trabalho de gerações com adaptações resumidas, mas com forte apelo visual. Isso resultou em uma grande variedade nos estilos fotográficos, narrativos e musicais em cada filme.

Yates segurou suas pontas na primeira parte do filme. O diretor preferiu desenvolver lentamente os personagens com pouquíssimas, mas, recompensadoras, cenas de ação. Agora, na segunda parte, arregaça suas mangas e mostra todas as cartas que estava reservando para o aguardado grand finale da saga. O filme possui um ritmo muito bom que não permite que o espectador se distraia. Todas as explosões e pirotecnias ficaram guardadas para o final. A arquitetura das sequências agitadas é fenomenal assumindo descaradamente o posicionamento épico necessário. Além disto, Yates confere um trato dramático único a edição do longa.

Admito que não gostava muito do modo que Yates dirigia seus filmes, mas isto mudou quando eu conferi “As Relíquias da Morte – Parte 1”. E agora, gostei ainda mais do que vi. O cineasta mantém uma atmosfera de intensa tensão durante o filme inteiro. A ambientação perigosa é reforçada pelo silencio perturbador de algumas cenas. Outro ponto alto de sua direção é a maneira que ele consegue contar ótimas histórias a partir dos detalhes – a figura do dragão resume os parágrafos em que Rowling o descreve. Mais um aspecto original do diretor são os contrastes que cria constantemente. Por exemplo, o poder de destruição de feitiços delicados. Ele também é muito criativo na condução das cenas utilizando planos holandeses combinados com movimentos de câmera originalíssimos. Yates acerta ao inserir apenas um slow motion característico no filme inteiro aliada com a bela coreografia – a dimensão que a cena toma é indescritível.

Outro aspecto bem legal de sua direção é as inúmeras referências de filmes anteriores da série que Yates encaixa na composição dos cenários. É preciso estar muito atento, mas é bem gratificante reconhecer esses itens. São estátuas, criaturas mágicas, figurinos, objetos, entre várias outras coisas que o diretor coloca nos cenários. Ele até lembra a mitologia original da bruxaria ao inserir um alarme que lembra gritos de gatos. Ele também merece receber destaque pelo tratamento ideal com os atores.

Mas nem tudo é perfeito no último filme de Harry Potter. O diretor não consegue emocionar o espectador com algumas mortes que eram esperadas sendo que algumas possuem um acabamento artístico muito vagabundo, forçado e inverossímil. O que é difícil de compreender, pois ele consegue deixar as mortes de alguns personagens bem emocionantes e atuadas. Como Yates trabalhava apenas com a linguagem televisiva é comum notar vários enquadramentos em big closes. Alguns são muito bem feitos e originais, mas outros acabam prejudicando a atuação dos atores. O melhor exemplo disto é a cena do entrave final de Harry e Voldemort. Na imagem é possível notar que ambos estão de joelhos dedicando o resto de suas forças para sobreviver. E, assim, Yates perde a melhor oportunidade de transmitir a expressão corporal de Radcliffe. Felizmente, acerta ao enquadrar Fiennes no plano. Apesar de trabalhar muito com closes, o cineasta assume o gigantismo de várias imagens a fim de reforçar a abordagem épica do longa.

Tudo Termina

Tudo que é bom acaba. E depois de dez anos a lendária saga chega ao fim. “Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2”é um filme excelente. Ele não chega à perfeição por meros detalhes, entretanto, conclui a história de modo encantador e satisfatório. É difícil sair decepcionado após a sessão. Porém, mesmo que muitos tenham falado que não aguentam mais filmes sobre o bruxo, é impossível não sentir um nó na garganta quando os personagens se despedem pela última vez em um emocionante fade out. A crítica ficou bem longa porque senti a obrigação de me dedicar para entregar um texto minucioso sobre o filme, afinal eles compõem parte significativa da minha própria história. Acredito que meus amigos bruxos que  acompanharam episódios importantes da minha vida mereciam uma despedida a altura das alegrias que me proporcionaram. Pela última vez, o Hogwarts Express abandonou a plataforma 9 ¾. Agora ele não parte para Hogwarts, mas sim para a eternidade.


by Matheus Fragata

Crítica | Animais Fantásticos e Onde Habitam (Com Spoilers)

Obs: somente leia após assistir ao filme
Obs2: texto longo.

J.K. Rowling devolveu magia ao mundo. E que época mais propícia para a Warner marcar uma geração inteira com a adaptação do sucesso literário da já histórica inglesa revolucionária da literatura, assim como abalou profundamente o modelo de negócios de filmes licenciados. Um novo milênio surgia e já em 2001 teríamos a primeiríssima aposta em encantar o mundo com A Pedra Filosofal.

Não por mera coincidência que a Warner traria também, naquele ano, a adaptação de Senhor dos Anéis. Estava renascendo um espaço de gênero que havia sido esquecido nos anos 1980. A fantasia épica retornou em sua melhor forma, plantando novos sonhos para uma geração que veio ao sol em uma era profundamente lógica, tecnológica e científica. Nela, sofreríamos uma revolução da extensão do homem de modo nunca visto antes.

Então, esse grande contraste fantasioso que dominou os cinemas dos anos 2000 eram uma bela resposta a tudo isso. Nada mais óbvio do que afirmar como o experimento da Warner foi realmente algo inédito. A geração de 1994, 1995 foi uma das mais fiéis a saga do bruxinho, pois tivemos a oportunidade de crescer quase que no mesmo compasso de idade que os personagens em cada novo filme. Foi algo verdadeiramente mágico.

Mas mesmo para quem sempre acompanhou, a conclusão da saga em 2011 apontava que não seria a última vez que veríamos aquele universo onírico. Obviamente, perder uma fonte de renda tão expressiva como eram os filmes Harry Potter não estava nos planos da Warner e J.K. Rowling já dava as pistas certas para os produtores seguirem buscando atender uma demanda de mercado no tempo de hiato correto: 5 anos.

Harry Potter era apenas a ponta de um universo expandido com sua própria história e diversos personagens interessantes que poderiam ser explorados em obras cinematográficas. Animais fantásticos e onde habitam foi a escolha mais óbvia, de título mais atraente, para fazer Rowling retornar ao seu mágico universo com histórias originais, mas dessa vez desenvolvendo tudo como roteirista.

E, pois, bem, Animais Fantásticos é um excelente retorno da mitologia Harry Potter. Nos cativa justamente por ser um prequel contando as histórias que ocorreram muito antes de Voldemort se tornar a ameaça suprema do mundo bruxo. Nos anos 1926, havia apenas problemas corriqueiros como feitiços defeituosos e criaturas fantásticas perigosas fujonas que colocariam a vida de uns trouxas em perigo. Porém a aventura de Newt Scamander reserva descobertas de ameaças muito mais inteligentes do que a bruxandade esperava.

Partiremos então para a análise com spoiler, nós já recomendamos e discorremos sobre o filme aqui e aqui. Caso não queira saber nada, desaconselho a leitura, mas se já tiver visto e esteja procurando uma análise mais aprofundada da obra veio ao lugar certo.

A fantástica mente de J. K. Rowling

Acompanhamos a chegada de Newt Scamander à Nova Iorque em 1926 trazendo consigo sua maleta mágica repleta de criaturas fantásticas, umas menos amistosas que outras. No caminho para seu destino, se depara com o discurso dos fanáticos Segundo Salemianos, uma organização controlada por uma mulher que carrega profundo ódio contra os bruxos, pregando sua exterminação completa.

Ali, após uma pequena confusão com um no-maj – a designação americana para trouxa, Newt se dá conta que um Pelúcio, uma criatura fascinada por objetos brilhantes, fugiu de sua mala se dirigindo diretamente a um banco. Correndo para resgatá-la, Newt se atrapalha e troca de malas com o mesmo no-maj, um homem rechonchudo chamado Jacob Kowalski.

Desavisado, o pobre trouxa abre a maleta de Newt, libertando diversas criaturas que tocam o caos em Manhattan. Por sorte, o herói encontra Jacob, mas, nessa altura, ‘Tina’, uma ex-aurora do Macusa, já está envolvida com o caso de Newt e trabalhará com a dupla para resgatar todos os animais antes que mais vidas sejam postas em risco. Entretanto, não são apenas animais fantásticos que ameaçam a segurança da cidade. Um poder oculto e cruel agora despertado, trará muito mais desafios para o grupo.

Obviamente, este não é o primeiro passeio de J. K. Rowling em narrativas cinematográficas, mas se trata sim de seu primeiro roteiro feito exclusivamente para os cinemas. Uma grande novidade de uma excelente contadora de histórias. E como é a estreia da autora inglesa em terras novas? Com toda a certeza, posso afirmar que sim, é uma ótima estreia.

Rowling novamente introduz o mundo mágico para o espectador. Não é à toa que Newt, britânico e ex-aluno de Hogwarts, vai para a América. A intenção de Rowling é expandir os conceitos anteriormente vistos em Harry Potter, já que ela não desgrudava o ponto de vista do personagem. Aqui veremos como o mundo mágico funciona, com suas leis e diversas burocracias, sob a legislação do Congresso de Magia dos EUA – Macusa.

Nesse sentimento expansivo justamente se encontra a fisgada para nos encantar novamente. Além da brilhante sacada de mostrar um universo pré-Voldemort e da Guerra Bruxa, concentrando em males menores do início do século XX, nos anos loucos em plena Manhattan em ebulição expansionista enquanto a aura da Grande Depressão avança, além da situação absurda da Lei Seca da época – Gnarlak, sua figura “alcaponesca” e seu bar de jazz é uma representação dos buracos ilegais que vendiam bebidas alcoólicas na época. É um contexto histórico frio, de calmaria, perfeito para inserir a mágica história de Newt Scamander.

Mesmo que Rowling não se aprofunde muito nesse conceito de mundo pós-guerra e pré-crise, seu filme tem uma proposta completamente diferente como já foi explicado. Uma das grandes novidades de sua técnica é a liberdade de ponto de vista. Na saga Harry Potter, raríssimas vezes acompanhávamos o núcleo antagonista, independente da visão do herói – quando acontecia, era justificado através da oclumência.

Aqui não somos restritos aos heróis. O espectador tem mais poder de conhecimento em Animais Fantásticos mesmo que ainda haja um grande mistério pairando sobre esse núcleo. Temos Percival Graves, um personagem mal resolvido na lógica da trama, mas de uso importante para mover o lado antagônico da obra. Ele procura por uma criança de imenso poder e conta com a ajuda de Credence, um dos garotos adotados pela fanática Mary dos Segundos Salemianos.

Mesmo pegando uma temática forte que flerta com a intolerância, preconceito, abusos físicos e psicológicos e que faz referência direta aos julgamentos de Salem e da perseguição de bruxas no século XVII, os antagonistas são bastante esquecíveis – problema próximo ao que havia em A Pedra Filosofal. Não fosse a competência de Ezra Miller em tornar a figura de Credence em uma criatura tão sofrida, seria um núcleo facilmente esquecível.

Miller anda curvado, com olhares sempre congelantes de profunda melancolia e pavor, além de manter postura rija adequada. Onde Rowling acerta no trato do personagem é justificar bem as ações feitas pelo Obscuro que ataca Manhattan. Como o Obscuro na verdade é o próprio Credence, ele ataca justamente quem o maltrata o que, obviamente, mantém o fio narrativo bem coeso no quesito da motivação do personagem. Afinal ele é um adolescente reprimido, abusado e infeliz que só enxerga a raiva para canalizar sua magia.

Rowling é competente nesse didatismo para explicar o que raios são obscuriais, conceitos novos até mesmo para veteranos da franquia. Ao dizer que se trata da supressão de toda a magia existente em uma criança amedrontada, ela tenta fazer de Credence em um Harry às avessas. Um bruxo que nunca recebeu sua carta para Hogwarts e que, por meio de um lar insalubre, aprisiona sua magia para sobreviver.

Essa é uma das grandes reviravoltas do filme, pois Rowling faz de tudo para que o espectador creia que o obscuro seja outra pessoa: a irmãzinha sinistra de Credence, Modéstia. É um trabalho bastante similar à Prisioneiro de Azkaban, onde Rowling também condicionava a opinião do espectador ao apontar tantos dedos para Sirius Black ao acusá-lo como vilão. É o mesmíssimo conceito, porém mais interessante por tratar-se de uma criança que não possui intenções malignas. Clássico jogo do vilão mal compreendido.

Colocar Credence justamente no ambiente que prega a destruição completa de sua natureza é um jogo inteligente de tornar o personagem complexo em poucas cenas. Poder de síntese excelente. Porém, enquanto acerta aqui, Rowling erra bastante com Percival Graves, encarnado pelo ótimo Colin Farrel que busca inspiração no seu papel de In Bruges.

Rowling falha em dizer quem é Graves, qual seu ofício e onde ele se encontra depois que é revelado, no melhor estilo de A Pedra Filosofal e Cálice de Fogo, que o personagem na verdade é Gerardo Grindelwald, interpretado por Johnny Depp. São muitas pisadas na bola com esse personagem, mas, ao menos, ela é competente em expor sua motivação clichê em poucas frases. Novamente, teremos um combate clássico sobre visões extremas da mesma opinião.

Xavier vs. Magneto. Dumbledore vs. Grindelwald. Mesmíssimo conflito. Sobre a escolha da não supremacia da bruxandade sobre a humanidade trouxa.

Também é curioso notar que Rowling insere, timidamente, como diversas políticas do Macusa são retrógradas em relação ao trato com os no-majs – algo similar ao que prega Voldemort, aliás. Mas por se passar em 1926, é evidente que Rowling está explorandoo progresso nas leis bruxas assim como há progresso no mundo trouxa.

Enfim chegou a hora de comentar sobre o outro lado da moeda, o quarteto protagonista encantador de Animais Fantásticos.  Nesse núcleo inteiro, mesmo que muito divertido e orgânico, Rowling abusa demais de conveniências narrativas. Coincidências narrativas e o uso diversos animais para safar os heróis de diversas encrencas são recursos utilizados a todo momento.

Enquanto é inteligente ver os bichos se portando de modo mais ativo em favor da narrativa do que antes, também é complicado notar o uso e abuso para solucionar as poucas burocracias do roteiro. Então realmente não há nada que seja gravamente ruim na narrativa criado por Rowling.

Ela acerta bastante com os seletos diálogos do grupo que mimetiza um pouco da personalidade do trio de Harry Potter. Como a narrativa se move rapidamente, exigindo as sequências divertidas das capturas dos animais fujões, são poucos os momentos onde os personagens são devidamente explorados, incluindo oferecendo algum panorama de backstory.

Em diálogos oportunos, descobrimos um pouco mais da vida de Newt, do passado de aurora de Tina e dos sonhos de Jacob, a principal novidade por ser um no-maj que cai diretamente para uma realidade que desconhecia até então – mais uma vez temos um longa com a temática da Caverna de Platão presente como força narrativa.

Desse rol de novos personagens os que se destacam são Jacob Kowalski e Queenie, a irmã bela que lê mentes de Tina. Rowling acerta com excelência nos diálogos entre os dois e na figura de Jacob em geral –auxiliado muito pela excepcional verve cômica de Dan Fogler.

Boa parte da história se concentra na busca de Newt pelas criaturas que fugiram, enquanto tenta lidar com Tina que quer capturá-lo a todo custa para restaurar seu cargo como aurora. Como disse, as motivações são bem definidas para cada um deles enquanto Rowling apresenta, aos poucos, fagulhas de romances que guiarão os próximos filmes. De costume, o romance coadjuvante e proibido entre Jacob e Queenie diverte muito mais por ser baseado em personagens muito carismáticos.

Com Newt e Tina, os dois de persona mais retraída, tímida e corajosa, há outro desenlace de atração entre perseguido e perseguidor. Novamente, jogos clássicos de atração muito genuínos do cinema dos anos cinquenta e seus melodramas. Também gosto de apontar como a roteirista é feliz em definir, na mágica sequência da maleta, o amor de Newt, o magizoologista, pelos seus animais transmitindo assim uma boa dose de mensagens sensatas sobre ecologia e preservação de fauna. É brilhante explorar esses conceitos de uma comunidade bruxa ainda não tão sábia como ela pensa que é.

Apesar do pouco desenvolvimento, Eddie Redmayne configura um charme esquisitão em seu Newt Scamander mesclando tiques e andares curvados vistos em A Teoria de Tudo e A Garota Dinamarquesa. Inclusive, em uma das melhores sequências do filme, Redmayne consegue criar uma dança ritualística ridícula que não chega nem perto de ultrapassar o limiar da vergonha alheia. Tenho a impressão de que improvisou toda a impagável coreografia. É uma atuação ótima condizente com a psique retraída e fofa do personagem. Há enorme potencial aí, basta explorá-lo mais a fundo, apresentando conflitos mais pertinentes ao personagem nos próximos longas para exigir mais destaque ao protagonista que acaba eclipsado pela performance de Fogler.

David Yates e o regresso ao mundo mágico

Quando anunciaram David Yates como diretor de Animais Fantásticos, admito que torci o nariz. Já não gostava do trabalho dele em A Ordem da Fênix e custou para eu reconhecer o quanto havia crescido nos outros três filmes restantes. Porém, ante minha antipatia pela técnica dele, admito que se trata de uma das melhores direções que ele já fez em sua carreira.

Entendendo a proposta de Rowlin, Yates molda a obra para conversar com os melodramas clássicos da década de cinquenta. Mas seu melhor acerto reside na concepção visual e na encenação de todo o núcleo que acompanha o Segundo Salém. A inspiração de casting e figurino não poderia ser mais óbvia: A Tara Maldita e A Colheita Maldita.

Ao pegar essa personificação tão forte de conceitos imagéticos já tão abundantes no imaginário popular, as crianças que vivem na tutela de Mary rapidamente refletem esse conceito. O legal é que Rowling faz uma subversão, tornando o espectador preconceituoso ao já presumir que há algo de maligno e maldito com as sinistras crianças.

Aqui também há melhor trabalho da fotografia, já revelando nítidos contrastes de cor e esquemas de iluminação entre os núcleos antagônicos. Nos que acompanham o Segundo Salém, Yates e o diretor de foto, Phillippe Rousselot, apostam em planos fixos, de cor cinzenta quase monocromática castigada por luzes duras que geram sombras bem destacadas no cenário sintetizando toda a atmosfera opressiva do lugar. O mesmo se dá nos encontros quase paternais entre Graves e Credence, marcados por silhuetas que os envolvem em segredo.

Com os protagonistas, mesmo que a paleta de cores seja também opaca variando em tons marrons, a iluminação é bem mais branda e delicada. Um bom momento de iluminação excelente é concentrado quando o quarteto se reúne para jantar.

Em maior parte, Yates comporta a câmera no jeito clássico dele, a movimentando quando pode. Por outras vezes, tem melhores momentos de decupagem quando o texto exige maior deslumbre visual para encantar o espectador, resgatando aquele sentimento nostálgico das saudades daquele universo. Isso acontece diversas vezes. As mais claras são quando Tina leva Newt para o Macusa pela primeira vez – destaque para a maravilhosa trilha musical de James Newton Howard nesse segmento, e quando temos toda a sequência de apresentação de Queenie, onde ela utiliza magia para realizar diversas tarefas domésticas. Aliás, a decisão de colocar um enorme relógio indicando o grau de periculosidade do contato do mundo humano com o da bruxandade remete diretamente ao famoso doomsday clock que indica os “minutos” antes de situações catastróficas se irromperem.

São cenas que deixam o peito mais quente e, portanto, indicam como Yates está calejado nesse universo conseguindo resgatar sensações tão boas. Logo, se trata de uma escolha muito adequada, além da concepção visual, mesmo que de época, lembrar vagamente os trabalhos feitos em As Relíquias da Morte. Portanto, o espectador tem uma boa conexão visual entre as franquias.

