Crítica | O Círculo
Parece faltar para Dave Eggers, além de uma boa noção do que é criatividade, uma boa dose de bom senso, principalmente, quando percebemos já no começo qual a proposta do livro e nos deparamos com sua extensão de 500 páginas. O otimismo do leitor pode apontar para um livro com construções vastas e interessantes. Porém, não é o que acontece. Os únicos aspectos que abundam são o descritivismo descontrolado e a explícita falta de uma edição, no mínimo, atenta. Teria Eggers lido o seu livro mesmo, de cabo a rabo, percebendo as curvas de sua narrativa? Quando um capítulo totalmente descritivo é seguido de um outro que inicia com a repetição das mesmas explicações do trecho anterior, fica mais provável que não.
O Círculo trata de uma sociedade com traços bem parecidos com a nossa, em que uma grande empresa de tecnologia – a do título – começa a aliar a conectividade quase em tempo integral dos usuários em todo o mundo com ferramentas que “facilitam” suas vidas. Câmeras de vigilância, chips inseridos nos ossos, escaneamento de ambiente e aparelhos espalhados pelo corpo são alguns dos dispositivos que auxiliam no controle do cotidiano das pessoas. Isto é, controle do usuário que se confunde com o controle monopolístico da empresa.
A protagonista, Mae Holland, começa com a mesma mentalidade da maioria impressionável que não se incomoda com as consequências veladas do uso da tecnologia e da obsessão pelas redes sociais. Por indicação de uma amiga, que ocupa um cargo de prestígio na empresa, ela adentra o Círculo no setor de atendimento ao cliente. No seu escritório, começa administrando informações de apenas uma tela. À medida que avança, Mae vai ganhando novas responsabilidades (chega ao nível de controle de seis telas, mais uma função apenas por voz) e crescendo na empresa até tornar-se uma figura quase heroica, um modelo para os outros funcionários da empresa e para usuários de todo o mundo. A certa altura, Mae passa a carregar uma câmera no peito, transmitindo todo seu cotidiano ao vivo, 24 horas. Na base dessas atitudes hiperbólicas – ainda assim, muito feijão com arroz quando pensamos em termos de ficções científicas, até mesmo modernas como a série Black Mirror –, resumidas nas máximas "segredos são mentiras, compartilhar é cuidar e privacidade é roubo", o livro se desenrola.
Mas, retomo o argumento: até as últimas páginas, Eggers preenche as páginas com explicações e mais explicações, verborrágicas, como se delegasse a si mesmo a função de um escrivão, uma máquina registradora, que se disfarça de escritor pingando sentimentos falsos, incolores e inodoros no seu mar sem nutrientes. E não tem função nenhuma, senão tentar sanar as conjecturas básicas do leitor que se depara com as premissas dos programas inventados. O que é ridículo, pois sempre vão restar dezenas de dúvidas. Quer dizer, a ideia de O Círculo não é de todo ruim em termos de romances distópicos: acompanhar a construção de uma utopia e mostrar como sistemas estatais são subvertidos por um monopólio empresarial e como transformar “justiça com as próprias mãos”, isto é, “com as mãos do povo”, legitimada pela “aprovação” da maioria. Enfim, uma amostra de como a sociedade confunde ética e popularidade.
Mas os problemas só ficam ainda mais evidentes quando pensamos nos elementos humanos do livro. Não há um arco de desenvolvimento dos personagens, somente uma gradação da grandeza do Círculo na sociedade. Mae e a grande maioria dos personagens acreditam piamente nas decisões da empresa, são seduzidos pelo marketing barato, como utopistas natos, feitos sob medida para o totalitarismo. A virada só se dá nas últimas cinquenta páginas (haja paciência), quando uma cutucada, que vem como uma agulhada forte no ego de Mae, faz com que ela perceba a gravidade do "Círculo se completar", e consiga contornar a situação.
Eggers tenta fazer aqui uma crítica à juventude que vê tudo na base do preto e do branco. Não à toa, Kalden, personagem que a desperta para a situação (e com quem transa esporadicamente em cenas de sexo tão risíveis e dispensáveis, dignas de romances melosos de banca) possui cabelos grisalhos. Ele representa um misto do jovem (seu corpo rijo, forte, a camiseta apertada delineando seus traços apolíneos, sem falar da cabeça do pênis intumescida que Mae afirma sentir “em algum lugar perto do coração”) e velho (o cinza dos cabelos como símbolo de mistura, a sua presença misteriosa na empresa, como algum tipo de consciência humanística pré-digital).
De um lado da moeda temos os jovens empregados do Círculo, cujas descrições mostram diversidade étnica, trajes despojados, linguajar coloquial e poucos volteios. Do outro, os pais de Mae (seres incertos, tratados como ignorantes e grotescos) e seu ex-namorado, um artesão gordo e expansivo, que não possui um pingo de tecnologia no seu cotidiano.
Enfim, seguindo essa fácil lógica de espelhos, O Círculo mostrar-se a cada página, cada vez mais vazio de novidade ou criatividade. A cada vírgula entre uma palestra e outra, alguma interrupção forçada, juvenil, de algum palavrão, alguma descrição imprecisa. É o máximo que Eggers consegue. Nem para ser uma montanha-russa, divertida e passageira. O livro está mais para uma dessas torres em queda livre, só que o leitor desce lentamente. A ideia da construção dessa utopia segue da pior maneira possível. Falta, justamente, sair mais desse círculo em que se retro-alimentam os escritores desses tipos de história.
Crítica | Invocação do Mal 2
O gênero terror é extremamente paradoxal – fácil de fazer, difícil de emplacar produtos de qualidade. Dá para contar nos dedos quantas obras verdadeiramente boas existem em cada uma das artes, seja na literatura ou no cinema. É como encontrar agulhas em um palheiro. Entre obras máximas como O Exorcista, A Profecia e O Bebê de Rosemary, o gênero já não recebia verdadeiros bons filmes há tempos. Tudo mudou quando o novato malaio James Wan apareceu no cenário cinematográfico com Jogos Mortais em 2004. Claro, não era a melhor técnica e se tratava de horror apelativo da vertente torture porn, porém nascia ali as experimentações de Wan. Passando pelo bom Sobrenatural em 2010 até chegar no refinamento ideal da técnica no excelente Invocação do Mal, o segundo filme de terror original que mais causou repercussão crítica e financeira desde O Exorcista. Obviamente, com o tremendo sucesso, a sequência logo foi encaminhada.
Agora, em Invocação do Mal 2, Wan e seu trio de roteiristas investem em um caso que chamou muita atenção da mídia inglesa, sendo chamado até de “Amityville Britânico”. Trata-se da assombração de Enfield, que acometeu a casa rudimentar onde morava a família Hodgson. As assombrações começaram depois de uma das quatro crianças ter brincado com um tabuleiro ouija. Com o avanço violento da infestação do além, o especialista paranormal Maurice Grosse contatou os Warren para solucionarem o sinistro caso e devolverem paz à família suburbana. Porém, ao chegarem lá, se deparam com um espírito que ameaça a própria vida do casal.
O time de roteiristas do filme levou a máxima “não se mexe em time que está ganhando” bastante à sério. Se o primeiro longa já trazia fórmulas narrativas consagradas, vindas diretamente de O Exorcista, a sequência também não se atreve a mudar. A vantagem do filme anterior se dava tanto ao belo equilíbrio de cenas dedicadas ao terror quanto das destinadas para desenvolvimento de narrativa e personagens. Felizmente, mesmo acompanhada de narrativa mais fraca, a experiência geral do longa consegue ser tão boa quanto a do anterior.
O roteiro se preocupa em oferecer uma apresentação decente da menininha Janet, interpretada impecavelmente por Madison Wolfe. Como a assombração se concentra nela, há um desenvolvimento nítido até o fim da jornada do desgaste emocional, físico e psicológico que a garota sofre. Também, trabalhando com firmeza em características reais do caso, vemos uma família fragilizada, sem a presença protetora paterna, com dificuldades financeiras, com alguns filhos doentes e carentes, além da presença da mãe ser restrita pelas horas de trabalho. Muito do que citei são características que não são levadas adiante através de um bom drama, mas que já fundamentam bem a vulnerabilidade dos Hodgson, apresentando o cenário complicado e nos proporcionando a tão estimada afeição na relação espectador-personagem.
