Crítica sem Spoilers | It: A Coisa
Os anos 80 eram tempos mais simples para o cinema. Não só falando num sentido geral, mas especialmente no que diz respeito ao gênero do terror: o medo era provocado por ideias inventivas e criaturas que até hoje permanecem fincadas na cultura pop, vide as duradouras franquias de Jason Voorhees e Freddy Krueger, os dois maiores representantes da variante slasher movie. Faz falta ao cinema de terror atual algo do tipo, já que, mesmo que tenhamos tidos exemplares primorosos de mentes como James Wan, a geração atual carece de um monstro tão icônico e carismático. Afinal, é um fato que os adolescentes de hoje são mais difíceis de serem assustados, algo que ocorre mais com experimentos de linguagem e torture porn do que criatividade propriamente dita.
Por isso, não é de se espantar que Hollywood esteja constantemente voltando seu olhar para o passado, nestes tempos mais simples. Basta observar o sucesso estrondoso da série Stranger Things, um mero apanhado de referências e inspirações do cinema oitentista de Steven Spielberg e John Carpenter. Aproveitando a deixa, eis que a New Line e a Warner Bros olham para outra forte influência do seriado da Netflix: Stephen King, acelerando a nova adaptação do épico romance de terror It: A Coisa, em uma nova versão que contará com dois filmes; e que supostamemte passou por diversas mudanças em seu tom, que teriam sido o motivo da saída de Cary Fukunaga (diretor da primeira temporada de True Detective) originalmente contratado pelo estúdio, da direção.
Seja lá qual tenha sido o motivo dessa mudança no comando, que trouxe o cineasta em ascensão Andrés Muschietti para tocar o projeto, não importa. O que importa, é que este It: A Coisa é um trabalho magistral, e não imagino como poderia ter sido melhor.
A trama começa em 1988, na cidade de Derry, em Maine. Quando o jovem Georgie (Jackson Robert Scott) desaparece misteriosamente e inicia uma onda de outros casos similares, todos envolvendo crianças. No ano seguinte, seu irmão Bill (Jaeden Lieberher) e um grupo de amigos conhecido como Clube dos Otários começa uma busca por Georgie, com todos eles enfrentando acontecimentos estranhos e assustadores, e com uma ligação em cada uma das aparições: a presença de uma entidade misteriosa que assume a forma do sinistro palhaço Pennywise (Bill Skarsgård).
Goonies 2.0
Composto por mais de mil páginas, It é um dos mais cultuados e célebres romances de King, e o extenso volume da obra certamente não cabe em apenas uma adaptação. O terror já havia sido adaptado pela televisão em 1990", na forma de um telefilme/minissérie dirigido por XX e que iconizou Tim Curry como o palhaço Pennywise. Olhando para os dias de hoje, a televisão certamente é a mídia mais apropriada, mas a New Line merece créditos por aprovar a realização de dois filmes, comportando o núcleo dos personagens crianças na primeira parte, e um vindouro filme com a fase adulta; tal como acontece no livro de King, já que o maligno It assola a cidade de Derry num intervalo de 27 anos. Por isso, talvez seja o livro "pop" que mais merece uma divisão em duas, passando longe de ser um caça-níqueis como as divisões de O Hobbit, Jogos Vorazes e a Saga Crepúsculo.
E o filme ainda vangloria-se da duração estendida de 135 minutos, onde vemos um trabalho de síntese e construção de universo primoroso das mãos de Gary Dauberman, Chase Palmer e Cary Fukunaga (cujos créditos foram mantidos após sua saída), que aproveitam muito bem o tempo para desenvolver seus personagens e nos levar para acompanhar suas vidas bem de perto. A amizade sempre foi um tema forte nos trabalhos de King, e aqui o roteiro explora muito bem cada aspecto e identidade das crianças, explorando seus problemas e dilemas ao mesmo tempo em que trabalha a união e relação entre elas - tudo isso através de diálogos que soam como um ar fresco de tão naturais e chulos, com diversos comentários inapropriados na hora errada ou xingamentos verdadeiramente hilariantes.
Mesmo com um grupo de personagens tão grandes, é de uma extrema felicidade ver como o texto do trio encontra espaço para todos eles. Já estamos investidos no arco de Bill em decorrência de sua dedicação para encontrar seu irmão - além do fato de ser gago, o que já lhe apresenta certa vulnerabilidade, e é sensacional ver o novato Jaeden Lieberher abraçando todas essas características e encontrando a força do personagem de acordo com seus desafios enfrentados. De forma oposta, o Ben Hanscom de Jeremy Ray Taylor assume, fisicamente, o estereótipo do garoto gordinho solitário, mas seu desenvolvimento - e o trabalho do jovem ator - são bem mais sutis e baseados em sua reação aos eventos, e através dessa linda jornada vemos o personagem crescer; além de estrategicamente usar sua solidão como desculpa para que Ben investigue todos o passado de Derry e as conexões com a Coisa.
Os outros meninos são os que acabam tendo "menos" destaque, mas ainda garantem uma presença significativa. Eddie Kaspbrak (Jack Dylan Grazer) é a variação do "certinho" do grupo, algo exacerbado por sua germofobia e a proteção exagerada de sua mãe, o que acaba criando ali o grande arco do personagem: a libertação e saída do "ninho" familiar. Personagem que menos interage com o grupo (e é um dos deméritos do roteiro nesse quesito), o Mike Hanlon de Chason Jacobs garante bons momentos graças à seu excelente peso dramático - como quando conta a história trágica da morte de seus pais, em um plano sem cortes - e a seu arco simples, mas bem resolvido, que envolve o jovem trabalhando em abatedouro. Seguindo a lógica, Wyatt Oleff tem ainda menos tempo como o judeu Stanley Uris, porém temos uma subtrama eficiente com sua dedicação para o bar mitzvah. Por fim, o Richie Tozier de Finn Wolfhard (de Stranger Things) é o único personagem que não tem um núcleo familiar revelado ou algum arco muito forte, mas tem sorte de ser o piadista do grupo e o foco absoluto dos diálogos conjuntos; se Wolfhard era o nerd introspectivo na série da Netflix, ele simplesmente arrebenta como o sabichão boca suja e que se acha muito mais descolado do que realmente é.
A grande revelação do elenco, porém, acaba por ser Sophia Lillis como Beverly Marsh, a única menina do Clube dos Otários. Mais velha e com uma personalidade bem diferente do restante do grupo, ela acaba por ser justamente um dos elementos que os une - e não só pelo fato de todos estarem caídos por ela. Lillis traz carisma e um aspecto cool, mas ao mesmo tempo vulnerável para Beverly, principalmente quando acompanhamos seu perturbador arco pessoal e descobrimos que seu pai é abusivo, e a atriz faz o balanço perfeito entre essas emoções complexas. Vale mencionar também como Lillis parece saída diretamente dos anos 80, com o mesmo perfil e até semelhanças com Molly Ringwald e Heather Langenkamp.
A Soma de todos os medos
Com um grupo tão bem desenvolvido e perfeitamente entrosado em cena, It consegue facilmente criar apego emocional entre os personagens e o espectador, que compra a ideia de amizade e companheirismo que sustenta toda a história. Dito isso, é importante reforçar que este filme está um pouco longe do terror sobrenatural e angustiante que vemos na linha de produção de Invocação do Mal, por exemplo, e sim mais próxima do estilo de aventura sombria dos filmes de Spielberg; o mesmo que Stranger Things tenta replicar, e há uma quantidade gigantesca de alívio cômico e piadas aqui, o que ajuda a tornar a atmosfera menos densa e até mais divertida, mantendo um ótimo ritmo durante sua longa duração.
Não só na diversão, mas também o imenso peso emocional. Todos os núcleos de personagens discutidos nos parágrafos anteriores têm consequências e reviravoltas fortes, sendo curioso como a história praticamente coloca os adultos como vilões em sua grande maioria: o pai abusivo, a mãe que deliberadamente faz o filho pensar que é doente para mantê-lo dentro de casa ou o velho clichê dos pais que não acreditam nas teorias de seu filho inteligente. Mal vemos os pais da maioria das crianças durante todo o filme, o que só contribui para uni-las e fortalecer os laços entre eles, e a beleza do design de produção de Claude Paré altamente imersivo ajuda a criar uma cidade grande e quase deserta, onde as crianças estão por conta própria - mais um dos motivos que fazem esta uma das mais perfeitas "simulações" dos anos 80 até o momento.