Aliás, no quesito ação, Yates ainda é excelente conseguindo gerar uma intensa sequência de destruição e reparo em Manhattan durante o clímax – uma pena que a concepção visual do obscuro seja tão batida e reutilizada. Ao menos, todos os planos da reconstrução das áreas afetadas pela destruição são fantásticos.

Não há como não mencionar a excelente sequência da apresentação do interior da maleta de Newt, quando Kowalski é convidado para entrar – assim como o público.

É o melhor momento do filme que exibe o desempenho mais criativo de Yates até então na franquia. No uso correto de muitos planos-sequência cria uma encenação inteligente mostrando novas criaturas – feitas com design ótimo e efeitos visuais muito bons, a todo o momento para nos encantar ainda mais. Literalmente, um cena mágica que, graças a concepção visual inteligente, mesclando diversos habitats e cores vívidas no recinto, transmitem toda a sensação de refúgio e segurança que os animais sentem no santuário.

Porém, não nego que é possível um futuro desgaste caso Yates dirija todos os filmes planejados para a franquia. É nítido que esse filme é bastante deficiente no uso de simbologias inspiradas ou de metáforas visuais ricas. A única dica visual que ele oferece é enquadrar tanto Grindelwald e Graves do mesmo modo em suas apresentações já oferecendo a pista de que são a mesma pessoa. Para os fãs, o mistério é facilmente descoberto quando o vilão entrega o símbolo das relíquias para Credence.

Aliás, seria injusto terminar os parágrafos dedicados a Yates sem mencionar o trabalho estupendo em relação a timing cômico. Lembro-me bem de como a sequência de Felix Felicis em Enigma do Príncipe era impagável de tão divertida, porém a atmosfera tão depressiva dos últimos filmes não possibilitava um trabalho concentrado em comédia.

Aqui em Animais, ele finalmente pôde brilhar, pois o filme é muito engraçado. Os alívios cômicos funcionam espetacularmente, além do texto de Rowling sempre encaixar a dose humorística equilibrada em cada ato do filme. Boa parte das gags dependem do talento de Yates em traduzí-las para imagens. Ótimas sequências como as duas capturas de Pelúcio, da comédia non-sense do Zoológico do Central Park até mesmo com o flerte apaixonado das duas duplas.

Outro ponto que faço questão de frisar é o clima tão inspirado em Casablanca para o desfecho dos dois romances. Seja com Newt partindo de volta para o Reino Unido ou com Jacob se entregando para a chuva encantada com poções de esquecimento – uma das atitudes altruístas que ajudam o personagem a crescer muito. São acenos singelos ao melodrama gostoso dos anos cinquenta que casam com perfeição para conferir essa atmosfera peculiar da obra.

A Magia está de volta

É um prazer notar que Animais Fantásticos se trata de um ótimo filme, contrariando as baixas expectativas reservadas para seu lançamento. Apesar de Rowling abusar das conveniências narrativas e tropeçar ao deixar um buraco em seu roteiro, ela consegue trabalhar muitíssimo bem a maioria dos conceitos propostos mantendo a integridade de sua obra, por muito pouco que não se trata de um roteiro redondo.

Também é bem nítido que o público desse filme ainda é o mesmo que cresceu com os livros e filmes Harry Potter. Para crianças novas, talvez não se trate de uma ótima dica, mesmo contando com uma estrutura linear bem simples, de fácil entendimento, além do carisma dos animais diversos e dos personagens cativantes. Talvez haja uma falta de entendimento maior nesse universo para os novatos, o que pode acabar incomodando, mesmo que a história seja forte o suficiente para entreter.

Entretanto, para os órfãos da saga, não há dica melhor. Yates, Rowling e o fantástico elenco conseguiram trazer a magia de volta aos cinemas. E lhes afirmo, já estava mais que na hora do consagrado retorno da franquia mágica que deixou muitas saudades quando partiu da encantadora plataforma 9 ¾ há cinco anos. Querendo ou não, é impossível ficar indiferente tamanha magia que esse filme carrega.

Animais Fantásticos e Onde Habitam (Fantastic Beasts and Where To Find Them, EUA/UK - 2016)

Direção: David Yates
Roteiro: J.K. Rowling
Elenco: Eddie Redmayne, Katherine Waterston, Dan Fogler, Colin Farrell, Ezra Miller, Jon Voight, Alison Sudol, Carmen Ejogo, Johnny Depp
Gênero: Aventura
Duração: 133 min

https://www.youtube.com/watch?v=ViuDsy7yb8M


by Matheus Fragata

Harry Potter continua sendo uma franquia lucrativa - Foto: Warner Bros.

Crítica | Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban

Obs: contém spoilers. Texto longo.

Eu juro solenemente não fazer nada de bom

A audácia marcou a produção do terceiro episódio da franquia Harry Potter nos cinemas. Rowling conquistou o mundo literário em 1997. Não pouco depois, em 2001, conquistaria os cinemas e uma geração inteira de fãs, além de calcar um novo modelo de negócios copiado até hoje sem um substituto digno da qualidade cinematográfica da cinessérie.

O amadurecimento, enfim, deu as caras na saga do bruxo mais amado do cinema. Depois de dois ótimos filmes, o anúncio da saída de Columbus da direção pode ter deixado alguns um tanto aflitos, pois em 2004, Alfonso Cuarón não era um nome muito conhecido tendo trabalhado apenas em um projeto infantil, A Princesinha.

Entretanto, a escolha da Warner pelo mexicano não poderia ser mais acertada. O cara entregou o melhor filme Harry Potter que temos até agora e terei o prazer de lhes explicar o porquê. Então se acomode, fique tranquilo e prepare-se para uma boa leitura, afinal é um privilégio discorrer sobre um filme tão inteligente como este.

Tempos de mudança

Harry está com 13 anos, morando com os destetáveis Dursley. Sua rotina fugaz sofre uma reviravolta com a chegada de tia Guida, uma senhora mais desprezível que toda a família-trouxa aglomerada em um espaço apertado, com fome, sono e sob um calor escaldante.

Em mais uma discussão acalorada sobre a memória de seus pais, Harry acaba inflando a tia Guida, a condenando à uma vida flutuante. Possuído por raiva, o adolescente abandona a casa dos Dursley e se dirige ao Caldeirão Furado – que fica em Londres, importante ressaltar. Antes de adentrar o noitibus andante, Harry observa uma figura nada amistosa se escondendo entre os arbustos, o observando.

Retomando seu contato com o mundo mágico, o jovem bruxo reencontra seus grandes amigos Rony e Hermione discutindo sobre o rato Perebas e o gatinho que o tenta caçar incessantemente. Lá, Arthur Weasley o alerto sobre a fuga de Sirius Black, o primeiro detento de Azkaban a ter conseguido fugir do local maldito e isolado. Black foi um amigo do casal Potter que vendeu a informação para Voldemort descobrir onde estavam escondidos. E sabendo da existência de Harry, Black fará de tudo para matá-lo em tributo ao Lorde das Trevas.

O clima de retorno à Hogwarts é sombrio, depressivo e implacável. Ignorando os conselhos de todos, Harry volta para a escola mágica, porém, dessa vez enfrentará perigos ainda mais ameaçadores graças à presença dos guardas desalmados de Azkaban, as criaturas chamadas de Dementadores, que possuem voraz apetite pelo espírito forte de Harry Potter. Os desafios do ano letivo nem chegarão perto ao sentimento real de ameaça que trio enfrentará no terceiro ano em Hogwarts.

O horror intransponível da adolescência

Se podemos apontar o principal discurso de Prisioneiro de Azkaban, em mais uma execução exemplar de Steve Kloves no roteiro, é sentir pela primeira vez o peso da enorme responsabilidade que recai sobre os ombros de Harry. Isso muito tem a ver com a chegada de seu 13º aniversário. A entrada pela adolescência denotada pelo número místico é algo importante para diversas culturas. Marca sim um pré e pós o ritual da fase que flerta com a idade adulta, mas que ainda corre para os pais em busca de amparo e proteção.

A mudança já é sentida por uma perturbação básica no ritual inicial dos filmes da saga. Harry combate ativamente, pela primeira vez, os abusos cometidos na casa Dursley. Ao contrário de A Pedra Filosofal e Câmara Secreta, o protagonista não se acovarda ou se resigna diante do conflito. Ele segue diretamente para o combate com a tia Guida, pouco se importando com as consequências. Antes, inapto e angustiado, esperando o resgate. Agora, movimentado, cometido pelos impulsos emocionais da adolescência como a raiva e a inconsequência.

É aí que já vemos os acertos de Alfonso Cuarón com o duro contraste entre o ambiente hostil, mas ainda seguro da casa Dursley, com as ruas mal iluminadas, úmidas, abandonadas e silenciosas. Ali vemos Harry completamente desamparado. Eis o 1º dos inúmeros choques de realidade que o protagonista tomara nesta aventura, menos mágica e mais perigosa, humana.

A questão de que esse longa trará muita movimentação já é abordada no próprio título de abertura do longa. Sob o efeito catártico do Lumus Maxima, o letreiro “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” se movimenta altivamente.

O flerte com a independência logo se arrefece no momento que chegamos ao Caldeirão Furado. Ali, se inicia outro trabalho presente no texto inteiro de Kloves, algo bem inteligente. Ao longo de toda a aventura, teremos alternâncias, quase matemáticas, entre momentos felizes e de onirismo impossível contrastando com sequências que jogam, cruel e violentamente, o protagonista para a realidade de que ele ainda é um garoto, de certa forma, amaldiçoado e, portanto, seus desafios levarão a caminhos muito tristes até a conquista do triunfo – como nós bem sabemos, isso é comprovado pelo restante dos outros filmes.

Após ser confrontado a respeito do uso de magia fora de Hogwarts (negativo), Harry reencontra seus amigos (positivo), porém, pouco depois, Arthur o puxa para uma conversa avisando que Black irá persegui-lo e mata-lo (negativo). Então retornam características do texto que novamente denotam a mudança de tom, anteriormente mágico e humorado, para esse sombrio e opressivo.

Qual melhor jeito de mostrar como Hogwarts não está segura tornando a clássica sequência da viagem do trem, um ambiente tão vivo e colorido, em uma verdadeira sequência de horror e desolação? Pois é exatamente nela que temos a introdução de duas peças-chave da narrativa: os dementadores e o Remo Lupin, o novo professor de defesa contra as artes das trevas – o cargo sempre rotaciona na saga como sugestão de que o mal é uma entidade muito poderosa a ponto de expelir sempre o patrono que, supostamente, deveria ser o porto seguro dos alunos.

A partir disso, o roteiro se assume nesse enorme vai-e-vem entre o positivo e o negativo, na lembrança que Harry estará em constante perigo, sempre. Outra sequência clássica é alterada, mais sóbria e menos feliz, apresentando um novo Dumbledore. Com a morte de Richard Harris, houve uma dor de cabeça para encontrar alguém que sustentasse o grande trabalho do britânico.

Em boa decisão, Michael Gambon entra em cena, já captando as mudanças de ares propostas por Cuarón e da exigência do texto de Kloves. Gambon encarna um Dumbledore um tanto quanto menos amistoso, mais rígido e enigmático. Novamente, outro indicador de maior independência para Harry neste terceiro ano. Mesmo assim, Gambon acerta quando o papel requer mais afeto com o trio de protagonistas.

Kloves, apesar de mais enfático no lado sombrio de seu texto, dá folga a Harry em algumas sequências que marcam o humor tão sutil do filme. Outra boa característica do filme é seu flerte com a nova disciplina, ‘Adivinhação’, marcada pela presença genial de Emma Thompson como a profa. Trelawney.

Cuarón e Kloves trabalham intensamente com diversos foreshadowings para oferecer dicas de que a narrativa brincará com o tempo, não só denotando a mudança e amadurecimento, mas sim como parte ativa para o desenrolar da trama. Muito disso marca o tom leve do filme com as constantes piadas de Rony se espantando com a presença-surpresa de Hermione em diversas classes que ela não poderia cursar, afinal batiam com o horário de outras matérias.

Essas premonições também podem ser auto-explicativas como tudo que envolve o Sinistro, Sirius Black. Outras já são mais visuais, requisitando a acuidade imagética de Cuarón como as pegadas de Harry na neve enquanto ele caminha para Hogsmeade que logo se tornam pegadas voyeur do Mapa do Maroto – outro artefato mágico que pertenceu ao pai do protagonista que retorna para suas mãos.

Com a narrativa tão poderosa em tantas coisas, o que sobra para o trato dos personagens? Muita coisa, acredite. Com Harry, muito já foi explorado no texto, sobre a crescente mudança de atitude, de pinceladas claras de isolamento, da subversão de sequências anteriormente alegres e do primeiro contato com a prospecção de um futuro mais zeloso com Sirius Black, um tutor afastado injustamente. Novamente vemos ele lidar com a dor de outros personagens como Hagrid e Lupin, além de ter o contato valioso sobre um pouco mais do passado de seus pais.

Nesse longa, Rony e Hermione são um pouco mais apagados, reforçando a sensação de isolamento proposto pelo roteiro e direção. O legal é a inversão do jogo visto em Câmara Secreta. Dessa vez é Rony quem fica acamado, permitindo maior interação entre Hermione e Harry no clímax do filme. Em tom de mudanças, quem mais se destaca é Emma Watson mostrando um lado menos correto e chorão de Hermione, levando a personagem a ser mais proativa na ação do longa.

Até mesmo com Remo Lupin, há uma bela síntese entre a boa e a má natureza do homem. Dividido entre razão e instinto, além da dor em causar morte e destruição sem intenção. Lupin sabe que é refém de si mesmo e projeta o afeto que tinha por Lily em Harry. Logo todas as cenas com os dois personagens são excelentes e profundas, com diálogos bem construídos. O tema do foreshadowing retorna com o personagem ao encarar o bicho-papão, outra sequência bem enfática sobre o contraste da descontração vs. perigo real e imediato.

Assim como tantas outras coisas, obviamente que os dementadores também possuem sua própria simbologia nítida no longa. A representação é clara: os seres malditos são a personificação do estado depressivo/deprimido de muitos personagens como Harry, Lupin, Sirius, Pettigrew, Hagrid e Bicuço. Criaturas melancólicas e esquálidas que só removeram o encantamento de um lugar encantado.

Se não esperávamos mais surpresas no texto de Prisioneiro de Azkaban, eis que Rowling e Kloves entregam uma peça de terceiro ato absolutamente fantástica: os dois clímaces da obra. O conceito de viagem no tempo encanta pela pouca burocracia que foi apresentada aqui. O mais interessante, o uso não tem a finalidade de corrigir os erros dos personagens, mas sim em realizar mais ações no mesmo período de tempo.

A graça do primeiro desfecho se dá na grande reviravolta que marca o desenvolvimento de Sirius Black. É a total subversão dos conceitos criados até então, mostrando que o antagonista nada mais é do que um injustiçado que sofreu por décadas em Azkaban. O diálogo entre Lupin, Harry, Sirius, Snape, Hermione e Rony na Casa dos Gritos é excelente por ser curto, trabalhando mais com a “mostração” das evidencias do que uma longa exposição de diálogos. Excelente ponto em fazer o espectador perder completamente seu chão assim como com Harry, afinal a visão dos dois foi muito bem manipulada em toda a história.

Com essa jogada, o roteiro resolve seus próprios deus ex machina que marcam o 1º clímax como a desistência de Lupin perseguir a dupla ou da conjuração do poderoso patrono. Outro bom conceito bastante aprazível é um trabalho de simbologia ainda mais elaborado com a libertação de Sirius, Bicuço e Harry. Os dois representam todo a esperança de liberdade que o bruxo possui, então a decapitação é traumática justamente por isso. A libertação ocorre com a conjuração do patrono, anteriormente projetado como um resquício infantil da psique de Harry ainda esperando uma ajuda conveniente (pedra filosofal, fênix e espada de Grifinória) na ressurreição do pai. É um belo momento de catarse e superação onde Harry caminha definitivamente para ser o herói de sua própria história.

O homem que mudou o Jogo

Se tudo isso que explorei é de fácil interpretação, foi porque o trabalho da direção não foi nada menos que perfeito. E realmente foi. Cuarón chutou o balde com sua direção impecável em traduzir o longa para tocar diversos espectadores de todas as idades. A escolha era uma das mais acertadas para estabelecer a adolescência dos personagens devido o talento de Cuarón em E Sua Mãe Também.

Porém, mesmo que o diretor trabalhe bem com os conceitos de amadurecimento, de fazer cada um ter seu próprio estilo usando vestes normais ou customizando os uniformes para o uso dos alunos, indicando um clima mais despojado, seu verdadeiro trabalho reside na magnifica encenação.

É muito raro encontrar qualquer sequência de Azkaban que seja completamente estática. O diretor sempre está movimentando sua câmera para lá e para cá, com extrema sutileza elevando o conceito de câmera invisível, além de ter elevado o padrão de realismo da saga para níveis nunca alcançados antes. São diversos planos-sequência com muitos efeitos acontecendo ao mesmo tempo conforme há toda a encenação – por exemplo, todas as cenas do salão do Caldeirão Furado.

O motivo da câmera se movimentar tanto também é para reforçar o tom de transformação que a narrativa exige, além de nunca sugerir um terreno seguro, revelando uma atmosfera de possível desconforto e desconfiança. Ora trabalha com bastante contemplação para as cenas estacionárias que exigem esse respiro para que os personagens tenham interações mais profundas.

Cuarón oferece o insight da mudança justamente na cena crucial da revelação que Black está atrás de Harry. Na encenação, Arthur isola Harry no canto do quadro, enquanto conversam debaixo do alambrado do Caldeirão. Nos pilares que emoldura a cena, há diversos pôsteres de procurado de Black, o colocando como um espectro que ronda Potter. No ótimo jogo de encenação, os pilares sempre separam Harry de seus pontos de segurança até quando Arthur o leva para o isolamento completo, na escuridão.

Enquanto o roteiro trabalha muito com o tempo e transformação, Cuarón, além de ter que ilustrar isso, também fica a cargo de desenvolver esse sentimento de isolação que aflige Harry, dele finalmente se tocar que o fardo de ser o Eleito é somente seu e encarar todas as terríveis passagens que isso o trará.

O diretor indica isso com a canção original Double Trouble, um aceno à obra de Shakespeare, enquanto avisa que algo de maléfico vem por aí – Voldemort.

Mesmo com tudo isso, ainda o que descrevi aqui é limitar o trabalho de Cuarón. O cineasta tem muito respeito por diretores-mestre da sétima arte. Ele faz questão de frisar isso. Spielberg é um deles. Repare na quantidade absurda de similaridades que há na sequência sombria onde os dementadores são apresentados com a introdução do Tiranossaurdo em Jurassic Park. Lhes garanto que não serão poucas. Inspirado em um grande mestre, Cuarón basicamente constrói a sequência mais horripilante que já tenhamos visto em um filme Harry Potter, provocando o primeiro enorme choque de atmosfera que ele representa.

Em outro momento, com mais sutileza, acena para Hitchcock com planos fechadíssimos de corvos voando histericamente assim como em Os Pássaros.

O trabalho é tão competente que temos momentos que emanam o verdadeiro significado de Cinema. Concentremo-nos no terceiro ato do longa, a partir do momento que Harry e Hermione voltam no tempo – também outra metáfora de desejo por parte de Harry em busca de amparo e tempos melhores. Assim que eles abandonam a enfermaria, passando pela torre do relógio, a câmera de Cuarón voa e atravessa os mecanismos do relógio até passar pelo vidro. Aqui, temos outra piscadela indicando que os personagens saíram do tempo e, portanto, fugiram das regras naturais.