Além disso, há boa preocupação em atentar ao núcleo narrativo de Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga), antes deles entrarem efetivamente na investigação paranormal, claro. Assim como a família inglesa, Lorraine se encontra vulnerável também por ter que lidar com uma presença demoníaca fortíssima que a incomoda profundamente, quase a levando a desistir de sua vida profissional. A atenção para a vida pessoal do casal é interpolada organicamente com o outro núcleo, sendo que, inclusive, somos apresentados como a mídia sensacionalista que importuna tanto a vida do casal quanto a família londrina. Aliás, algo raro de se ver em filmes de terror, é algum desenvolvimento do antagonista. No caso, do fantasma. Surpreendentemente, o resultado é interessantíssimo, conseguindo trazer até certa dose de humor para o filme.
Algo que já era original no antecessor retorna com mais força aqui. Os roteiristas e Wan conseguem guiar algumas cenas para terrenos mais leves, cômicos ou até mesmo românticos, momentos destinados para a narrativa respirar. Nessas cenas inspiradas, temos diálogos excelentes de Lorraine com Janet sobre como lidar com o tipo de maldição que assola a família, além de originar uma sequência em montagem ao som das canções de Elvis Presley.
Porém, nem tudo dá certo no roteiro de Invocação do Mal 2. Justamente nessa febre e obsessão de sequências maiores, mais graves e mais urgentes, as sutilezas de outrora se perdem. A presença da figura do produtor é sentida nitidamente, afinal o orçamento mais gordo do longa se iguala ao sacrifício criativo o guiando para terrenos de fácil consumo. Aqui, temos muitas sequências dedicadas ao suspense e ao terror. De tantas, algumas até acabam caindo na repetitividade, ou inserem elementos que simplesmente não funcionam bem, como o Conto do Homem Torto – uma cópia sem-graça de Babadook. Nisso, além de dilatar o filme onde não deve para inserir um horror de qualidade inferior, acabam sacrificando tempo de tela que seria mais adequado para aprofundar o arco de Janet e, principalmente, no clímax que diante de uma situação tão urgente e perigosa se resolve com extrema rapidez e facilidade. Além dessa enorme dilatação com o excesso de cenas redundantes de assombração, há uma reviravolta final importante, mas que acaba um pouco prejudicada por conta do nosso ponto de vista onisciente, característico em obras desse gênero.
Mesmo com o texto do longa vacilando em alguns momentos, a forma da obra supera com muita facilidade seu conteúdo. É inegável que, com esse filme, James Wan crava definitivamente seu nome como um verdadeiro mestre do terror. A direção do jovem diretor é uma das mais elaboradas que eu já tenha visto em um filme do gênero. A predileção pelo estilo clássico de narrativa visual é sentida logo nos primeiros minutos através dos muitos e belos planos sequência que ele encaixa de tempos em tempos – mesmo que pouquíssimos deles sejam feitos em função da narrativa.
O domínio sobre a câmera é, literalmente, assustador. Mesmo inovando pouco, a firmeza de Wan sobre a encenação geral, movimentando lentamente a câmera via travellings ou panorâmicas bem inseridas, extraindo o máximo da expressão amedrontada convincente de seu elenco mirim, que se move sob passos relutantes pelos cenários sombrios auxiliados pela iluminação de ponta do cinematografista Don Burgess. Isso aliado ao uso correto do silêncio e com o visual horripilante da casa mal acabada, decrépita e hostil, trazida pelo desenho de produção exemplar, é algo absurdamente funcional.
Com esse tipo de preparação de atmosfera, cheio de jogos de “mostra-esconde”, nos induzindo propositalmente à uma expectativa de um susto que se ausenta, logo depois fazendo o público pular de um jeito bem elaborado, é impossível não sentir o medo desconfortável, o frio na espinha e a palma suada da mão em diversas das sequências. Muitas vezes, ele apresenta um jogo diversificado de encenação para que o público não consiga sacar os sustos com facilidade – eu, calejado em filmes do gênero, cai em praticamente todos. A técnica, mesmo refinada, é simples na concepção: trata-se da longa sustentação do plano que provoca a iminência do medo.
No terror, o poder do corte oferece um alívio da tensão para o espectador. Justamente por isso, James Wan segura ao máximo que pode seus planos bem movimentados. Quando se vê obrigado a criar um jogo de plano/contraplano, aproveita para inserir zooms que conferem magnetismo no olhar do espectador, além de enquadrar muito sabiamente seus fantasmas e monstros nos pontos de fuga favoritos que buscamos na tela. Além disso, se você já conferiu outros filmes dele, sabe que além da preparação da atmosfera, o diretor não sente vergonha de mostrar explicitamente as criaturas diabólicas presentes em sua obra – uma de suas muitas marcas autorais.
Aqui, ele apresenta dois dos momentos mais inspirados de sua carreira. Um jogo brilhante do uso de sombras e pinturas e outro, inspirado até mesmo em Paul Thomas Anderson, onde ele segura uma cena inteira somente com um plano, quando Ed Warren se põe a entrevistar Janet e a entidade que assombra a casa. Aliás, referências não faltam à essa obra. Wan homenageia grandes filmes como A Profecia, O Iluminado e O Exorcista com características sutis que somente fãs do cinema de horror reconhecerão. Há até mesmo experimentações novas com planos holandeses, enquadramentos muito característicos à linguagem dos quadrinhos – já treinando para seu próximo filme Aquaman, além de brincar até com linguagem visual de games consagrados como Alone in the Dark e P.T., através de uma sequência apresentada pelo ponto de vista subjetivo de um personagem. É simplesmente fenomenal.
Invocação do Mal 2 é uma obra fantástica que é digna do sucesso do original. James Wan tratou o longa com um carinho notável, elaborando sequências de realização complicada através de sua encenação inspirada. Consegue trazer uma boa história para o gênero contando com um elenco muito competente e carismático – Patrick Wilson e Vera Farmiga nasceram para o papel. Mesmo contando com muitos sustos, visual impecável acompanhado da trilha musical afinada de Joseph Bishara, o longa derrapa em algumas poucas coisas, sendo que boa parte delas se concentra ao já tradicional clímax histérico e fantasioso em demasia dos filmes do diretor – nesse caso, ainda há o agravante do uso de computação gráfica mal acabada. Provando que ainda há muito para contar da interessantíssima história do casal Warren, James Wan entrega o melhor filme de terror dos últimos anos.
Invocação do Mal 2 (The Conjuring 2, EUA – 2016)
Direção: James Wan
Roteiro: Carey Hayes, Chad Hayes, James Wan, David Leslie Johnson
Elenco: Patrick Wilson, Vera Farmiga, Madison Wolfe, Frances O’Connor, Lauren Esposito, Benjamin Haigh, Patrick McAuley, Simon McBurney, Joseph Bishara, Bob Adrian, Franka Potente
Gênero: Terror, Drama
Duração: 133 min
https://www.youtube.com/watch?v=5gN2uH3EJFU
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Crítica | Ao Cair da Noite
Antes de começar a falar deste filme, farei uma rápida reflexão sobre os perigos de basear sua expectativa para um filme na opinião de outras pessoas e confiar cegamente na visão que outros tiveram para determinada obra. É conveniente que eu toque no assunto neste texto, porque Ao Cair da Noite é um dos filmes mais intimistas dos últimos anos, graças ao seu roteiro que deixa muita coisa subentendida, não entregando respostas diretas ao espectador. Não sei vocês, mas eu sou um dos maiores fãs do terror A Bruxa, que estreou no ano passado. Antes de chegar aqui, o filme foi ovacionado pelos festivais pelos quais passou e inclusive o mestre Stephen King declarou ser um dos filmes mais assustadores que ele já viu na vida.
Pois bem, este ano foi a vez de Ao Cair da Noite ter uma trajetória semelhante. Primeiro vieram os festivais, depois a crítica internacional rasgando elogios, com alguns mais empolgados cravando: é o filme de terror do ano! Então, vieram os trailers. Cheios de mistério sobre uma entidade maligna no coração da floresta e com várias imagens impactantes... Ah, foi difícil controlar a ansiedade. Mas, lembrem-se que enquanto os críticos idolatravam A Bruxa o filme teve uma recepção bem mista perante o público, muito provavelmente não por acharem um filme ruim, mas por esperarem uma coisa sendo que o filme entrega outra.
