Crítica | Expedição Kon-Tiki
Em meio a um avançado arsenal tecnológico, optar por soluções mais rudimentares vira motivo de chacota e sinal de atraso. No entanto, foi o meio com que o antropólogo Thor Heyerdahl utilizou para provar a sua tese. Nos anos 30, ele viveu um bom tempo na Polinésia. Com base nessa experiência in loco, suas observações e análises, Heyerdahl passou mais de uma década desenvolvendo uma tese que foi primeiramente mal recebida pela comunidade científica da época: a de que a Polinésia teria sido povoada não por populações asiáticas (a lógica da proximidade e da semelhança étnica), mas por populações sul-americanas.
Ele teria encontrado evidência tanto da existência de estátuas semelhantes nos dois lugares, como de vegetais e frutas semelhantes. O problema é que a distância da costa sul-americana até a Polinésia é de mais de 8000km, semelhante ao trajeto de Chicago até Moscou, ou da Islândia até a Etiópia. Realmente, um desafio e tanto para embarcações primitivas. Mas Heyerdahl acredita que, sim, esse trajeto foi percorrido por uma embarcação rústica séculos atrás. Depois de ver suas ideias sendo refutadas incessantemente, o antropólogo viu apenas uma saída: fazer a trajetória ele mesmo, com uma jangada feita dos mesmos materiais que uma população digamos “primitiva” teria à disposição. Expedição Kon-Tiki é um filme sobre esse sonho, onde a paixão supera a razão para reconstruí-la.
É um pena que seja um filme tão reducionista e limitado. Vale dizer que Thor escreveu um livro sobre a expedição, sucesso na época. Junto de sua tripulação, levou também uma câmera filmadora e registrou todo o percurso, que resultou no documentário lançado em 1950, Kon-Tiki, premiado com um Oscar. Frente a um registro concreto, seria de se esperar que o filme dirigido pela dupla norueguesa Joachim Rønning e Espen Sandberg, os mesmos que agora são os capitães do quinto longa da franquia Piratas do Caribe, soubesse aproveitar do material existente para fazer uma emocionante história de aventura. Ou uma análise psicológica dos personagens, no caso do drama não ser tão latente. Ou ainda ampliar o fio da história e partir para o prisma da visão daqueles que ficaram no continente. Essas ideias parecem ter passado pela cabeça do roteirista Petter Skavlan, mas simplesmente nenhuma parece definir direito a narrativa do filme.
O filme de 2012, que chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, parece só seguir uma bússola: a da força da fé. Heyerdahl confia numa história que ouviu certa vez de um indígena, sobre Kon-Tiki – talvez mais conhecido para nós como Viracocha, o deus Sol da mitologia inca. O filme eleva esse fato das apreensões científicas e pinta, em certa medida, Heyerdahl como uma espécie de clérigo cego, que joga todas as fichas na assistência divina, recusando em certo ponto a falta de esperança do resto da tripulação. E basicamente todas as relações que o filme faz são coerções ao invés de construções.
Podemos acompanhar uma fração mínima da infância de Thor, sua estada na Polinésia, alguma migalha da sua relação com a esposa. De resto, só há sua paixão. Os outros tripulantes são apenas companheiros de viagem. Somos apresentados à eles pelas suas funções, mas sabemos pouco deles e em certa altura, não poderíamos nos importar menos. Em meio às crises que povoam o segundo ato filme, antes da embarcação seguir o trajeto certo, não há nenhuma emoção. Os diretores parecem só se preocupar em mostrar os corpos esguios e brilhantes, com aquele bronzeado artificial de filmes antigos de estúdio, os cabelos e as barbas loiras de homens de olho azul e dentes branquíssimos.
Tudo é “lindo”. O mar, a embarcação, os peixes, o céu, as estrelas, o sol. Todo elemento plástico guarda uma sensualidade artificial das grandes produções norte-americanas. E Expedição Kon-Tiki é daqueles filmes em que faz-se um filme medíocre e melodramático só pela exposição das capacidades técnicas. Não à toa, os diretores já aportaram em Hollywood. Porque, de resto, o filme pode funcionar no papel, mas falta muito ao seu compromisso cinematográfico.
Falta expressividade aos atores, assim como falta informação e contextualização. Só restam dúvidas e incoerências enterradas pelo dito objetivo de mostrar a sonhada jornada pela estética do maravilhamento e da “beleza” da fé. É preciso crer para ver. Nem a visão de um navio naufragado no horizonte abala a segurança da crença. Tudo está alinhado ao cosmos, assim como mostra a exibicionista sequência em que a câmera se afasta do barco, vai até o espaço sideral e depois se reaproxima do mar.
Após a marca dos 90 minutos, tudo que se passou vira banal. As preocupações com a embarcação não aparecem mais, tudo dá certo nos últimos instantes. O filme fecha num tom esperançoso, fazendo uma ligação entre a paixão do antropólogo e a visão de sua esposa. É um pena que não toque o espectador, porque simplesmente é uma passagem deslocada de tudo. Seria mais divertido se os tubarões tivessem devorado todos.
Expedição Kon-Tiki (Kon-Tiki, Noruega – 2012)
Direção: Joachim Rønning e Espen Sandberg
Roteiro: Petter Skavlan
Elenco: Pål Sverre Hagen, Anders Baasmo Christiansen , Tobias Santelmann , Gustaf Skarsgård, Odd-Magnus Williamson, Jakob Oftebro, Agnes Kittelsen e Peter Wight
Gênero: Aventura, Drama
Duração: 118 min
https://www.youtube.com/watch?v=yNBGf7av6s4
Crítica | Punhos de Sangue
A série Rocky, apesar de qualidade bem discutível, e Sylvester Stallone, canastrão que merecia um Oscar, são figuras marcantes para diversas gerações ao longo dos seus sete filmes, Creed, o mais recente. O primeiro filme causou grande burburinho, sendo a grande estrela da noite da Academia em 1977. É inegável a empatia que o filme consegue provocar com a história inspiradora, as mensagens de resistência em meio ao melodrama romântico. Como são as grandes produções hollywoodianas. O personagem real que inspirou Stallone a fazer o roteiro também é – só que da Hollywood dos tablóides, dos bastidores, não a das telonas. Não que o boxeador tenha relação próxima com o universo do cinema industrial, mas do drama das celebridades sem limites.
Dinheiro, mulheres, drogas, bebida. Chuck Wepner (Liev Schreiber) tem uma esposa, uma filha, mas não consegue fugir das tentações e cai no estereótipo do cara que enfrenta recaídas e não entende que uma vida em família comum e uma vida de pegador bêbado não podem coexistir. Pelo menos é o que mostra Punhos de Sangue, novo filme do canadense Philippe Falardeau.
O longa tem como proposta fazer um filme sobre o boxeador, sem fazer um filme de boxe. A produção tem grande interesse, em primeiro lugar, em evocar o espírito do tempo dos anos 70 no Estados Unidos. O ponto de partida é, pelo menos, diferente do comum. Acaba funcionando melhor que alguns desastres como Nocaute (2015) ou Punhos de Aço (2016), mas não consegue se livrar das convenções o bastante para se afirmar como um projeto que foge da curva das cinebiografias programadas, nem contestar a falta de vitalidade do gênero.