Finalmente, chegamos a Pennywise. É uma performance desafiadora e que não depende apenas de uma boa caracterização, mas também do talento de seu intérprete; afinal, é difícil ter a sombra de Tim Curry sobre os ombros. Dito isso, Bill Skarsgård garante um espetáculo para seu Pennywise, mesmo que não seja uma participação exatamente massiva. Como toda nova releitura de um terror oitentista, seu palhaço é menos fanfarrão e mais sombrio do que o de Curry, com uma fala que surpreende pelo equilíbrio entre grossa e suave, servindo bem à proposta de uma criatura que "encanta" suas vítimas com seu discurso. Na primeira cena em que o encontramos (e também a mais longa), Skarsgård assusta pela forma com que transita entre esses diferentes tons no encontro com Georgie, vide sua falácia maliciosa ao falar sobre algodões doce, pipocas e fazer barulhos com a boca para arrancar risadas do garoto - e imediatamente transformando sua cara boba em uma expressão séria e ameaçadora. Um tremendo trabalho que, tanto pela maquiagem quanto pela performance, diversas vezes me lembraram do Coringa. Se Curry era um Cesar Romero mais sarcástico, Skarsgard é nada menos do que Heath Ledger em O Cavaleiro das Trevas.
O ator garante todo o mérito, mas é preciso elogiar o fantástico trabalho dos departamentos de maquiagem e figurino na concepção deste novo Pennywise. Menos um palhaço tradicional e mais próximo de uma vertente teatral arcaica (o nariz redondo de palhaço dá espaço a uma pintura), a roupa toda engomada dispensa todas as cores vibrantes e fortes da versão anterior, adotando uma paleta toda cinza. Já o rosto assusta pela camada de maquiagem aplicada na testa do ator, tornando sua cabeça maior e até ligeiramente desproporcional, algo contrastado pela pintura delicada das linhas finas que sobem da boca para os olhos do palhaço - algo que Skarsgård explora bem em suas múltiplas expressões, fazendo com que o desenho acompanhe os músculos de seu rosto para formar algo especialmente sinistro. Por falar nisso, é ainda mais grotesco o visual mais animalesco da criatura, que expande sua mandíbula de maneira similar aos vampiros de A Hora do Espanto (mais sobre essas referências nos próximos parágrafos) e desenvolve assustadores dentes pontiagudos.
O Legado de Elm Street
Então chegamos ao diretor Andrés Muschietti, assinando aqui como Andy. Mais um dos casos de diretores encontrados no YouTube, o argentino chamou a atenção de Guillermo Del Toro (que divide com James Wan o posto de "padrinhos do terror") após o sucesso de seu apavorante curta Mama, que acabou sendo transformado em seu primeiro longa-metragem. Mas se o filme com Jessica Chastain era uma obra muito irregular e infeliz em suas escolhas de tom, Muschietti acerta a mão consideravelmente aqui; amadurecendo o domínio da linguagem e preservando as marcas estilísticas que funcionaram em Mama - ainda que o diretor tenha um certo vício em jump scares previsíveis.
Logo na primeira cena já percebemos a segurança e habilidade de Muschietti para construir atmosfera, com a chuva torrencial ecoando pelas janelas da casa da família de Bill e Georgie, com um belo exemplar do clássico medo do escuro em um porão. Quando o irmão mais jovem corre pelas ruas encharcadas com o barquinho de papel, a câmera é ágil e elegante, logo transformando-se em algo claustrofóbico e perturbador quando temos o encontro de Georgie com Pennywise - com a cabeça para fora de um esgoto. É uma cena inquietante, e a forma como Muschietti enquadra os dois contribui muito para isso, assim como a iluminação excepcional do diretor de fotografia sul-coreano Chung-hoon Chung (colaborador preferido de Chan-wook Park), que mantém apenas a parte de baixo do rosto do palhaço com luz, formando um belo desenho de sua pintura facial com as sombras que preenchem sua testa.
Tal construção acaba tendo um payoff inacreditável. Graças à mise en scène capciosa de Muschietti, somos levados a acreditar que esse encontro entre Georgie e Pennywise acabará de um jeito - especialmente pelo plano aberto que reforça o isolamento do menino enquanto tenta apanhar seu barquinho do estranho -, e subverte nossas expectativas ao deixar algo bem claro: este é um filme violento, com um tipo de gore que nunca apela para o exploitation, mas que choca pela crueza. Não só em relação aos ataques assombrosos do palhaço do título, mas também no retrato do bullying que os protagonistas sofrem, com uma cena em especial onde Ben é atacado pelo repulsivo Henry Bowers (Nicholas Hamilton), sendo espancado e até esfaqueado. De maneira similar, outra das sequências mais intensas do filme é quando Beverly é atacada por seu pai em casa, gerando uma tensão apavorante pelo mero contexto da situação - assim como a decisão de Muschietti de cortar a música e adotar uma câmera mais intensa.
Falei acima sobre o vício do diretor em jump scares, e isso é realmente um demérito que acaba causando uma má primeira impressão. Porém, passado o susto e a revelação da ameaça que Muschietti prepara, ele continua investindo na imagem; não é um susto e acabou, temos uma exploração de imagens grotescas e assustadoras por muito tempo, saindo da técnica Tubarão de esconder as cartas para um jogo mais aberto a lá O Exorcista; de forma como William Friedkin nos mantinha olhando para o rosto deformado de Linda Blair por muito tempo. Um exemplo crucial disso é quando Pennywise aparece todo contorcido dentro de um cofre, e a câmera mantém o foco ali enquanto o palhaço vai desconfortavelmente saindo e voltando à sua forma natural; em uma cena sinestésica graças ao marcante tema musical de Benjamin Wallfisch para o personagem, que consiste em um sinistro coral infantil.
Mas talvez a grande surpresa que tive com este filme foi a realização de outra de suas grandes influências. Como a criatura titular alimenta-se e ganha força através dos medos das crianças, tal como um grande bicho papão, temos diversas sequências onde a Coisa acaba assumindo diferentes formas e monstros para provocar um efeito maior em suas vítimas. Isso rende sequências inspiradas onde temos uma criatura que é basicamente uma colônia de doenças ambulante, na forma de um leproso interpretado por Javier Botet, uma mulher de um quadro surrealista que representa tudo o que Muschietti experimentou em Mama (especialmente o uso de stop motion nos movimentos de uma figura alta e magricela) e até uma sala repleta de palhaços de madeira e porcelana. Mas foi quando Beverly sofreu um ataque de fios grossos e compridos de cabelos saindo de sua pia que eu senti uma alegria perturbada: em sua estética que mistura perfeitamente efeitos práticos com CGI, estava diante de uma cena digna da franquia A Hora do Pesadelo, com as maravilhosas e inventivas mortes que Freddy Krueger bolava em seus pesadelos - não por acaso, um dos pôsteres exibidos em um cinema de Derry é justamente o de A Hora do Pesadelo 5 - O Maior Horror de Freddy.
É maravilhosa a sensação de se assistir a um filme de gênero tão eficiente. Esta nova versão de It: A Coisa não só é infinitamente superior à adaptação de 1990, como também merece destaque como um dos melhores longas de terror dos últimos tempos, capturando os elementos mais tradicionais de uma escola oitentista com elementos modernos e eficientes. Uma aventura sombria que emociona e envolve, resultando em um dos melhores filmes de 2017.
Que a Parte 2 não demore 27 anos.
It: A Coisa (It, EUA - 2017)
Direção: Andy Muschietti
Roteiro: Cary Fukunaga, Chase Palmer e Gary Dauberman, baseado na obra de Stephen King
Elenco: Bill Skarsgård, Jaeden Lieberher, Finn Wolfhard, Sophia Lilis, Wyatt Oleff, Chosen Jacobs, Jack Dylan Grazer, Nicholas Hamilton, Owen Teague, Jackson Robert Scott
Gênero: Terror
Duração: 135 min
https://www.youtube.com/watch?v=dD264ZjfKlk
Crítica | Polícia Federal: A Lei é Para Todos
Como todas as outras artes, o cinema também se alimenta da realidade e, por ser uma mídia narrativa, eventos reais podem inspirar os cineastas tanto quanto ideias, paisagens, canções e sentimentos. Às vezes, em razão da própria vida se encarregar de ser mais criativa que os roteiristas, algumas histórias surgem prontas para serem filmadas. Assim, era uma questão de tempo até que a famosa Operação Lava-Jato migrasse dos documentos oficiais para a tela grande. No entanto, ninguém imaginava que Polícia Federal: A Lei É Para Todos seria realizado e lançado enquanto as investigações ainda aconteciam!