Curiosamente, Ao Cair da Noite tem o mesmo selo do outro filme citado, a fantástica A24 – que conta também com títulos como Ex Machina e Sob a Pele no seu catálogo. E eu temo que este filme sofra do mesmo destino injusto que A Bruxa sofreu. Ao Cair da Noite não é o filme mais assustador do ano. Ele nem se propõe a isso. Para mim, não chega nem a ser um terror, mas um suspense psicológico envolto em uma atmosfera completamente sombria, lembrando algumas obras do próprio Stephen King. Não é por acaso que Trey Edward Shults, o diretor, declarou que os filmes que mais lhe inspiraram para escrever e dirigir o longa foram O Iluminado de Kubrick, O Enigma de Outro Mundo de Carpenter, A Noite dos Mortos-Vivos de Romero e Inverno de Sangue em Veneza, de Roeg.
É claro que dizer que tal o filme o inspirou não significa automaticamente que tenha funcionado, mas eu realmente senti fragmentos de cada um desses filmes citados na obra de Edward, e tentarei expressar melhor isso no texto mais à frente. Apenas concluindo a minha reflexão, não deixem que o marketing equivocado e trailers montados propositalmente para aguçar sua curiosidade - mesmo que não reflitam a essência da obra – criem expectativas demais e atrapalhem seu julgamento na hora de apreciar um filme. Eu sei bem como isso é difícil, mas vale a pena segurar o hype.
Dito isso, na história Paul (Joel Edgerton) vive isolado em uma cabana na floresta juntamente com sua esposa Sarah (Carmem Ejogo) e seu filho Travis (Kelvin Harrison Jr.). A trama se passa em um mundo pós-apocalíptico onde há um vírus desconhecido infectando e transformando as pessoas em monstros/zumbis. Desde o início, fica bastante claro que o objetivo de Paul e sua família é sobreviver a qualquer custo. Até o dia em que Will (Christopher Abbott) – mais um sobrevivente – invade a cabana atrás de comida e um teto seguro para sua família. A partir daí as duas famílias terão de conviver juntas, confiando uns nos outros sem saber o que vem “ao cair da note”.
Edward Shults já havia se destacado no seu filme de estreia “Krisha”, mas neste filme ele eleva o trabalho com a câmera e criação de atmosfera a um outro nível, o qual não estamos acostumados em filmes do gênero hoje em dia. Ele constrói essa atmosfera enigmática e estabelece o clima de suspense colocando o espectador diretamente no meio da crise, assim como seus personagens. Não há exposição desnecessária e pouquíssima informação para o público. Por meio de uma direção paciente, com planos longos que passeiam pelos corredores escuros da casa, há uma constante sensação de que algo muito ruim está prestes a acontecer. Edward sabe – e aposta todas as fichas nisso - que o medo do desconhecido é uma arma muito eficiente para atingir o público.
Um quadro chama a atenção no início do filme: é O Triunfo da Morte, arte do período Renascentista. Como mencionei que o longa é um dos filmes mais intimistas do gênero, onde provavelmente cada espectador irá tramar suas próprias teorias acerca da história, ao final desta análise farei uma breve explicação sobre o que eu achei que pode ter acontecido, para evitar soltar algum spoiler indesejado. Certamente, a maior qualidade de Ao Cair da Noite é a parte técnica, onde o filme beira a perfeição. Edward volta a trabalhar em conjunto com seus colegas de costume, Drew Daniels na fotografia e Brian McOmber na trilha sonora.
O fato de ser um filme escuro, por si só, não seria um elogio. Acontece que como o filme inteiro é construído em cima desta atmosfera, acaba causando uma desorientação psicológica que acentua ainda mais o medo e a imprecisão daquele ambiente, nos deixando sempre tensos com a situação. Quanto a trilha, talvez não haja nenhum tema tão marcante - com exceção de um tocado durante um pesadelo de Travis -, mas o destaque vai para a forma precisa como ela é empregada. Por várias vezes a trilha também é usada para causar apreensão, mas de repente é abandonada, nos deixando apenas com o silêncio constrangedor da situação.
Infelizmente, Ao Cair da Noite também tem seus problemas, a maioria deles com relação a alguns pontos que o roteiro toca, mas não desenvolve. Pode até ter sido intencionalmente por parte da direção deixar algumas pontas soltas para que o espectador buscasse pensar mais e se envolver melhor com a história. Mas, a sensação que fica é que tirando todos esses elogios técnicos que foram feitos, o que temos é uma história simples de sobrevivência, onde pouco acontece. Talvez sabendo disso, Edward dá muita importância para as sequências de pesadelo do garoto Travis, deixando de lado a oportunidade de se aprofundar em questões importantes como “o que aconteceu com o mundo?”, “a causa e como o vírus é transmitido?”, “há outros sobreviventes?”, etc.
lguns personagens também são subdesenvolvidos, com exceção de Paul, Travis e talvez Will. Aparentemente, Edward estava mais interessado em demonstrar como alguns indivíduos reagem a paranoia e ao isolamento, afetando a família como um todo, do que desenvolver cada personagem de maneira mais profunda para ver como eles agem em sociedade, lidando com outras pessoas nas quais não confiam. Portanto, o sentimento que fica após o término do filme é conflitante. Embora tenha várias qualidades técnicas e estéticas, em termos de profundidade e tema, o filme acaba sendo um tanto superficial. Eu não me espantaria se com o tempo o filme tiver proporcionalmente o mesmo número de adoradores e haters, por exemplo.
Sendo assim, reforço que Ao Cair da Noite provavelmente não vai te matar de medo. Na verdade, a proposta do filme nem é essa. Aqui não há interesse em jumpscares baratos, monstros ou fenômenos sobrenaturais. Acredito que o filme queira provar que dependendo da situação, o próprio ser humano se torna o monstro. Para quem gosta de thrillers psicológicos com mistério e um clima intimista é um prato cheio. Parece que o filme é construído em uma única atmosfera que vai eclodir apenas no clímax final. Apoiado por mais uma poderosa atuação de Joel Edgerton, caso você vá assistir ao filme livre de expectativas e influência de trailers e afins, tem tudo para apreciar provavelmente “o melhor suspense do ano”, porque terror, só se for o psicológico.
Spoilers a Seguir
Como disse anteriormente, o filme deixa várias questões em aberto. Mesmo o final é completamente subjetivo. Paul e Sarah sobrevivem ou não? Eu ainda quero ver o filme mais uma vez para - quem sabe preparado - entendê-lo melhor, mas separei algumas questões que acho que o filme levanta sem a preocupação de respondê-las. Confiram a seguir:
O Triunfo da Morte
O quadro visto na casa de Paul e sua família é “O Triunfo da Morte”, de Pieter Bruegel. Diferentemente de outras fotos do filme, que passam muito rápido, esse quadro é propositalmente focado por Edward logo no início, tomando toda a tela. Por isso acredito que haja nele uma importância muito grande para o significado que o diretor quis atribuir ao filme. Na pintura vemos uma enorme chacina, onde caveiras estão executando muitas pessoas. A Morte parece estar no centro da imagem, montada sobre um cavalo empunhando uma foice gigante. Há o desespero das pessoas pela sobrevivência, correndo em direção a uma passagem com uma cruz vermelha. A julgar pela utilização de cores predominantemente quentes, a passagem pode significar o Inferno.
Um detalhe importante é que entre essas pessoas há homens, mulheres, nobres e religiosos, ressaltando que a morte vem para todos, sem distinção. Bruegel era um pintor de miniaturas, e impressiona a quantidade de informação e detalhes que conseguiu juntar em uma única imagem. Assim como o filme, o quadro tem um cenário apocalíptico, onde a morte está em todos os lugares. Como sugere uma caveira com um relógio de areia no canto inferior esquerdo, é apenas questão de tempo. Sendo assim, minha interpretação do quadro sendo relacionado com o filme, é a de que todos acabam morrendo. Eu precisaria ver novamente para entender a ordem das infecções, mas acredito que quando o garotinho Andrew é encontrado por Travis dormindo fora do quarto, ele entrou em contato com o cachorro infectado, por isso a porta aberta.
Naturalmente, Travis também foi infectado. Quando as famílias decidem se separar e Paul quer ver se Andrew está infectado, seu pai Will não permite que ele entre, provavelmente com medo que Paul descubra a infecção e tente mata-lo. E o pior: Agora Will e sua esposa Kim também estão infectados. Quando Paul finalmente consegue entrar, Will o obriga a tirar a máscara, o infectando também. Não fosse o bastante, Travis começa a dar sinais da doença e sua mãe Sarah lhe diz as mesmas palavras que disse para seu pai infectado no início do filme, para parar de lutar, não há mais volta. Só que com uma diferença, desta vez ela não usa a máscara, também indicando que já estava infectada. Por mais que o filme não nos dê esse final mastigado, a verdade é apenas uma: a Morte triunfa sobre todos mais uma vez.