Isso é confirmado logo quando a dupla fecha o loop, ao retornar para a enfermaria. Cuarón eleva a câmera no pátio e atravessa novamente o vidro e os mecanismos do relógio, agora indicando a normalidade de tudo, com o mecanismo girando no sentido natural. Sutileza e inteligência.

Outro grande momento se dá em diálogo entre Harry e Hermione, enquanto esperam toda a ação na Casa dos Gritos transcorrer. Antes da transformação de Lupin em um lobisomem esquálido, patético e choroso, Harry conta à Hermione que Sirius ofereceu a tutela novamente. Então ele divaga e sonha com uma vida romântica e bucólica com o primeiro contato real de família que teve.

Ali, a iluminação estupenda de Michael Seresin atinge a face direita dos personagens, porém assim que gritos começam a surgir, ela subitamente muda para o lado esquerdo, como se jogasse novamente Harry para a realidade inóspita e perigosa que vive.

Metáforas com espelhos, vidros, luzes, movimentação de câmera e até mesmo com diversas sequências fabulosas explorando a geografia de Hogwarts e indicando as passagens das estações através da folhagem do Salgueiro Lutador, são meios que o diretor utiliza para transmitir suas poderosíssimas mensagens.

Há tanto mais o que falar sobre a técnica de Cuarón que eu tornaria esse texto em um verdadeiro pergaminho digno das aulas de Snape. O que tento provar aqui é a vasta superioridade de linguagem e significância cinematográfica que o mexicano possui. Ele eleva Harry Potter para o estado de arte ao nos impactar e chocar de tantas formas possíveis – isso inclui aqui a rígida paleta de cores monocromáticas puxadas para tons neutros como variações de azul e cinza, abandonando completamente a saturação alegre vista nos anteriores.

A Magia do Cinema

Aqui, confio uma confissão. Na primeira vez que vi a Prisioneiro de Azkaban, tinha apenas dez anos. Naquela fase da vida onde não somos muito bem crianças, mas também nem chegamos perto de sermos adolescentes. Eu ainda aguardava com muito encantamento pelo terceiro título e estava completamente desligado dessa mudança completa que ele traria.

Logo, apesar das fortes emoções que o filme me proporcionou, eu tinha me convencido de que não havia gostado do filme, mesmo compreendendo sua história em totalidade – algo que sempre irei aplaudir o trabalho das produções Harry Potter em deixar os filmes tão compreensíveis para crianças pequenas, afinal eu já tinha visto os dois primeiros quando era ainda menor.

Hoje eu consigo reconhecer exatamente o motivo de eu não ter gostado na época enquanto confio nota máxima atualmente. Assim como Harry, antes de conjurar o patrono, eu não queria largar o encantamento ingênuo presente em Pedra Filosofal e Câmara Secreta. Não estava pronto para me desgarrar completamente daquela magia aventureira que flertava com o perigo mais sutilmente. Aqui fui confrontado com um universo pálido, sombrio e depressivo. Era um amadurecimento semiótico para o qual eu também não estava preparado.

Agora vejo isso como uma passagem até mesmo bonita em minha vida. Reconhecer a qual ponto um filme pode te marcar e ainda assim, nos recordarmos de sensações provocadas há doze anos. Cuarón e Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban não só me apresentaram, em outra adivinhação, as grandes dificuldades que a vida aguarda e que nós não temos as menores condições de negá-las, mas como também me educou cinematograficamente.

Se há algo que podemos afirmar em todos esses filmes Harry Potter é o excelente serviço que ele prestou e presta para diversas novas gerações em seus primeiros contatos, íntimos e honestos, com o cinema da mais verdadeira qualidade:

O verdadeiro Cinema.

Malfeito feito.

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (Harry Potter and the Prisoner of Azkaban, EUA/Reino Unido, 2004)
Roteiro
: Steve Kloves, baseado no livro de J.K. Rowling

Direção: Alfonso Cuarón
Elenco: Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson, Gary Oldman, Michael Gambon, Alan Rickman, Maggie Smith, Julie Christie, Timothy Spall, David Thewlis, Fiona Shaw, Emma Thompson, Richard Griffths, Robbie Coltrane, Tom Felton
Duração: 142 min.


by Matheus Fragata

Crítica | Snowden: Herói ou Traidor

“Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança. ”. A frase histórica de Benjamin Franklin, um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América, nunca fora tão atual como foi em 2013, ano da explosão diplomática que Edward Snowden causou ao revelar algo que todo mundo sabia, mas que ninguém tinha coragem de acusar: o governo te espiona a todo momento.

No caso, o governo americano, considerado o mais poderoso da Terra. Pensando na realização de Snowden, é interessante ver a presença de Oliver Stone em um projeto adaptando um acontecimento que poderia ter arruinado facilmente o governo democrata de Barack Obama – há um vídeo comparado o discurso do candidato vs. o discurso do presidente, tentando reparar todo o estrago causado por Snowden. Digo isso sobre Stone por causa de suas opiniões políticas sempre muito polêmicas alinhadas à esquerda no compasso ideológico.

Snowden claramente é um longa de pensamento pró-liberdade e contra o controle e expansão dos governos. Afinal, vendo Citizenfour, fica bem clara a posição do próprio Edward Snowden.

No filme, acompanhamos a história através de longos flashbacks que o protagonista, encarnado por Joseph Gordon-Levitt, conta à documentarista Laura Poitras e outros dois jornalistas nas suas sessões de entrevistas que dariam origem à matéria reveladora do The Guardian e também ao documentário Citizenfour que venceu o Oscar em 2015.

O roteiro de Kieran Fitzgerald e Stone então ficam nesse grande vai-e-vem entre os flashbacks e narrativa presente na maioria da obra. Nisso, há sim bom estabelecimento para entendermos quem é Edward Snowden e como ele acabou entrando em diversas agências de espionagem e segurança nacional dos EUA, trabalhando para a CIA, NSA entre outras empresas “terceirizadas”.

Já uma coisa que comentei em diversos outros textos é sobre o quão complicado pode ser analisar um roteiro que adapta uma história extremamente poderosa como essa. Inerente dizer que toda a representação simbológica de Snowden está presente no filme, mas o texto narrativo possui muitas fraquezas por justamente falhar na criação de conflitos. Ou seja, na ficcionalização da história de Snowden antes de chegar em Hong Kong para fazer a entrevista com Laura.

Há diversas tentativas em mostrar como Snowden é um gênio da computação e do raciocínio lógico – incluindo até mesmo uma metáfora recorrente e manjada da resolução de diversos Rubik Cubes. Através de cada novo emprego conquistado – algo que nunca é bem estabelecido, o filme apresenta novos personagens que expões diversos pontos de vista caricatos para justificar as medidas de “segurança” dos Estados Unidos pós 11/09.

Boa parte desses personagens são chefes de departamento onde o protagonista trabalha. Todo esse núcleo é para explorar o lado humano da narrativa enquanto tenta aplicar tensão crescente devido à paranoia de Snowden de crer que também é espionado enquanto descobre as medidas invasivas da privacidade do governo. Isso ocorre através de um incidente incitante bem absurdo e difícil de crer – boa parte dos problemas dessa cena recaem diretamente na direção de Stone.

Não ficando restrito ao núcleo de trabalho do protagonista, onde há investidas até mesmo em missões de espionagem um tanto bizarras, mas que também servem para apresentar tanto ao personagem quanto ao espectador as consequências diretas que a espionagem pode ter na vida de um cidadão, há também o núcleo romântico com a namorada de Snowden, Lindsay.

Novamente, romantizando a realidade, o roteiro busca interminavelmente por conflitos óbvios. Aqui, Lindsay é a perfeita antítese de Snowden. Ela, uma democrata, emocional, artista, da galera de humanas e descontraída. Ele, um republicano, matemático, lógico, rígido e tímido. Os dois se apaixonam perdidamente em um passeio no parque. Pois é, Narrativa Básica 101. Onde poderiam deixar a ficção mais atraente que a realidade, acabam apostando no padrão sem sal.

Além dos muitos empregos que começam e terminam sem muita explicação para o espectador, o relacionamento entre ele sofre diversos altos e baixos. Como o longa condensa muitos anos da vida do americano, é normal estranhar as elipses que delineiam o clima do namoro dos dois. Há bons diálogos com trocas de opiniões políticas e momentos românticos interessantes, porém, é tudo bastante telegrafado.

É evidente que um longa sobre espionagem e invasão de privacidade usaria esse tema como pivô de uma crise entre os dois e é justamente o que acontece. Infelizmente, essa impressão da ausência de nacos do filme é a que mais marca quando ocorre a típica briga, mesmo que tenha uma motivação genuína por trás disso tudo.

É o que falta nesse longa: investimento e desenvolvimento em seus personagens. Principalmente o arco da paranoia tinha que ser melhor trabalhado, investindo no filme mais tensão e emoção para te manter acordado – uma tarefa árdua, acredite.

O núcleo que acompanha a captação do documentário e do contato de Snowden com os jornalistas também não impressiona. Novamente, temos conflitos telegrafados como disputas editoriais dentro da redação do The Guardian, além de um temperamental Zachary Quinto interpretando Glenn Greenwald – que viu Citizenfour sabe que o ator errou feio na personificação.

Também, centrando mais falhas narrativas, nada é muito bem desenvolvido na relação de Snowden entre essas pessoas completamente estranhas nas quais ele confia sua vida. O que realmente segura Snowden é a atuação de Joseph Gordon-Levitt, claramente tentando uma vaga na Oscar race. Caprichando no sotaque, engrossando a voz, mantendo expressão corporal rija e tensa, de olhares repletos de pensamentos tenebrosos e preocupantes, além de feição exausta, Levitt entrega outra atuação de ponta confirmando sua fantástica versatilidade.

Graças aos seus esforços hercúleos, o personagem é muito afeiçoável e crível. Aplausos.

Se já a narrativa de Oliver Stone encontra-se bastante engessada, que dirá sua direção. Stone não modernizou sua linguagem, ainda recorrendo para um visual caricato e brega quando o personagem tem ataques de saúde ou até mesmo em metáforas visuais para lá de ultrapassadas. Pior, isso acontece justamente na sequência que deveria ser a mais ousada visualmente ao montar uma representação visual de toda a vigilância que NSA exercia sobre cidadão do mundo inteiro.

Em vez de criar algo original, recorre novamente ao clássico “olho que tudo vê” a la Grande Irmão de 1984, formado por imagens em mosaico. É uma bela síntese para a direção dele aqui. Bastante cansada e impaciente. Repare em tantas sequências onde Stone captura os mesmos planos de alguém digitando, das inúmeras telas, de códigos-fonte. São elementos visuais necessários, porém dentro de um filme de duas horas, a repetição é um crime.

Apostando em soluções visuais fáceis, em linguagem mastigada, se valendo da força da representação dos atos de Snowden. Infelizmente, a técnica não salva a obra de ser apenas boa, mesmo que sem graça. Até mesmo a trilha musical não foge do básico, emulando o imaginário comum para músicas de filmes sobre informática e suspense.

Ao menos, no clímax, Stone parece acordar um pouco e conferir mais energia na montagem para criar tensão na “fuga” de Snowden para Hong Kong. Também acerta na encenação dos ápices dramáticos seja nas brigas do casal ou de cenas mais tensas de espionagem e daquelas destinadas a paranoia de Snowden, inclusive, rendendo uma ótima comparação no uso de drones. São momentos ligados por um fio bem frágil, mas que rendem ótimas cenas.

Snowden é um longa que chama a atenção por retratar um acontecimento tão recente na nossa História. Um acontecimento de potencial gigantesco para derrubar governos, mas que só trouxe mesmo um desconforto diplomático. O longa parece sofrer exatamente dessa falta de reação, incredulidade e entusiasmo que marcou o desfecho do caso do espião americano.

Então, como havia dito, o mundo não mudou. Snowden apenas confirmou algo que todo mundo sabia e algo que quase ninguém se importa em preservar: sua privacidade e liberdade.

Possivelmente seja o mal deste século: ter ignorado a mudança quando a oportunidade surgiu. As pessoas se contentam com os brinquedos virtuais novos, ainda são espionadas – não é possível crer que tenham desmantelado tamanha estrutura depois da polêmica, e muitos ainda condenam a atitude do espião em berrar ao mundo que algo de muito errado está acontecendo.

Não se trata de manter a segurança nacional, não se trata de prevenir atos terroristas, mas sim de eliminar inimigos políticos, controlar e interferir com autonomias diversas de outras nações, controlar o mercado de valores, mudar o destino de milhões de pessoas e, principalmente, preservar a integridade de um governo colossal e silencioso que, muito provavelmente, te devorará com nenhum esforço.

O 11/09 respira até hoje e Snowden é apenas mais uma de suas muitas consequências.


by Matheus Fragata

Crítica | Capitão América: Guerra Civil - O MCU se divide em dois

Com Spoilers

A Concorrência Reage

O 11 de setembro de 2001 e seus desdobramentos geopolíticos não mudariam apenas a nossa percepção de segurança, incutiriam a paranoia com o terrorismo e alterariam significativamente as relações dos países do mundo inteiro. A data histórica mudou também a arte, seja na literatura ou no cinema. Filmes de ação se centrariam mais em assuntos como segurança nacional, guerra no estrangeiro ou teorias de conspiração. Nessa onda veio a trilogia Bourne, Guerra ao Terror, O Reino, Salt, Transformers, Cloverfield, Código de Conduta e até mesmo o primeiro Homem de Ferro.

Não somente o cinema de ação e espionagem foi mudado, mas também as histórias em quadrinhos que acompanharam de perto todo o fervo e o medo gerado pelas políticas pós 11 de setembro. Isso tange principalmente à Marvel que já apresentava uma linha editorial muito atenta aos acontecimentos do mundo real para transportá-los para as suas fabulosas histórias em quadrinhos.

Muito inspirada então pelos atos do governo Bush, a Marvel planejou a maxissaga de Guerra Civil com muito cuidado. Algo pensado desde A Queda: Vingadores quando o super-grupo se fragmentou. Passamos então por Guerra Secreta, um evento de invasão que remete diretamente à invasão americana ao Iraque sob a justificativa da existência de armas de destruição em massa em posse de Saddam Hussein. Já para resolver a participação dos X-Men em Guerra Civil, vem Dinastia M, uma saga que quase leva à extinção do grupo mutante no universo Marvel.

Já envolvendo a saga, mas através das tie-ins, a editoria já remove de jogo o Hulk e incute o sentimento de insegurança e danos colaterais com as ações assassinas do gigante esmeralda em Las Vegas. A ausência de Bruce Banner na saga é justificada pela excelente HQ Planeta Hulk. Com um Ragnarok destruindo Asgard, o Thor original também fica fora do conflito. Eliminando os dois seres superpoderosos e deixando Dr. Estranho meditar nas montanhas, a Marvel conseguiu sustentar uma base muito crível para uma de suas melhores sagas, senão a melhor.

Levando o debate político para uma esfera muito adulta, a casa das ideias retoma conceitos já apresentados em Watchmen: quem vigia os vigilantes? Seguindo nesse impasse, após eventos catastróficos de uma ação impensada dos Novos Guerreiros, a comunidade de mascarados é dividida entre ter a profissão regularizada ou não – algo que, de alguma forma, cerceia a liberdade deles agirem por si próprios confiando em seu próprio compasso ético e moral.

O próprio debate em torno do polêmico Ato de Registro é inspirado diretamente pela Lei Patriótica (USA PATRIOT Act), um conjunto de medidas sancionadas por George W. Bush imediatamente após o 11/09 que permitiu o Estado americano investigar quaisquer indivíduos que tivessem a menor suspeita de estarem envolvidos com terroristas sem qualquer autorização da Justiça. Algo que obviamente põe em risco às liberdades civis da população.

Ainda alinhado ao espectro político e também aproveitando os desdobramentos de Guerra Civil, a editoria ainda conseguiu extrair mais histórias de cunho político como Invasão Secreta que toca o forte sentimento de paranoia com o inimigo vivendo em seu próprio território, além de Reinado Sombrio para enfim se afastar mais de temas realistas, próximos aos leitores, com Era Heróica – uma fase que também é relacionada com o mandato de Barack Obama na presidência.

Toda a saga Guerra Civil das histórias em quadrinhos foi algo pensado com meticuloso cuidado, totalmente antenada com as atmosferas políticas conturbadas do país servindo muito bem como um retrato histórico da primeira década do novo milênio. Quando a Marvel Studios anunciou Guerra Civil em 2014, gerou uma grande expectativa para ver já algum indício de cisão entre Tony Stark e Steve Roger em Era de Ultron, algo que não aconteceu. Agora, há poucos dias, os irmãos Russo disseram que o anúncio de Batman Vs Superman certamente colaborou para que a Marvel se movesse e pensasse em colocar seus principais heróis em rota de colisão rapidamente nas telonas. Visto que o anúnico de Guerra Civil se deu quinze meses depois de BvS, eu não duvido disso. Nada mais justo, afinal a Warner/DC também se moveu para construir um universo cinematográfico por conta dos trabalhos da Marvel.

O Despertar de Wakanda

Algo a conseguir me deixar surpreso foi a agilidade que essa produção teve para ser finalizada. A fotografia principal começou em abril do ano passado terminando em agosto enquanto simultaneamente os mais quatorze escritórios especializados em efeitos visuais já começavam a trabalhar com o material bruto. Resumindo: Guerra Civil é um longa de duas horas e meia que foi gravado e finalizado em menos de onze meses. O resultado como todos podemos conferir realmente é impressionante levando em conta isso, já que as maiores falhas do longa se concentram no roteiro dos veteranos Christopher Markus e Stephen McFeely, escritores que trabalham com o personagem desde o primeiro filme de sua franquia.

Por mais que o filme leve o mesmo nome da HQ, os roteiristas não enfatizam tanto o embate ideológico entre Tony e Steve como foi feito nas páginas do gibi. Então quem espera um conflito com esse peso dramático talvez possa sair decepcionado. Os dois escritores puxam o debate sobre os danos colaterais que o grupo provoca em suas missões. Nisso o filme já tem início durante uma missão dos Novos Vingadores em Lagos à procura de Ossos Cruzados que trama um ataque bioterrorista. Apesar de terem sucesso em impedir o ataque, o grupo, mais especificamente Wanda, falha em conter a explosão que ocorre quando Ossos Cruzados se explode causando, obviamente, mortes de civis.

Com tantos desastres causados pelas ações dos Vingadores, os líderes mundiais representados na ONU decidem que chegou a hora de acabar com a liberdade de ação desses heróis os obrigando a assinar o Tratado de Sokovia. Porém o Capitão não concorda em agir como uma milícia superpoderosa para governos que seguem agendas e ideologias que estão em constante mudança. Não quer virar um mercenário. Ao contrário de Tony, abalado desde a Batalha de Nova Iorque, que reconhece ser preciso responder por suas ações para partes superiores. A cisão não gera conflito físico direto, mas os ânimos começam a se acirrar.

Porém, os roteiristas não continuam a investir nisso no segundo ato. Com a explosão de um prédio onde está instalada a comissão do Tratado durante o começo da reunião, todos temem uma retaliação maior. Tudo fica ainda mais complicado quando surge a suspeita de que o responsável pelo atentado seja Bucky Barnes, o infame Soldado Invernal. Acreditando na inocência do amigo, Capitão reúne seu time e parte em busca de Bucky tentando protegê-lo de esquadrões policias e da equipe já regularizada de Tony Stark que recebem ordens para matar o antigo amigo do protagonista. Nos bastidores, ajudando a alimentar o fogo do conflito entre as duas partes há o antagonista verdadeiro da história, Zemo.