Tenta-se empregar um olhar mais documental, com vários momentos de câmera tremida, com muitos zooms – visão que ao longo do filme vai se afrouxando. O que é até melhor, porque uma direção “documentarista” não se encaixaria bem com o roteiro. De resto, em aspectos técnicos, só há um virtuosismo primário que tenta conciliar um visual indie com os figurinos e as cores saturadas da época – inserindo ora imagens de arquivo, ora forçando a barra nos filtros.
O mais interessante é ver Chuck não como uma grande atleta, mas como um mais uma estrela de show cada vez mais patético. Ele é protagonista de sua história, mas não da história do esporte, sempre sendo ofuscado pelo retumbar dos nomes de Muhammad Ali ou George Foreman. Não à toa, a cena que inicia o filme mostrando um dos momentos finais da carreira de Wepner, numa luta para a caridade contra um urso domado.
Com o prosseguimento do filme, podemos até ver a sua decadência, mas também é possível ver que desde o começo, Wepner é celebrizado pela sua resistência , ganhando a alcunha de Bayonne Bleeder. Ele oferece entretenimento mais pelo seu sangue derramado do que pelos seus ataques. Justamente essa característica de sua história que tanto atraiu Stallone (Morgan Spector) a fazer Rocky – porém, nem ele, nem ninguém da produção do filme entrou em contato com Wepner na época. Só em Rocky II, quando o boxeador seguiu o rastro do sucesso do filme, mas a tentativa de participação foi frustrada.
Além de Falardeau reduzir as cenas nos ringues ao mínimo, também as cenas de treinamento têm pouco glamour. Com exceção do grande evento da luta com Ali, Chuck só vai à academia para conversar com o treinador (Ron Perlman) sobre as lutas que serão arranjadas: o protagonista só precisa saber quando vai entrar no palco.
Esse seu comportamento automatizado nos ringues, porém, não funciona no núcleo familiar. Chuck parece esquecer que a indiferença da esposa e da filha é mais dolorosa que qualquer soco, isto é, a conduta moral não depende mais do seu sangue. São nesses momentos de crise que Liev Schreiber mostra seu talento e dá mais valor ao filme, junto de Elisabeth Moss (Phyliss, sua primeira esposa) e Naomi Watts (Linda, a outra companheira).
O grande problema é que Falardeau acaba construindo uma narrativa um tanto asmática (sem capacidade ou tempo de respirar) com um personagem que não segue uma linha de evolução dramática até chegar nos minutos finais, quando já queremos que o filme tenha terminado.
Frente à sensibilidade de Rocky Balboa, a trajetória de Chuck Wepner. Mas, em comparação, se considerarmos Rocky como um gancho forte (nocaute seria hipérbole), Punhos de Sangue não passa de uma série de jabs irregulares.
Punhos de Sangue (The Bleeder, EUA – 2016)
Direção: Philippe Falardeau
Roteiro: Jeff Feuerzeig, Jerry Stahl, Michael Cristofer e Liev Schreiber
Elenco: Liev Schreiber, Elisabeth Moss, Naomi Watts, Ron Perlman e Morgan Spector
Gênero: Drama
Duração: 98 min
https://www.youtube.com/watch?v=vZNWQf4Sj_c
Crítica | O Jogador
Numa entrevista dada em 1993 ao jornalista Charlie Rose, Robert Altman disse que para fazer uma sátira o diretor deve se colocar dentro da trama e tornar-se um dos elementos satirizados pelo roteiro, caso contrário o filme se transformaria em mera propaganda. Basta acompanhar as peripécias pelas quais o personagem Tom Oakley (Richard E. Grant) precisa passar em O Jogador para perceber que Altman não estava falando da boca pra fora.
Mas Tom Oakley não é o protagonista do filme, ele é apenas um dos inúmeros personagens e personalidades que transitam e, em alguns casos, parasitam numa Hollywood obcecada pelo próximo sucesso nas bilheterias, mesmo que isso signifique ter de matar qualquer um que se coloque no seu caminho. O protagonista da história é Griffin Mill (Tim Robbins), um executivo de estúdio responsável por selecionar meia dúzia entre os milhares de roteiros que são enviados anualmente por jovens escritores em busca de uma chance. Bem sucedido e respeitado pelos pares dentro da indústria, a sua vida vira de cabeça para baixo quando começa a receber ameaças de morte e o seu cargo passa a ser ameaçado pela chegada de um novo executivo.
Embora possa ser interpretado como uma metáfora da ganância existente na sociedade norte americana – uma visão que o próprio diretor abraça -, O Jogador é um filme sobre Hollywood e, principalmente, sobre cinema. As referências metalinguísticas saltam aos olhos em vários momentos, mas, ao invés de soarem gratuitas e arbitrárias, o roteiro de Michael Tolkin (adaptado de um romance homônimo do próprio autor) inteligentemente as introduz de maneira orgânica às situações, enriquecendo a trama e os personagens e fazendo com que mergulhemos cada vez mais na história. Desde o longo plano inicial no qual o ambiente e a maioria dos personagens são apresentados e que é uma clara referência a A Marca da Maldade (aqui, mais uma vez, Robert Altman satiriza a si mesmo ao colocar em cena dois personagens falando justamente sobre planos longos), passando pelo momento em que a natureza predatória de Griffin Mill é ressaltada por um plano detalhe de um pôster de M – O Vampiro de Düsseldorf, até a cena na delegacia que remete a Monstros, o filme é uma inteligente colcha de retalhos da história do cinema.
Mas, ciente de que a deterioração moral do protagonista é o coração da trama, Michael Tolkin cria situações em que tanto o acaso quanto as escolhas feitas pelo personagem acabam por emaranhá-lo cada vez mais numa teia de mal-entendidos, interesses, ambições, traições e crimes. Inclusive, vale chamar atenção para a forma como o figurino ilustra essa deterioração moral, pois se no começo há predominância de tons beges e pastéis, do meio para o fim da história o personagem resolve adotar o preto e o vermelho. No entanto, nada disso funcionaria sem um ator carismático e competente por detrás, o que, felizmente, não é o caso de Tim Robbins. Sutil nas transformações pelas quais o personagem passa ao longo da história, o ator transforma o olhar de Griffin Mill numa verdadeira bússola para o espectador se nortear no furacão de acontecimentos que transformam a vida do personagem num verdadeiro pesadelo.
No entanto, se todas essas escolhas são certas, nenhuma é melhor do que a que Robert Altman teve de povoar o seu filme com breves aparições de atores e atrizes conhecidos do grande público. A lista é enorme: Jack Lemmon, Jeff Goldblum, John Cusack, Anjelica Huston, Burt Reynolds, Scott Glenn, Lily Tomlin, Bruce Willis, Susan Sarandon, Julia Roberts, Peter Falk, Elliot Gould, Cher, Nick Nolte, Andie McDowell, Malcolm McDowell etc. Inteligente também em estabelecer um importante elo com o mundo das celebridades ao escolher Tim Robbins para o papel principal (a face do ator estava estampada em todas as revistas na época do casamento com Susan Sarandon), Altman sabe que a junção de todos esses elementos dão uma maior realidade à farsa, e notar como a farsa tem um pé bem fincado na realidade e como a absurdidade da realidade sempre tem um elemento de farsa é uma reflexão que permanece mesmo após os créditos finais.