Quanto ao enigmático título do filme, já que também nunca fica claro o que realmente vem “ao cair da noite”, podemos assimilar com outro aspecto cuja direção de Edward dá muito valor: os pesadelos de Travis. Pode ser frustrante para algumas pessoas (para mim foi um pouco), mas os momentos onde a tensão está mais alta no filme acabam sendo esses pesadelos do tímido e frágil jovem. Após três ou quatro repetições dessa abordagem, você já espera “ah, era apenas um sonho de novo...”. No entanto, pode haver um significado maior ali.
Não sabemos há quanto tempo o vírus se espalhou, mas é o suficiente para que a família estabeleça regras rígidas de sobrevivência e de segurança na casa. O fato de não usarem máscara o tempo todo, dá a entender que o vírus não é transmitido pelo ar, a não ser que se esteja em contato com um infectado. Numa cena rápida, vemos dois galões de água em uma espécie de garagem fora da casa e claramente está escrito “dirty”, ou seja, água suja. Pode ser que Paul tenha descoberto uma forma de descontaminar a água, e a transmissão do vírus seja feita por essa forma. Dois fatos que ajudam essa teoria são (1) quando Will é capturado, ele diz que “tinha ficado sem água” e (2) quando o cachorro se perde na floresta e aparece morto em casa, pode indicar que ele bebeu de algum rio contaminado.
E, para fechar, quando o avô de Travis morre e precisa ser enterrado no início do filme, sua mãe fica visivelmente incomodada com o fato do garoto ter visualizado tudo aquilo. Travis na verdade é tão tímido que realmente parece ser uma criança. Será que o vírus se espalhou há tanto tempo que ele foi criado desde pequeno naquele mundo isolado, sem contato com o exterior? Apesar de ter 17 anos, nos intervalos entre seus pesadelos, ele aparenta estar descobrindo coisas naquele momento, como sexualidade e maturidade, deixando de ser ingênuo. Então no brutal clímax final do filme, onde de certa forma ele é responsável por ter tocado Andrew antes de verificar tudo, ele fica em choque com tudo o que está acontecendo, ao ver que seu pior pesadelo acabou de se tornar realidade. Isso é o que acontece “Ao Cair da Noite”.
Ao Cair da Noite (It Comes At Night, EUA - 2017)
Direção: Trey Edward Shults
Roteiro: Trey Edward Shults
Elenco: Joel Edgerton, Christopher Abbott, Carmen Ejogo, Riley Keough
Gênero: Terror
Duração: 91 minutos
Crítica | O Círculo
Se o filme O Círculo estiver certo em sua profecia sobre o futuro teremos que nos preparar para o caos social/digital que nos espera. Mas antes de entrar em suas teorias vamos voltar um pouco ao passado e falar a respeito de uma outra obra que tem muito a ver com essa produção. Em 1949 era lançado o livro 1984 de George Orwell que abordava, entre os muitos temas, a falta de privacidade e a observação pelo Estado via um instrumento chamado de Teletela. Era uma espécie de televisão/câmera que vigiava toda a população. Foi daí que surgiu o termo "Grande Irmão".
Em O Círculo, filme baseada na obra de Dave Eggers, muitos lembrarão do clássico de George Orwell enquanto o assistem. Assim como virá a mente outro fato recente que foi amplamente divulgado por todos veículos de mídia que é o caso Snowden. Edward Snowden foi um ex-funcionário da CIA e que trabalhava para a NSA. Ele tornou público um sistema de vigilância macabro feito pela agência que deveria fazer o contrário. A NSA criou um programa de vigilância chamado PRISM e o usava para vigiar qualquer cidadão nos EUA, claro que tudo muito invasivo, pois poderiam acessar a webcam de qualquer pessoa sem que ela soubesse que estava sendo vista por alguém que tivesse acesso.
E não é de se estranhar que esse tema esteja tão em pauta nas produções americanas. Snowden recentemente foi lançado com a direção de Oliver Stone e Citizenfour ganhou o prêmio Oscar de melhor documentário por mostrar o lado sombrio de um programa que tinha como intuito vigiar possíveis terroristas e acabou sendo usado como forma de espiar pessoas em seu lar ou ambiente de trabalho sem que essas pessoas soubesse do que estava acontecendo.
Ainda não entendeu a relação de tudo isso com o O Círculo? O filme dirigido por James Ponsoldt (O Maravilhoso Agora) teoriza um futuro assustador e nos mostra como uma empresa privada pode se tornar tão poderosa ao ponto de influenciar o que uma pessoa deve fazer, vestir ou com quem conversar. E isso é um fato que não deve ser ignorado nos dias de hoje. Os dados são a principal fonte de lucro das empresas. Ao instalar um aplicativo no celular, por mais simples que ele seja você aceita que ele tenha acesso, por exemplo, aos seus contatos ou ao seu Facebook e, assim, gera a eles um banco de dados enorme sobre o que você gosta de fazer, onde gosta de ir nos fim de semanas, ou que tipo de esporte curte. Sua rotina inteira na palma da mão para diversas empresas.
O Círculo não é uma obra-de-arte quando o assunto é produção ou narrativa, mas o debate que ele tenta provocar é o mais importante, de certa forma. Essa não é apenas a única coisa que o filme trata, são muitos os temas debatidos nele. Mae (Emma Watson) é uma garota que tem um emprego que não é do seu agrado e não lhe traz atrativos econômicos, nem sociais. Seu pai tem uma doença que precisa de maiores cuidados médicos. Ela sonha em mudar de carreira para ajudá-lo com o tratamento. Até que um dia recebe a chance de sua vida que é fazer uma entrevista na maior empresa de tecnologia do mundo - o lugar repleto de hipsters pós-modernos chamado de O Círculo.
Ela consegue a tão sonhada vaga e passa a trabalhar na empresa de Eamon Bailey (Tom Hanks). A referência para o personagem de de Tom Hanks é clara, o visionário empreendedor Steve Jobs. Tudo lembra sua empresa Apple, desde o logo que aqui é um circulo até o jeito em que as novas tecnologias são anunciadas em um anfiteatro e com transmissão ao vivo para todo o mundo. Suas invenções também são icônicas e estão na cabeça de todos, além de mudar o jeito com que as pessoas se relacionam também influencia o modo como elas devem se portar. Porém, conforme Mae cresce na empresa, acaba tomando decisões e aderindo a invenções cada vez mais megalomaníacas de Bailey que somente estreitam a linha tênue entre público e privado. Isso, gradativamente, destruirá as relações pessoais importantes da protagonista.
O roteiro de O Círculo traduz perfeitamente o que acontece quando há uma péssima adaptação da escrita de um material original já fraco. A ironia é que tanto o diretor, James Ponsoldt, e o autor do livro Dave Eggers foram os responsáveis pela narrativa que o espectador encontra no filme. Ironicamente, apesar da trama de subversão de identidade e privacidade, o que temos é uma história flácida, bastante arrastada e chata com performances insossas de Emma Watson - sua pior atuação, de longe, e Tom Hanks que aparece de vez em quando com um carisma genérico que qualquer CEO tem em suas apresentações de novos produtos.
Os problemas de O Círculo são vistos a olho nu por qualquer espectador, mas o principal deles é sentimento constante de que o filme se trata de um resumão da narrativa do livro. Absolutamente nada consegue ser desenvolvido do modo apropriado: a narrativa, os personagens e os conflitos. Quem sofre duramente com isso é a protagonista Mae, já prejudicada pela atuação tenebrosa de Watson que não consegue expressar as emoções corretas nas cenas, sempre levando o espectador para uma interpretação diferente do que a personagem dela gradativamente se transforma. O roteiro não se preocupa em estabelecer bem essa mudança vital na percepção de mundo da personagem e, muito menos, com suas relações com parentes, amigos e os novos colegas de trabalho.
Para piorar, Ponsoldt costuma fechar cada sequência com algum corte para o preto - isso é, usar fades até escurecer toda a tela pontual o fim de um arco. Em todas as muitas vezes que isso acontece, perpetua-se um sentimento que o texto está se atropelando, pulando fatos importantes que iriam conferir mais credibilidade para as ações da protagonista, já que a obra também é pretensiosa e almeja ser um estudo de personagem. Mas nada disso funciona. Tudo é perdido em meio aos avanços de uma história ruim que mantém sua mensagem em cima do muro a todo momento. É um cinismo exorbitante que não posiciona o filme de modo algum, como se fosse um episódio fraco e confuso de Black Mirror, mas que não possui as boas características do seriado.