É estranho notar como McFeely e Markus conseguem criar um primeiro ato excelente e desenvolver tão bem os muitos personagens presentes na jornada enquanto erram ao pedir tanto da nossa suspensão da descrença em relação ao plano de Zemo que é um dos mais mirabolantes que o cinema da Marvel já nos trouxe, além de manter muitas coisas dentro da zona de conforto que não cabia em uma história de potencial dramático e reflexivo como este.

O maior trunfo do filme, sem dúvidas, vem sobre o discurso sobre a vingança refletida em Zemo, Tony e, principalmente, Pantera Negra. Guerra Civil é uma lição de coesão para firmar uma história de origem com o herói wakandano. É ótimo o modo simples como eles estabelecem a relação entre o simpático Rei T’Chaka com T’Challa. Ali é inserido o ponto que justifica a transformação da jornada dele de vigilante para herói em uma linha diálogo que apresenta a vontade do rei em ver o filho aprender a fazer diplomacia como um grande governante deve fazer. Por marcar o carinho entre os dois, a morte do personagem é sentida e o sofrimento de T’Challa tão bem apresentado por Chadwick Boseman é crível.

O ódio dele é tanto que praticamente somente o Pantera Negra ataca para matar, porém só tem sede de vingança por Bucky acreditando que ele seja o assassino de seu pai. Apesar deles inserirem muito arbitrariamente o personagem no clímax do longa na Sibéria, faz perfeito sentido para completarem a transformação dele no filme. Lá ele descobre que todo o atentado fora orquestrado por Zemo. Com isso a vingança contra Bucky acaba afinal ele é inocente. No fim, eles dedicam uma cena onde T’Challa conversa com o vilão, abandonando o ódio ao abraçar a diplomacia como seu pai desejava. Ele prende o sokoviano, não como Pantera Negra, o vigilante, mas sim como rei T’Challa, o diplomata.

Claro, cai na velha (e clichê) máxima “a vingança não compensa, mata a alma e envenena”, mas é coerente durante o filme inteiro, apenas na segunda luta, no aeroporto, entre Bucky e Pantera os roteiristas patinam em criar linhas de diálogo que façam sentido. Bucky fala que não matou o pai de T’Challa e ele indaga “por que você fugiu então? ”. Bom, se tivesse um cara vestido de pantera borbulhando de raiva correndo atrás de mim, admito que também fugiria.

Ainda em T’Challa, porém, há um ponto vital que é muito mal explicado. No começo do filme, ele se posiciona a favor do acordo, porém, presume-se que ninguém saiba que ele é o Pantera Negra – fora T’Chaka já que em determinado momento seu filho explica para Viúva que a figura do herói vem por gerações. Após revelar ao mundo que seu altergo também é um mascarado, a Lei passa a valer para ele também? Ou somente aos Vingadores? Não uma linha de diálogo para sugerir algo nas entrelinhas. No fim do filme ele vira um Vingador Secreto, então ele desiste do tratado por qual motivo? O rei T’Chaka é hipócrita ao querer impor os Vingadores ao Tratado de Sokovia quando o próprio filho é um mascarado vingador de Wakanda? Os danos colaterais de Wakanda causados pelas ações do Pantera são abafados?

Divididos, Cairemos!

Mesmo sendo um filme do Capitão América, quem brilha mesmo é o desenvolvimento de Tony Stark e a performance excelente de Robert Downey Jr encarnando o herói com uma energia que tinha sumido em Era de Ultron. O ator consegue expressar todo o nervosismo, insegurança e mágoas que o personagem vem acumulando desde Os Vingadores culminando tudo aqui. Os roteiristas apresentam bem diversos remorsos gerados pelas escolhas egoístas de Tony como no excelente pseudo flashback onde o magnata revisita a última ocasião na qual esteve junto de seus pais. Depois, já sugerem que o relacionamento dele com Pepper acabou. Para então adaptaram a famosa passagem do cuspe na HQ, mas diminuindo muito o teor expansivo. No filme Tony apenas é confrontado por palavras duras, sentindo novamente o peso na sua consciência. Fora que passa a lidar com a culpa de ter criado Ultron – logo sente ainda mais o dano colateral da intervenção em Sokovia já que tudo parte de um homem só. Detalhe que esse pesar era inexistente em Era de Ultron onde Tony sempre se expressava com ironias, sarcasmo e piadinhas estúpidas. Enfim, o personagem amadurece. Pela primeira vez, o universo Marvel aborda a impotência de seus super-heróis.

Nessa sequência avassaladora de eventos, a motivação de Tony em assinar o Tratado torna-se genuína dentro do filme, porém vejo uma expiação de responsabilidade e desencargo de consciência ao assinar o acordo. Talvez permaneça a figura de um Homem de Ferro egoísta, pois assinar um papel e virar inaugurar uma OTAN superpoderosa não vai evitar o dano colateral que tanto assombra Stark.

Nesse ponto, no primeiro ato, realmente não há um lado certo ou errado ao entendermos bem a motivação de cada um, apesar de eu concordar mais com o Capitão América que também apresenta boas motivações para firmar sua posição. Os roteiristas dedicam ao menos uma cena para trazer o viés político da HQ para as telonas, mas isso logo é abandonado quando a ONU explode e jogo deixa de ficar dividido entre pró vs contra registro, mas sim em caçar vs defender Bucky.

A dúvida sobre a responsabilidade do Bucky como o autor do atentado é respondida rapidamente. Aliás, é impressionante o modo muito conveniente e preguiçoso dos roteiristas em solucionarem rápido um conflito que já vinha desde O Soldado Invernal: encontrar o paradeiro de Bucky. Uma rápida dica do interesse romântico de Steve, a agente Sharon Carter, é tudo o que precisa. Aliás, muito me incomoda a ausência bizarra de Maria Hill e Nick Fury nesta aventura.

Logo descoberto que o ex-agente da Hidra é inocente e que tramaram para ele, instantaneamente só há um lado certo, o do Capitão. Afinal, é coerente matar ou perseguir alguém por um crime que ele não cometeu? Ou prender uma pessoa que praticava crimes sob a influência de uma lavagem cerebral? Apesar de já limar a dualidade presente na HQ, o filme ganha nesse aspecto, pois dialoga diretamente com o espectador e seu senso de justiça. Nesse caso, nos tornamos ativos e tão logo faz com que tenhamos simpatia por Bucky já que os roteiristas trabalharam pouco a relação da amizade entre Steve e Barnes ao longo desses três filmes. Então há essa motivação que guia o Capitão em ser um representante nato da justiça mesmo que saibamos que é a amizade o fator de maior peso para o personagem, além de representar o último elo que ele possui com seu passado em 1940.

Já sobre a motivação de outros personagens, boa parte deles é bem definida. Visão se apropria sobre a responsabilidade que o grupo tem sobre os ombros, Rhodes já é um representante do governo americano que apoia o Tratado, Viúva Negra também sofre com o pesar dos danos colaterais. E Pantera Negra se une aos outros durante a caçada ao Soldado Invernal. O único a ficar do lado do Capitão nesse momento é Falcão que sempre apoia o parceiro. Depois, o time de Steve aumenta com o Gavião Arqueiro, cuja presença tem uma justificativa nebulosa, com Homem-Formiga, uma participação gratuita de alívio cômico que funciona por deixar a ação mais interessante, e também com Wanda que é mantida prisioneira dentro do complexo dos Vingadores por medo que a Feiticeira cause mais confrontos que resultem em morte – é resgata por Gavião Arqueiro antes da famosa luta no aeroporto.

É impressionante a habilidade dos roteiristas em dedicarem tempos e cenas tão certeiras para cada um dos personagens coadjuvantes – algo que certamente remete à técnica de Joss Whedon em Os Vingadores. A interação entre eles é ótima. Vemos uma concepção do romance entre Wanda e Visão, daqueles amores puros e inocentes, há uma preocupação em fazer alguns embates intelectuais entre Tony e Steve, além de explorarem o bonito conflito que Natasha sofre ao se encontrar tão dividida entre o que julga correto ante a amizade com o Capitão, além das boas cenas dedicadas a mostrar sua sensibilidade e companheirismo com T’Challa.

Fora isso, eles melhoram o vício irritante da produção dos filmes Marvel em inserir piadas em momentos inapropriados quebrando a tensão vide Homem de Ferro 3 ou Era de Ultron. Dessa vez é tudo mais equilibrado, as piadas estão entre as melhores de todos os filmes que já vimos deste universo e fazem sentido em boa parte das situações chegando a brincar até mesmo com filmes clássicos pertencentes à Disney como O Império Contra-Ataca. Porém, mesmo dosando na quantidade, algumas ainda quebram o drama como na cena onde Visão invade o quarto de Wanda enquanto ela reflete sobre o descuido em Lagos ou no velório de Peggy Carter.

Já com Homem-Aranha, a participação dele, a grosso modo, se resume a fan servisse. Não faria a menor diferença não o ter na narrativa, já que não chega nem perto de ter a relevância que tinha na HQ – também seria impossível fazer o mesmo neste MCU. Porém a Marvel já resolve rapidamente essa história de origem que foi contada e recontada em duas décadas diferentes. O público já sabe de tio Bem, picada de aranha, escalar paredes etc.

Então com isso já estabelecido, temos a adaptação mais interessante e fiel ao personagem até agora nas telas de cinema. Isso se dá através de um diálogo com Tony Stark que revela toda a ética do personagem – sobre ser jogador de futebol antes e depois da picada radioativa. Sua motivação, todavia, é mais complicada. Mesmo que ele admire o Homem de Ferro, toda a problemática envolvendo Parker para que ele entre na lute se resolve quanto Stark ameaça contar à tia May seu maior segredo. Além de ser chantageado, Parker aceita a bolsa de estudos de Stark. Também há a sugestão muito bizarra de um romance entre Tony e tia May.

Tom Holland encarnando Peter Parker e Homem-Aranha é a união do que havia de melhor nas performances de Tobey Maguire – um exímio Peter Parker, e de Andrew Garfield – um Homem-Aranha mais divertido e próximo da natureza do personagem. Holland mostra pouco, mas já é possível dizer que ele não decepcionará em seu filme solo. Temos o verdadeiro cabeça de teia tagarela e despojado dos quadrinhos finalmente nos cinemas. O figurino inspirado nos traços clássicos de John Romita Sr. e Steve Ditko só colabora para essa impressão.

Um Vilão do Cinema Marvel e seu Plano Mirabolante

Acertando muito nesses pontos, os roteiristas começam a tropeçar bastante no segundo e terceiro ato e também no plano mirabolante de Zemo. O vilão desempenha exatamente o mesmo papel de Lex Luthor em Batman v Superman, algo que pelo jeito tem potencial de virar um clichê do gênero, além de eximir boa parte da responsabilidade dos próprios heróis a se confrontarem. Tudo é feito visando o elemento maior.

Também o nome “Zemo” não serve de absolutamente nada. O personagem não é nazista, não é da Hidra, não é um exímio espadachim e sua estratégia abusa da sorte e no acaso. Não faria a menor diferença se tivessem colocado outro nome para o antagonista, poupando o verdadeiro Barão Zemo para um próximo filme, afinal quase todos os vilões do Capitão América são excelentes.

É conveniente demais que ele saiba esconderijos de agentes da Hidra, justamente o qual onde se encontra o caderno vermelho que possui os segredos para controlar o Soldado Invernal por meio de palavras-chave. Também contar com uma falha do grupo em conter o dano colateral causado por Ossos Cruzados que funciona como um vilão da semana para resultar no início da cisão do grupo é algo complicado. Além disso, há a quebra da lógica interna do MCU quando ele diz que trabalhava para Bucky e não para o que restou da Hidra, algo que vai contra os eventos finais de Soldado Invernal onde Barnes já toma conhecimento de que há algo de errado com sua cabeça.

Então há toda a história da explosão na ONU onde alguém disfarçado de Bucky arquiteta o ataque terrorista – esse é alguém, subentendesse que seja Zemo, para então iniciar essa caçada insana ao ex-agente que enfim rompe os Vingadores de vez. Depois, descobre, magicamente, onde prenderiam o indivíduo em Berlim e que também o interrogariam através de um psicólogo – o qual ele mata e ganha acesso instantâneo a cela de segurança máxima que, ironicamente, não checam nem a foto do crachá do cidadão que conduzirá o interrogatório. Para então causar um blecaute a fim de realizar outra lavagem cerebral em Bucky ao falar as palavras mágicas do livro vermelho para descobrir o relatório da missão em dezembro de 1991 que resultou na morte dos pais de Stark.

Então ele foge deixando Bucky em seu estado psicótico onde ocorre outra luta resultando no retorno à personalidade pacífica do Soldado Invernal após ele bater forte com a cabeça no vidro do helicóptero – para os filmes da Marvel só um jeito de livrar alguém de um controle mental de terceiros: uma bela concussão. Para o plano dele dar certo, ele já contava com isso, além de esperar que Bucky falasse para o Capitão que há mais soldados invernais em uma base secreta na Sibéria, lugar para onde Zemo foge.

Logo há toda a batalha do aeroporto que, apesar de ótima, é muito mal encaixada dentro da narrativa, afinal nós descobrimos que o Capitão está atrás do Quinjet apenas quando ele realmente corre para o hangar que guarda o avião, além de nunca haver quaisquer justificativa que Tony Stark saiba que o grupo de Steve se dirigiria para lá também visto as milhares de possibilidades que ele poderia usar para fugir de Berlim. O modo como os heróis do time de Stark chegam na luta também é bizarro sendo que Pantera Negra praticamente cai do céu, além da razão de Visão estar ausente em boa parte da luta sempre estando mais na defensiva do que atacando o grupo oponente.

A luta também colabora em acabar de vez com a lógica diegética sobre os poderes psíquicos de Wanda, afinal, não é nada coerente fazê-la falhar, sozinha, em conter uma explosão quando minutos depois eles a fazem subjugar Visão com certa facilidade – um dos heróis mais poderosos desse universo, o jogando milhares de metros abaixo do solo para então ela conseguir conter toneladas de concreto permitindo a passagem de Bucky e Steve até o hangar onde está o Quinjet. Ao menos nesse segmento, ela é afetada por um elemento externo para interromper a poderosa telecinese.

No desfecho, Capitão e Bucky fogem para a Sibéria e Stark prende a maioria dos oponentes. Indo até lá descobre que o amigo falava a verdade sobre terem armado uma cilada para o Barnes – é curioso como os roteiristas tentam resolver essas desavenças no diálogo, mas fazem o personagem mais racional do MCU virar um dos mais impacientes e furiosos nesse filme. No meio disso, há um ótimo momento onde o grupo de Tony é obrigado a conviver com o primeiro dano colateral causado por eles próprios em outro integrante, Máquina de Combate. O resultado da paralisia de Rhodes, já dá indícios de que Visão esteja se tornando cada vez mais humano e, portanto, falho. Depois do bom drama, ao descobrir sobre a Sibéria, Tony se dirige para a base secreta. T’Challa, que apenas surge no meio das nuvens, segue o herói.

Aí que entra a maior conveniência para Zemo, pois apostar que Stark fracassaria em conter Steve e depois que ele fosse descobrir sobre a Sibéria e se dirigir para lá a fim de causar o conflito final é algo bastante absurdo. Então os três se encontram e descobrem que Zemo já tinha matado todos os outros soldados invernais, pois seu objetivo é mostrar uma fita, em privado, para o grupo que revela que o assassino de seus pais não é ninguém menos que Bucky Barnes. Ao menos aqui entra algo legal que põe em cheque a moralidade do Capitão América por não contar isso a Tony, um fato que já tinha conhecimento disso desde O Soldado Invernal.

Porém o motivo do embate, levando em conta que Tony já sabia que Bucky agia sob a influência de lavagem cerebral, se torna uma experiência completamente subjetiva para quem assiste. Mesmo que seja genuíno, não vejo como o personagem mais racional desse universo reaja da mesma forma que o Hulk agiria. Para mim, não cabe. Porém isso rende o momento mais dramático e relevante de todos os filmes até então onde vemos uma luta que ambos quase se matam.

Finalmente é revelada a motivação de Zemo para o espectador e surpreendentemente é genuína o colocando diretamente no topo dos melhores vilões que o MCU já nos trouxe – um feito nem tão difícil. Mais uma vez a culpa disso tudo cai nos colos de Stark, ainda que indiretamente, já que o vilão é impulsionado pela vingança da morte de sua família durante a Batalha de Sokovia. Reações diferentes do mesmo dano colateral, o sacrifício para o bem maior – uma jogada inteligente dos roteiristas. Já sobra a atuação de Daniel Bruhl, sabendo da capacidade do ótimo ator, não há esforço além do necessário para apresentar seu Zemo.

O desfecho disso tudo não deixa de ser decepcionante. Temos uma guerra na qual ninguém morre, além de não causar a ruptura intensa que era esperada por causa da carta reconciliadora e do celular que Steve envia à Tony após a luta quase mortal. Deixar claro que os Vingadores Secretos não estão a mais do que uma chamada telefônica de distância é um reducionismo muito confortável. Algo que transforma o Homem de Ferro no prefeito de Townsville e celular em sua linha direta com a casa das meninas superpoderosas para pedir socorro em momentos de necessidade. Fora isso há a bizarra cena onde Steve salva todos os amigos presos na Balsa que dá o toque final do otimismo visado na companhia.

A Morte de Um Sonho

Para tocar esse Titanic é preciso muita coragem e habilidade em respeitar um cronograma tão rígido. Os irmãos Russo me surpreenderam, afinal sair de um Dois é Bom, Três é Demais para dez anos depois dirigir um Guerra Civil é preciso de segurança e confiança no próprio trabalho. Realizam mesmo um verdadeiro trabalho espetacular, mas que não deixa de tropeçar em algumas pequenas coisas.

Esses tropeços se restringem apenas em duas características, creio. A primeira é na manutenção da decupagem problemática da ação que já vinha desde O Soldado Invernal em algumas cenas. A ação muito picotada, repleta de câmeras “nervosas” e também pela velocidade altíssima do obturador da câmera resultando um efeito inorgânico nas ágeis movimentações dos personagens em cena distribuindo pancadaria. Esse efeito do obturador rápido deixa a ação mais dinâmica, pois retira o rastro natural que o movimento ocasiona quando ele está na velocidade normal. Entretanto, isso aliado a tantos cortes rápidos geram esse estranhamento. Algo que não havia ficado bom no filme anterior e que também não melhorou em nada a primeira cena de ação do filme.

Já nessa mesma sequência somos introduzidos a uma irritante mania de inserir legendas gigantescas para informar em qual cidade se passa a ação – algo que permanece no restante do filme inteiro. Temos LAGOS, BUCARESTE, VIENA, BERLIM, QUEENS! Ao menos é impossível duvidar da eficiência do efeito já que me lembro de todas as cidades que compõe o grand prix de Guerra Civil.

Tirando isso, há somente acertos. A ação comporta-se de modo mais clássico com movimentações elegantes, além de ser uma das mais imaginativas que já pude conferir em filmes de super-heróis. Os dois sabem muito bem como fazer a equipe usar seus poderes sempre cooperando um com o outro ou durante a fantástica luta entre eles no aeroporto – resquícios do trabalho de Whedon em Os Vingadores.

O auge da técnica é, obviamente, a sequência do aeroporto que é dividida em duas partes: o confronto segmentado para seguir para uma batalha de duas frentes definidas. Em primeiro momento, a andamento é perfeito. Saímos de uma luta para entrar em outra a partir da montagem tão bem executada. Temos diversos conflitos inéditos com Gavião Arqueiro vs Homem de Ferro, Homem-Aranha vs Falcão e Soldado Invernal, Homem-Aranha vs. Capitão América, Gavião Arqueiro vs. Pantera Negra, Homem-Formiga vs. Máquina de Combate e Homem de Ferro entre tantos outros. É absolutamente mágico. Sim, é mágico, de encher sua criança interna de alegria. Ver tantos personagens se digladiando de modo tão bem executado e inteligente a respeito do uso dos superpoderes é algo absolutamente indescritível. Quisera eu ter a mesma idade que tinha quando vi Homem-Aranha pela primeira vez com este Guerra Civil. Admito que teria saído alucinado do cinema querendo comprar todos os bonequinhos para recriar a luta em casa.