E embora seja cruelmente profundo no retrato que faz de Hollywood, o filme é leve e divertido de assistir, mérito da direção de Altman, que, ao estabelecer sua coesão estética através de constantes movimentos de câmera, dá à história fluidez e organicidade. Essa aparente superficialidade contrasta brilhantemente com a sordidez dos personagens e dos acontecimentos, o que acaba por se mostrar uma experiência no mínimo incômoda.
E quando digo “sordidez”, não estou sendo hiperbólico: todas as pessoas que passam pela tela são mesquinhas e egoístas, moralmente cegas em suas cruzadas pessoais por sucesso e fama. A única exceção é a personagem interpretada por Cynthia Stevenson, que acaba sendo penalizada justamente pelo seu zelo e carinho, e o fato de o filme terminar justamente com uma imagem que mostra todo o seu desespero e desolação não deixa de ser um atestado da imoralidade e da falta de consideração dum mundo prestes a engolir aquele que não sabe jogar de acordo com as regras estabelecidas.
Com uma estrutura circular que faz com o que filme termine falando sobre si mesmo, O Jogador é um brilhante exercício de metalinguagem e uma verdadeira declaração de amor ao cinema. É um filme que não teme prestar homenagem aos clássicos e nem criticar os defeitos de uma indústria que foi esquecendo o seu compromisso com a qualidade do produto que coloca no mercado. Tudo isso vindo de um cineasta que construiu toda a sua carreira à margem dessa indústria só enriquece ainda mais a experiência de assistir ao filme.
O Jogador (The Player, EUA – 1992)
Direção: Robert Altman
Roteiro: Michael Tolkin
Elenco: Tim Robbins, Peter Gallagher, Whoopi Goldberg, Vincent D'Onofrio, Dean Stockwell, Greta Scacchi, Fred Ward, Cynthia Robertson
Gênero: Comédia/Drama/Suspense
Duração: 124 min
https://www.youtube.com/watch?v=HpDDTS08wPs
Crítica | Regressão
Em Mar Adentro, Alejandro Amenábar usou a história de Ramón Sampedro para ilustrar o eterno embate entre o indivíduo e as instituições sociais. Como era um drama sobre a eutanásia, a Igreja Católica foi maciçamente criticada. Já em Alexandria, o diretor incorreu na antiga falácia de que o cristianismo sempre foi uma religião anti-intelectual e produziu uma verdadeira ode às “verdades” do paganismo. Com o Regressão, ele se aventura na seara dos filmes sobre possessões demoníacas e rituais satânicos para criticar essa temática que tem se tornado ao longo dos últimos anos um verdadeiro território para a ação apologética cristã. Mas, enquanto os dois primeiros filmes mencionados funcionam bem dentro dos seus respectivos gêneros (Alexandria foi um filme pouco visto e comentado, embora tenha muitas qualidades), Regressão é um suspense que falha em causar apreensão e um drama que se recusa a aprofundar os seus personagens e as situações apresentadas.
Inspirado num caso real de histeria coletiva que ocorreu numa cidadezinha do interior dos Estados Unidos no começo da década de 90, o filme acompanha o árduo e perigoso caminho que o detetive Bruce Kenner (Ethan Hawke) tem de percorrer para descobrir o que aconteceu a uma jovem (Emma Watson) que decidiu sair de casa e se refugiar numa igreja após alegar ter sofrido todos os tipos de abusos sexuais pelo pai.
Se o ponto de partida é interessante, o resultado final é desastroso. Escrito pelo próprio diretor, o roteiro apresenta erros bobos e até mesmo infantis. Uma das principais falhas é não estabelecer com certa verossimilhança as motivações pessoais do protagonista: além da sua obrigação profissional, por que o detetive se dedica tanto ao caso? Por que a investigação se transforma para ele numa verdadeira obsessão? A impressão que se tem é a de que o personagem sofreu algum trauma no passado, mas nada disso é dito ou mostrado, e o filme não sente a menor necessidade de explicar. Outro erro importante é a construção do arco dramático: no começo da história, ele não acredita em nenhuma evidência que aponte para a existência de um elemento sobrenatural, no entanto, após alguns acontecimentos, ele passa a acreditar, apenas para ao final do filme voltar a ser o descrente que era no início. Ou seja, o personagem passa por uma jornada simplesmente para voltar ao ponto de partida inicial.
Com uma construção de personagem tão ruim, não dava para esperar que a dinâmica entre o detetive e a jovem vítima fosse melhor trabalhada. Criando uma forte aliança sem que haja o menor motivo para que isso ocorra, os dois personagens logo se vêem sozinhos em suas crenças e buscam apoio e motivação um no outro apenas. No caso dela, isso não faz o menor sentido, uma vez que o pastor que a acolheu dentro de sua igreja acredita em tudo o que ela diz e a recebe de braços abertos. Já no caso dele, é no mínimo perturbador ver um detetive de meia idade estabelecer um laço emocional tão forte com uma jovem que lhe é estranha. Se houvesse por detrás o sentimento de uma relação entre pai e filha, tudo poderia até ser justificado, mas, infelizmente, não é isso o que ocorre, pois logo no início já é sugerida uma tensão sexual entre os dois.
E se o roteiro não contribui, o que dizer do trabalho dos atores? Ethan Hawke falha ao já surgir em tela descontrolado e obcecado, em vez de desenvolver o personagem aos poucos. Seria muito mais crível se o seu envolvimento no caso fosse construído mais cuidadosamente. Por sua vez, a personagem feminina que traz até mesmo em seu nome a ambiguidade interna (Angela Gray, que pode ser interpretado como “Angel Grey”, indicando tanto o caráter angelical quanto um elemento cinzento em sua personalidade) é mal trabalhada por Emma Watson, sendo que durante todo o filme o espectador a enxerga como uma mera vítima.
No entanto, a maior decepção fica por conta da direção de Amenábar. Pouco criativo e extremamente burocrático em certos momentos, o diretor se contenta com decisões pobres e nem um pouco inventivas. Preguiçoso ao ponto de aproximar a câmera da parte de trás da cabeça de um dos personagens para mostrar as lembranças que a hipnose retroativa traz à memória, admito ter tido dificuldades em acreditar que estava assistindo a um filme do mesmo diretor de Preso na Escuridão e Os Outros. Porém, infelizmente, a descrença teve de dar lugar à profunda tristeza ao verificar nos créditos finais que de fato tratava-se de um filme de Alejandro Amenábar.
Os poucos méritos do filme ficam por conta da direção de fotografia, que acerta em investir em tons cinzentos e numa iluminação baixa e mergulhada em sombras; e da direção de arte, correta na sobriedade dos objetos de cena e até mesmo inteligentemente irônica na decisão de colocar o ponteiro do metrônomo usado nas sessões de hipnose com um formato de cruz. Quem viu o filme sabe que esse mero detalhe tem um significado muito maior.