Porém, como não há problema algum em lucrar, não nos aprofundemos nessa questão. É melhor ir direto à trama. Nesta, acompanhamos o delegado Ivan (Antonio Calloni). Chefe de uma competente equipe formada pelos policiais Julio César (Bruce Gomlevsky), Vinicius (João Baldasserini) e Bia (Flávia Alessandra), ele e os seus comandados investigam as relações de poder entre doleiros e traficantes de drogas. Mas, ao longo da investigação, o que parecia ser um simples caso de corrupção empresarial se estende às principais empreiteiras do país, chegando nos nomes das figuras mais importantes de Brasília.
Enquanto thriller político, Polícia Federal: A Lei É Para Todos é um bom filme. Marcelo Antunez, diretor acostumado a realizar comédias rasteiras, surpreende e, ao lado de sua equipe, mostra conhecer as convenções do gênero. Os letreiros usados para situar o espectador na cronologia dos eventos surge sempre de maneira precisa, a câmera, ao mesmo tempo que treme para transmitir a sensação de instabilidade, enquadra a ação com clareza, a montagem ágil de Marcelo Morais nunca deixa o ritmo se tornar irregular, a fotografia de Marcelo Brasil (o mesmo de Gostosas, Lindas e Sexies), juntamente com a direção de arte e figurino, investe em tons desprovidos de vida, mergulhando os personagens em ambientes frios, e a trilha sonora mantém a história embalada. Como os filmes de gênero ainda engatinham no país, esse nível de competência não é muito comum.
Os roteiristas, por sua vez, sabem que um dos atrativos da obra é a ordem dos eventos, que é disposta com muita segurança pela dupla Thomas Stavros e Gustavo Lipsztein. Desde a interceptação de caminhões transportadores de drogas até a prisão coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Ary Fontoura, que acerta ao não recriar a voz rouca), o espectador compreende perfeitamente quais foram os documentos, provas e delações que levaram os policiais de um ponto ao outro. Nesses instantes, eles apresentam os acontecimentos com precisão e até a exposição verbal e imagética (em alguns momentos, o investigador explica coisas aos outros personagens usando uma lousa) é inteiramente justificada.
Todavia, os dois também usam essa exposição para revelar o interior dos personagens, e isso acaba gerando vários instantes nos quais os policiais precisam falar sobre suas frustrações e expectativas. Com a exceção de um drama envolvendo a mãe de Júlio, nenhum sentimento é transmitido visualmente. Tudo é feito através de palavras. Quando um investigado é preso, os policiais gritam e falam sobre a felicidade de tê-lo pegado. Nos instantes em que o oposto acontece, eles xingam, amaldiçoando o país e o mundo (inclusive, há um exagero na forma como o filme e os personagens ressaltam que a corrupção é um fenômeno presente desde os primeiros anos da história brasileira). Porém, essa superficialidade no tratamento da imagem não é um fenômeno isolado.
Na abordagem temática, ela se repete. E este é o erro central de Polícia Federal: A Lei É Para Todos: se fosse um documentário informativo sobre o desenrolar da Operação Lava-Jato, as sensações do espectador seriam as mesmas. Quando pensamos em filmes similares como Todos os Homens do Presidente e Zodíaco, nos quais também há tramas investigativas, lembramos que, no primeiro, a intenção era ilustrar os pormenores da profissão jornalística, e no segundo, como a obsessão dos investigadores trouxe consequências desastrosas em suas vidas pessoais. No longa de Marcelo Antunez, a investigação se encerra em si mesma e o filme nunca olha para os lados nem se aprofunda em uma questão específica.
Mas seria injusto dizer que essa culpa recai somente na realização técnica dos responsáveis. Aqui, também há o problema da ausência de perspectiva histórica. A operação da Polícia Federal ainda está acontecendo. Por causa disso, não dá para mergulhar nos detalhes técnicos ou dizer como o trabalho afetou a longo prazo a vida dos envolvidos. É verdade que existirá uma sequência (tem uma cena pós-créditos anunciando o próximo filme), mas isso não é suficiente para justificar a superficialidade desta primeira produção. Do ponto de vista comercial, não há por que maldizer a opção dos realizadores de aproveitar o momento para lucrar. Já do ponto de vista histórico, esse imediatismo atrapalhou a concepção artística (embora um pouco mais de liberdade poética por parte dos roteiristas fosse bem-vinda).
Aliás, isso é algo que atrapalha até na nossa reação quando algumas figuras reais aparecem. Todas as vezes em que estas surgem, com um destaque para Lula, rompemos a suspensão de descrença e rimos. Isso acontece porque as imagens dessas figuras públicas estão muito frescas na nossa cabeça e qualquer tipo de caracterização soa cômica, não real. O fato de todas as atuações, em um momento ou outro, se tornaram caricatas contribui negativamente para essa sensação (as exceções são Antonio Calloni e Marcelo Serrado, os únicos que encontram o tom correto).
Ainda sobre as caracterizações, é possível que muitas pessoas vejam na forma como os personagens são retratados um tipo de inclinação política: Moro é um homem de fala mansa, professor universitário, pai de família e esposo atencioso, ao passo que Youssef, Lula e os outros são seres repulsivos. Porém, dizer que o filme é partidário é trazer uma discussão que acontece fora das telas e não algo que o próprio longa apresenta. É importante lembrar que os heróis são policiais fazendo apenas o seu trabalho. Portanto, através da subjetividade deles, fica muito claro quem são os vilões. Pode até se discutir se o longa defende um lado, mas, novamente, isso ocorre por adições feitas externamente. Em sua essência, a história é a famigerada luta de Davi contra Golias.
Dessa maneira, não há dúvidas que Polícia Federal: A Lei É Para Todos gerará polêmica. Não obstante, analisar o longa politicamente não seria condizente com a sua proposta de thriller. Acima de tudo, é necessário julgá-lo pelos seus méritos técnicos e narrativos. E eles existem, mas não em um número capaz de se sobrepor ao de defeitos.
Polícia Federal: A Leia é Para Todos (Idem, Brasil - 2017)
Direção: Marcelo Antunez
Roteiro: Gustavo Lipsztein, Thomas Stravos
Elenco: João Baldasserini, Flavia Alessandra, Ary Fontoura, Antonio Calloni, Marcelo Serrado
Gênero: Policial
Duração: 110 minutos.
Crítica | Atômica - A Cidade Mais Fria
A primeira coisa que muitos espectadores curiosos devem ter feito depois de assistir a Atômica, novo filme com Charlize Theron, foi procurar o material que inspirou o filme. No caso, a HQ Atômica: A Cidade Mais Fria escrita por Antony Johnston e desenhada por Sam Hart.
Mesmo sendo medíocre, a adaptação do roteiro do filme é bastante fiel a graphic novel, além de conseguir resolver melhor o confuso final da obra. Logo, a sinopse é basicamente a mesma, mas sem alguns dos detalhes do longa que fazem a protagonista virar uma personagem mais complexa.
Lorraine é levada até o MI-6 para contar aos seus supervisores o que ocorreu em sua última e mais importante missão durante uma ida à Berlim enquanto o muro que dividia a Alemanha caia em 1989. Nela, Lorraine precisava descobrir onde estava uma lista contendo os nomes de todos os espiões atuantes de diversos países em Berlim depois de um assassinato misterioso de um colega de ofício. Para isso, conta com a ajuda desagradável de Percival, um espião fixo na cidade que já se enraizou demais para ser confiável.
Como era de se esperar, dificilmente quem não gostou do filme, encontrará muito apreço na HQ de luxo trazida pela Darkside em ótima edição. Apesar da narrativa ser menos burocrática que a do filme, o tom inspirado em obras de espionagem contemplativas como as de John le Carré (O Espião que Sabia Demais), não fazem bem muito bem a história que pretende ser mais densa, profunda e interessante do que é.
Os problemas, obviamente, permanecem os mesmos: os personagens ainda são deficitários e a protagonista continua bastante apática. Aqui, Percival é mais interessante que no filme, pois não se trata de uma figura caricata e detestável como a versão apresentada pelo longa. As coisas são mais cruas e se desenvolvem com notória rapidez. Em si, a HQ é uma leitura de menos de uma hora de tão rápida que é. Isso se dá pelos lados contrastantes da obra com longas passagens sem a presença de muito texto ou diálogos.