Na segunda metade, a ação se torna ainda melhor. Ainda há a manutenção clássica da divisão de ação que ocorre do mesmo modo que nas HQs ao acompanharmos mais duelos entre pequenos grupos, porém há um festim digno das páginas duplas de George Pérez quando as duas partes se alinham uma em frente a outra e partem, correndo, para a luta. Os Russo realmente criaram o momento mais épico que já conferimos em filmes do gênero. Nesse segmento, poderiam sustentar mais o plano ou terem arriscado um plano sequência, porém a pressa em finalizar o filme não possibilitou isso. Além de épica, poderia ter se tornado uma sequência histórica também na técnica cinematográfica. Espero que vejamos algo tão fabuloso e melhor construído com a Guerra Infinita.

Mesmo sendo uma sequência tão bem-feita, há um certo incomodo que a afeta negativamente. Pela intensidade da ação ou da violência segura, nunca há uma apreensão ou sugestão de uma possível morte ali. As duas frentes lutam sem a intenção de matar ou incapacitar uns aos outros. As interações em diálogos, em sua maioria, bem inseridos deixam isso claro pelo teor cômico e amistoso. Aliás, é exímia a perspicácia que os irmãos têm ao inserir a maioria das piadas ao longo do filme. Excelente timing.

No clímax, durante a última luta entre Capitão América e Homem de Ferro, os Russo simplesmente atingem a perfeição da câmera clássica e da ação contemplativa abandonando completamente o estilo que eles apresentaram no começo do filme e em Soldado Invernal. A coreografia da luta é muito mais violenta que a do aeroporto, a conversa é mínima, a trilha musical de Henry Jackman cresce e se torna mais relevante e a iluminação de Trent Opaloch aposta mais nos efeitos sombrios da contraluz moderada. É a atmosfera perfeita para a tragédia anunciada. O momento tão esperado que nunca chega: a morte de Steve Rogers. E olha que a coreografia da luta permitiria isso com facilidade.

Mesmo que isso não aconteça, os Russo acertam ao transpor duas imagens muito impactantes da arte original feita no auge do talento de Steve McNiven: a emblemática imagem do Capitão se protegendo com o escudo dos raios que partem dos propulsores do Homem de Ferro. A outra ocorre quando o Capitão ataca sucessivamente o capacete de Tony enquanto ele está deitado, já derrotado. Na HQ, nota-se a intenção assassina de Rogers, algo que não é presente na versão cinematográfica. Porém, levando em conta a história que nós já partilhamos com esses personagens por tantos anos de nossas vidas, não deixa de ser uma cena extremamente triste. Principalmente o seu desfecho que contempla o Tony Stark mais só e magoado até agora.

Aliás, os irmãos e o diretor de fotografia conseguem elaborar uma iluminação que constrói uma metáfora visual primária, mas interessante. Ocorre durante o blecaute onde Zemo converte Bucky novamente em Soldado Invernal. Ali há uma intermitência entre a luz azul, representando a memória pacífica de seu amigo Steve Rogers, e a luz vermelha que evoca a violência e os terrores da tortura nas bases soviéticas da Hidra. É básico, mas já é algo bem-intencionado.

Enquanto os Russo se viram bem com a decupagem complicada envolvendo uma gravação a partir de seis câmeras para finalizar a fotografia principal mais rapidamente – o normal em Hollywood é se gravar apenas com uma, os inúmeros escritórios de efeitos visuais apresentam um desempenho muito inconstante principalmente na computação gráfica dedicada a armadura de Tony Stark. Por ora muito bem-feita para depois perder a textura em outra cena. Ou no pior efeito do filme onde uma carreta prática é substituída por uma digital logo nos primeiros minutos de projeção.

Saldo Positivo

Capitão América: Guerra Civil é, sem a menor dúvida, uma das melhores obras que a Marvel já nos trouxe. Infelizmente sofre de problemas muito parecidos do filme apresentado pela distinta concorrente. O fato de apenas um mês de intervalo entre suas estreias só colabora para deixar isso em evidência. Verdade seja dita, ambas as empresas erraram ao trazer essas histórias-combate tão cedo para os cinemas.

Com mais tempo para desenvolver a amizade de Bucky, deixar os heróis Marvel provarem um pouco da glória e reconhecimento da população mais enfaticamente, agregarem mais personagens aos seus universos cinematográficos, delinearem cada vez mais diferenças entre o Capitão e Tony Stark seriam características muito bem-vindas. O primeiro filme da Fase 3 poderia ser facilmente o longa pré-Guerra Infinita, incutiria muito mais ameaça e vulnerabilidade para esse universo diante o terror que Thanos promete provocar. Agora com mais cinco filmes até chegarmos no clímax dessa fase, isso dificilmente deve acontecer do mesmo modo. De uma forma ou de outra, recebemos a morte de um sonho: a Marvel não mexerá em time que está ganhando nem que seja para gerar um efeito dramático memorável.

Entretanto, verdade seja dita, este é filme é uma obra divertidíssima, de fácil consumo e que dificilmente desagrada. Um longa que não cansa mesmo com seus 147 minutos de duração. Quem procurou uma diversão descompromissada, certamente encontrou o que estava procurando. Fora isso, testemunhou pela primeira vez tantos personagens queridos reunidos em um filme só. A Casa das Ideias fez magia duas vezes em artes distintas apresentando uma de suas histórias mais importantes. Algo que somente a Marvel mostrou capacidade de fazer até agora.

Capitão América: Guerra Civil (Captain America: Civil War, EUA - 2016)

Direção: Anthony Russo, Joe Russo
Roteiro: Christopher Markus, Stephen McFeely, baseado nos personagens da Marvel Comics
Elenco: Chris Evans, Robert Downey Jr., Sebastian Stan, Scarlett Johansson, Jeremy Renner, Don Cheadle, Anthony Mackie, Paul Rudd, Chadwick Boseman, Tom Holland, Elizabeth Olsen, Paul Bettany, William Hurt, Daniel Brühl, Marisa Tomei
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 147 min

https://www.youtube.com/watch?v=dKrVegVI0Us

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by Matheus Fragata

Crítica | Vingadores: Era de Ultron - Uma sequência perdida em sua ambição

Há três anos estreava um evento que marcaria a História do Cinema. O primeiro filme dos Vingadores sintetizava trabalhos que estavam sendo feitos e planejados há anos, mas oficialmente, o universo cinematográfico da Marvel Studios tem início em 2008 com o excelente primeiro filme do Homem de Ferro.

Os Vingadores era uma realização tanto para fãs e espectadores quanto para críticos e historiadores, mas, acima de tudo, era uma realização para a indústria. Ali, a era dos espetáculos ganhava nova vida. O conceito de franquias fora mudado completamente. A Marvel virou um estúdio e ensinou Hollywood um modelo completamente novo de negócios. Um modelo que sustenta boa parte de outras produções.

Mesmo com o estrondoso sucesso, o trabalho não parou. Não se passaram nem dez anos que do início disso tudo e já chegamos ao fim da segunda fase de universo muito cativante. Fase que teve sua construção durante dois anos com os lançamentos de Homem de Ferro 3, Thor: O Mundo Sombrio, Capitão América: Soldado Invernal e o exemplar Guardiões da Galáxia.

A Era de Ultron é o final dessa etapa. Porém, algo se perdeu no meio do caminho, infelizmente.

Entre a caçada sem fim para exterminar as bases restantes da H.I.D.R.A., os Vingadores se deparam com o último comandante ativo da organização, o Barão Von Strucker. Após derrotá-lo, o grupo retoma a posse do cetro utilizado por Loki. Já que o cetro é constituído de uma gema do infinito – a da mente, Thor permite que Tony Stark e Bruce Banner passem alguns dias a estudando.

Ainda assombrado pela destruição em massa causada por Loki e os Chitauri, Tony aspira construir uma tecnologia importante que visa acabar com a vulnerabilidade da Terra. Seu plano é construir uma inteligência artificial perfeita, capaz de assimilar e raciocinar conteúdos que não estão em sua programação básica. Uma inteligência que evolui.

Graças a tecnologia mágica envolvida na gema, Tony e Bruce conseguem dar vida ao projeto Ultron, o guarda definitivo do planeta. Porém, momentos após ser criado, Ultron, em seu raciocínio muito legitimo, encontra apenas um caminho para a paz mundial: a completa extinção da raça humana. Agora cabe apenas aos Vingadores para exterminar essa nova ameaça. Porém, Ultron rapidamente faz uma importante aliança com os gêmeos Pietro e Wanda Maximoff – humanos que ganham superpoderes após se submeterem a experimentos do Barão Von Strucker.

Mais uma vez Joss Whedon assina o roteiro e direção da superprodução megalomaníaca da Marvel. Entretanto, este é um Whedon muito diferente do apresentado em Os Vingadores.

Talvez por pressão dos produtores e fome dos espectadores sempre por um espetáculo maior que o anterior, Whedon dá preferência para as cenas de ação preterindo àquelas que seriam muito necessárias para o desenvolvimento dos personagens ante à ameaça que Ultron representa neste filme. Aliás, este antagonista fascinante, é o mais prejudicado por ser o novato e ter apenas uma única participação dentro desse universo – Loki, antagonista do primeiro Vingadores já teve três filmes para seu desenvolvimento.

O vilão, interpretado e dublado de forma assombrosa por James Spader – o filme se transforma quando ele está em cena, em meio a complexidade de seu discurso, paradoxalmente, é um personagem de uma nota só. Seu objetivo é sua diretriz. Ele não entra em conflito consigo mesmo e os heróis pouco fazem para elaborar algo mais complexo dentro dos diversos diálogos, muito parecidos, que trocam entre si.

Ultron é ardiloso, esperto, cínico e tem um ótimo senso de humor, pasmem. Whedon chega a sugerir diversas questões muito legitimas através dos discursos do androide. Estas, sobre a legitimidade de os Vingadores agirem como polícia do mundo, pelo fato do grupo adorar audiência e popularidade, sobre ainda serem manipulados como marionetes ou por não desejarem, integralmente, a paz, já que então não seriam mais necessários.

Porém, tudo isso é apenas sugerido. Nunca explorado. Não há nada mais broxante do que ver Ultron lançar essas pérolas e o grupo de super-heróis responder com perguntas retóricas ou piadinhas idiotas. Aliás, superando o exagero na dosagem já apresentada em Homem de Ferro 3, Whedon, por algum motivo chamado Disney, sempre quebra a tensão ou o drama com alguma piada. Simplesmente não há razão para inserir o cômico em muitas cenas. Destrói completamente a atmosfera, mesmo que algumas piadinhas sejam engraçadas – isso não acontecia de forma tão grave no primeiro filme.

Notar essa quebra de tom, principalmente por ver um autor como Joss Whedon aderir a esse vício, não tem nada de engraçado.

Entretanto, Ultron não é o único elemento subdesenvolvido. O roteiro, ao tentar incluir muita coisa e dar origem para os eventos da próxima fase, acaba esquecendo que a história e seus personagens mereciam melhor acabamento. Homem de Ferro, Thor, Capitão América, Mercúrio e Feiticeira Escarlate estão apenas ali para preencher quórum e fazer malabarismos.

Tony Stark nunca sente o peso da culpa por ter contrariado seus amigos ao criar Ultron. Os outros personagens apenas o repreendem ou se envolvem em um conflito pequeno para então surgir uma piadinha e quebrar a tensão. Enfim, nada que seja muito relevante.

Os novos personagens, os gêmeos Maximoff, contam apenas com uma cena para construir o passado e a relevância do drama vivido por eles – óbvio que é insuficiente. Ironicamente, os únicos personagens que possuem alguma evolução se comparado com outros filmes são Bruce Banner/Hulk, Viúva Negra e, em especial, Gavião Arqueiro. Porém, o conflito que Hulk vive só ganha mais força por conta de Mark Ruffalo, pois o roteiro contraria o comportamento apresentado pelo personagem em Os Vingadores.

Bizarros são os interesses românticos inconstantes que Viúva Negra demonstra em três filmes. Sempre pulando para os braços de outro homem. Algo que não condiz com a verve original de moça forte e independente da personagem. O trabalho que realmente se sobressai é o novo olhar sobre o Gavião Arqueiro, vital para este filme. Outro elemento que Whedon acerta é a criação do herói Visão – encarnado muito bem por Paul Bettany, misturando elementos inéditos e outros clássicos das HQs.

Em geral, a história, apesar de digna dos seriados animados do grupo, é bem amarrada. Whedon também acerta na manipulação da mente orquestrada por Wanda Maximoff –interpretada vividamente por Elizabeth Olsen que gesticula como uma bruxa ao lançar um feitiço.

Até mesmo alguns atores começam a dar sinais de desgaste, infelizmente. Downey Jr., antes sempre cativante, aparenta um ócio criativo em suas cenas. O mesmo acontece com Chris Evans e Chris Hemsworth. Mas é compreensível já que o roteiro não foge da zona de conforto então não há o que adicionar.

O que Whedon sempre acerta mesmo é na direção. Era de Ultron é tecnicamente muito superior ao filme de 2012.

Tudo é maior, incluindo a expressividade artística de outros departamentos como o de fotografia e design de produção. O diretor de fotografia Ben Davis modela e cria, impecavelmente, diversas atmosferas diferentes para as cenas – concepções únicas. Finalmente um filme dos Vingadores tem uma forte identidade visual. Já o design de produção preenche os planos com cenários repletos de elementos ricos. Os planos vazios de Os Vingadores que contavam apenas com o ator e um fundo banal ficaram para o passado. Tudo muito atrativo visualmente.

Seguindo essa linha criativa sábia, Whedon em conjunto com o departamento de arte, cria uma metáfora visual muito bem-vinda para exibir as diferenças entre as inteligências artificiais de Ultron e J.A.R.V.I.S. Uma é completamente caótica e imprevisível enquanto a outra é racional, cheia de formas retas e pacíficas. Além disso, o design de Ultron é fantástico. Desde seu primeiro protótipo até sua forma final.

Apesar da ótima condução das cenas de ação, acredito que o filme ficou saturado. A história, às vezes, parece que serve somente para unir essas sequências. Isso prejudica o clímax do filme, bastante, pois todas as cenas são dignas de fechar o filme. Fora que a luta entre Hulk e Tony Stark vestindo a Hulkbuster é de longe a melhor cena do filme.

Agora com mais recursos, Whedon consegue elaborar movimentos de câmera fantásticos, enquadramentos mais apelativos e muitos planos-sequência. Se você é fã desta técnica, Era de Ultron é obrigatório. Logo no começo do filme, para expressar a união do grupo vingador, Whedon insere um fantástico.

Uma nova era

Vingadores: Era de Ultron, infelizmente, é inferior ao primeiro filme, mas consegue divertir e agradar os fãs. Ele pretere o desenvolvimento de personagens e narrativa para dar lugar as muitas e ótimas cenas de ação, porém algumas cansam de tão longas ou pelo curto intervalo entre uma e outra. Entretanto, mesmo falhando nesses aspectos tão vitais, o filme cativa com o carisma de seu insano antagonista e graças a inserção de personagens novos muito bem-vindos como Feiticeira Escarlate e Visão – Mercúrio nem tanto graças à atuação insossa de Aaron Taylor-Johnson.

Uma pena que este seja o último filme da Marvel que Joss Whedon dirigirá. O cara é ótimo, dirige blockbusters como ninguém e tem nervos de aço para segurar as pontas de uma produção tão complexa como esta daqui. Ele é um dos poucos que não deixa sua ação virar um emaranhado confuso e excessivo de planos como os irmãos Russo fizeram em Capitão América: Soldado Invernal.  Infelizmente, a fase três da Marvel começa com uma terrível perda, mas espero que, com o produtor certo, os irmão Russo consigam concluir de modo digno esse incrível evento que estamos vivendo agora.

Vingadores: Era de Ultron (Avengers: Age of Ultron, EUA - 2015)

Direção: Joss Whedon
Roteiro: Joss Whedon
Elenco: Robert Downey Jr., Chris Evans, Chris Hemsworth, Scarlett Johansson, Jeremy Renner, Mark Ruffalo, Elizabeth Olsen, Aaron Taylor-Johnson, James Spader, Paul Bettany, Cobie Smulders, Don Cheadle
Gênero: Aventura
Duração: 143 min

https://www.youtube.com/watch?v=tmeOjFno6Do

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by Matheus Fragata

Crítica | Guardiões da Galáxia - A Marvel abraça o space opera

Em 2014, a Marvel Studios faria sua aposta mais arriscada que abriria as portas para os títulos mais esquecidos e impopulares ganharem suas próprias adaptações cinematográficas – detalhe, isso também serviu para alguns heróis do selo DC. Guardiões da Galáxia era um tiro incerto por conta da enorme responsabilidade que o filme teria dentro do MCU: apresentar uma nova equipe de heróis sem superpoderes e, de quebra, estabelecer com clareza o universo cósmico da editora.

O resultado foi melhor do que todos esperavam. Estourando todas as previsões anteriores, o filme arrecadou mais de 750 milhões mundialmente – valor expressivo ante os 170 milhões investidos na sua produção. James Gunn e seus Guardiões da Galáxia viraram os queridinhos de 2014 e com mérito.

Acompanhamos a história de Peter Quill, um fora da lei que foi abduzido quando criança. Vivendo entre os piores, Quill vira um saqueador tapado com pinta de Indiana Jones. Um dos artefatos que está em sua mira é um orbe misterioso. Já recuperando o item, torna-se alvo de diversos mercenários e alienígenas poderosos que também estão à procura do orbe, seja para vende-lo ou para descobrir seus misteriosos segredos.

Fugindo de diversos captores, Quill acaba preso durante uma perseguição juntamente com quem o perseguia: um guaxinim falante, uma planta gigantesca e uma alienígena movida por seu ódio. Na cadeia, conseguem aceitar as diferenças um do outro e armar um plano para escapar do cárcere a fim de venderem o orbe para o Colecionador em Luganenhum. Na fuga, outro alienígena brutamontes, Drax, entra para a equipe em busca de saciar sua sede vingança contra Ronan, o Acusador, o principal oponente que caça o grupo em sua jornada.

Se há maior mérito para Guardiões da Galáxia é resgatar a qualidade narrativa que havíamos visto em Homem de Ferro enquanto consegue se tratar de uma história que parece descolada de todos os filmes anteriores do universo cinematográfico da Marvel. O roteiro de James Gunn, também diretor da obra, e de Nicole Perlman consegue render a grande maioria dos vícios que prejudicaram outros filmes da Fase 2 – as piadas fora de hora, a falta de desenvolvimento do drama, da real ameaça do perigo, etc.

Assim que o filme começa já é possível perceber essa pegada mais distinta ao apresentar o principal drama que assombrará o protagonista no restante do filme: a morte de sua mãe, vítima de um câncer possivelmente causado pelo contato com o pai de Quill, um extraterrestre feito de “pura luz” – importante lembrar que esse indício é sugerido muito sutilmente e nunca mais volta a ser mencionado como algoz da doença no restante do longa.

Antes de morrer, ela dá um presente para o filho que não larga o walkman com uma Mixtape criada por ela antes da doença. Logo, o instrumento que justifica todas as músicas pop dos anos 1970 que agitam a trilha musical que preenchem cenas divertidas repletas de bom humor é um dispositivo paradoxal muito eficiente para comprarmos o drama de Quill. Se trata da representação de toda a saudade, carinho e luto pela morte precoce de sua mãe e também do adeus ao seu planeta natal e família, já que pouco depois Gunn mostra o protagonista já adulto, manipulando seu querido walkman.