Todas essas falhas acabam prejudicando a intenção inicial do filme: colocar em xeque a verdadeira natureza de alguns relatos sobrenaturais. Basta olhar superficialmente para a obra de Amenábar para perceber que ele é um crítico contumaz do cristianismo, tanto da sua doutrina quanto da sua representação social e política. Para o diretor chileno, a religião cristã é uma verdadeira afronta às liberdades individuais. Se ele está certo ou não, isso não vem ao caso, pois se a intenção é o elogio ou a crítica, a construção da obra deve ser feita de maneira com que os tijolos basilares sejam extremamente sólidos para que a mensagem possa ser transmitida não independentemente do resultado artístico, mas justamente através dele. Por mais que não concorde com a visão extremamente pessimista que Amenábar tem do cristianismo, estaria aberto para ouvir o que ele tem a dizer sobre o assunto, mas com falhas tão grotescas em elementos cruciais da realização cinematográfica, tudo o que resta é o desapontamento de ter visto um bom ponto de partida ser desperdiçado num filme tão ruim. Mas chamo atenção para o mérito do diretor ao ter reconhecido um refugio do cinema cristão neste que praticamente se tornou um subgênero dentro do gênero do horror: os filmes sobre possessões demoníacas e rituais satânicos. Até o momento, ele foi um dos poucos a perceber. Por isso, ele merece elogios.
Com uma reviravolta final previsível e pouco impactante, Regressão é o primeiro grande fracasso de um diretor cuja carreira era até o momento muito consistente. Espero que esse tropeço seja facilmente assimilado por Amenábar e que o seu próximo filme faça jus aos seus trabalhos mais antigos.
Regressão (Regression, EUA – 2015)
Direção: Alejandro Amenábar
Roteiro: Alejandro Amenábar
Elenco: Ethan Hawke, Emma Watson, David Thewlis, Dale Dickey, David Dencik
Gênero: Suspense
Duração: 106 min
Crítica | Real - O Plano por Trás da História
Durante muitos anos, o folclore ligado ao Cinema Nacional parecia apontar para Macunaíma ou Antônio das Mortes como personagens simbólicos da cinematografia brasileira. Até que, em 2007, o surgimento de Tropa de Elite e o abraço do público ao Capitão Nascimento tiraram da crítica especializada a incumbência de “dar um rosto e um nome” que mais fielmente representassem a indústria, ultrapassando os limites das telas e invadindo a cultura em geral - através de outras mídias, inevitáveis paródias, referências, etc.
Quando agora, 10 anos depois, surge Emílio Orciollo Neto bradando “Desenvolvimentistas do car…”, em sua impressionante personificação do economista Gustavo Franco, o predomínio do Capitão Nascimento parece seriamente ameaçado. Talvez seja esta a maior das realizações possíveis para Real – O Plano por Trás da História, produção de Ricardo Fadel Rihan dirigida por Rodrigo Bittencourt (da comédia Totalmente Inocentes) que chega aos cinemas para contar a criação do célebre “Plano Real”, que derrotou a hiperinflação brasileira em meados da década de 1990, entre os governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
É de se imaginar a imensa dificuldade em transformar num enredo interessante uma intrincada rede de raciocínios macroeconômicos e o desenrolar político de bastidores que possibilitaram, momentaneamente, a convivência entre duas moedas - a anterior, arruinada pela inflação, e uma intermediária, que antecedeu ao real propriamente dito e que contava com a segurança do suporte em dólar. Mas é neste ponto que o filme atinge seu grande mérito: o roteiro - não raro, brilhante, obra de Mikael de Albuquerque a partir do livro do jornalista Guilherme Fiúza, 3.000 Dias no Bunker - consegue envolver o espectador em 90 minutos sem trégua e oferecer um protagonista (Gustavo Franco) com todas as características necessárias a uma personalidade lendária: coragem, obstinação, engenho, lances de nobreza alterando-se a outros de puro egoísmo, numa mistura que torna mais fácil se envolver com a trama mesmo quem, como o ex-presidente Itamar Franco, não está entendendo coisa nenhuma do tal plano econômico.
“Foram três anos de escrita e 19 tratamentos”, revela Albuquerque, na coletiva de lançamento. Esse é o ponto alto do filme, que sofre, na contramão, com as falhas já habituais de uma cinematografia que encontra imensa dificuldade em equilibrar, num mesmo filme, comunicação com o público e invenção cinematográfica. A fixação - até compreensível - em construir canais seguros de comunicação com a audiência tem aproximado por décadas os filmes brasileiros de seu parente dramatúrgico mais bem sucedido (no caso, a telenovela), o que confere a eles características típicas da empobrecida narrativa de TV. Faltam a composição dos quadros, a alternância entre momentos de preenchimento e vazio, a noção de ritmo, a hierarquia dos planos que tipificam a linguagem da tela grande. Tudo é muito concatenado, o puro diálogo conduz o filme fazendo com que a presença da câmera, invariavelmente, faça do espectador um observador ocasional do que se passa, de modo que, convertido numa peça de teatro, por exemplo, o resultado pudesse ser muito parecido (ou idêntico).
A despeito de tudo isso, compreendendo as intenções dos realizadores e considerando sempre que um filme é um todo íntegro de significado, o placar final lhe é favorável: Real é divertido, ágil, a montagem do elenco minuciosa (a ponto de oferecer uma caracterização assustadoramente fiel de José Serra, um personagem bastante secundário e, ressalte-se, detestável) e consegue atingir a importância de relato histórico que parece almejar.
O produtor Fadel Rihan alega que não quis usar dinheiro de empresas estatais na produção, o que já é outra façanha, sabendo-se da dependência doentia que os produtores de cinema brasileiros têm dos governos e dos laços com políticos para levantar produções. Com irritação contida, o global Juliano Cazarré (quase numa ponta, porém sempre carismático, interpretando o político petista que sintetiza personagens reais) reclama do boicote ao filme no festival de cinema pernambucano, lembrando que, tal qual o episódio com Boi Neon (retirado pelo diretor da disputa à vaga pelo Oscar), uma reação política intempestiva acaba dificultando aos filmes voos mais altos. Esta é a ponta do iceberg de toda a dimensão ideológica envolvida na produção de cinema no país, e acaba reafirmando outro mérito de Real: a coragem em seguir firmemente na contramão, talvez inspirado pelo seu personagem principal - no caso, Gustavo Franco, um apaixonado defensor do valor e da estabilidade da moeda contra as vicissitudes políticas.
Em 20 anos, se eventualmente despontar por aqui uma geração de jovens economistas a compreender que nenhum país se desenvolve e nenhum povo enriquece desvalorizando por oportunismo ou heterodoxia econômica o dinheiro que está em sua própria carteira, uma boa parte da explicação talvez seja devida a este filme e ao seu personagem principal, que a um só tempo derruba a inflação, samba na cara dos petistas e conquista Paolla Oliveira (mesmo sendo visivelmente uns 10 centímetros menor que ela).
Se este não é um herói (ou anti-herói, como parecem defender o diretor e o ator principal do filme) digno de ser viralizado, citado, lembrado e imitado, então o problema não está com esta produção, em particular, ou mesmo com a cinematografia nacional (ou com nossos economistas “desenvolvimentistas do car…”), mas com a alma do brasileiro e seu complexo, aparentemente incurável, de vira-lata.