Johnston gosta de frisar a todo o momento a queda do Muro, das instabilidades políticas, das manifestações do povo e sobre a Guerra Fria deixando claro que tem orgulho de ter criado uma história situada neste momento histórico. Porém, de fato, pouco disso é utilizado a favor da narrativa para torna-la mais única. O momento só permite justificar as eventuais viradas sobre agentes duplos e a incerteza sobre quem devemos confiar.
Temos, inclusive, um caso de narrador não confiável. O testemunho de Lorraine para seus supervisores muitas vezes destoa do que é mostrado nos quadrinhos de flashback. Logo, nem mesmo esse recurso é utilizado de modo a provocar o leitor a ficar instigado e solucionar os mistérios e encontrar uma lógica nos acontecimentos por si. O autor se preocupa em contar apenas o mistério ou dos entraves da missão em vez de focar no que realmente importa como o desenvolvimento da protagonista, suas dificuldades e pequenos triunfos. Dificilmente o artista também pontua esses elementos pelas imagens da obra.
O que realmente ajuda a leitura é o fato da história ser mais enxuta e rápida, coisa que o filme falha para encher linguiça com cenas filler ou outras de ação. Aliás, o leitor mais atento e já conhecido da obra de John le Carré que mencionei acima, já deve ter sacado que a versão original de Atômica não chega perto de ter as grandiosas sequências explosivas do filme. O clima é muito mais próximo de um thriller tenso do que de uma história de ação,
A HQ é tão fria quanto seu título original. E para se valer disso, temos a arte minimalista de Sam Hart, apostando sempre em contrastes duríssimos do preto e branco. Os traços, por várias vezes, são bastante desleixados, mas possuem certa poesia. O desenhista opta na abordagem simplória, investindo pouco em cenário para dar foco nos jogos de iluminação vindos de hachuras e outras jogadas boas feitas no papel.
Nos muitos closes, o traço é também apático para os poucos personagens da história. Muitos deles possuem um design parecido que torna a compreensão dos fatos um tanto confusa em excesso para uma obra assim. Claro, pode ser que tenham achado genial deixar todo mundo parecido para transmitir as incertezas de confiança da protagonista. Porém, na prática, o cenário chega perto do caótico e confundir o leitor certamente não é o caminho da genialidade.
Com uma arte um tanto sem-graça e uma história enxuta e sem carisma, fico impressionado de A Cidade Mais Fria tenha chegado tão longe a ponto de até mesmo virar um longa-metragem. O consenso geral é basicamente o mesmo: os leitores praticamente não ligam muito para o que acontece na história, apenas apreciando uma narrativa rápida e tão pouco original dentro do gênero generoso da espionagem.
Apesar disto, caso tenha sido fisgado pela narrativa do filme, recomendo dar uma olhada na edição da Darkside que merece somente elogios: encadernação de capa dura, papel superior, impressão de alta qualidade, ótima tradução, além de um breve glossário para traduzir as expressões em alemão que foram mantidas conforme os desejos do autor da obra. No fim, Atômica ainda continua sendo uma obra para poucos admiradores. Infelizmente, desta vez, não participo desse grupo.
Crítica | It: Uma Obra Prima do Medo
Stephen King já criou personagens memoráveis durante sua carreira. No cinema tivemos o atormentado Jack Torrance (Jack Nicholson) em O Iluminado, a psicótica Anne Wilkes (Kathy Bates) em Louca Obsessão, o nazista Kurt Dussander (Ian Mckellen) em O Aprendiz e o terrível carro Christine na adaptação feita por John Carpenter. De todos esses, o mais icônico é Pennywise (Tim Curry), o palhaço demoníaco que devora crianças. O livro A Coisa, é um dos mais aclamados do escritor então era questão de tempo até ter uma adaptação para o cinema. No caso, a primeira foi para a TV em 1990, com uma minissérie de mais de três horas de duração que chegou às terras tupiniquins como o nome de It: Uma Obra Prima do Medo. Admito que na época só de ver a capa do filme na locadora, ficava assustado. Revendo hoje o filme dei mais risada do que senti medo.
O longa se passa em dois tempos: Durante os anos 60, em que um grupo de criança se unem para acabar com “A Coisa” – no caso, o palhaço Pennywise -, já que houve uma série de assassinatos de crianças, entre elas o irmão de uma delas. A outra se passa trinta anos depois, quando o monstro retorna e o grupo já adulto, decide acabar com a ameaça de uma vez por todas.
Como são dois tempos diferentes, é comum achar que o filme irá focar cada episódio (É uma minissérie dividida em dois capítulos) em uma determinada época. Ao invés disso, o roteiro se entrelaça entre cena do presente e do passado, atrapalhando o ritmo de maneira terrível. O próprio grupo demora demais para ser apresentado, sendo que toda a apresentação segue a mesma estrutura: alguém liga para o tal personagem, falando que tem que voltar para sua cidade natal, Derry, para enfrentar Pennywise e temos um longo flashback mostrando o que aconteceu. Essa estrutura dá mais sono do que realmente empolga, porque fica muito arrastado. Aliás, um dos grandes problemas de It é o ritmo. Mesmo para uma minissérie de terror, ele é muito lento e ele enrola para chegar ao seu objetivo.
Se o roteiro já se mostra fraco, a direção de Tommy Lee Wallace é assustadora. Apesar de ter alguns momentos que chegam a assustar, eles são por conta do ótimo trabalho de Tim Curry – o qual falarei mais adiante -, porque falta imaginação e criação de atmosfera no trabalho de Wallace. Em um filme de terror, o qual se tem um grupo de crianças sendo aterrorizadas por um monstro sanguinário, em momento algum o diretor consegue criar uma atmosfera aterrorizante em que se teme pela segurança do grupo. O máximo que acontece são aparições rápidas do palhaço, dando uma noção de onipresença e dele realmente ser um mal desconhecido que não tem limite. Se na teoria parece assustador, na prática se mostra inútil. Porque há boas ideia nessas aparições – já que Pennywise é uma espécie de Bicho-Papão -, mas se perdem em meio há uma execução pífia.
Nenhum dos elementos que deveriam ajudar na criação da atmosfera funciona: a fotografia é excessivamente iluminada; a direção de arte é muito pobre; a mixagem de som é bagunçada; os efeitos especiais são péssimos; e a trilha sonora é simplesmente irritante. Ou seja, ele falha no seu principal objetivo. Diria que pelo menos a maquiagem de Curry ainda assusta um pouco, mas não o suficiente para que o filme se torne assustador.
Já quanto o elenco, o elenco infantil mostra ter muito mais química que o adulto. Não só apenas melhores como atores, mas eles conseguem passar a sensação que realmente é um grupo unido que cada um irá cuidar muito bem do outro. Já os adultos são atores com caras e bocas forçadas e sem química alguma. Mas não são eles a grande estrela do filme, esse cargo pertence à Tim Curry, muito á vontade como Pennywise. Curry consegue passar a ameaça, além de ter uma voz aterrorizante. Por mais que em alguns momentos ele aparenta estar fora um pouco fora do tom – já que em algumas cenas, ele se mostra muito mais engraçado do que deveria-, o ator realmente mostra como a grande sensação de It, pois o seu Pennywise mostra um vilão realmente ameaçador, com contém um senso de humor diabólico.
Por fim, só resta esperar o que Andy Muschietti irá trazer na nova adaptação da obra de Stephen King. Pois It: Uma Obra Prima do Medo por mais que tenha alguns momentos bons e uma ótima atuação de Tim Curry, é um filme medíocre que só piorou com tempo. Que os balões vendidos por Bill Skarsgard sejam mais assustadores.
It: Uma Obra Prima do Medo (It, EUA – 1990)
Direção: Tommy Lee Wallace
Roteiro: Toomy Lee Wallace e Lawrence D. Cohen, baseado no livro de Stephen King
Elenco: Tim Curry, Richard Thomas, Jonathan Brandis, John Ritter, Brandon Crane, Annette O'Toole, Emily Perkins, Harry Anderson, Seth Green, Dennis Christopher, Adam Faraizl, Tim Reid, Marlon Taylor,Richard Masur, Ben Heller
Gênero: Terror
Duração: 192 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=m5JO8wtNnzQ
Crítica | Mama
O mexicano Guillermo Del Toro deve ser daqueles que todo mundo precisa ter na lista de contatos. Mesmo sem ter lançado um filme nos últimos 5 anos (depois de Hellboy II – O Exército Dourado, este ano ele volta à direção com Círculo de Fogo), já “apadrinhou” diversos projetos vindos de aspirantes a cineastas. Em 2011 foi o fraco Não Tenha Medo do Escuro, agora ele ajuda a lançar o terror Mama; mais um conto de fadas gótico que infelizmente se perde nas próprias ideias.