O escopo intimista e dramático rapidamente dá lugar a diversão e carisma que marcam a atmosfera de Guardiões da Galáxia durante a abertura dos créditos com Quill cantando "Come and Get Your Love" enquanto explora um planeta desolado, local que a orbe está localizada – um começo que lembra muito Caçadores da Arca Perdida, aliás.

Os roteiristas então seguem esse ritmo, variando entre cenas espalhafatosas muito cômicas – característica pedigree dos filmes Marvel, para outras onde o drama é esboçado, mas nunca plenamente desenvolvido sendo apenas o protagonista a receber um arco completo. Pelo menos, Gunn consegue delinear muitíssimo bem a cada apresentação de um novo personagem – mesmo que todos já sejam arquétipos muito conhecidos e já utilizados até mesmo em Os Vingadores.

O rol inteiro dos heróis de Guardiões serve como alívio cômico, mesmo que a dupla Rocket Raccoon e Groot sejam os mais funcionais para tanto – Drax com sua literalidade explícita também contribui. Como havia dito, Gunn soube dosar bem as piadas para que ficassem orgânicas dentro das cenas, nunca interferindo com ápices dramáticos ou de tensão como acontece em Homem de Ferro 3 e Doutor Estranho. Todos os personagens possuem seu próprio drama apresentado através de diálogos ou das muitas brigas que tem entre si – tal qual como Os Vingadores onde o grupo somente se confraterniza no clímax do filme.

Rocket é o personagem que carrega a maior carga dramática do longa, mesmo sendo o mais utilizado para fazer piadas e soltar frases de efeito. Ele carrega todo o ódio existencial porque reconhece que foi uma criação bizarra de mentes cruéis, além de saber que é o único de sua espécie. Drax quer vingar-se pelo assassinato de sua família cometido por Ronan – é um arco bom, mas de uma nota só. Gamora desiste de sofrer abusos por tantos anos e decide trair Ronan e Thanos, seu pai e “mestre” do antagonista do longa. Groot é um monstro de Frankenstein que só possui resquícios de bondade e ingenuidade. Seu único “conflito”, se é que podemos chamar assim, é proteger os amigos a qualquer custo. Graças a essa pureza do personagem, Gunn consegue criar momentos verdadeiramente belos, seja com a flor que ele distribui a uma criança ou quando solta seus pólens iluminados.

Só de haver a sugestão de dramas mais profundos já me deixa mais satisfeito do que geralmente ocorre na fórmula Marvel – detalhe que todos os conflitos ficam latentes, mesmo que o longa não dê oportunidade para concluí-los. Também se trata de uma narrativa de grupo onde a ação tem que ser priorizada por conta de sua natureza blockbuster de verão então afirmo com tranquilidade que desde X-Men 2, eu não via uma narrativa desse tipo ser bem explorada como acontece aqui.

Entretanto, mesmo com um roteiro divertido que se aproveita de arquétipos bem estabelecidos, além de dosar muito bem seu drama, Guardiões da Galáxia possui notáveis problemas. Estruturalmente é tudo bem encaixado e orgânico, mesmo que o longa perca fôlego no intervalo entre o segundo e o terceiro ato. Gunn brinca com os gêneros da ópera espacial aliada com elementos de prison break e de filmes de expedições. Um dos elementos que cansou na época era novamente o uso de um Joia do Infinito como Macguffin para mover toda a narrativa. Ou seja, o longa possuía diversos clichês Marvel que assolaram a medíocre segunda fase do MCU.

Tanto que até um dos conflitos secundários que possui sua importância lembra muito a relação entre Bucky e Steve Rogers. Trata-se da briga de Nebula com Gamora, irmãs que escolhem lados opostos em uma jornada com a mesma finalidade. Até mesmo a conclusão desse arco é igualzinha ao que acontece em Soldado Invernal. Outro elemento que já estava cansando é o clímax que aposta em ameaças que vem do céu, em rota de colisão com a superfície. Isso já era visto em Mundo Sombrio, Soldado Invernal, Os Vingadores e ainda seria repetido em Era de Ultron. Ao menos, aqui, Gunn conduziu magistralmente uma sequência criativa de luta aérea a la Star Wars e Top Gun.

E claro, como não poderia deixar de ser, o maior problema que a Marvel possui até hoje: o vilão descartável #X. No caso, esse aqui seria o vilão descartável #10. Ronan não é pior de todos os antagonistas apresentados graças à atuação de Lee Pace e também por conta do problema sociopolítico que ele representa. Novamente, é algo rabiscado na narrativa, mas ao menos mostra a motivação de Ronan. Um intolerante que não lida com o tratado de paz entre Xandar e os Kree – duas civilizações que estavam em guerra por milênios. Logo, ele busca o orbe para Thanos sob a promessa de ele destruir Xandar.

Mesmo se tratando de um vilão raso e relativamente estúpido, ao menos há uma reviravolta no núcleo, deixando Ronan menos submisso a Thanos. Algo interessante, mas ainda assim, insatisfatório. O personagem continua unidimensional e de peso pífio. Todo o conflito entre bem e mal aqui é telegrafado e previsível o que torna toda a narrativa de Guardiões exatamente como um passeio em uma montanha russa: é algo muito divertido, mas que você já sabe todo o percurso e a conclusão antes mesmo de embarcar na aventura.

Com o auxílio de uma narrativa muito convidativa para a criatividade, James Gunn brilha na direção. O que é algo deveras impressionante graças a sua inexperiência com produções dessa escala ou com cenas de ação tão complexas. O que Gunn domina completamente é sua habilidade com diversos tipos de linguagem cinematográfica. O cara é mestre em atmosfera.

Repare em cenas de drama, como a do começo do filme. Ao contrário de diversos outros diretores Marvel, Gunn aproveita e muito a fotografia excelente de Ben Davis para incutir essas emoções no espectador. A iluminação fraca, barroca, de sombras bem delineadas, de tons mistos entre um bege nauseabundo e o branco esverdejado, mantendo a profundidade de campo bem restrita contribuem para focar nosso olhar e pensamentos na dor de Quill ao ver sua mãe morrer diante de seus olhos. Logo depois, em sua abdução, os enquadramentos distantes revelando um bosque tenebroso cheio de névoa já sugerem que algo de maligno acontecerá com o garoto – a abdução.

Antes dos créditos, os tons sóbrios ainda se mantem, até Quill ligar seu walkman. Nos créditos, já ocorre a primeira subversão de expectativa que Gunn tanto trabalhará ao longo do filme. O ambiente inóspito do planeta que acompanha o ser esquisito de máscara tenebrosa subitamente se transforma em um passeio divertido e animado com Quill revelando seu rosto. Outros exemplos genuínos de subversão de expectativa e do domínio sobre linguagem que Gunn possui são: a cena do diálogo quase romântico entre Quill e Gamora quando ele explica sobre Footloose; na caminhada triunfal do grupo se dirigindo à batalha final e também do embate final entre Ronan e Quill.

Entretanto, o diretor não vive somente de subversão e trabalha seguindo a cartilha em momentos adequados. Vejamos: toda a sequência da fuga no Kyln, a prisão galáctica; quando ocorre a primeira catarse em Quill ao salvar Gamora no espaço – detalhe para os belíssimos planos de profunda contemplação, e onde Gunn arrisca, corretamente, na linguagem do western spaguetti na cena de glória de Yondu, após a destruição de sua nave.

É a direção mais entusiasmada dos filmes Marvel, com toda a certeza. A variedade de planos, de sacadas inteligentes de encenação, do completo aproveitamento da fotografia de cores explosivas e esquemas de iluminação mais elaborados de Ben Davis que finalmente eleva a qualidade de cinematografia dos cinzentos longas anteriores da editora – até agora, o trabalho fotográfico de Guardiões é insuperável dentro do MCU, e, principalmente, do perfeito equilíbrio entre drama e comédia. Não faço ideia como, mas Gunn conseguiu render Kevin Feige para deixar as sequências dramáticas intocadas, sem alívios cômicos irritantes.

Ironicamente, Gunn não erra nas muitas sequencias de ação, tornando toda a decupagem muito orgânica e fácil de ser compreendida, mas sim em alguns dos diálogos entre o grupo. O exemplo mais nítido dos excessos de cortes secos em uma conversa ocorre justamente no discurso catártico que Quill dispõe em sua última tentativa de unir o grupo. Nada muito grave, mas certamente incômodo.

Também é impossível encerrar a crítica sem comentar do ótimo trabalho do elenco. Principalmente o de Zoe Saldana e Chris Pratt que conseguem dominar com facilidade todos os picos dramáticos que seus papeis exigem apostando muito na força de seus olhares. Dave Bautista, Bradley Cooper e Vin Diesel também realizam ótimo trabalho embora seus papéis mais chamem a atenção pela competência surreal dos departamentos de efeitos visuais, animação e maquiagem.

É perfeitamente compreensível caso alguém desgoste de Guardiões da Galáxia. Com certeza não é um filme que poderá cair no gosto de todos, mesmo esbanjando tanto carisma. Porém, conseguiu me agradar e olha que os filmes Marvel conseguem acumular muitas decepções na minha caderneta. O trabalho é exemplar como já foi vastamente explorado e a direção de James Gunn certamente é o grande diferencial. O diretor-roteirista acertou em cheio a ponto de os notáveis problemas da narrativa não incomodarem muito. O sentimento que predomina é a certeza de termos visto um filme excelente que nos fisga, com certeza, pela emoção.

Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy, EUA - 2014)

Direção: James Gunn
Roteiro: James Gunn e Nicole Perlman
Elenco: Chris Pratt, Zoe Saldana, Dave Bautista, Bradley Cooper, Vin Diesel, Karen Gillan, Lee Pace, Josh Brolin, Michael Rooker, John C. Reilly, Glenn Close, Sean Gunn
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 122 min

https://www.youtube.com/watch?v=d96cjJhvlMA

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by Matheus Fragata

Crítica | Doutor Estranho (Com Spoilers)

Obs: somente leia o texto após ver ao filme.
Obs²: o texto é longo, como de costume para análises desse tipo. Leia com calma.

Grandes Sucessos vem de Pequenos Começos

Stephen Strange não teve uma história estranha. Apareceu pela primeira vez em Strange Tales #110 em 1963, plena Era de Prata dos quadrinhos, pleno anos 1960, década conturbada marcada pelo nascimento de movimentos de contracultura, guerras impiedosas no oriente e da ascensão das drogas sintéticas.

O mundo estava mudando a passos largos. A Marvel também. O teor puritano dos anos 1950 marcados pelo sonho americano pós-Guerra estava arrefecendo. A Marvel tropeçaria em outro sucesso criado pela mente brilhante de Steve Ditko.

A criação do personagem marcaria a aposta em um herói místico que fugiria da típica porradaria tão presentes nas páginas da casa das ideias. A criação de Steve Ditko, resenhada em apenas cinco páginas, foi aprovada por Stan Lee para servir como filler nas antologias da publicação Strange Tales, enxergando algum potencial.

Certamente não reconheceu que o embrião das ideias piloto de Ditko para o personagem estariam em plena sintonia com todo o movimento de contracultura e dos efeitos alucinógenos causados por drogas sintéticas que explodiria já no final da mesma década – consequentemente, aumentando a popularidade do personagem. Fato este que muita gente já encarava que o núcleo criativo da HQ já estivesse mais do que afundada em cogumelos e outros alucinógenos.

Demorou até Lee e cia. Decidirem que Doutor Estranho seria o substituto definitivo da publicação Stranger Tales. O personagem só ganhou sua edição mensal em 1968. Porém, até lá, Ditko e Lee mantiveram uma linha editorial em plena sintonia com diversas experimentações. Disso não há dúvida alguma. Como o personagem era muito pequeno perto de heróis como Os Vingadores e Homem-Aranha que mantinham sua linha editorial rígida no padrão mercadológico, Doutor Estranho pôde se tornar o parque de diversões da dupla.

Todo o surrealismo, apresentação colorida e psicodélica, com histórias absurdas que flertavam com mitologias diversas temas místicos envoltos por certa penumbra oriental que explodiria nos anos 1970 colaboraram para essa ser a década de maior destaque do super herói – contando até mesmo com desenvolvimento de arcos muitíssimos bem definidos, mas mantendo a média de 400 mil cópias vendidas.

Passados os anos 1970, Doutor Estranho ainda resistiria às duríssimas provas do tempo em 1980, 1990 e 2000, perdendo e recuperando suas edições mensais únicas diversas vezes tornando-se protagonista e coadjuvante de outras revistas melhores sucedidas. Agora, finalmente chegou a hora do personagem receber o maior dos holofotes possíveis: virar um personagem dos blockbusters da Marvel Studios.

A razão da presença de um personagem de menos destaque é muito simples e evidente. Não se trata apenas do projeto de expansão eterna de seu universo cinematográfico, mas de repetir a experiência de 2008 com Homem de Ferro, época onde os direitos ainda se concentravam com a Paramount. Robert Downey Jr. está a quase dez anos encarnando Tony Stark, se tornando cada vez mais caro. E a Marvel precisa de um novo rosto para preencher o vazio do carisma que Downey Jr. deixará quando aposentar sua participação nesses filmes.

Então quem melhor do que Benedict Cumberbatch? Podem dizer tudo sobre os masterminds executivos da Marvel, mas esses caras entendem muito sobre visão de mercado. O que estamos testemunhando é justamente isso: um novo ator consagrado que atrai público, um novo personagem interessantíssimo, um novo nome para sustentar as futuras fases 4 e 5 que ocorrem após a Guerra Infinita, filme previsto para 2018.

Então, para os fãs do Mago Supremo da Marvel, o filme cumpre o que promete? Ele indica mudanças na estrutura Marvel? Sim e não. É um bom longa, mas Doutor Estranho não é, nem de longe, o melhor produto que o estúdio já ofereceu aos seus fãs de carteirinha. Agora enfim chegamos no momento da análise. Caso não queira saber nada do filme, te recomendo deixar de ler aqui mesmo, além de oferecer a minha recomendação – ele vale seu dinheiro e merece ser visto em IMAX. Agora, se não se importa com spoilers, podemos prosseguir e já aviso, o texto é grande então leia com tranquilidade e sem pressa.

O Passado nem tão Estranho

O longa acompanha a história de origem de Stephen Strange de modo muito similar às HQs – o começo também é o melhor segmento da obra. Strange é um neurocirurgião arrogante e autoindulgente, crendo que é praticamente um deus na Terra. Ele se recusa a atender diversos pacientes ‘incuráveis’ para não manchar sua carreira prestigiosa cheia de holofotes e dinheiro abundante.

A caminho de mais uma premiação, dirigindo em altíssima velocidade, Strange se distrai com o tablet já escolhendo possíveis pacientes que lhe trariam ainda mais fama. Sem guiar muito bem a direção, bate em outro carro que provoca um enorme acidente que lhe custará toda a firmeza de suas mãos – seu principal instrumento de trabalho.

Quando finalmente recobra seus sentidos, Strange se revolta com o tratamento cirúrgico que suas mãos receberam e passa a dedicar cada segundo do seu tempo para procurar todas as soluções médicas possíveis do ocidente. Seguindo um caminho cada vez mais sombrio e solitário, Strange descobre que um homem foi curado após sofrer um acidente tão terrível quanto o dele.

Através dessa pessoa, Strange conhece Kamar Taj, um santuário escondido em Catmandu – o incidente incitante do longa é bem fraco, assim como o da HQ. Viajando para o oriente, o protagonista se depara com um mundo estranho repleto de misticismo e de verdades ocultas. Com algum mísero esforço, a Anciã o acolhe e apresenta o incrível mundo místico que pode curar suas mãos destruídas.

Porém, conforme seu treinamento avança, Strange passa a descobrir segredos de sua mestra, além de ser abordado constantemente para que tome parte em uma luta transcendental contra Dormammu, o dominador de planetas que vive na Zona Escura, e seus zelotes liderados por um antigo aluno da anciã, Kaecilius que visa abrir um portal para que Dormammu consuma o planeta.

Escrito por três roteiristas, o texto de Doutor Estranho tenta começar quebrando um pouco a ordem lógica dos filmes Marvel. Cumprindo as exigências de todo bom blockbuster, o longa já apresenta suas cenas de ação em poucos minutos. Kaecilius ataca Kamar-Taj para remover páginas do livro de Cagliostro para realizar um feitiço que permitirá o contato de Dormammu com os zelotes. Nesse interim, a Anciã os persegue até Londres, em uma viagem entre portais, para recuperar o feitiço proibido resultando em uma enorme cena de ação que vemos finalmente uma ação que foge da porradaria típica. Os feitiços que interferem com edifícios na Dimensão do Espelhos servem para contribuir na luta.

Falhando em impedir a fuga de Kaecilius, a Anciã retorna para Kamar Taj e passamos a acompanhar, enfim, a história de Stephen Strange. Os outros filmes Marvel que possuem início similar, já estabelecendo seu vilão para mover a narrativa são Os Vingadores e, de certa forma, Guerra Civil. Pontos para Doutor Estranho em tentar fugir da mesmice ao aplicar urgência nos primeiros minutos.

Com o primeiro ato da história de Stephen Strange, as coisas tendem a seguir o padrão clássico da jornada do herói que todos estamos carecas de saber. Aqui, na seguindo o formato de Homem de Ferro e Thor, onde um arrogante poderoso e inteligente é desprovido de poder por uma condição incapacitante – um homem que depende de uma bateria para sobreviver, um deus transformado em humano – e que, em sua jornada, retomará seu status, mas com a índole evoluída. Dentro dos filmes Marvel, Doutor Estranho divide suas semelhanças formulaicas com esses dois longas, porém fora desse universo é possível encontrar diversas passagens que recordam Matrix, Lanterna Verde e Batman Begins.

O modelo de apresentação é praticamente igual: o personagem em seu cotidiano mágico aplicando seu poder sobre os outros enquanto dispara piadas e dança com músicas pop de sucesso. Após demonstrar o quão tosco Strange pode ser, o roteiro cresce ao apostar no drama – o mais intenso da era Marvel pós-Disney até então. E é justamente nisso que ele brilha: na confrontação do ego imenso de Strange diante de sua deficiência, não somente física, mas de orgulho. O personagem é doente de corpo e alma caindo numa obsessão deprimente em recuperar as mãos.

Nisso, Benedict Cumberbatch impressiona ao sair um pouco do básico garantido por seu grande carisma. Voltamos a ver uma faceta que havia apresentado em Além da Escuridão com seu Khan, quando o personagem se revolve em ódio. É algo menos intenso e caricato, o que colabora muito para nós crermos em sua dor. Isso acontece durante o último diálogo dele com Christine em seu apartamento.

Aliás, esse núcleo com Christine é bastante descartável já que o romance nunca engrena de fato (sem render nem um beijo), além do drama não ser minimamente desenvolvido. Sua função narrativa é mínima servindo apenas como uma espécie de deus ex machina para salvar Strange em uma luta de projeções astrais e para ele reconhecer que a tratava mal, indicando a evolução de seu ego. Somente isso, pois a personagem não ganha nem mesmo desfecho dentro da narrativa – até Natalie Portman recebia mais cuidado dos roteiristas.

Já era normal a Marvel fazer um trabalho ruim com seus vilões, mas tratar os interesses românticos com tão pouca vontade é algo relativamente novo. Pelo menos, Rachel McAdams oferece uma boa atuação automática de luxo.

O drama de Strange no confronto entre ego vs. Inaptidão consome bons minutos do longa, sua motivação para partir a Kamar Taj é bem pautada, inegável. O primeiro ato do longa é muito eficiente e, para ele, somente reservo meus elogios.