Real - O Plano por Trás da História (Brasil - 2017)
Direção: Rodrigo Bittencourt
Roteiro: Mikael de Albuquerque
Elenco: Emilio Orciollo Neto, Bemvindo Sequeira, Norival Rizzo, Paolla Oliveira, Tato Gabos Mendes, Guilherme Weber, Cássia Kis Magro, Mariana Lima
Gênero: Drama
Duração: 95 min
Crítica | Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas
Em 2003 o futuro dos filmes live-action da Disney mudaria para sempre. Naquele ano, mais precisamente em 29 de agosto, estreou Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra baseado em um passeio temático dos parques megalomaníacos da companhia. Creio que na época, tinha apenas nove anos – uma idade fácil de se impressionar e não muito exigente com entretenimento. O resultado não poderia ter sido outro, me encantei com o universo apresentado pelo filme e por seus personagens inesquecíveis. Três anos depois a franquia retorna com um filme inferior ao primeiro e no ano seguinte, o terceiro longa destrói a reputação da cinessérie por causa de seu ritmo irregular, história maçante, metragem absurda, diálogos chatíssimos, segmentos infinitos – vide a parte do “sonho de Jack Sparrow” e várias outras falhas. Finalmente, a série volta com um ar renovado neste quarto filme.
Novamente sem seu querido Pérola Negra, Jack Sparrow continua a procurar a Fonte da Juventude. Após passar em Londres para ajudar Mr. Gibbs, o pirata reencontra uma paixão do passado e, consequentemente, acaba embarcando no Queen Anne’s Revenge – navio do pirata mais temido por todos piratas, o Barba Negra. Lá ele descobre que sua ex-namorada é filha de Barba Negra e que os dois estão determinados em encontrar a tal Fonte já que o pirata corre risco de morrer, mas para isso, é preciso encontrar itens para um ritual macabro. Enquanto isso, Barbossa – agora corsário do reino Inglês, tenta capturar Sparrow com outros planos em mente.
Desbravando os sete mares
O roteiro de Ted Elliot e Terry Rossio se comporta mais como uma relembrança das características marcantes da série do que uma proposta de reinvenção criativa. O espectador vai encontrar piadas inteligentes, os clássicos planos de fuga improvisados de Sparrow, impasses de armas, reviravoltas repentinas e a imprevisibilidade da narrativa. Esses aspectos começam a dar claros sinais de desgaste criativo, mas ainda conseguem divertir o publico. Porém o maior problema dos roteiristas é o primeiro ato da fita que termina quando Barba Negra finalmente aparece. Lotado de diálogos redundantes, vazios e chatos, poucas sequências agitadas, uma história enrolada e lenta, o início do filme abandona o espectador no ócio – aguentar a primeira parte do filme é uma dádiva de que você pode se orgulhar depois da projeção.
A história deste quarto filme soa muito vazia – a sensação no fim do filme de que pouca coisa interessante foi contada é muito forte. Sparrow não tem um motivo real para continuar a busca pela Fonte e Barba Negra é o antagonista mais ameno e fraco da franquia. Isso é fácil de reconhecer por causa de uma cena em que Barbossa ainda mostra os traços malignos de sua personalidade. Aliás, ele continua sendo o personagem mais interessante do filme e a causa de sua busca pelo vilão desperta a atenção da plateia.
Outro aspecto curioso do enredo é o abandono de vários personagens que fazem falta na história como a dupla de piratas Pintel e Ragetti ou a antiga tripulação do Pérola. Os personagens novos não têm tanto carisma como os antigos e causam certa antipatia com o público, por exemplo, a sereia Syrena e o clérigo Philip. Estes substituem Will e Elizabeth no arco romântico obrigatório da narrativa. Apesar de o roteiro proporcionar um fundo mais trágico e apaixonado que poderia facilmente conquistar o espectador, seus personagens pouco ajudam e assim acabam completamente excluídos – repare que Philip não tem outra razão de existência na trama além dessa.
Até mesmo a alma da série que eram os entraves explosivos entre os navios foram deixados de lado. Aliás, o filme todo carece de cenas memoráveis de ação que o consagrem na série. Entre tantas outras burradas do roteiro, também estão às soluções rasas, fáceis e ligeiras para diversos conflitos. Por exemplo, o clímax imprevisível do filme que é resolvido com muita correria sem o mínimo desenvolvimento. Novamente, erra em deixar Barbossa em terceiro plano do foco narrativo, além do pouco destaque de Angélica no filme. Mais um aspecto negativo é a relutância dos roteiristas em desenvolver Sparrow. Ele está se tornando aos poucos um personagem redundante e previsível e isso destrói o espírito inovador que tinha na trilogia original. Neste filme, eles tinham a oportunidade perfeita de evoluir o emocional de Jack com a condição de Barbossa, o reencontro com Angélica, e a amizade com Mr. Gibbs – este tem um papel importantíssimo para a narrativa. E, infelizmente, quando tenta solucionar o segmento das sereias de maneira complexa, acaba chateando o espectador porque novamente a utilização de efeitos visuais foi desperdiçada – as cordas encantadas do Queen Anne’s Revenge teriam “pescado” as sereias em menos de cinco segundos.
Entretanto, o filme possui alguns aspectos positivos. O segmento das sereias é a mais interessante do filme – absurdamente fantástica! Os diálogos entre Barbossa e Sparrow enriquecem a qualidade do filme. As poucas revelações do passado de Sparrow também satisfazem a curiosidade do espectador. As seletas cenas de ação conseguem empolgar e as referências aos filmes anteriores são um presente para os espectadores atentos. Fora isso, o casamento da narrativa fictícia com o período histórico é muito bem realizada. Também há a transformação hilária de Barbossa de pirata para corsário.
Yo Ho, Yo Ho! A pirate’s life for me
Johnny Depp mudou o conceito de atuação quando apresentou seu Jack Sparrow. O personagem cheio de tiques e manias rapidamente conquistou todos os espectadores ao redor do mundo. Graças à liberdade proporcionada pela direção e dos roteiristas, Depp fez o mais carismático personagem de toda franquia. Mesmo com três experiências vivendo Sparrow, consegue surpreender novamente. Aqui, continua com os traços marcantes do personagem como seu jeito único de andar, sua postura, a inclinação de seu corpo, seus inúmeros tiques nervosos, seu sotaque indistinguível e acima de tudo a fantástica linguagem de seus olhares que se comunicam com o espectador. Apesar de manter todos estes traços marcantes do personagem, arrisca diversas vezes novas expressões faciais e um grito ensurdecedor divertidíssimo.
Penélope Cruz não deixa ser ofuscada pela presença de Depp. Sua atuação é bem sensual, mas muito comportada por causa da censura PG-13. Ela é a presença definitivamente feminina que a série precisava. Cruz exala aquele ar espanhol apaixonante ajudado muitas vezes pelo sotaque latino carregado. Geoffrey Rush continua com seu carisma fantástico. Ele refaz totalmente o perfil de seu personagem graças a transformação que ele passou no intervalo do filme 3 ao 4. Rush aproveita inúmeras cenas para fazer tiradas cômicas muito inteligentes. Além disso, firma seu papel de maior antagonista da série. A maldade é charmosa em Barbossa. Suas expressões tanto físicas quanto faciais misturadas com a pronunciação ríspida e cheias de curvas de sua fala dão uma dimensão muito forte da personalidade do personagem.