Baseada em um curta-metragem de mesmo nome (que você pode assistir no YouTube, por aqui), a trama acompanha as jovens irmãs Victoria e Lily (Megan Charpentier e Isabelle Nélisse) que são abandonadas pelo pai quando este se descontrola durante a crise econômica de 2008. Cinco anos depois elas são encontradas pelo tio (Nikolaj Coster-Waldau, o Jaime Lannister de Game of Thrones) e sua namorada Annabel (Jessica Chastain) e trazidas para morar junto ao casal. No entanto, uma presença fantasmagórica conhecida como “Mama” passa a assombrar a família e ameaça tomar as crianças para si.
O problema de Mama consiste na necessidade de elaborar uma trama complexa para sua personagem-título. O curta-metragem de Andrés Muschietti (que assume aqui o cargo de diretor e co-roteirista, este último com sua irmã Barbara) funciona muito melhor que o longa justamente pelo mistério. Os 3 minutos de duração retratam uma cena bizarra (que no filme é refeita praticamente quadro a quadro) que fica sem explicação, impressionando também por sua competência narrativa. Aqui, os roteiristas criam toda uma história de fundo para a criatura e ainda preenchem a história com figuras mal distribuídas, salvas apenas pelas boas performances de seus intérpretes; especialmente a versátil Jessica Chastain, que constrói uma sujeita completamente diferente de suas atuações prévias – e não foi só o visual gótico que ajudou, a atriz é a única que tem a chance de desenvolver apropriadamente sua personagem.
O longa começa muito bem com o estabelecimento do cenário, e durante boa parte da projeção, é eficaz ao nos manter presos à narrativa. O mistério acerca da personagem-título é o que desperta maior interesse, mas os roteiristas veem a necessidade de explicitar termos e fenômenos (trazendo uma absurda explicação para diferenciar Mama de um fantasma, e que é literalmente jogada aos ares em sua conclusão) e não consegue nem dar conta de suas linhas narrativas. Como por exemplo, o momento em que um dos personagens chega de dia para explorar uma cabana na floresta e, por algum motivo, o vemos na cena seguinte adentrando-a durante a noite…
Estreante no ramo, Muschietti consegue mostrar tem bom olho para a direção e garante planos lindos (vide a abertura que traz imagens de uma montanha dominada pela neve) e criatividade na elaboração do horror, sobressaindo-se a cena em que acompanhamos o flashback de Mama em primeira pessoa (que assusta pela intensidade da situação e a paleta de cores escolhida pelo diretor de fotografia Antonio Riestra) e a que o psicológo vivido por Daniel Kash procura pela criatura em uma cabana escura, usando flashes de uma máquina fotográfica como orientação. Claro que os sonoplastas e o compositor Fernando Velázquez usam e abusam de suas funções para gerar os mais clichês jump scares do gênero, sendo muito fácil prever quando um susto irá nos pegar; mas sendo inevitável de escapar dele quando chega.
Mama é eficiente em garantir um monstro cativante e bons sustos, mas carece de uma história competente. Sinceramente, o curta-metragem de 3 minutos consegue ser mais satisfatório do que um longa de quase 2 horas. O simples que satisfaz.
Mama (Canadá/Espanha - 2013)
Direção: Andrés Muschietti
Roteiro: Andrés Muschietti e Barbara Muschietti
Elenco: Jessica Chastain, Nikolaj Coster-Waldau, Megan Charpentier, Isabelle Nélisse, Daniel Kash, Javier Botet
Gênero: Terror
Duração: 100 min
https://www.youtube.com/watch?v=74sTGp6kVro
Crítica | David Lynch: A Vida de um Artista
David Lynch é uma figura pública há mais de 30 anos. Desde que Eraserhead estreou nas sessões da meia-noite, em 1979, a fama do cineasta não parou de crescer. Ao longo das quase quatro décadas de carreira cinematográfica, ele colecionou prêmios, construiu uma filmografia sólida, realizou algumas obras-primas e deixou sua marca na história da televisão com o seriado Twin Peaks. No entanto, certas facetas permanecem desconhecidas, pelo menos do grande público. Poucos sabem que ele também é divulgador oficial da meditação transcendental, músico e pintor. Sobre esta última atividade artística, David Lynch: A Vida De Um Artista (David Lynch: The Art Life) oferece uma ótima oportunidade de conhecê-la.
Dirigido por Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergard-Holm, o documentário alterna entre cenas que retratam o cotidiano de Lynch como pintor, vídeos caseiros feitos por sua família quando ele era pequeno e os quadros de sua autoria. Unindo esses três recursos visuais está a narração do próprio cineasta, na qual ele retorna ao passado para descrever a infância, as várias cidades em que morou, os pais, a adolescência, os anos de estudante, as travessuras juvenis, a descoberta da pintura, os estudos, o primeiro casamento, a paternidade e a realização do primeiro longa-metragem. É no ritmo de sua fala pausada, mas sempre precisa, que a narrativa se solidifica.
Sem espaço para as séries de televisão e os filmes (por ser o mais pitoresco, Eraserhead é o único mencionado), a produção é inteiramente dedicada a mostrar como a sua carreira está intrinsecamente ligada ao seu passado. Desde o idílio dos primeiros anos até a realização dos primeiros curtas de animação e live-action, passando pela vocação de pintor e os relacionamentos problemáticos com familiares, amigos e amantes, toda a estrutura do documentário é construída com o propósito de refletir cinematograficamente a completa junção de vida e arte, característica principal do cotidiano de Lynch. Até mesmo as diferenças de textura entre o formato digital, 16 mm e os quadros simbolizam, visualmente, as diversas camadas de reflexão proporcionadas pela combinação da biografia e obra do diretor.
Essa opção estilística vai completamente ao encontro da filosofia por trás do conceito de “the art life” (algo completamente esnobado pelo título nacional). Concebida por Lynch na sua juventude, a expressão resume verbalmente um estilo de vida marcado pela total imersão na arte, chegando a um ponto em que as fronteiras entre diferentes atividades artísticas desaparecem, e pela liberdade incondicional, seja das amarras sociais, seja dos dogmatismos estéticos. Na sua casa, no seu estúdio e na sua vida, o diretor é quem deseja ser. Invariavelmente, essa é uma característica definidora dos grandes homens.
Espectador, saia da sua passividade!
Todavia, o conteúdo do documentário não é constituído apenas de reminiscências e pinturas. Aliás, há aspectos cinematográficos muito parecidos com os filmes do cineasta. O primeiro é o design de som. Repleto de barulhos misteriosos e canções similares às que são compostas por Angelo Badalamenti, a trilha consegue hipnotizar o espectador, fazendo-o mergulhar em um universo único. O segundo está relacionado ao emprego da câmera lenta, dos planos-detalhe de um inseto ou das gotas de chuva tocando o chão e as imagens oníricas, surrealistas e caleidoscópicas.
Por fim, o último e mais interessante deles diz respeito à sutileza com que Nguyen, Barnes e Holm captam elementos que explicam algumas das escolhas feitas por Lynch em seus filmes. Nas descrições da juventude, é possível enxergar como o fato de crescer em várias cidades dos Estados Unidos lhe deu um profundo conhecimento da imagética norte-americana; através da bondade com que fala de Bushnell Keeper, se entende o porquê de ele ter dado o mesmo nome a um personagem angelical na nova temporada de Twin Peaks; e os pássaros de brinquedo mantidos no seu estúdio fazem referência ao tordo mecânico no final de Veludo Azul. Porém, essas informações não são explicitadas. Pelo contrário, surgem sutilmente e exigem do espectador uma participação ativa, a mesma que Lynch pede nos seus longas.
Dessa maneira, David Lynch: A Vida De Um Artista acaba satisfazendo tanto os cinéfilos quanto aqueles que estão ávidos por conhecer a fundo a figura do artista. Ao fim da sessão, a vontade é de assistir à obra completa de Lynch, visitar os museus que contêm as suas pinturas, mas também de criar, ser livre e autêntico. Não é sempre que mestres abrem as portas para que conheçamos o seu dia-a-dia. Portanto, tratemos de apreciar essa chance, antes que as grades ao redor nos prendam novamente.
Via: Formiga Elétrica
David Lynch: A Vida de Um Artista (David Lynch: The Art Life, EUA, Dinamarca - 2016)
Direção: Jon Nguyen, Rick Barnes
Gênero: Documentário biográfico
Duração: 88 min.