Entrar nesses detalhes, seria entregar boa parte da narrativa, algo que é bastante injusto com o filme e com o leitor. Mas é perfeitamente possível apontar que entre as repetitivas cenas a la conferência TED Talks, reviravoltas previsíveis, personagens caricatos, mensagem cínica e bastante danosa por não tomar partido entre as diversas presepadas ideológicas - ou melhor, pela incredulidade da escolha da narrativa, repetição de temas, conflitos clichês que nunca geram atrito e acabam abandonados assim como outros personagens, O Círculo se torna uma infelicidade cinematográfica.
Para os mais curiosos, talvez valha a pena conferir por conta da narrativa de ascensão utópica, bastante inocente e juvenil, mas não espere conseguir levar nada disso que verá à sério. Quanto mais você ficar "desconectado" desse filme, melhor será sua experiência.
Escrito por Gabriel Danius.
O Círculo (The Circle, EUA, Emirados Árabes Unidos - 2017)
Direção: James Ponsoldt
Roteiro: James Ponsoldt, Dave Eggers
Elenco: Emma Watson, Tom Hanks, John Boyega, Karen Gillan, Bill Paxton, Ellar Coltrane
Gênero: Ficção Científica, "Distopia", Drama, Mistério
Duração: 110 minutos.
Crítica | Império dos Sonhos
É certo que um espectador que não foi devidamente submergido nas águas profundas de David Lynch veja em Império dos Sonhos, filme de 2006 e último trabalho do diretor antes de retornar ao comando de Twin Peaks, um filme experimental. Mas oras, não é o primeiro filme de Lynch a tratar do ambiente hollywoodiano e suas imagens. Cidade dos Sonhos trazia isso de maneira muito clara e era construído em toda uma linha narrativa bem definida, dando um quebra-cabeças na mão do espectador. Talvez, se tivéssemos de chamar o filme mais experimental de Lynch, talvez seja Eraserhead e suas representações tão caras ao círculo íntimo do diretor.
Mas em Império dos Sonhos, não se trata de ter uma narrativa sobre a refilmagem de um longa polonês amaldiçoado, nem das barreiras do sonho hollywoodiano, nem sobre a força das protagonistas lynchianas. Mesmo assim, é tudo isso, junto e misturado em um cinema em que o teto e o chão se confundem. Quer dizer, em nenhum momento as imagens do filme tocam algo do nosso consciente enquanto espectador, mesmo que nem todas essas sinapses se liguem com tanta facilidade. Há algo de Videodrome no início, com uma personagem chorando enquanto vê TV – estaria ela vendo as imagens que vemos mesmo? –; há um coro grego num grupo de prostitutas; há o drama do script do filme que a personagem de Laura Dern e Justin Theroux estão vivendo, como paira também os conflitos dessa atriz. E quem não ficaria meio pirado após a visita de uma “vizinha estrangeira” como aquela do começo do filme? – que está carregada no tipo de estranhamento que só o olho treinado nos filmes do diretor sabe identificar desde o começo.
Não existe aqui momentos de impacto, de contato com o incompreensível, como um choque de terror, e adrenalina, mas algo como uma imensa zona cinzenta. Uma zona cinzenta e chuviscada como a de uma TV. Quer dizer, em termos técnicos, não são essas gravações um enorme apanhado de pontos digitais que tentam dizer algo, como as pinceladas coloridas são para uma pintura? E Lynch parece, a cada sequência que passa, a cada retalho que insere – aquele do vidro quebrado n’A Visita de Shyamalan –, dissolver mais e mais a tinta que vai usar. E reafirma, porque outros já haviam feito, algo em extinção no cinema.
De que importa saber que tal filme não foi filmado de um jeito linear, ou de que o filme “só nasceu na sala de edição”? No final das contas, tudo nasce lá. Até mesmo o projeto mais rígido. É contra essa promiscuidade dos bastidores que Império dos Sonhos luta para conseguir se afirmar como obra de arte e não um desvio qualquer de um ou outra escola estética – última coisa que podemos pensar no cinema de Lynch. Tratando disso, o filme é deformado como nos diversos close-ups em Laura Dern, onde o claro-escuro do digital, mais até do que impressionismo de sua textura, se revela perfeitamente. Sem esquecer do uso de grande angulares para invocar o abismo em cena.
Adentremos esse buraco em que o fim é o começo e vejamos o sitcom de uma família de lebres antropomórficas. Diferente do coelhinho de Alice, essas não tem pressa alguma. O tempo funciona de outra forma. Passam roupa, sentam no sofá, atendem o telefone. E nós, espectadores, somos mecanicamente forçados a mostrar os dentes, da mesma forma que o digital modulável incha a face da protagonista.
Império Dos Sonhos (Inland Empire, EUA e Polônia – 2006)
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch
Elenco: Laura Dern, Justin Theroux, Jeremy Irons, Harry Dean Stanton, Karolina Gruzka, Grace Zabriskie, Diane Ladd, Naomi Watts, Laura Elena Harring
Gênero: Suspense, Drama
Duração: 180 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=MsF7D02RO4A
Crítica | Cidade dos Sonhos
No final da década de 1990, após o sucesso de História Real, David Lynch fechou contrato com a ABC para a criação de uma série de televisão. Depois do sucesso atingido pelo cineasta na sua primeira experiência televisiva, o seriado Twin Peaks, algumas emissoras estavam ansiosas por estabelecer uma parceria. Quando isso aconteceu, a ABC não podia ter ficado mais feliz. Porém, o piloto foi filmado, e a decepção dos executivos foi gigantesca. De acordo com eles, o ritmo era muito lento, e as atrizes (Naomi Watts e Laura Elena Harring), muito velhas. Assim, a parceria acabou sendo cancelada. No entanto, dois anos depois, Lynch faria das cinzas de seu projeto malogrado a maior obra-prima da sua carreira: o longa Cidade Dos Sonhos.
Como o piloto, o filme também começa com uma tentativa de assassinato da qual uma anônima (Laura Elena Harring) - que virá a ser chamada posteriormente de Rita - consegue escapar. Sofrendo de amnésia, ela acorda numa casa que está momentaneamente ocupada pela aspirante a atriz Betty (Naomi Watts). Juntas, as duas iniciam uma investigação para descobrir a identidade da primeira e quem são as pessoas que a estão perseguindo. Paralelamente, o filme também acompanha as idas e vindas de Adam (Justin Theroux), um jovem diretor de Cinema obrigado a escalar no seu filme uma atriz que não lhe agrada.
Muito se diz sobre a inacessibilidade de Cidade Dos Sonhos e de como o filme é confuso. Todavia, embora os dois primeiros atos contenham passagens enigmáticas, uma trama misteriosa e cenas, aparentemente, desconexas do todo, eles são fáceis e prazerosos de serem acompanhados. A ignorância sobre o que está realmente acontecendo, a atmosfera tenebrosa e o charme dos personagens são suficientes para prender o espectador à cadeira. Os segredos da história são manipulados com enorme destreza pelo diretor, e as respostas, quando dadas, surgem nos momentos corretos, satisfazendo o público, mas deixando-o ansioso pelos próximos passos.
Ainda no primeiro e segundo atos, também há a necessidade de destacar os diferentes tons e climas adotados por Lynch. Apesar de a fotografia de Pete Deming se manter sem vida e quase "caseira" por toda a narrativa, Lynch contrasta a história de Rita e Betty com a de Adam. Enquanto a primeira é detetivesca e flerta com vários elementos típicos do Noir (o longa Gilda é uma constante referência), a segunda é deliberadamente cômica e cartunesca. Reforçada pela eclética trilha sonora de Angelo Badalamenti, essa narrativa dupla, no entanto, não é uma opção arbitrária do diretor. No terceiro ato, no momento em que a história é, enfim, explicada, a justificativa paras essas alterações é perfeitamente condizente dentro do contexto.
Aliás, no que diz respeito ao terço final do filme, essa parte, sim, pode ser considerada confusa, embora seja evidente a conclusão da história. As explicações começam a ser dadas na cena que se desenrola no clube "Silêncio" - o melhor e mais impactante momento do longa. Inicialmente, elas são enigmáticas e, principalmente, simbólicas. É somente depois, quando ocorre uma série de elipses não cronológicas, que elas se tornam mais concretas e evidentes. Propositalmente, Lynch coloca objetos, como uma chave azul, para situar o espectador na ordem temporal dos eventos. Depois disso, tudo fica claro através dos diálogos.