Ian McShane nãofaz jus à reputação histórica de Barba Negra. Toda sua atuação é muito serena, imutável e elegante – características desprezadas por qualquer pirata. Nunca o espectador encontra momentos de ira e ódio como os de Bill Nighy quando incorporo Davy Jones. McShane deixa seu personagem muito cortês se portando como um cavalheiro ajudado pelas expressões de aparente cansaço físico. Barba Negra é o vilão mais fraco e educado de toda cinessérie aparentando ser mais um vovô do que um pirata tirano temido por todos.
Sam Claflin e Astrid Berges-Frisbey substituem Orlando Bloom e Keira Knightley. Os dois são tão ruins que é praticamente impossível analisá-los. As expressões de dor de barriga de ambos os atores cansam nos primeiros minutos que entram em cena. Eles até tentam fazer um esforço e criam um sotaque horrível. Claflin e Frisbey conseguem causar saudades de Bloom e Knightley no espectador para ter uma idéia da dimensão da falta de carisma deles. O resultado de disso foram os personagens mais chatos e insuportáveis da franquia. Keith Richards e Judi Dench em suas participações especiais relâmpago atuam com mais vontade do que estes seres abismais.
Tudo depende da luz
Dariusz Wolski foi o diretor de fotografia dos três filmes anteriores e retorna novamente para o quarto filme. No inicio do longa, para retratar Londres como muitos cinegrafistas optam, utiliza tons esbranquiçados mortos e frios, alguns desfoques e faz questão de capturar as ruelas úmidas da água da chuva em contraste da atmosfera seca. Porém, assim que a história sai de Londres, sua fotografia torna-se escura e sombria ao extremo. A melhor modelagem de luz do filme ocorre logo no começo, quando Sparrow combate uma pessoa em uma taverna. Ali, o cinegrafista utiliza brilhantemente a contraluz modelando belas silhuetas – realmente uma coisa muito bela de se ver. Outro destaque é a utilização de fontes luminosas naturais, ou seja, a oscilação da luminosidade causada pelas chamas inconsistentes do fogo dá outra dimensão em algumas cenas, principalmente na que citei acima.
É interessante acompanhar como ele se transforma junto com a situação de Barbossa. Enquanto corsário, ela é continua com as características fotográficas apresentadas em Londres, tudo muito claro, branco e higiênico. Repare que assim que Barbossa sai do navio da marinha na Baía Whitecap, ela começa a escurecer ganhando uma textura pesada e densa. Mesmo com imagens muito escuras, a modelagem do fotografo é bem mediana.
Para disfarçar as perceptíveis cenas rodadas em set, Wolski exagera na dose de névoa. A maioria das imagens do filme é embaçada pela névoa do gelo seco deixando muito difícil de ver o que se passa na tela quase sufocando o espectador. Quando a luz finalmente volta a aparecer em sua fotografia, a sensação é de alívio. Para compensar o excesso de escuridão, o cinegrafista recompensa os olhos do espectador quando abre as lentes de suas câmeras. Os planos gerais do filme são belíssimos aparentando ser pinturas.
Como sempre a direção de arte e o figurino dão um show de participação. Os cenários grandiosos e a reprodução do navio Queen Anne’s Revenge são de tirar o fôlego. Destaque para o cenário da Fonte da Juventude, simplesmente indescritível de tamanha beleza paradisíaca. Os figurinistas continuam a confeccionar vestimentas memoráveis para os personagens. É interessante notar como as roupas se correlacionam com a personalidade dos personagens, vide o clássico traje de Jack Sparrow.
O filme perde muito nos efeitos visuais e na maquiagem – os dois são praticamente inexistentes durante o longa. Os poucos efeitos que ele possui não conseguem impressionar e não empolgam deixando difícil de acreditar que se trata da mesma equipe que construiu o redemoinho digital e a tripulação “molusquiana” de Davy Jones no terceiro filme.
Mal de Zimmer
O melhor compositor da atualidade é Hans Zimmer. Dentre de suas maiores especialidades estão criar temas originais, únicos, viciantes, variados e inesquecíveis. O primeiro filme da franquia foi também uma surpresa musical. Praticamente todas músicas de A Maldição do Pérola Negra são facilmente relembradas por qualquer espectador.
Infelizmente as composições deste filme desapontam visto que o compositor tem um talento e potencial assombroso. A trilha é praticamente reciclada da trilogia anterior, ou seja, os temas de maior sucesso tocam excessivamente durante o filme. Fora isso as poucas composições originais dificilmente empolgam e se destacam. A música que toca no segmento das sereias é muito criativa graças ao fundo musical composto por cantos “sereianos”, mas pela duração praticamente infinita, cai na repetição que cansa a platéia. O tema de Barba Negra é muito inferior ao de Davy Jones. Somente 25 segundos da composição são prazerosos de ouvir.
Também fiquei impressionado ao escutar uma marchinha ridícula que ilustra a guarda real. Em contraponto, Zimmer se alia a dois espanhóis, Rodrigo & Gabriela, e consequentemente a mistura de seus estilos musicais são fantásticos. Em conjunto, os compositores criam temas que lembram muito o flamenco espanhol cheios de batidas rápidas e escalas crescentes e decrescentes nas cordas do violão elétrico utilizando de vez em quando algumas distorções inteligentes.
Adeus, Verbinski!
Este é o primeiro Piratas sem ser dirigido por Gore Verbinski. O antigo diretor havia perdido a cabeça no terceiro filme da franquia – totalmente acéfalo. O ego de Verbinski inflou e assim várias cenas de ação tomaram lugar da criatividade, diversão e da narrativa interessante. Para substituir antigo diretor, Rob Marshall assume o timão do navio. Marshall é conhecido pela estética impecável de seus filmes vide Chicago e Nine. Mas o diretor pouco mudou a concepção visual da série adotando a arte do antigo diretor sem preconceitos, talvez para poupar esforços e recursos do orçamento.
Adotando novas tendências, o diretor insere apenas um slow motion completamente desnecessário, além de rodar o filme em 3D estereoscópico – igualmente inexpressivo. Marshall aponta espadas e lança carvão flamejante na platéia nunca aproveitando o efeito para impressionar e divertir. Problemas no ritmo do filme são visíveis visto que o ato inicial da película demora uma eternidade a passar. A falta de pulso do diretor para com o elenco também é perceptível. Os atores antigos da franquia não possuem química alguma com os novos, excluindo McShane e Penélope Cruz.
A coreografia das batalhas é a mais bela de todos os filmes existentes, mas a artificialidade das cenas de ação acaba tornando-as previsíveis. Marshall deve ter treinado seus dublês e atores milimetricamente para tudo sair perfeito, ao contrário de Verbinski que deixava as lutas de espadas emocionantes, orgânicas e dinâmicas que prendiam o espectador na poltrona do cinema. Às vezes o diretor consegue surpreender no conjunto de suas cenas de ação como o interessante segmento da calorosa perseguição nas ruelas de Londres.