Crítica | The Mist - 1ª Temporada
Stephen King, desde o início da década de 1980, sempre foi um dos autores de maior destaque no cenário audiovisual, emergindo como um dos principais focos de adaptações cinematográficas e televisivas com suas incríveis histórias de terror, suspense, drama e fantasia. Temos, por exemplo, icônicas releituras que se tornaram clássicos da história hollywoodiana, como It - A Coisa, O Iluminado e Carrie - A Estranha, bem como longas-metragens que ultrapassaram as barreiras do gore e do macabro para entregarem uma perspectiva muito mais metafórica e sócio-antropológica, como O Nevoeiro, dirigido por Frank Darabont em 2007.
Entretanto, temos rendições um tanto quanto duvidáveis das obras do mestre do terror contemporâneo, principalmente quando falamos em suas adaptações para as telinhas. Em 2011, Brian K. Vaughan ofereceu seus melhores esforços para honrar o legado de Sob a Redoma, mas acabou criando um macrocosmos cheio de furos e de acontecimentos incabíveis, misturados a uma pretensão narrativa que a tornou uma das grandes decepções. Infelizmente, Christian Torpe conseguiu repetir o feito ao desenvolver uma nova roupagem para Nevoeiro em parceria com a emissora Spike, entregando o que podemos chamar de uma das mais monótonas séries dos últimos anos.
Não se pode dizer que o episódio piloto de The Mist é totalmente desperdiçado e não permite que o público anseie pelos próximos eventos e viradas - muito pelo contrário: nos primeiros minutos, percebemos que a ideia aqui é ir além da claustrofobia presente tanto nas páginas do material original quanto no filme de Darabont, os quais se passam estritamente em um confinamento forçado num supermercado, o qual se transforma em uma versão minimalista de uma sociedade em decadência. Os personagens agora se multiplicam, assim como os cenários - então é mais que óbvio que passemos a conhecer uma backstory, por mais ínfima possível, das relações que os unem.
A ambiência principal é a pequena cidade de Bridgeville, no estado americano do Maine, a qual é envolvida por uma misteriosa e crescente neblina que aparece do nada e traz consigo criaturas aterrorizantes e um sentimento de angústia que coloca a sanidade de todos em xeque. Porém, esse fator sobrenatural não alcança sua plenitude até os minutos finais do episódio piloto, preferindo muito mais discorrer sobre outros temas contemporâneos antes de colocar a virada catártica na monotonia do condado. Assuntos como homofobia, aceitação, renegação, divórcio, santidade e tolerância religiosa são constantes, apesar de não convergirem a todo momento: temos por exemplo a relação conturbada de Kevin (Morgan Spector) e seu filho Adrian (Russell Posner) sobre as questões de gênero e como os laços familiares podem ser levados ao extremo da resiliência quando algo balança as estruturas tradicionalistas - em outras palavras, Adrian admite sua homossexualidade para o pai e é rechaçado por seu estilo de vida.
O nevoeiro é um símbolo semiótico que indica a cegueira, e as criaturas extradimensionais, definitivamente deixadas em segundo plano, entram como catalisadores bíblicos de salvação ou de condenação. Dessa forma, o terror só deixaria de existir quando as relações humanas, passivas de erros, encontrassem uma evolução digna de “segunda chance” - ou ao menos, esse era o principal ideal arquitetado por King e por Darabont nas obras predecessoras. A relação pai-filho da série é a que passa pelas mais profundas transformações, mas mesmo assim não traz todo o brilho que poderia, por um simples motivo: a monotonia cênica.
As coisas parecem se mover em uma velocidade tão ínfima quanto uma sequência slow-motion - talvez até menor. Ao longo de dez episódios, tudo o que os personagens fazem é fugir. Correr. Proteger-se da névoa, sem ao menos ter em mente possíveis perguntas sobre sua origem, decorrência ou como puderem se salvar. Em determinas sequências, a explicação se restringe ao poder divino que enviou seus sentinelas do apocalipse para iniciar o julgamento final - buscando inspiração na obra literária, visto que, em momentos de crise, o ser humano deixa seu lado mais racional escondido e prioriza a renovação de sua fé para a eternidade. É claro que não podemos tirar crédito das pontualidades do roteiro e da condução dos fatos, incluindo a crescente rixa ideológica entre o Padre Romanov (Dan Butler) e a dissidente Nathalie Raven (Frances Conroy) que culmina na aparição nem um pouco premeditada dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse para matar o pastor - renegando o falso moralismo pregado por membros da Igreja Católica e escancarando a heresia desenfreada.
O potencial de The Mist existe. Está lá, na frente de todos. Mas é essa insuportável pontualidade que insiste em carregar os personagens, seus objetivos, seus medos e seus arcos perscrutados de furos e pontas soltas. A majestuosidade dá lugar à efemeridade simbólica e, para completar, estetizada com uma montagem sem qualquer fluxo imagético - aumentando o afastamento do público em relação à série.
Quando não estamos aguardando ansiosamente pelas ameaças sobrenaturais que povoam a névoa, nos vemos frente a frente com conflitos internos em cada um dos cenários principais. Temos a igreja e a o hospital, como supracitados, e também o shopping - funcionando mais como um campo de batalha que qualquer outra coisa. Aqui, seguimos de forma compulsória e sem qualquer saída o grupo liderado por Eve (Alyssa Sutherland), esposa de Kevin, e Alex (Gus Birney), a outra filha do casal, as quais foram separadas pelo assustador nevoeiro. Entretanto, além de monótonos, os acontecimentos dentro desse estabelecimento não seguem uma lógica própria, fincando-se muito à inverossimilhança e às frases de efeito para fornecer o mínimo de complexidade a personagens que, eventualmente, tornam-se vazios.
É claro que os pontos altos existem - e o principal deles vem na figura contraditória da renegada Mia (Danica Curcic), uma viciada em drogas que esconde segredos obscuros, revelados à medida em que enfrenta seus medos e é possuída pelos ataques psicossomáticos da névoa. Além da performance de Curcic se sobressair diversas vezes nas sequências de ação e de drama, roubando o foco dos outros protagonistas, seu arco é o mais bem delineado e o mais agradável de toda a temporada, ainda que isso não seja o suficiente para apagar deslizes imperdoáveis.
The Mist é o que podemos chamar de desperdício de potencial, apostando suas fichas em apenas uma pequena parcela do gênero que ousa explorar e afastando-se de forma inexplicável de sua fonte original. Em detrimento até mesmo de uma narrativa que tentasse escapar das convencionalidades, a série é um amontoado de investidas presunçosas e brutas - fazendo pouco jus ao seu criador original.
The Mist – 1ª Temporada (Idem, 2017 – EUA)
Criado por: Christian Torpe, baseado livremente na obra de Stephen King
Direção: Guy Ferland, Nick Murphy, Adam Bernstein, David Boyd, James Hawes, Richard Laxton, Matthew Penn, T.J. Scott
Roteiro: Christian Torpe, Amanda Segel, Andrew Wilder, Peter Biegen, Noah Griffith, Peter Macmanus, Daniel Stewart, Daniel Talbott
Elenco: Morgan Spector, Alyssa Sutherland, Gus Birney, Danica Curcic, Okezie Morro, Luke Cosgrove, Frances Conroy, Darren Pettie, Russell Posner
Emissora: Spike (EUA); Netflix (Brasil)
Gênero: Suspense, Drama
Duração: 45 minutos
Crítica | Como Nossos Pais
Com apenas três longas em sua filmografia, a paulistana Laís Bodanzky se comprovou como uma das cineastas mais talentosas e ecléticas do atual cenário do cinema nacional. Bicho de Sete Cabeças, Chega de Saudade e As Melhores Coisas do Mundo são filmes muito diferentes entre si, mas mostram que a diretora tem temas recorrentes em sua obra. Os principais são os conflitos familiares da classe média brasileira. Seria só uma questão de tempo até que fizesse um filme que esse tema ficaria em primeiro plano e o resultado é o belo Como Nossos Pais, que corrobora o talento da diretora.
A protagonista é Rosa (Maria Ribeiro), uma dramaturga frustrada que aos 40 anos está enfrentando uma grande crise da vida: o seu casamento com o ambientalista Dado (Paulo Vilhena) se mostra cada vez mais instável; as suas filhas estão na pré-adolescência e entrando em uma fase rebelde; está infeliz em seu trabalho atual, que é fazer orçamento de banheiros; tem que cuidar do pai, Homero (Jorge Mautner), que se mostra cada vez mais perdido; e seu relacionamento com a sua mãe, Clarice (Clarisse Abujamra), é péssimo, cheio de hostilidades. Após um almoço de família desastroso na casa de Clarice, essa diz a Rosa que ela não é a filha de Homero, mas de outro homem. Essa informação se torna a gota d’água da moça, que decide rever todas as suas decisões e se encontrar.