Ou seja, o diretor se apropria de diferentes ferramentas para finalizar a sua história. Cidade dos Sonhos é um filme construído sobre simbolismos. Quase todas as coisas vistas estão abertas para interpretação. Mas Lynch não se restringe a isso. Encontrando outras maneiras de passar as mesmas informações (em qualquer outro filme, isso poderia ser entendido como redundância, mas, dada a complexidade deste longa, esse zelo se torna necessário), Lynch usa todos esses artifícios para fazer algo que é rotineiramente esquecido por muitos cineastas vanguardistas: os experimentos com a linguagem devem existir somente quando são exigidos pela história.
Claramente, o penúltimo longa de Lynch é um filme sobre sonhos. Mas não estou falando dos sonhos que temos quando fechamos os olhos e sim daqueles que temos quando os nossos olhos estão plenamente abertos. Situada em Los Angeles, uma cidade que abriga todos os tipos de aspirações profissionais, pessoais e amorosas, a história é um conto melancólico sobre sonhos que se tornam pesadelos, além de abordar, cruelmente, a indiferença da máquina hollywoodiana. Pois, se há algo que também está no coração de Cidade dos Sonhos, este algo é Hollywood. Enquanto alguns poucos são selecionados para se tornarem estrelas no céu cinematográfico, outros milhões são simplesmente abandonados.
Com um final de partir o coração (a palavra "silêncio" nunca ressoou tão alto como nos últimos segundos deste filme) e revelando ao Mundo três atores talentosos (Naomi Watts, Laura Elena Harring e Justin Theroux) que iriam construir carreiras sólidas nos Estados Unidos (com a exceção de Harring, que, estranhamente, sumiu), Cidade dos Sonhos é o pináculo da carreira de David Lynch. Todos os temas que haviam sido abordados e todas as experimentações que haviam sido feitas nos longas anteriores atingem, neste filme, a perfeição. Com esta obra, o diretor entrou para sempre no panteão dos grandes cineastas norte americanos. Poucos realizaram algo tão sublime quanto Cidade dos Sonhos.
Cidade Dos Sonhos (Mulholland Drive, EUA – 2001)
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch
Elenco: Naomi Watts, Laura Elena Harring, Justin Theroux, Robert Forster, Mark Pellegrino, Michael J. Anderson, Ann Miller, Angelo Badalamenti, Melissa George, Monty Montgomery
Gênero: Suspense, Drama
Duração: 147 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=XQ5Q0CHQ0EU
Crítica | Bruxarias
Com estreia marcada para a próxima quinta-feira (22 de junho), Bruxarias acompanha a pequena Malva, uma garotinha de 10 anos que, como qualquer criança de sua idade, está ansiosa para descobrir o mundo. Sua maior vontade é fazer parte de uma equipe de parapentistas liderada pelo simpático Selu. O rapaz, nada bobo, sabe que é perigoso para a criança participar das atividades do grupo, o que nos leva ao início do filme: sabendo que sua avó Lalila é uma bruxa, Malva fuça um armário especial dentro do trailer onde vivem procurando por uma poção que a ajude a voar. Ao encontrá-la, testa primeiro em uma caneta e depois em seu guarda-chuva de bolinhas.
O roteiro contrapõe a magia, um conceito ancestral conhecido por todas as culturas, a outro mais contemporâneo e tão universal quanto: a tecnologia. A poção para voar é um segredo de família e, ao usá-la, Malva chama a atenção de um dos capangas da vilã Rufa, uma mulher mesquinha que deseja roubar todas as receitas mágicas para industrializá-las. Assim, ela poderá vendê-las pela sua empresa, EcoNatura, acabando com os negócios de todas as curandeiras da região. Eventualmente seus capangas conseguem sequestrar Lalila e se torna responsabilidade de Malva encontrar sua avó e salvá-la, com ajuda de Selu, em uma aventura divertida e atrapalhada.
Apesar das boas intenções, o filme tem momentos confusos. Além do início súbito, que faz com que o espectador precise deduzir sobre o que se trata a ligação que Malva faz à Selu, é curioso ver como a menina tem total liberdade com o celular. Ela não só faz chamadas em vídeo frequentes, como tem uma conta até mesmo no twitter, uma rede social que não parece fazer parte do universo da faixa etária.
A tentativa de integrar jargões da internet é um tiro que sai pela culatra. A tecnologia já faz parte da fundação da história, presente na própria intimidade da menina com seu celular e na fábrica da EcoNatura, cheia de monitores gigantes, cadeiras flutuantes e máquinas. O público alvo do filme, apesar de estar crescendo mais próximo à computadores e celulares que nossa geração, não tem como entender uma referência à quão antigo é o Windows95. Ele também se perguntará porque a menina diz que viu sua vida passar diante dela como um Power Point após um acidente de voo. As menções não são suficientes para capturar a atenção da audiência adulta, que as entendem, perdendo um pouco de seu sentido.
Companheiros de Malva, os três caracóis que a menina apelida de caraloucos alegram a história. Adoráveis, eles começam a cantar sem aviso e protagonizam pequenas cenas paralelas aos acontecimentos principais que arrancam sorrisos fáceis pela fofura. Personagens com participações menores conseguem conquistar pelas suas peculiaridades, como o policial com mania de comer balas e um funcionário da EcoNatura com quatro fios de cabelo e uma obsessão por fazê-los crescer. O gato de estimação Mus, de aparência arisca, também garante risadas.
Bruxarias, passadas as confusões, acerta ao criar um enredo com uma moral bondosa para os pequenos. O amor de Malva por sua avó é o responsável por fazer com que a menina consiga encontrá-la na fábrica camuflada pela névoa. No fim, é quando ela entende sobre suas origens e sobre a importância da família é que seus planos dão certo. A vó Lalila também a ensina que, assim como a magia, a tecnologia pode fazer o bem ou o mal. A diferença é a forma como ela é usada. Cercada de carinho, Malva aprenderá a usar as duas para o bem.
Bruxarias (Caroline and the Magic Potion - 2015)
Direção: Virginia Curiá
Roteiro: Anxela Loureira
Gênero: Animação
Duração: 79 min.
Crítica | Uma História Real
Com Estrada Perdida, David Lynch fez uma revolução na sua linguagem. Nenhum filme do diretor - com a exceção, talvez, de Twin Peaks - Os Últimos Dias de Laura Palmer - podia preparar o espectador para os experimentos narrativos que seriam realizados no longa de 1997. Isso fez com que a antecipação sobre o seu próximo lançamento aumentasse. A impressão era de que o filme seguinte seria ainda mais radical. No entanto, a surpresa foi grande quando o diretor apareceu com Uma História Real, um road movie tradicional e repleto de mensagens positivas acerca da vida. De fato, não há como antecipar qualquer passo do cineasta.
Escrito por John Roach e Mary Sweeney, o roteiro de Uma História Real é, como o próprio título brasileiro diz, baseado numa história verídica. Nesta, Alvin Straight (Richard Farnsworth), um homem de terceira idade, mora no interior dos Estados Unidos com a sua filha Rose (Sissy Spacek). Depois de receber a notícia de que o seu irmão Lyle (Harry Dean Stanton) sofreu um derrame, ele decide visitá-lo, mas, para isso, terá de fazer uma longa viagem. No entanto, esse é o menor dos problemas. Não possuindo nenhum meio de transporte convencional, ele opta por realizar todo o percurso com um aparador de gramas.
Sim, dá para dizer que Uma História Real é o filme mais convencional de David Lynch, mas somente no que diz respeito à linguagem. Como é possível perceber pelo parágrafo anterior, a história é uma das mais excêntricas. Aliás, às vezes, a estranheza faz parecer que ela não aconteceu realmente. Porém, essa é apenas uma impressão. Os eventos ocorreram e são justamente eles que compõem o escopo narrativo deste belíssimo longa do diretor. E uma vez aceita a bizarrice de percorrer uma parte do país num aparador de gramas, a história de Alvin Straight se mostra acessível a todos, pois é humana e profundamente comovente.
Assistindo à obra, talvez, o espectador se pergunte como é possível um diretor acostumado a contar histórias oníricas e fantasiosas se dar tão bem dirigindo um filme "normal". Não é preciso ir muito longe para encontrar a resposta. Embora Uma História Real tenha uma estrutura linear, personagens "comuns" e possa ser considerado como um estranho no ninho na sua filmografia, é um equívoco achar que não há nenhum elo de ligação entre ele e os outros filmes. Lynch sempre esteve interessado em abordar os elementos culturais dos Estados Unidos, e não há nada mais norte americano do que o interior do país.