O modo que Marshall opera suas câmeras também é característico. No início do longa o público encontra diversas panorâmicas verticais herdadas de Verbinski que apresentam os cenários e as locações paradisíacas. Também é notável a preocupação do diretor em privilegiar a atuação de seus atores. Diversas cenas são rodadas com big closes que não deixam escapar um detalhe de expressão da face do elenco. Alguns desses closes também servem como tiradas cômicas caricatas, por exemplo, as imagens desconfortantes na face gorda do Rei George interpretado com muita vontade por Richard Griffiths.
Em Marés Estranhas
O novo Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas é melhor que seu predecessor, apesar de contar com muitas falhas que podem incomodar alguns. Ele consegue divertir e garante um bom entretenimento. As atuações de Depp e Rush, as composições originais de Zimmer e as piadas inteligentes são um ótimo motivo para conferir novamente a cinessérie. Além disso, também é uma experiência interessante ver Marshall na direção do filme. Porém a franquia começa a apresentar sinais severos de desgaste e esgotamento criativo.
Parece que a fonte da juventude da Disney finalmente parece secar. Uma prequela de A Maldição do Pérola Negra contando em detalhes e mantendo as características que consagraram a série sobre como Barbossa e a tripulação do Pérola se amotinaram contra Sparrow e adquiriram a maldição seria uma ótima idéia para continuar a franquia milionária que corre sérios riscos de perder-se em águas misteriosas.
Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides, EUA - 2011)
Direção: Rob Marshall
Roteiro: Ted Elliot, Terry Rossio
Elenco: Johnny Depp, Penélope Cruz, Ian McShane, Geoffrey Rush, Sam Claflin, Astrid Berges-Frisbey, Keith Richards, Judi Dench
Gênero: Aventura
Duração: 136 min
https://www.youtube.com/watch?v=KR_9A-cUEJc
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Crítica | Piratas do Caribe: No Fim do Mundo
Em um intervalo de meros 4 anos, Piratas do Caribe havia se tornado uma das maiores franquias de Hollywood, e poucos poderiam ser capazes de prever que seu mais recente capítulo até então atrairia tanta antecipação e expectativa. Com o bilhão de dólares conquistado por Piratas do Caribe: O Baú da Morte e o gancho letal que sua conclusão em aberto deixava, Piratas do Caribe: No Fim do Mundo definitivamente não tinha o melhor leque de cartas para sua estreia no verão de 2007, dada toda a pressão do público e do estúdio.
Assim, visando entregar algo digno da promessa do antecessor e ainda superar a escala grandiosa e época do mesmo com algo ainda mais esmagador, não é de se espantar que o terceiro Piratas tenha tido um resultado irregular se comparado aos primeiros. Porém, ainda é um filme cheio de qualidades e ideias ousadas, as quais o tempo ainda custa a lhes oferecer justiça.
Com o Capitão Jack Sparrow (Johnny Depp) e o Pérola Negra engolidos pelo Kraken e levados ao mítico Domínio de Davy Jones, a tripulação liderada por Will (Orlando Bloom), Elizabeth (Keira Knightley), um ressuscitado Barbossa (Geoffrey Rush) e a enigmática Tia Dalma (Naomie Harris) armam uma expedição para ir além dos confins da Terra e encontrar o plano astral onde Jack encontra-se preso, em uma forma de literalmente trazê-lo de volta do mundo dos mortos. Paralelamente, o implacável Cuttler Beckett (Tom Hollander) agora está de posse do coração de Davy Jones (Bill Nighy) e usa de sua influência e poder para seguir a cruzada da Companhia das Índias Orientais contra todos os piratas, visando erradicá-los de uma vez por todas.
É uma plot muito mais densa e complexa, cortesia dos roteiristas Ted Elliott e Terry Rossio, que retornam novamente para encerrar a - primeira - trilogia de Piratas. Dada sua densidade e longa duração (o filme encosta nas 3 horas de projeção), é bem possível separar os acontecimentos de No Fim do Mundo em blocos separados, com o resgate de Jack assumindo o primeiro ato, a batalha final entre os piratas e a Cia. das Índias Orientais no clímax e toda a bagunça redundante que toma conta do inchado segundo ato. O grande problema é essa necessidade de grandiloquência, algo que certamente é atingido pela escala visual do projeto, mas que é prejudicado no texto e progressão da história.
Homens Mortos Não Contam Histórias
A missão para resgatar Jack talvez seja o ponto alto de toda a projeção, onde vemos a espantosa imaginação da dupla de roteiristas e a criatividade de Verbinski e toda sua impecável equipe em executá-las, sempre procurando trazer elementos e ideias inovadoras à franquia. Isso já é visto na excelente cena de abertura, onde um grupo de piratas prestes a ser enforcado começa a cantar uma cantiga melancólica, em uma espécie de ode à Os Miseráveis - só que muito mais interessante, diga-se de passagem - e oferecer a atmosfera perfeita para o perigo de extinção dos piratas, que tem seus sapatos e chapéus removidos de seus cadáveres e empilhados e montes similares aos do Holocausto.
Então, somos apresentados ao núcleo de Cingapura, onde os protagonistas precisam encontrar um antigo conhecido de Jack, o Capitão Sao Feng (Chow Yun-Fat) e recuperar um mapa que os levará até os Domínios de Jones. São elementos inéditos e que expandem o universo da franquia de forma empolgante, seja no design de produção que incorpora a arquitetura chinesa à estética suja e misteriosa dos Piratas quanto pela caracterização sempre certeira. E só a introdução de Sao Feng, em uma virada de braços abertos enquanto sua silhueta é engolida pela névoa de uma sauna, já é o bastante para que seu personagem pareça mais interessante e fascinante do que de fato se revela. É aquela famosa ponta de luxo, e Yun-Fat claramente se diverte ao encarnar essa figura amendrotadora de rosto cortado e unhas animalescas.
Então, temos um literal mergulho no sobrenatural quando os piratas conseguem um navio para levá-los nessa jornada ao além. Vamos de belíssimas imagens que captam oceanos congelantes na Islândia até uma aparentemente infinita catarata, onde os personagens literalmente "morrem" para chegar a essa espécie de purgatório do pirata molusco, e a antecipação criada pela tensão de Verbinski e a trilha de Hans Zimmer são fascinantes. Tudo fica mais louco quando enfim encontramos Jack Sparrow, preso em um delírio quase perturbador onde o vemos interagindo com múltiplas versões de si mesmo, chegando até mesmo a sugerir zoofilia com uma cabra. São imagens dignas de um Inferno, mas tocadas para um funcional alívio cômico, e Verbinski merece créditos por experimentar algo tão estranho e surrealista em um blockbuster dessa escala, assim como a divertida entrega de Depp ao criar diferentes facetas de Sparrow e pelo diretor de fotografia Dariusz Wolski por seu uso de uma luz ensolarada e castigadora para o solitário deserto dos Domínios.