O roteiro de Bodansky que assina junto com o seu parceiro, Luiz Bolognesi, é irregular. Essa irregularidade se dá por ele ter ótimos momentos com diálogos muito bem escritos que falam sobre o estado de alma de cada personagem e esses serem muito bem escritos com varias camadas, junto com momentos que há falta de lógica em algumas situações e principalmente arcos dramáticos que não são bem resolvidos ou são apenas deixados de lado. Felizmente, os momentos bons se sobressaem aos que prejudicam o filme. A principal característica do roteiro de Como Nossos Pais são como os diálogos funcionam. Como todos os personagens estão passando por momentos difíceis da vida, eles são em sua maioria ditos de maneira cru, seca e sincera. É importante ressaltar que essa sinceridade nos diálogos são primordiais para que Rosa passe por todo o seu arco. Não são apenas palavras ditas da boca para fora, mas que tem muito rancor e amor entre eles, só prestar atenção nos diálogos entre a protagonista e a sua mãe que criam os momentos mais emocionantes do filme.
Um ponto que vale a atenção é como a diretora demonstra a mesma segurança visto nos longas anteriores na direção de atores. Todo o elenco de Como Nossos Pais se mostra impecável em seu papel. O principal destaque vai para Maria Ribeiro, que segura o filme nas costas. A atriz consegue expor todo o subtexto da crise existencial que Rosa está passando, sem que ela soe torne antipática. Ela mostra carisma, emoção e uma forte presença de tela, é um trabalho impecável feito por Maria Ribeiro.
Aliás, o que deve se dizer sobre o elenco do filme é que por mais que alguns personagens tenham atitudes reprováveis, eles não são canalhas. Isso se deve ao roteiro junto com o trabalho de composição do elenco. O melhor exemplo desse trabalho de composição muito bem feito é a personagem de Clarice. Por mais que seu relacionamento com Rosa seja péssimo, a atriz Clarisse Abujamra evita que a personagem caia na caricatura de megera. Só notar no jeito em que essa olha para filha com amor e respeito, mesmo quando seja para dar críticas fortes quanto a sua “conduta”. O mesmo pode ser dito de Dado, que mesmo sendo um pai irresponsável, não esconde o amor que sente por sua família e se deve ao olhar de sincero de Paulo Vilhena.
Se a direção de atores de Bodanzky se mostra ótima – que já se tornou praticamente uma característica dos seus filmes – esteticamente o longa se mostra pouco original em vários momentos. Por mais que a direção de arte e fotografia acertem em não deixar o longa com um tom pesado (notem como há um grande uso de branco), a diretora utiliza planos poucos inspirados em alguns momentos. Há momentos que inclusive não mostra algo importante que está em cena e percebe que não há uma causa quanto aisso. Por mais que algumas escolhas estéticas da diretora funcionem em momentos pontuais, a maioria dos planos são muito óbvios. Exemplo: quando em crise, Rosa está em um plano mais aberto, sozinha no canto do quadro. Já quando ela se sente mais livre, ocorre um close com a luz do sol iluminando o seu rosto. Essa obviedade estética acaba deixando o longa com um ar de preguiçoso algumas vezes. E o filme tem problemas de ritmo no terceiro ato que parece que ele se alonga demais para chegar em sua conclusão.
Por mais que Como Nossos Pais tenha essas irregularidades, é um dos grandes filmes brasileiros do ano. Tem um trabalho excepcional do elenco e tem uma mensagem muito sincera de sua diretora. Mesmo com apenas quatro filmes, repito: Laís Bodanzky é uma das principais diretoras do cinema brasileiro atual.
Como Nossos Pais (Idem, Brasil – 2017)
Direção: Laís Bodanzky
Roteiro: Laís Boansky e Luiz Bolognesi
Elenco: Maria Ribeiro, Paulo Vilhena, Clarisse Abumjamra, Jorge Mautner, Herson Capri
Gênero: Drama
Duração: 107 min
https://www.youtube.com/watch?v=-_8t-3PG8Qk
Crítica | Emoji: O Filme
Quando a Pixar resolveu lançar Divertida Mente, ela teve uma ideia maravilhosa. Afinal, ciência explica muita coisa, mas nossa criatividade consegue justamente pegar essas noções e transformá-las em narrativas lúdicas e cheias de fantasia. A originalidade é um dos fatores que trazem qualidade à uma história como essa. Por isso que trabalhos como Emoji: O Filme, nem que tentem muito, conseguem chegar ao patamar dessas animações.
Mostrar o universo por trás de algo presente no nosso dia-a-dia e relacionado as nossas emoções não é muito novo, mas pode ser reaproveitado sim. Porém, não é porque nossa geração é viciada em suas personas online e na comunicação com emojis e figurinhas que o filme consegue estabelecer uma conexão conosco. Muito pelo contrário, o filme repele e parece que a animação da Sony Pictures tenta demais. Divertida Mente e até Detona Ralph, por exemplo, fazem isso de uma maneira muito mais cativante. Eles possuem personagens e premissas próprias, enquanto Emoji se aproveita de algo já existente e bem disseminado na cultura digital para construir uma fundação rasa demais.
A História
Emoji conta a história de Gene (T.J. Miller), filho de dois emojis caracterizados pela expressão de entediados. Eles e todos os outros emojis moram em Textopolis, uma cidade digital dentro do celular de Alex, um adolescente. Encontramos Gene animado para seu primeiro dia de trabalho – mas ele não deveria estar animado. Acontece que o emoji não consegue manter a expressão de tédio que deveria ter herdado de seus pais, variando o tempo todo e, eventualmente, causando um acidente quando Alex (Jake T. Austin) tenta mandar uma mensagem para uma garota da escola. Isso faz com que Gene, que já não era lá muito respeitado pela comunidade, se torne um excluído. Literalmente – inútil em Textopolis, ele será perseguido por bots até que estes consigam deletá-lo permanentemente.
É então que começa a verdadeira jornada, com Hi-5 (James Corden) – um emoji de “toca aqui” que deseja voltar a ser popular - resgatando Gene e ambos procurando um hacker que possa consertá-lo. Quando encontram Jailbreak (Anna Faris), a hacker, eles precisam então ir até o Dropbox – o sonho da emoji é viver na nuvem – e transitam por diversos apps do telefone, se embananando no Candy Crush, dançando em Just Dance e surfando nas ondas sonoras do Spotify, em propagandas bem explícitas.
Ruim, Mas Bem-Intencionado
Com um emoji de donut aqui, os macaquinhos acolá e o fantasma assustando colegas, e abertura praticamente grita “ei, olhe aqui, todos os emojis que você ama usar, isso é tão divertido!!!!!!!”. Ainda se suas piadas causassem algum efeito, mas nem isso.
Ao início do filme, o clássico emoji de cocô (Patrick Stewart) e seu filho cocôzinho saem de uma cabine do banheiro. O menor olha para o pai e pergunta se eles devem lavar as mãos – em seguida, ambos saem dando risada. Até dei um sorrisinho, mas porque tentava ver a maior parte da história pelo olhar da minha sobrinha pequena, que coincidentemente está na fase de achar “cocô”, “xixi” e “meleca” palavras muito engraçadas.
A questão é que emoji também se distancia do humor dessa criança mais nova que só usa o celular enquanto na supervisão da família, principalmente pelos emojis estarem no telefone de um adolescente. Concluí, então, que o filme pode sim ser engraçado, de um jeito bem bobinho que poucos gostarão – mas aposto que atingirá algum nicho.
Algumas referências especiais aos adultos, uma tentativa de resgatar a atenção destes para o que se passa nas telas, fazem de Emoji um pouco mais divertido. Acredito que uma das melhores cenas nesse sentido é a reconciliação dos pais de Gene, Mary (Jennifer Coolidge) e Mel (Steven Wright). Ela poderia ser uma das mais repletas de emoção de todo o filme, e é justamente protagonizada pelas carinhas entediadas que não demonstram sentimentos, uma escolha curiosa. Apesar disso, sua montagem é bonita, do momento que Mary entra em uma fotografia do Instagram até quanto encontra Mel. O fim do diálogo talvez não seja compreendido nem pela metade dos espectadores do filme – enquanto os dois caminham para fora da foto, que apresenta a família de Alex em uma viagem à França, Mel evoca Casablanca e diz que “nós sempre teremos Paris”.