Todavia, estranhamente, o longa começa a decair assim que Strange chega a Kamar Taj. O longa possui um ápice visual incrível quando a Anciã “abre” a mente do doutor resultando na sequência visualmente mais arrebatadora do ano. Porém, após um clássico e clichê período que Strange precisa implorar para ser um estudante da Anciã, o filme começa a tropeçar em seu enredo – que é bastante simples por sinal.

A amizade de Mordo e Strange não é bem definida, mas ele serve como tutor para o protagonista. O interessante é que os roteiristas exploram em alguns diálogos toda a admiração que Mordo nutre pela Anciã – tentando justificar a motivação dele virar o antagonista no próximo filme. Quando Strange finalmente domina a magia dos portais em mais uma situação cliché, mas eficiente, temos uma sequência em montagem para mostrá-lo desenvolvendo seus talentos místicos e marciais.

Mesmo se tratando de uma boa sequência, praticamente não há sacrifício. Toda aquela atmosfera mais densa que marcava o primeiro ato desaparece e não volta a surgir. Os roteiristas lançam, através de muita exposição e didatismo, que Strange é fantástico, tem memória fotográfica e facilidade com teorias diversas. Logo, em questão de poucas cenas, o personagem já domina diversos feitiços e línguas mortas. Ao menos tem uma justificativa em uma cena que mostra a projeção astral de Strange lendo enquanto seu corpo físico dorme.

Nessas cenas, aprendemos sobre relíquias místicas, dos usos dos portais, sobre a Dimensão dos Espelhos onde os personagens podem lutar e interferir com a matéria sem que os feitiços afetem o mundo real e também há uma breve explicação sobre o plano de Kaecilius com as páginas rasgadas do livro da Anciã.

Ainda assim, se trata de uma sequência infeliz, pois vemos apenas seu progresso em feitiços primários. Não é como Matrix onde cremos, através de uma boa cena, que Neo sabe kung-fu. Aqui em Doutor Estranho, o domínio só surge através de “anos de teoria e prática” – pena que isso não é cumprido. Nesse meio tempo, os roteiristas encaixam cenas visando movimentar o drama de relacionamento de Christine e Strange, porém são inserts ligeiros esquecíveis.

Até que ele, curiosamente, se depara com o Olho de Agamotto que neste UCM é a Joia do Tempo. Rapidamente ele domina o artefato e suas magias podendo voltar e avançar no tempo. Através disso, remonta as páginas roubadas do livro da Anciã e descobre que ela utiliza energia da Zona Negra para manter-se imortal. É aí que o roteiro burocratiza toda a situação e acaba perdendo o rumo, pois o problema torna-se maior que os desejos do personagem.

Nesse exato momento, a narrativa entra em pausa, pois Kaecilius invade o Kamar Taj a partir dos portais dos Sanctums, templos que projetam auras protetoras na Terra – com o de Londres já destruído, ele tenta invadir outro. Strange, sem compreender direito a situação, invade o de Manhattan para avisar os magos do local. Então temos uma grandiosa cena de ação com Strange batalhando contra os zelotes e Kaecilius. Na luta, descobrimos que Strange não está pronto para lutar contra os antagonistas. De modo bastante inteligente, os roteiristas elaboram situações para que os capangas sejam eliminados usando apenas artefatos presentes no museu do Sanctum – essas resoluções inteligentes de conflitos é que conseguem distanciar esse filme dos outros Marvel.

Essa é praticamente a única sequência onde Kaecilius e Strange dialogam, explorando um pouco mais da motivação do vilão que é bastante estapafúrdia falando sobre vida eterna na dimensão bizarra onde Dormammu vive. O tema da mortalidade e tempo são recorrentes no roteiro, mas nunca aprofundados como se deve. De costume, tudo é resolvido com uma piadinha sem graça típica dos roteiros Marvel.

Aliás, é justamente nessa sequência que os roteiristas e Derrickson introduzem o Manto da Levitação que possui personalidade própria, rendendo algumas boas piadas. Porém, é difícil não se recordar do tapete de Aladdin ao ver a capa agindo como um parceiro “canino” de Strange em diversos momentos. Se é algo positivo ou negativo, sinceramente, não faço ideia, mas imagino que a decisão não deve agradar aos fãs mais ferrenhos das hqs do super-herói.

Após toda a luta, um conceito fresco e satisfatoriamente aplicado finalmente surge nos filmes Marvel: o vilão tentando seduzir o herói. Admito que quando o diálogo se inicia, a tela ganhou outro magnetismo. Seria absolutamente fantástico ver um bom desenvolvimento entre os dois e enfim, estabelecendo um vilão mais inteligente que não parte somente para a porrada. O diálogo influencia sim o protagonista, que passa a duvidar da índole de sua própria mentora naquele universo. Porém, novamente, isso acontece nessa única vez. O roteiro não dará mais chances de desenvolver o tema cerne do longa: tempo e morte.

Se ao menos trocassem aquela cena de ação gigantesca do começo do filme para apresentar um flashback decente, de uns oito ou doze minutos, para estabelecer Kaecilius e sua REAL motivação, o roteiro daria outro dinamismo para o drama de seu lado antagônico ter verdadeira relevância.

Exemplo: algo clichê. Kaecilius era um engravatado de sucesso negligente com sua família até que uma filha ou esposa adoeça gravemente e a medicina apenas ofereça um tempo de sobrevida para os entes queridos. Pronto, aí está uma bela motivação para termos um vilão obcecado com tempo e imortalidade, além de criar uma rixa genuína entre ele e Stephen Strange (representante da medicina). Simples e eficiente, já teria destacado essa obra além do básico. Inclusive, exigindo um pouco mais da atuação morna de Mads Mikkelsen.

Uma das grandes falhas de narrativa de Doutor Estranho é justamente a motivação dos dois lados lutarem. Strange cai nessa luta, ele não está lá porque quer, por sentir vontade em tomar parte em uma luta ancestral e cósmica. Assim como o vilão pouco se importa com a figura de Strange, nem sequer sabe de sua existência ou possui qualquer querela para ser definida em uma luta. Na grande verdade do MCU, Kaecilius não ofereceria perigo nenhum para Strange, seria mais um problema para os Vingadores. Por falta desse atrito, é difícil crer quando o protagonista decide entrar na luta, honrando a Anciã.

A culpa recai exclusivamente nos roteiristas que insistem em peças de ação muito compridas para a segunda metade, nunca dando a chance de resolver as burocracias que eles criam momentos antes. São problemas muito profundos que não recebem a menor resolução: Strange entra em colisão com a Anciã, a chamando de mentirosa por usar energia da Dimensão Negra para manter-se imortal. Então Strange recusa o título de Mestre feiticeiro se negando a proteger o Sanctum de Nova Iorque – ao mesmo tempo, Mordo perde a fé cega que tinha na Anciã. Strange relembra que veio até Kamar-Taj apenas para curar suas mãos e que não deveria entrar nessa luta por: ser um médico, cumprindo o juramento de não tirar vidas e, não entender muito bem o tamanho da ameaça que Dormammu representa.

Após atirar todos esses conflitos em tela, novamente tudo é interrompido para mais uma cena de ação onde, eventualmente, a Anciã morre. Porém, os roteiristas tentam resolver logo esse imbróglio criado com um diálogo final entre a Strange e sua mentora, a fim de gerar a catarse no protagonista, o transformando em herói. De algum modo, sim, a catarse de Strange se encontra nessa peça de diálogo, porém é algo tão fraco e difícil de crer que se torna totalmente esquecível. Além da característica geral da conversa ser bastante estranha.

Nessa altura, o trio de escritores já enterra qualquer possibilidade desenvolver o restante da narrativa por não haver mais tempo. O núcleo romântico com Rachel McAdams nem conclusão ganha – suas participações no hospital tentam elaborar alguma sensação de urgência e vulnerabilidade para Strange, Mordo recebe a motivação mais rasa possível para virar o vilão do próximo filme e Kaecilius já é descartado com facilidade.

O clímax da obra incomoda por diversos motivos, mas o mais gritante deles é a facilidade do domínio que Strange obtém sobre o Olho de Agamotto e a Joia do Tempo. Com esse recurso, ele é capaz de fazer um acordo com Dormammu. Certamente essa “batalha” contra o grande vilão é resolvida de modo inteligente, fugindo do padrão videogame que esses filmes têm tomado. Também é interessante notar como a Marvel soluciona o problema de não possuir os direitos de Galactus que atualmente se encontra no pacote do Quarteto Fantástico, vendido para a Fox durante uma crise editorial profunda.

Aqui, a Marvel já indica que Dormammu funcionará como o Galactus do MCU, já que é referenciado como “colecionador de mundos” e de “força da natureza”. Uma decisão lógica que não agradará muita gente. Também é aberto o conceito de universos paralelos já indicando que veremos mais versões de heróis já estabelecidos no MCU – possivelmente uma Spider Gwen e Miles Morales para as fases 6 e 7 desse projeto infinito para os cinemas.

Outro detalhe irritante é a quantidade expressiva de tiradas cômicas que esse longa possui. É algo tão surreal quanto o que aconteceu em Homem de Ferro 3 Excetuando o começo do longa, impecável e denso, assim que Strange chega a Kamar-Taj parece que Kevin Feige rouba o roteiro do longa e começa a rabiscar a cada cena suas exigências de tiradas cômicas bizarras que arrasam com o clima do longa.

Na luta contra Kaecilius, na primeira, há duas piadas em momentos-chave. Adeus tensão. Segundos depois da morte da Anciã, outra piada boboca. Adeus pesar e reflexão. Strange quase morre durante um duelo? Logo teremos uma piada. O produtor não deixa o filme ter esse respiro importante para o espectador se aprofundar ainda mais em sua atmosfera. Há quem não se importe, porém, no meu caso, isso incomoda e muito.

O Homem do Terror dá as caras na Marvel

O anúncio de Scott Derrickson para dirigir Doutor Estranho foi recebido com bastante euforia e não era por menos: sua especialidade em longas de horror poderiam agregar muito na linguagem do longa e na história da tragédia de Strange. E com certeza é uma escolha muitíssimo acertada. Derrickson é um dos diretores mais talentosos que já pintaram nas telas dos filmes Marvel.

A começar, usa linguagem visual é bem mais elaborada, apostando em uma diversidade muito bem-vinda de planos — evitando o padrão de planos conjuntos, médios e closes presentes em filmes anteriores. No começo, há um show de uso do bom uso das imagens para enfatizar a narrativa. Repare nos muitos enquadramentos que deixam as mãos de Strange em evidência, nas suas mãos ainda sadias, prontas para o exercício da profissão.

Após o acidente, Derrickson já enquadra a mão de Christine guiando a maca para a sala de cirurgia. Passa para o close revelando o estado gravíssimo que o doutor está e então usa a câmera subjetiva revelando as mãos enfaixadas com gazes encharcadas de sangue. Logo depois, o resultado final, com as mãos inchadas e remendadas totalmente imobilizadas com pinos fixados nos ossos. Derrickson apresenta uma vertente gore que nunca tínhamos visto em um filme desses até agora. É bem-vindo, pois agrega muito à narrativa. Ali, marca o ponto sem volta para Strange. O choque da ruptura completa de sua vida regressa.

Depois, Derrickson dá mais folga na ênfase às mãos, mas esses enquadramentos retornam de tempos em tempos exigindo que o espectador monte o contraste em sua mente, compreendendo a dor do protagonista. Infelizmente, as proezas das metáforas visuais se encerram em pouco tempo. Assim que Strange parte para Catmandu, a fotografia de Ben Davis se torna mais comportada com esquemas de iluminação padrão: luzes azimutais difusas de tons dessaturados.

Felizmente, a concepção visual de Doutor Estranho é bem distinta, então mesmo com uma iluminação mais comportada, a jornada visual não é comprometida. Novamente, por conta de Derrickson e da equipe muito competente de efeitos visuais, além do setor de figurino e design de produção. Tudo é realizado com o mais excelente capricho.

Derrickson usa inspirações vindas diretamente de A Origem e de 2001 de Nolan e Kubrick, respectivamente, para tornar a experiência visual desta obra algo diferente de tudo que já viu. Ignorando a gravidade, o diretor faz jogos de encenação extremamente complexos jogando seus personagens em direção a diversos quadrantes dos seus enquadramentos enquanto lutam fisicamente e com magias incandescentes belíssimas.

Com esses elementos, é indiscutível negar a qualidade visual do longa que explora, igualmente, a psicodelia e os efeitos hipnóticos de caleidoscópios. Há até mesmo uma sequência que o próprio cenário rotacional em efeito de caleidoscópio. É algo fenomenal que nunca tinha visto na vida. Tudo nos cenários é aproveitado para gerar esses efeitos ornamentais sejam espelhos, ladrilhos, prédios, esculturas barrocas na madeira, absolutamente tudo. É desde já um dos concorrentes mais fortes para ganhar o vindouro Oscar de efeitos visuais do ano que vem.

Derrickson também é feliz na decupagem das cenas de ação. Ele evita aquela montagem de cortes frenéticos, marca registrada dos irmãos Russo, dando chance da coreografia se desenrolar em poucos planos valorizando as lutas corporais e injetando tensão crescente para tanto.

Particularmente, na movimentação de câmera com o assunto tratado, a cena onde Strange passa a dominar o Olho de Agamotto experimentando com a matéria de uma maçã é bem pensada, apostando no básico do uso do travelling deslocando a câmera em movimentos de semi-circunferência. É uma abordagem de linguagem muito clássica que dá gosto de ver.

Também é muito recomendado que se veja Doutor Estranho em uma tela IMAX já que boa parte do longa é formato para esse padrão, além do uso do 3D ser espetacular com o esquema inteligente de profundidades de campo que se alteram a todo momento garantido efeitos vertiginosos raros. As sequências onde Derrickson congela o tempo e passeia com a câmera pelo espaço também merecem muito destaque.

Talvez, o único momento onde Derrickson erre se encontre justamente no confronto de Strange contra Dormammu – também construído por efeitos psicodélicos. Quando o protagonista prende o ser eterno em um loop temporal, Derrickson aposta no conjunto de elipses que mostram o herói morrendo diversas vezes – umas sete. Graças a pouca quantidade de planos para montar a lógica dessa sequência, fica difícil crer que Dormammu desista tão rápido do inferno criado por Strange, já aceitando o acordo. Ali seria o momento ideal em apostar no efeito de spli screen, brincando com várias telas mostrando as torturas que Strange se submete, novamente inserindo um pouco dos elementos de caleidoscópio previamente apresentados.

Doutor Estranho era a chance da Marvel arriscar em elementos novos e, de certa forma, ela acertou em cheio na inovação. O novo herói garantiu um frescor visual para esse universo cinematográfico que não víamos desde Guardiões da Galáxia. Porém, em total contraste de seus méritos visuais, a narrativa é um das mais fracas e apressadas que já vimos em um longa do tipo. O que torna tudo muito estranho, após presenciarmos um primeiro ato tão feliz em sua realização.

É muito decepcionante ver um filme desse calibre não conseguir estabelecer com qualidade nem mesmo seu protagonista. O restante dos personagens é muito descartável, agregando pouco ou nada. Não fosse o talento de Benedict Cumberbatch e também pelo trabalho melhor desenvolvido em Homem de Ferro, seria bastante complicado aceitar as decisões dúbias dos roteiristas para a segunda metade do longa. Dito isso, notável problema é tamanha esquizofrenia entre apostar na exposição intensa e didatismo para explicar as novas regras da vertente mística da editora enquanto deixam diversas narrativas paralelas de personagens de lado, sem oferecer um mínimo encerramento decente.

A Marvel não pára de apresentar conceitos fenomenais, mas ela precisa parar de incapacitar suas narrativas as limitando em filmes que tentam flertar com temas profundos e interessantes, mas que sempre acabam arranhando esses elementos. Quem leu até aqui, percebeu que Doutor Estranho é um longa com poucos erros, mas de muitas fraquezas oriundas de seu desenvolvimento pífio. Isso está cansando o público e até mesmo a crítica. Ou a Marvel arrisca com mudanças estruturais em sua narrativa ou veremos um grande império ficar cada vez mais limitado em suas finitas possibilidades.

Doutor Estranho (Doctor Strange, EUA – 2016)

Direção: Scott Derrickson
Roteiro: Jon Spaihts, C. Robert Cargill, Scott Derrickson
Elenco: Benedict Cumberbatch, Chiwetel Ejiofor, Tilda Swinton, Rachel McAdams, Mads Mikkelsen, Benedict Wong
Gênero: Aventura
Duração: 115 min

https://www.youtube.com/watch?v=YUfWrIcX4zw

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by Matheus Fragata

Crítica | Capitão América: O Primeiro Vingador - Aventura matinê e à moda antiga

O Capitão América foi o maior super-herói criado para encorajar os jovens americanos a lutar pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. O personagem feito por Joe Simon e Jack Kirby em 1941 e cumpriu sua função até o fim da guerra, depois caiu no esquecimento – aparentemente, os comunistas não eram adversários preocupantes para o público alvo. Somente em 1964, o Capitão ressurgiu para liderar o grupo dos Vingadores e continua ativo até então. Ele morreu durante a Guerra Civil da Marvel, mas depois ressuscitou como todo bom personagem patriótico. Visando o projeto ambicioso de reunir vários heróis em um filme só, a Marvel permitiu a produção de vários filmes solos desses personagens para servir de introdução ao filme dos Vingadores. O Incrível Hulk, Homem de Ferro e Thor já cumpriram seu papel. E agora o “bandeiroso” chega com força total aos cinemas entregando um ótimo entretenimento.

Steve Rogers, um garoto do Brooklyn, sonha lutar e defender sua pátria na Segunda Guerra. Entretanto, o físico do garoto não acompanha a grandeza de seu caráter. Rogers era reprovado em todos os exames graças ao seu porte – magricela, fraco, tampinha e doente. Quando já tinha perdido as esperanças em se alistar para o exército, acontece uma reviravolta na vida do menino. Subitamente, Dr. Erskine convida Rogers para participar em um experimento inédito feito sob medida para a Guerra. Tratava-se do “soro do supersoldado”.

Após a cirurgia, Rogers não acredita nas habilidades sobre-humanas de seu novo corpo. Mas os nazistas também tem suas cartas na manga. Fanático por poder, Johann Schimidt encontra uma arma poderosíssima capaz de aniquilar tudo em seu caminho. Aliado a esta nova fonte de destruição, Schimidt separa o órgão nazista da H.I.D.R.A. do poder controlador de Hitler a fim de dominar o mundo. Somente o recém-criado Capitão América será capaz de impedir a ameaça nuclear de atingir os Estados Unidos. Salve-nos, Capitão América!

Maniqueísmo ufanista

Os fãs legítimos do Capitão podem ficar tranquilos. O roteiro de Christopher Markus e Stephen McFeely é bem fiel à história dos quadrinhos e mantém uma unidade narrativa muito boa para o filme. Finalmente, um herói integrante dos Vingadores, recebe um filme que não é um trailer estendido para Os Vingadores. Houve, sim, algumas alterações do enredo original dos quadrinhos para adaptar a história aos cinemas. Peggy Carter não está na resistência francesa, mas sim no serviço militar norte-americano e o cientista ajudante de Caveira Vermelha, Arnin Zola, deixa sua forma de “televisor ambulante”. Fora isso, a deformidade da face do antagonista tem uma origem diferente no filme. Enfim, as leves alterações se adequaram muito bem a universo prospectado do longa metragem.