Contudo, diferentemente dos seus outros longas, Uma História Real não se apropria desses elementos culturais para subvertê-los. Pelo contrário, ele os abraça. Se as tomadas de helicóptero, as gruas, os tilts e os grandes planos gerais são empregados para captar toda a beleza natural das bucólicas paisagens interioranas, é o retrato gentil das pessoas que moram em estados como os de Iowa, Nebraska e Wyoming, e a defesa de valores como o da família, que indicam a forma bondosa com que Lynch enxerga essa parte do território norte americano. Com essa abordagem, era natural que o diretor optasse por uma linguagem cinematográfica mais tradicional. Uma ode às coisas simples da vida necessita de um formato artístico simples.
Mas se engana quem acha que não há nenhum tipo de subversão em Uma História Real. Road movies costumam usar a viagem física para simbolizar a viagem de auto conhecimento que acontece dentro dos personagens. Durante o trajeto, surgem novas pessoas e, cada uma delas, tem algo a ensinar. No filme de Lynch, apesar de Alvin usar o percurso para repensar alguns erros do seu passado, não é ele que aprende com outros e sim estes que aprendem com ele. O protagonista é uma espécie de anjo passando pela vida das pessoas e mostrando a elas o que verdadeiramente tem valor. Assim, pode até se dizer que o filme é um anti-road movie.
Com uma trilha soberba de Angelo Badalamenti (é o melhor trabalho da carreira do compositor) e uma atuação inesquecível de Richard Farnsworth, Uma História Real é um diamante raro na filmografia do diretor. Poucos cineastas conseguem tocar fundo no coração do espectador como Lynch. E se isso acontece até mesmo nos seus filmes mais "inacessíveis", não dá para começar a medir o que ele consegue fazer com uma história intrinsecamente bonita como a de Alvin Straight.
Uma História Real (The Straight Story, EUA – 1999)
Direção: David Lynch
Roteiro: John Roach e Mary Sweeney
Elenco: Richard Farnsworth, Sissy Spacek, Harry Dean Stanton, Everett McGill, Jane Galloway Heitz, Joseph A. Carpenter
Gênero: Drama
Duração: 112 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=e0zb_baTzkk
Crítica | Estrada Perdida
Com Spoilers
Quando David Lynch iniciou sua carreira como diretor, em meados de 1966 com pequenos curta-metragens, ele já demonstrava uma grande parcela de sua personalidade artística. E durante anos, continuou fazendo obras que comprovavam que ele se tratava de um sujeito bem criativo e constantemente experimental, além de atestarem o exímio diretor e roteirista que era (e é)! Ele já o tinha demonstrado em pequenas e brilhantes doses em Twin Peaks e no seu filme Twin Peaks - Os Últimos Dias de Laura Palmer, mas foi com Estrada Perdida que ele deu início a todo o seu estilo de fazer e criar Cinema que ele é reconhecido hoje.
Basta olharem para trama, que começa com o personagem Fred Madison, de Bill Pullman, um sujeito preso a casamento frustrado com Renee, de Patricia Arquette. E logo quando ele se vê envolvido em bizarros acontecimentos, como o aparecimento de fitas misteriosas, visões macabras e a presença de um tenebroso homem o obsediando (Robert Blake), o vemos trocar subitamente de personalidade com o jovem Pete, de Balthazar Getty, um rebelde sexualmente requerido e que está envolvido numa trama que consiste em ajudar a sua amante Alice (também interpretada por Patricia Arquette) a se livrar das mãos asquerosas e opressoras de mafiosos, como um verdadeiro herói de um filme Noir!
Encontrou algum sentido e nexo no que acabou de ler aqui? Pois é. Tudo e talvez nada pode fazer sentido, mas talvez aí é onde se encontra todo o brilhantismo deste grande filme de Lynch!
O Surrealismo moderno
A definição de surrealismo pode ser uma constante variável, ainda mais no que se refere ao Cinema. Basta voltarmos aos tempos de Luis Buñuel, Alejandro Jorodowsky ou o próprio Fellini em suas buscas incessantes por artifícios narrativos desconcertantes, simbologia freudiana, exploração de desejos reprimidos e uma ironia subversiva, para confundir e provocar os seus espectadores. E Lynch nada mais faz do que buscar e conseguir fazer exatamente isso aqui.
É voltar para a definição mais simples de surrealismo que talvez seja algo como a pura expressão do pensamento de uma maneira espontânea e automática, regrada apenas pelos impulsos do subconsciente, desprezando a lógica, renegando os padrões estabelecidos de ordem moral e social, ou no caso do cinema, convencional; e buscando ultrapassar os limites da imaginação criados pelo pensamento mundano.
Isto é o que Lynch faz neste filme: cria uma narrativa de símbolos, contemplação visual e sinfonias melódicas de sua trilha sonora. É o mais puro cinema sendo contado de forma puramente artística: visualmente. Estrada Perdida, assim como os filmes de Lynch que o sucederam, podem se encaixar perfeitamente como raros e perfeitos exemplos de um cinema visual sendo feito em pleno cinema moderno do século 21, onde os diálogos servem quase apenas de bônus ao miolo que se costura no centro do filme, que tanto pode cair na definição de sem sentido, pretensioso, inflado ou inchado e sem nada a dizer, ou o absolutamente inverso de tudo isso.
É a desconstrução de qualquer expectativa de lógica ou coesão que alguém possa querer ou buscar em algum filme. É iniciar seu longa como um drama claustrofóbico, com esse personagem em crise existencial: sem tesão; paixão, e com sua música soando vazia e sufocada, assim como a vida. Fred aqui pode quase simbolizar o alter ego de artista de David Lynch, enquanto Pete é o que ele sonha ou imagina ser quando sua vida, injusta, quebrada e insana não tem mais nada a oferecer senão loucura e desgosto, simbolizada figurativamente pelo corredor da morte. E, quando as chances de esperança se deterioram, um raio divino sombrio - a versão do tornado para Oz de Lynch nesse filme - o transporta para o corpo de Pete e para uma vida jovem, rebelde, livre, com a mulher perfeita ao lado. Mas seria isso algo divino ou um castigo do universo?
A Femme Fatale
Fica mais ou menos implícito que Fred e Pete são a mesma pessoa, só que em vidas diferentes. Mas não sei se isso se trata de um caso de uma troca de identidades como a que acontece em Persona, de Ingmar Bergman (este outro tipo de surrealista). A escolha de Lynch é mais parecida com uma mudança de protagonismo, no estilo de Psicose de Hitchcock. E é aí que encontramos o fio da meada do mistério sombrio criado pelo diretor. Um pode ser imaginação do outro, ou vice versa. Ou Pete ser exatamente tudo que Fred gostaria de ser. Mas por que iria ele, um músico, querer se tornar um um simples mecânico, servo de um mafioso insano, Mr. Eddy, de Robert Loggia? Seria tudo pelo amor de uma mulher?
Em ambas as personagens de Patricia Arquette também notamos a mudança de identidade, só que diferentemente de Fred e Pete, Renne e Alice são interpretadas pela mesma atriz e compartilham o amor dos dois outros homens. Fred não sabe mais satisfazer a mulher, a ponto de ela lhe dar uma batidinha nas costas durante o sexo por pena, e ele ter vislumbres de que ela o trai. Já Pete se vê apaixonado por Alice enquanto esta o seduz para lhe ajudar a se livrar de sinistros reis do crime. Assim, ele se torna o perfeito herói de um filme Noir, pois está envolvido numa trama cheia de mistérios e calúnias e tem um relacionamento com femme fatale: a mulher perfeita, duas caras, que o seduz dizendo que o ama, mas que nunca será dele.
Então...de certa forma, Estrada Perdida pode ser uma espécie de um Noir moderno com toques surrealistas. Os constantes carros clássicos e os policias seguindo Fred/Pete, a representação de Alice e seus expressivos cabelos loiros e a forma como que Fred/Pete se vêem perseguido engolido pelo mundo a sua volta onde ninguém é confiável são os elementos que tão aí para comprovar essa definição. E, assim como no Noir, a jornada de seu protagonista está destinada à tragédia, onde o puro mal parece o punir e torturar nessa sua ilusão sem volta ou escapatória, simbolizada no misterioso e tenebroso homem de Robert Blake.