O tema implícito da narrativa é interessante. Afinal, Gene é um cara diferente de todos à sua volta, detestado e então perseguido por ser quem é. A princípio, ele tenta e se esforça para se conformar aos padrões, mas não consegue. A premissa é tão atual quanto o uso da tecnologia, cabendo em vários sentidos, do bullying ao preconceito de orientação sexual e gênero. Pena que não foi tão bem explorada pelo roteiro, que apostou mais na ação dos personagens que no aproveitamento do que sentem.
No geral, Emoji: O Filme vai agradar à algumas pessoas – alguns poucos pré-adolescentes, provavelmente, no limbo entre diferentes tipos de humor. Anthony Leondis, o diretor e idealizador da obra, teve intenções boníssimas. Porém ele falha em compreender que um hit como Toy Story – Leondis chegou a dizer que a trilogia era uma inspiração – precisa de mais complexidade, pecando ao tentar demais nos momentos errados. O resultado é uma obra sem nuances, monótona e previsível que não vale a pena ver de novo.
Emoji: O Filme (The Emoji Movie, EUA – 2017)
Direção: Anthony Leondis
Roteiro: Anthony Leondis, Eric Siegel, Mike White, John Hoffman
Elenco: T.J. Miller, James Corden, Anna Faris, Maya Rudolph, Steven Wright, Jennifer Coolidge, Patrick Stewart
Gênero: Animação
Duração: 86 min
https://www.youtube.com/watch?v=meaq8aY0B5k
Crítica | O Castelo de Vidro
Filmes baseados em histórias reais tem uma deliciosa inclinação para a ruína de qualquer almejo a se tornar uma obra-prima: os clichês de gênero. É claro que, em se tratando de acontecimentos verídicos, pouco se pode fazer para fugir desses maneirismos; entretanto, é possível sim criar maneiras de contar a mesma história de perspectivas diferentes ou com uma identidade um tanto quanto transgressora, criando uma estética original e agradável para uma audiência saturada com narrativas desse jeito. E as coisas ficam ainda mais complicadas quando, além da verossimilhança, o material original ser um romance - as saídas ficam mais apertadas, mas ainda existem.
Temos inúmeros casos em que o encontro desses mundos foi realizado de forma aplaudível, como por exemplo com a adaptação cinematográfica de O Diabo Veste Prada, de Lauren Weisberger, cuja história gira em torno de um heterônimo da autora, a qual passou pelas mesmas situações que a protagonista do filme. A franquia Invocação do Mal também segue um padrão similar de apreço crítico e público, resgatando a vida do casal Warren e relatos escritos e traduzindo-os para as telonas. E é aí que entra O Castelo de Vidro, novo longa-metragem do diretor Destin Daniel Cretton, baseado no romance autobiográfico homônimo de Jeannette Walls: a tentativa é focar em uma montagem diferenciada e paralela - e o esforço é inegável; só não é alcançado como a priori se desejava.
A releitura não se preocupa em manter as identidades das personas reais sob sigilo; desse modo, a trama principal gira em torno da própria autora, aqui interpretada pela incrível versatilidade e amadurecimento de Brie Larson (trazendo seu carisma e sua capacidade de mergulhar em um personagem de seu trabalho em O Quarto de Jack). Nos dias atuais, Walls é uma jornalista estável, pronta para contrair matrimônio com David (Max Greenfield) e fazendo de tudo para apoiá-lo em sua carreira como designer, sendo com jargões próprios de sua antiga vida ou até mesmo com o carregado sotaque sulista que não deixou de ser abandonado quando esta se mudou para os grandes centros cosmopolitas. Entretanto, desde o princípio sentimos que alguma coisa está errada: quando a conversa migra para seus parentes, ela hesita alguns momentos antes de falar dos incríveis projetos que seu pai idealizou sobre a extração de minério de ferro, ou sobre o talento artístico da mãe.
Tudo começa a adotar um tom de estranheza quando somos transportados para três décadas atrás, numa sequência durante a qual a pequena Jeannette está com fome e sua mãe está muito ocupada terminando um quadro para lhe fazer comida. Sendo “pressionada” por ela, a jovem começa a preparar sua própria refeição até que é consumida pelas chamas e levada às pressas para o hospital. A cena tem grande sucesso no quesito de emoções contraditórias, visto que não podemos encontrar qualquer naturalidade no que acabamos de ver: pais completamente irresponsáveis e excêntricos deixando seus filhos à mercê de situações perigosas e quase mortais - as queimaduras que Jeannette sofreu são carregadas por ela até mesmo quando adulta.
E então entendemos o teor da narrativa de O Castelo de Vidro que nos é apresentada: Walls é uma colunista numa revista de fofoca que, após internalizar todos os traumas de seu passado, decide desnudar sua própria história na qual teve de lutar para sobreviver à negligência dos pais disfuncionais. Tão genial quanto genioso, Rex (Woody Harrelson), o pai, vivia de acordo com regras que não seguiam o tradicionalismo das famílias do interior e, apesar de seu amor não-ortodoxo pela família, emergiu como uma figura extremamente dúbia, regida por conveniências e seu nível de embriaguez. Rose Mary (Naomi Watts), pintora e professora, renegava a escola formal por tolher a criatividade infantil e ao mesmo tempo expunha seus próprios filhos à fome e ao frio, alegando que as adversidades contribuíam para o fortalecimento físico e psicológico.
A trama inteira funciona como uma grande montanha-russa. De início, sentimos um frio na barriga, a mesma sensação que os quatro filhos da família protagonista, mas logo depois entramos em uma constância inerte de subidas e descidas que se mantém previsível até o final do segundo ato. Na maioria das vezes, o roteiro assinado tanto pelo Cretton quanto por Andrew Lanham consegue roubar essa premeditação de acontecimentos com diálogos incríveis e existencialistas que demonstram a sagacidade de Rex e como ele deseja transpassar sua sabedoria para a “filha favorita” - Jeannette. Porém, a longevidade da obra em si - que ultrapassa os cento e vinte minutos - é suficiente para tirar o brilho das viradas e torná-lo opaco o suficiente para nos distanciar dos personagens e de suas relações.
Os grandes deslizes vem com a direção. Primeiro, a alternância de narrativas não tem qualquer equilíbrio em O Castelo de Vidro: ao vez de se preocupar com a tonalidade destoante entre as duas fases da protagonista, Cretton decide jogar suas fichas na cronologia passada, permanecendo muito tempo escavando as minuciosas discussões que Jeannette e Rex tinham sobre bebedeira, relacionamentos e até mesmo futuro. Apesar de não se portarem como uma família conservadora, o personagem encarnado por Harrelson é controlador e completamente deturpado no tocante a prioridades; sua filha é o exato oposto e sempre fez de tudo para dar um pouco mais de esperança para seus irmãos e para si mesma. O problema é quando tudo se trata disso, restringindo os escapes narrativos.
Segundo, Cretton parece ter uma queda por criar momentos melodramáticos. As composições, perscrutadas com um potencial incrível, são desperdiçadas pelos clichês do gênero de drama, buscando com uma intensidade absurda as resoluções límpidas e plenas do reencontro de pai e filha, do perdão e do esquecimento dos traumas como evolução pessoal. Diferentemente de seus trabalhos anteriores, como Short Term 12 (também estrelado por Larson e funcionando como uma narrativa de superação), aqui o diretor implora para que você se emocione, saturando o público com a mesma história de sempre em detrimento do que poderia ser uma nova perspectiva para esse nicho cinematográfico.
Por fim, O Castelo de Vidro é um filme interessante por seus atores e pela química que trazem em cena - com ressalva para os maneirismos caricatos de Watts e sua dissonância em comparação com os outros personagens -, mas que peca muito na estética e na identidade fílmica. Tudo bem, esta pode não ser a história mais emocionante do ano, mas sem dúvida é capaz de nos fazer refletir, ainda que infimamente, sobre nossos próprios rancores.
O Castelo de Vidro (The Glass Castle, EUA – 2017)
Direção: Destin Daniel Cretton
Roteiro: Destin Daniel Cretton e Andrew Lanham, baseado na obra homônima de Jeannette Walls
Elenco: Brie Larson, Woody Harrelson, Naomi Watts, Max Greenfield, Josh Caras, Sarah Snook, Ella Anderson, Brigette Lundy-Paine
Gênero: Drama
Duração: 127 min.