Acredite ou não, o roteiro não exacerba exageradamente o patriotismo americano. Ele é evidente, porém em uma escala muito menor – pouco comum para os quadrinhos originais do “bandeiroso” (para quem não sabe, esse era o apelido do Capitão América). Os roteiristas compreendem o fortíssimo sentimento antiamericano que abrange a população mundial atualmente. O primeiro sinal disto é a ausência das incrivelmente irritantes frases de efeito do Capitão. Todos que já leram uma HQ do herói conhecem seu psicológico “feliz até o apocalipse” ou “prefiro morrer a me render”. Exemplos disto são os clássicos “Eu forjo meu próprio legado”, “Eu sou um Vingador”, “Eu não sou leal a ninguém, General, exceto aos meus sonhos!” e “Me render? RENDER-ME? Você pensa que esse “A” que tenho na testa defende a França?!”. Certamente um herói de classe, didático, egocêntrico e chato. Eu detesto o Capitão América, mas o filme conseguiu deixar o herói carismático e suportável.

Isso acontece por um simples motivo: o espectador conhece o passado de Steve Rogers e, finalmente, consegue se identificar com seu conflito. A construção do perfil psicológico do protagonista é fantástica. Rogers é um homem sozinho, desacreditado, subestimado, aparentemente depressivo e muito ingênuo, porém tem caráter, coragem, é ambicioso, inteligente e altruísta. Os roteiristas conseguem deixar estas características muito evidentes somente com as atitudes inspiradas e persistentes do protagonista – assim as frases idiotas, origem de 50% de nacionalismo, são excluídas. Outra característica que ajuda a diminuir o nacionalismo é a inserção de personagens integrantes do Howling Commandos (Dum Dum Dugan, Gabriel Jones, Jim Morita, etc.) de diversas etnias para batalhar ao lado do protagonista. Eles deixam claro que Rogers aspira defender sua pátria em qualquer situação, seja no cinema ou em campo de batalha, apesar de sua forma física franzina.

Mesmo depois de sua transformação física, Rogers continua desacreditado e é utilizado como cobaia comercial para a guerra vendendo bônus em diversas cidades. Assim, o herói tarda ao aparecer batalhando. É interessante observar como os roteiristas removem a pose heroica inalcançável do Capitão. O lado emocional do personagem é vulnerável e atingido diversas vezes forçando-o a amadurecer rapidamente após a injeção do “soro do supersoldado”. Entretanto, nenhum adversário oferece uma ameaça real ao personagem tornando as cenas de ação, quando estas aparecem, bem enfadonhas.

Um dos aspectos mais criticados do roteiro de Thor foi o romance inverossímil e estranho entre Thor e Jane Foster. Felizmente, o sub-plot romântico de Capitão é muito bem desenvolvido. Rogers e Carter tem um romance instável que se normaliza no decorrer do filme. Steve é infantil demais para encarar e compreender o amor, já Peggy é extremamente orgulhosa para admitir sua paixão. O mais interessante desse conflito secundário é o seu desfecho ousado – trata-se de um anticlímax.

A ambientação na Segunda Guerra permite desdobramentos expandindo o universo da história. O espectador tem a oportunidade de conhecer a genialidade de Mr. Howard Stark, além do histórico das Indústrias Stark. O roteiro revela que mesmo envolvido em assuntos de guerra, Mr. Stark empenhava-se com outros ramos industriais. Howard também tem uma personalidade ímpar assim como seu filho, Tony. A história também sugere uma ligação científica com o universo fantasioso de Thor através do Cubo Cósmico. Os roteiristas não deixam de explorar tópicos verdadeiros da 2a Guerra como os artifícios de espionagem. A moto e o escudo do Capitão são, obviamente, presentes.

Todavia, os aspectos positivos do roteiro param por aí. O maior problema da escrita de Markus e McFeely foi à evolução do personagem antagonista, Caveira Vermelha. Ele é, de longe, um dos piores vilões da Marvel adaptados para o cinema. Isso, no entanto, é uma grande ironia – o Caveira Vermelha tinha tudo para ser um dos melhores. Primeiramente, o vilão carece de um motivo para sua raiva megalomaníaca. O roteiro dá ênfase no clichê de “dominar o mundo”, mas esta ideia está tão ultrapassada quanto o desenho Pinky e o Cérebro. Os roteiristas também dão outra desculpa para tamanha frivolidade: o Caveira Vermelha sonha com um mundo sem fronteiras. Porém isto é apontado em apenas uma cena botando em cheque o estímulo da crueldade do personagem. Teria sido interessante se eles tivessem explorado um pouco mais o passado de Red Skull.

Nas HQs, a história de Caveira, alterego de Johann Schmidt, é extremamente sombria, rica e detalhada, tornando compreensível a complexidade de sua ira para com a humanidade. Além disto, o roteiro passa uma imagem acovardada e fraca do antagonista – completamente o oposto dos quadrinhos. Os embates entre Capitão e Caveira também são decepcionantes. Até mesmo o desfecho do protagonista é ruim servindo apenas como adiamento de um confronto final para a futura sequência solo do filme.

Aliás, o arco narrativo inteiro dos antagonistas é o mais fraco do filme. Diálogos inexplicáveis entre o protagonista e Red Skull são uma válvula de escape constante para os escritores inserirem reviravoltas previsíveis, afinal é sempre bom bater um papo poético com seu arqui-inimigo antes de aniquilá-lo.

Ainda é difícil acreditar na incrível falta de mira dos capangas da H.I.D.R.A. Mas é inútil contestar atos tão clichês do cinema que ainda persistem em aparecer. Outra falha do roteiro é o desenvolvimento da amizade de Rogers com Bucky Barnes. Novamente, os roteiristas perdem a oportunidade de criar um conflito mais profundo com a reviravolta de papéis entre as amizades. Bucky passa de herói que protege o protagonista de valentões a refém para ser resgatado por Rogers. Por esses motivos acima, os lados do bem e do mal acabam caricatos numa relação de perseguição maniqueísta. Obviamente, o espectador acaba cansando em algum momento.

Por trás do escudo

As atuações não comprometem o divertimento. São boas, mas não fogem do comum. Chris Evans evitou transfigurar a personalidade de Johnny Storm para o Capitão. O ator consegue contar histórias sobre a vida do personagem apenas com suas expressões. No início, Evans mantém feições infelizes, cansadas e fracas acompanhadas de olhares melancólicos e impacientes. O ator transforma sua atuação assim que o personagem se torna Capitão América. Corrige sua postura curvada e frágil para uma confiante e cheia de vida. Seus olhares ficam mais concentrados e heroicos. As expressões esbanjam autoconfiança e coragem. Até o modo de andar foi repensado pelo ator. Outro ponto notável de Evans é seu condicionamento físico. É impressionante ver alguém com um porte tão invejável como o dele. Felizmente, o ator não opta pela extravagância do personagem. Na realidade, sua atuação é bem contida. Destaques de sua atuação se encontram nas cenas do treinamento militar e no epílogo.

O fantástico Stanley Tucci encarna o simpático Dr. Erskine. Assim como Evans, Tucci também apresenta uma atuação contida. Fazia um bom tempo que não via um ator modelar suas expressões com tanta facilidade, rapidez e naturalidade para a câmera. São expressões muito sucintas que podem escapar aos olhos desatentos. Tucci cria um semblante de visível cansaço e bondade para Erskine. Infelizmente, o ator conta com poucos minutos em tela. Dominic Cooper vive o espirituoso Howard Stark, mas não chega nem perto ao carisma proporcionado por Downey Jr. a Tony Stark. Suas expressões revelam uma sugestiva canalhice para o personagem. O ator consegue deixar o personagem interessante, carismático e cômico, porém fica difícil acreditar que o personagem realmente se trata do pai frio e compenetrado de Tony.

A fotogênica Hayley Atwell deixa a figura de Peggy Carter apática e chata. A personagem não empolga em momento algum. Ao menos, Atwell constrói o perfil “linha dura” da personagem. Sua atuação também é elegante e cheia de classe, porém isso não salva o péssimo carisma da personagem. O ator de um papel Tommy Lee Jones garante os alívios cômicos do longa. Novamente, Jones assume as feições rabugentas habituais e não inova em nada. Até mesmo a dicção grave de papéis passados é mantida. Quem salva o dia é Hugo Weaving. Se não fosse por sua atuação, Caveira Vermelha teria ficado pior do que já é. Com sua movimentação pesada e suas expressões frias lotadas de raiva, o ator evidencia a personalidade intolerante e totalitária do personagem instável.

A maquiagem também ajuda o ator a melhorar suas feições de ódio ao longo do filme. Entretanto, Weaving acaba exagerando em algumas cenas em que tende levemente para um lado caricato. Toby Jones é outro coadjuvante de ouro. Sua interpretação de Arnin Zola revela o psicológico do interessante do personagem.

Sebastian Stan, Samuel L. Jackson, Derek Luke, Neal McDonough, Kenneth June e Richard Armitage – este merece destaque – completam o elenco.

Nem tão vermelha, azul e branca

Os melhores aspectos artísticos de Capitão América estão em dois departamentos – na fotografia e na direção de arte. O diretor de fotografia Shelly Johnson transmite muito bem a atmosfera triste, pesada e completamente sem esperança da realidade dura da Segunda Guerra. A forte iluminação sépia amarelada prevalece durante a maioria da projeção garantindo um charme vintage ao filme, mas os tons acinzentados condizentes com a atmosfera tenebrosa e sombria também são presentes. Johnson também usa recursos físicos para deixar o ambiente ainda mais depressivo com os tons acinzentados. Exemplos disto são a chuva, a neblina e a lama.

As imagens têm suas cores saturadas em pouquíssimas cenas. Apesar dos tons monocromáticos do exército, os segmentos que acompanham Rogers em seu treinamento militar, são as mais iluminadas e coloridas.

O cinegrafista deixa sua marca por apresentar uma fotografia inteligente. Em diversas cenas, arquiteta estrategicamente a iluminação. Assim, em apenas uma tomada, o diretor consegue modelar a iluminação em tempo real. Isso acontece nos segmentos em que a steadicam acompanha o movimento dos personagens em corredores. Johnson também permite que os atores utilizem lanternas em uma cena. Com isso, a modelagem torna-se imprevisível, pois a luz vai depender do lugar os atores apontem suas lanternas. O resultado é belo e garante uma atmosfera de suspense muito boa. Os feixes de luz são outra característica que o fotógrafo utiliza diversas vezes.

Também gosta de trabalhar com a superexposição de luz. Uma jogada muito inteligente de sua iluminação é a de ocultar a figura deformada de Caveira Vermelha na minoria de suas cenas. Realiza o efeito com o uso inteligente da contraluz. Assim, a belíssima criação de silhuetas negras torna-se possível. Recentemente, na crítica de Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte 2, comentei que Eduardo Serra utilizava uma técnica peculiar ao simular flashes de luz. Surpreendentemente, Johnson também faz uso deste recurso. Novamente, o espectador encontrará flashes rápidos e suaves em algumas cenas. A incidência da luz também varia tornando-se forte e ás vezes, delicada e leve proporcionando um cuidado mais atento às sombras. O cinegrafista marca outra característica quando modela sua luz com muita rapidez. Isso acontece uma única vez no filme, mas seu significado impregnado de esperança ao redor da figura do Capitão é recompensador.

Porém, existe uma cena que o resultado de seu trabalho é estonteante. Durante oshow do bônus de guerra. Johnson assume descaradamente o tom patriótico tornando as cores azul, vermelha e branca da bandeira do país fortemente saturadas. Com isso, deixa claro o enorme êxtase e ufania perante a entrada dos USA na Segunda Guerra. Entretanto, todo o nacionalismo revela-se ser uma grande piada com o contraste fantástico que o cinegrafista realiza quando Capitão faz seu show para os soldados no meio da Guerra. Ali, evidencia toda a mentira gerada em torno do evento a fim de garantir lucros para o governo e faturar novos recrutas para o exército. A fantasia vendida é desmascarada pela sobriedade e frieza dos tons verdadeiros da guerra.

Mas espere! O show visual continua com a direção de arte. Os cenários recebem um toque retrô futurista deliciosamente criativo. Nunca vi tanta criatividade na composição de cenários e seus itens em apenas um filme só. O espectador precisa estar muito atento para enxergar todos os detalhes minuciosos das imagens. As placas e cartazes publicitários da época impressionam, sendo que alguns possuem o traço pesado do desenho semelhante às ilustrações de James Flagg – ilustrador do pôster mítico do “Uncle Sam” –, vide os maravilhosos créditos finais do filme.

Os cenários são grandiloquentes e majestosos. O melhor exemplo disto é o da Feira Stark que recebe outro tratamento igualmente fantástico da fotografia de Johnson. Como de praxe, a devastação da guerra é fielmente retratada. Os designs dos objetos que os atores interagem são muito inspirados. O carro do Caveira Vermelha é, de longe, um dos melhores que já vi. Aliás, a maioria dos meios de transporte do antagonista é inacreditável.

O figurino também não decepciona. O uniforme clássico do Capitão ficou muito legal, além disto, as cores da bandeira são levemente ofuscadas. O escudo do herói tem um detalhamento interessante também. Até mesmo as roupas do Caveira tem um estilo único. Os efeitos visuais devem ser o único aspecto pouco surpreendente do longa. A equipe de CG conseguiu deixar Evans raquítico e baixinho com competência, porém uma versão mais detalhada do efeito já foi conferida em O Curioso Caso de Benjamin Button. O movimento do escudo voando para cima dos inimigos do Capitão também é bem realizado.

O Homem Estrelado

A música é do desaparecido Alan Silvestri, mas antes de comentar sua trilha, é preciso escrever sobre a faixa orquestrada por Alan Menken. O compositor da Disney conquista o ouvido do espectador na cena do bônus de guerra. “Star Sprangled Man” poderia ser facilmente indicada ao Oscar por melhor música original. A rápida composição é épica e faz todo o cinema se sentir americano enquanto toca. Ela é lotada de trombones, trompetes, sininhos, escalas alegres e rápidas do violino e tambores. Todo o toque ufanista da cena toca o sentimento do espectador graças a brilhante música. A letra de David Zippel também é criativa e completamente descarada. Ele não disfarça que a música foi feita para os americanos – em determinado momento, as “bandeiretes” gritam “Who’s gonna save the American Way?”. A composição lembra muito as marchinhas clássicas dos anos 40/50.

Já a trilha de Alan Silvestri é um pouco menos empolgante, mas sua música também é inspirada e cheia de sentimento – várias assumem um tom de hino patriótico. Silvestri já orquestrou a trilha de diversos filmes de ação, então, já sabe bem como animar seu público. E também não deixa de emocionar, vide a bela trilha de Forrest Gump. Logo a trilha do filme é um misto dessas duas características. As composições são grandes e regidas com maestria em sua orquestra sólida. Inúmeras vezes, Silvestri utiliza trombones para construir suas músicas. Esse instrumento peculiar deixou as músicas bem parecidas com as composições menos famosas de Indiana Jones. Algumas têm tons bem ameaçadores enquanto outras são pacíficas. Uma coisa é certa na trilha de Silvestri, energia é o que não falta. O espectador certamente sairá satisfeito com a música do filme após o término da sessão. Claro, não posso esquecer o tema principal do longa. É muito bom, esbanja esperança assim como a figura do herói e tem uma sinfonia memorável.

A sombra que toma forma

Joe Johnston é um exemplo de oportunidade profissional.  Começou sua carreira como designer de efeitos visuais na ILM de George Lucas chegando, inclusive, a faturar um Oscar por seu trabalho em Caçadores da Arca Perdida. Além do Oscar, Johnston conquistou uma amizade de ouro, Steven Spielberg. Os dois viraram amigos íntimos sendo que Spielberg tinha tanta afeição ao cara que permitiu que ele dirigisse o terceiro Jurassic Park – todos conhecem o resultado desastroso.

Johnston é um diretor marcado pelos seus trabalhos cinematográficos medíocres. Jumanji e O Lobisomem são exemplos claros disto. Entretanto, Capitão América deve ter inspirado o âmago adormecido do diretor. Pasme, Capitão América é o melhor filme de Johnston até agora. Talvez por conviver com Spielberg, o cineasta se inspirou em seu amigo. O filme tem um “quê” de Indiana Jones em diversas partes e, obviamente, a atmosfera é encantadora. Um dos maiores méritos da direção de Johnston foi abaixar o sentimento nacionalista inevitável do filme. Sua supervisão no roteiro certamente teve influência nesta decisão.

O diretor deu um detalhamento único à história de Rogers principalmente pela padronização da altura da câmera. De início, a câmera sempre captura Evans em um ângulo que o deixa o menor que os demais personagens. O diretor usa ângulos baixos quando enquadra o Caveira a fim de garantir a superioridade ameaçadora do personagem. No entanto, isso é revertido progressivamente a partir da transformação de Rogers.

O cineasta também tem sacadas inteligentes. Sua simplicidade é provada ao encaixar um plano importantíssimo de dois segundos que apresenta soldados lendo os quadrinhos originais do Capitão. Existem referências aos quadrinhos do Capitão – fique atento na forma que Arnin Zola aparece pela primeira vez – e ao universo Marvel. Stan Lee também marca presença.

O ponto mais alto de sua direção e, aparentemente, do filme inteiro, é a cena do bônus de guerra que não me canso de citar. Conta com uma coreografia bem planejada, além de possuir truques de edição do cinema clássico dos anos 20, 30 e 40. A cineasta também aposta em um grau de violência acima da média para os filmes inspirados em heróis da Marvel. O protagonista, deliberadamente, mata tudo e a todos que ficarem em seu caminho.

Fora isso, Johnston sabe aproveitar sacadas de humor apenas com a construção de algumas de suas imagens – um belo exemplo de usar o cinema como um ótimo meio de expressão para com a plateia. E encaixa alguns slow motions em cenas deixando as com muito estilo estético. O final abrupto e seco do longa também é muito legal – o “choque de épocas” presente em algumas cenas é dos pontos altos do filme, isso sem falar nos toques de humor negro.

Infelizmente, existem dois defeitos gravíssimos em sua direção. Aparentemente, o diretor não tem o toque “humano” para transformar as mortes dos personagens em algo emocionante. Todas carecem de impacto emocional sobre o espectador. Outro defeito foi o ritmo irregular do filme. Durante a primeira metade do longa, tudo anda bem com um ritmo agradável, porém o resto do filme se arrasta até o final. As seletas cenas de ação não empolgam, são pouco inspiradas e beiram a chatice. Existem outras escolhas infelizes em sua direção. Johnston utiliza recursos visualmente bregas e ultrapassado na concepção de algumas cenas, vide a explicação da face do antagonista. Certamente, queria aumentar a atmosfera “retrô” do longa, mas não era preciso exagerar.

Captain America will return in The Avengers

Visualmente estupendo e incrivelmente inspirado, Capitão América: O Primeiro Vingador peca justamente nas fracas cenas de ação, no ritmo arrastado de seu ato final e em alguns tropeços do roteiro. Entretanto, isto não compromete a ótima diversão que o filme oferece. Ele é puro entretenimento que deve agradar até os espectadores que não gostam de super-heróis. A história é interessante, as atuações são boas e a música é soberba. E, apesar de ser bem melhor que Thor, ainda espero o dia que os heróis terão seu dia de glória cinematográfica novamente. Isto aconteceu com X-Men: Primeira Classe.  Ao lado dele, estão Homem-Aranha 2 e Homem de Ferro.

Capitão América: O Primeiro Vingador (Captain America: The First Avenger, EUA - 2011)

Direção: Joe Johnston
Roteiro: Christopher Markus e Stephen McFeely
Elenco: Chris Evans, Hugo Weaving, Hayley Atwell, Sebastian Stan, Toby Jones, Stanley Tucci, Tommy Lee Jones, Samuel L. Jackson, Derek Luke, Neal McDonough, Kenneth June, Richard Armitage, Natalie Dormer
Gênero: Aventura, Ação, Guerra
Duração: 124 min

https://www.youtube.com/watch?v=RfJrn8QcHdA

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by Matheus Fragata

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