Mas aí está uma coisa instigante de seu personagem. Ao longo do filme ,ele diz para Fred/Pete que ele o deixou entrar na sua vida. Ele, um espectro maligno que não invadiu sua vida e sim foi chamado de forma indireta quando Fred quis tanto desesperadamente mudar de vida e criar essa sua ilusão de uma vida melhor, ou como ele mesmo diz: "gosto de lembrar das coisas da minha própria forma!". Ele o fez, assim como Pete, para comprovar sua masculinidade e amor por sua amada? Ou foi simples e puramente egoísta como os trogloditas monstruosos, sádicos e nojentos como todos os homens representados no filme? E o que Renne ou Alice fizeram foi apenas buscar sobreviver a esse mundo sujo usando da fraqueza carnal dos homens. É como se ele quisesse desafiar sua existência e realidade e essa força do mal o castigasse psicologicamente por tentar mudar seu destino!
Um Cinema Exuberante
Mas isso tudo não passa de meras divagações de um jovem crítico. Lynch, sempre se desviando de buscar explicar seus filmes (se é que ele mesmo os entende), diz para o público ter suas próprias interpretações. Pelo menos, a certeza é a de que temos um filme absolutamente exuberante a sua volta.
Lynch filma e constrói cada recanto de sua trama com uma coesão infalível, sua câmera parece dançar por cada canto claustrofóbico e ruas sombrias, e a fotografia estonteante de Peter Deming só tem o que adicionar através de sua excelente composição visual. Ah, e o que pode ser dito de um uso nada menos que SOBERBO de sua trilha sonora. Sozinha, a trilha serviria para contar a história. Não é qualquer filme que consegue se iniciar ao som divino de "I'm Deranged" de David Bowie, e ir para "I Put a Spell on You", de Marilyn Manson, e sendo acompanhada pela trilha sinfônica melódica de Angelo Badalamenti. Cada uma constrói o estado emocional e psicológico de seus personagens de forma perfeita.
E isso se deve claro a seus atores. Arquette constrói ambas as personalidades de formas diferentes e únicas, cheias de mistérios e camadas refletidas apenas no olhar. Robert Blake e Robert Loggia são as representações do mal: um é o sobrenatural macabro invasor e o outro, a visão pérfida e asquerosa do opressor, que, por certos momentos, lembra um pouco a icônica performance de Denis Hooper em Veludo Azul. E, claro, os ótimos Getty e Pullman, com destaque para o último, que convence com tanta dor e ferocidade em suas emoções e se tornando a vítima das forças sobrenaturais dos outros personagens por cima dele. O forçando no final escapar numa estrada sem fim com a morte lhe penetrando na alma.
A perfeita representação da estrada da vida que não tem fim. O amor é nulo e a morte inacabada. Aqui, no mundo dos sonhos, nada tem sentido mas ao mesmo tempo nós também não o fazemos em nossos atos e criações bizarras que fazemos. No final, apenas segue a estrada, o quão mais louca que seja, até o inexistente fim.
Estrada Perdida (Lost Highway, EUA – 1997)
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch, Barry Gifford
Elenco: Bill Pullman, Patricia Arquette, Balthazar Getty, Robert Blake, Robert Loggia, Gary Busey
Gênero: Drama; Mistério; Noir
Duração: 134 minutos
Critica | Van Helsing: O Caçador de Monstros
No dia 26 de maio de 1987, Bram Stoker publicou a sua mais reconhecida obra, Drácula. Esta, além de entregar ao Mundo o célebre vampiro, nos apresenta o Dr. Abraham Van Helsing, um prestigiado professor de antropologia e filosofia que também é especialista em doenças obscuras e seres de origem sobrenatural. Foi ele que descobriu que Londres estava assombrada pela nefasta figura de um vampiro, e também foi ele quem o matou, usando os seus conhecimentos adquiridos sobre a mística criatura. Depois disso, ficou marcado para sempre como o arqui-inimigo do Drácula e de todos os seres sobrenaturais.
Em 2004, então, Stephen Sommers, o diretor de A Múmia e O Retorno da Múmia, resolve voltar ao universo de monstros, só que, desta vez, fazendo um crossover entre eles, e, para isso, resolveu usar ninguém menos que o famoso caçador de vampiros para ser a ponte.
O filme se inicia no ano de 1887, com o Dr. Victor Frankenstein (Samuel West) criando o seu infame monstro (Shuler Hensley) a mando do Conde Drácula (Richard Roxburgh). No entanto, Victor vê que o conde usará a sua criação para feitos nefastos, mas antes que ele possa fazer algo, Drácula o mata. Porém, o monstro de Frankenstein pega o corpo de seu criador, foge e, logo adiante, se esconde em um redemoinho, até que uma multidão enfurecida o segue e ateia fogo no moinho, supostamente matando-o. Então, Drácula fica enfurecido ao ver que seus planos foram atrasados e possivelmente arruinados.
Passado um ano após a morte de Frankenstein, nas ruas de Paris, somos finalmente apresentados ao protagonista título do filme, Gabriel Van Helsing (Hugh Jackman). Ele está caçando o monstro conhecido como Mr. Hyde, mas que de Mr. Hyde só tem o nome, pois ele parece mais uma versão monstruosa e gigante do corcunda de Notre-Drame - e ainda, por pura coincidência, Van Helsing mata o Hyde na torre de Notre-Drame. Seria melhor eles falarem que este monstro era o Corcunda. Assim, a deturpação do personagem seria menor.
Após esse incidente, Gabriel é chamado de volta ao Vaticano, onde fica a sede de uma organização secreta que jurou proteger a humanidade de tudo e de todos que desejam fazer algum mal a ela. Nela, Van Helsing recebe a missão de matar o Conde Drácula, que aterroriza uma cidade localizada na Transilvânia há séculos. Mas ele não vai sozinho: um jovem e estudioso frade chamado Carl (David Wenham) é encarregado para ajudá-lo em sua difícil missão.
A trama é totalmente previsível e clichê, com várias situações criadas certamente para completarem o tempo de duração do longa, pois não acrescentam quase nada para o desenrolar do filme. Sem contar no romance totalmente forçado entre Van Helsing e Anna Valerious (Kate Beckinsale), que chega a incomodar de tão desnecessário que é.
Em relação às criaturas presentes, o monstro de Frankenstein é retratado como um ser bastante inteligente, bem ao contrário de várias encarnações anteriores, porém, aqui ele não é um ser maligno, muito pelo contrário, ele, inclusive, quer se sacrificar para que Drácula não o use para fins malévolos. Essa é uma visão muito interessante do monstro. Todavia, eles forcam isso além da conta, tanto que praticamente todas as falas dele são destinadas a mostrar que ele não é do mal. Já o Conde Drácula é uma vergonha absoluta e uma afronta à memória de Bram Stoker. O personagem é totalmente caricato e sem nenhuma presença em cena. Já o Lobisomem é isso mesmo que o filme mostra. Não há muito do reclamar dele, além de algumas cenas onde o CGI é falho.
E em um filme onde se há o encontro dos icônicos monstros, que marcaram o gênero de horror com seus excelentes filmes, é para se esperar no mínimo cenas góticas ou aterrorizantes, coisa que este filme não proporciona. Sommers ainda tenta criar um clima de terror, mas acaba falhando e tornando vários momentos risíveis, como a que Drácula se vê no espelho dançando com a personagem da Kate Beckinsale. Contudo, no quesito aventura e ação, ele se sai muito bem.
O filme falha em muitas coisas, mas não nas cenas de ação. Stephen Sommers acerta em cheio nelas, principalmente na cena onde Van Helsing enfrenta as esposas do Drácula pela primeira vez. Porém o CGI usado é deveras falho, chegando a parecer e que estamos vendo uma gameplay de um jogo em vez de uma obra cinematográfica. Muito desse CGI usado podia ter sido trocado por efeitos práticos, que, além de darem uma aparência mais real aos monstros e às batalhas. É uma pena que não tenham usado.
A trilha de Alan Silvestri é outro grande acerto deste filme. As músicas compostas por ele são bem marcantes, e combinam perfeitamente com tom de aventura do filme, e ainda ajuda a dar uma grandiosidade a várias cenas, que, sem a ajuda dela, não teriam quase emoção.
Van Helsing é um filme com um grande potencial, e com uma ideia fantástica - que é a de unir os mais famosos monstros já feitos -, porém, ele falha mais que acerta. Pelo menos, não deixa de divertir o público com suas cenas de ação envolvendo os icônicos monstros, mas também não oferece nada além disso.
Van Helsing - o Caçador de Monstros (Van Helsing, EUA – 2004)
Direção: Stephen Sommers
Roteiro: Stephen Sommers
Elenco: Hugh Jackman, Kate Beckinsale, Richard Roxburgh, David Wenham, Shuler Hensley
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 131 minutos