Com Jack de volta ao mundo dos vivos, No Fim do Mundo enfrenta sua porção mais penosa e desagradável: praticamente tudo até a batalha final. Na tentativa de oferecer uma trama imprevisível e complexa, Elliott e Rossio passam a brincar com a lealdade e o jogo de traições de seus personagens, particularmente com a figura de Will Turner. Obcecado em libertar seu pai Bootstrap (Stellan Skarsgard) do Holandês Voador de Davy Jones, Will mais de uma vez faz acordos e propostas com Beckett, e diversas vezes trai o grupo de Jack e até coloca suas reais intenções em uma séria dúvida diante do espectador. Fica ainda mais maçante quando somos apresentados à Ordem dos Lordes Piratas, uma espécie de "código" que supostamente coloca ladrões e trapaceiros sob uma hierarquia incompreensível, ainda que seja mais uma desculpa para apresentar mais figuras excêntricas e diferentes deste universo.
Porém, a pior coisa que este terceiro capítulo faz é enfiar uma deusa mitológica goela abaixo: Calipso. Ainda que os roteiristas tenham acertado em introduzir pistas e sugestões com a personagem de Tia Dalma no anterior, inclusive de sua relação com Davy Jones, todo o conceito de seus poderes e habilidades é algo simplesmente incoerente e ruim, fugindo demais do tipo de sobrenaturalidade que a saga vinha apresentando até então - e juro que ver uma Naomie Harris ficando gigante enquanto os piratas tentam amarrá-la com cordas é uma das cenas mais ridículas e vergonhosas que já vi numa tela de cinema. Sem falar que Calipso é praticamente irrelevante no quadro geral, servindo apenas para enrolar a plot descartável dos lordes piratas, além de preparar o palco para o clímax.
Fúria de Titãs
Finalmente, chegamos a uma das melhores cenas de toda a saga, e também a responsável por impedir o espectador de literalmente cair do sono após o decepcionante miolo da produção. Graças a um fantástico trabalho de direção, fotografia e efeitos visuais que permanecem tão perfeitos quanto há uma década atrás, temos um milagre de cena com a batalha no redemoinho, quando o Pérola Negra enfrenta o Holandês Voador em meio a uma sombria tempestade, com chuva, ondas e - obviamente - um redemoinho que faz ambos os navios girarem constantemente, enquanto seus tripulantes piratas, soldados e criaturas marinhas se enfrentam em duelos isolados. Há espaço para Will e Elizabeth se casarem em meio à carnificina, alívios cômicos com personagens menores e um embate dinâmico entre Jack e Davy Jones no Ninho do Corvo dos navios. Fica um pouco exagerado devido ao overacting cartunesco de Bill Nighy e pelo fato de Sparrow transformar-se no Homem-Aranha ao balançar-se pelos cipós de ambos os navios, mas não tira o brilho dessa fantástica sequência.
O senso de conclusão da batalha também é algo muito satisfatório, especialmente pela forma como Elliott e Rossio evoluem os elementos de O Baú da Morte, oferecendo a cruel ironia de que o responsável por apunhalar o coração de Jones também estaria fadado a assumir seu posto e cuidar das almas penadas largadas pelos Sete Mares. Isso oferece uma saída plausível e até poética para alguns dos personagens, e o texto ao menos tem o cuidado de amarrar todas as pontas soltas ao mesmo tempo em que deixa as portas abertas a fim de possibilitar continuações - como pudemos observar com os dois novos filmes, obviamente.
Perdido em sua própria ambição, Piratas do Caribe: No Fim do Mundo é uma despedida marcante de Gore Verbinski da franquia, que beneficia-se de um visual espetacular e uma escala épica que poucas franquias dos anos 2000 foram capazes de almejar, assim como sua coragem em experimentar conceitos e ideias que não encontramos hoje com muita facilidade. Porém, em sua trama que varia do confuso e cansativa para o tedioso e brega, este que deveria ter sido o encerramento das aventuras de Jack Sparrow sofre um golpe pesado.
Mas confesso que é melhor do que eu lembrava.
Piratas do Caribe: No Fim do Mundo (Pirates of the Caribbean: At World's End, EUA - 2007)
Direção: Gore Verbinski
Roteiro: Ted Elliott e Terry Rossio
Elenco: Johnny Depp, Orlando Bloom, Keira Knightley, Geoffrey Rush, Chow Yun-Fat, Bill Nighy, Naomie Harris, Jonathan Pryce, Stellan Skarsgard, Tom Hollander, Jack Davenport, Keith Richards, Kevin McNally, Lee Arenberg, Mackenzie Crook
Gênero: Aventura
Duração: 169 min
https://www.youtube.com/watch?v=0op_XllRaAw
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Crítica | Twin Peaks - 2ª Temporada
(Este texto contém spoilers)
Poucas pessoas odeiam a segunda temporada de Twin Peaks tanto quanto David Lynch. É sabido que ele e Mark Frost não desejavam revelar a identidade do assassino de Laura Palmer (Sheryl Lee) e tiveram de fazê-lo somente porque a emissora exigiu. Para os criadores, se o mistério tivesse sido expandido, os outros personagens continuaram sendo desenvolvidos ricamente e a série teria uma sobrevida maior. Caso contrário, a história não teria para onde ir e acabaria se esgotando. Vendo a maioria dos episódios, não é preciso ir muito longe para perceber que Lynch e Frost estavam corretíssimos.
Até o "Episódio 15", o sétimo da segunda temporada, apesar de ter alguns pontos fracos, como a subtrama envolvendo o personagem Harold Smith (Lenny Von Dohlen), a série manteve o nível da primeira, além de conter alguns dos melhores episódios do programa. No entanto, a partir do momento em que o público descobre quem foi de fato o assassino (numa revelação que toca em vários assuntos tabus, como estupro e incesto), a história começou a oscilar e, no terço final, se perdeu completamente.
Os últimos episódios da série foram uma mistura infrutífera de indecisão artística e tentativas fracassadas de recriar as bizarrices de David Lynch. Mas uma coisa é ter um sujeito genuinamente "estranho", ou seja, alguém que realmente tenha uma mente que funcione de uma maneira totalmente única e peculiar, outra é ter um grupo de roteiristas tentando criar coisas excêntricas para recriar o estilo de um outro artista. A diferença é grande, e os últimos capítulos do programa provam isso resolutamente.
O mistério acerca de Windom Earle (Kenneth Welsh) até teve o seu charme e reservou alguns bons momentos ao espectador, mas tolices como a superforça de Nadine (Wendy Robie), os segredos sobre atividades alienígenas e outras subtramas jogaram o programa para baixo, e, de lá, ele não conseguiu mais sair. Nem mesmo o retorno de Lynch à direção no último episódio, os mistérios do Black Lodge e um cliffhanger descarado sobre o destino do agente Dale Cooper (Kyle MacLachlan) foram capaz de salvar a série do iminente cancelamento. Após uma primeira temporada magistral, Twin Peaks era tristemente encerrada pelo canal ABC.
Os motivos para esse triste fim foram vários, desde o "abandono" de Lynch, que teve de sair do dia a dia da produção para dirigir o filme Coração Selvagem, até as escolhas equivocadas dos roteiristas que se tornaram responsáveis pelo desenrolar da história, passando pelo fato de que Frost também não esteve tão presente como na primeira temporada, mas é difícil fugir da constatação de que o fim prematuro do mistério que dava fôlego à série foi o grande culpado. De uma hora para a outra, a atração principal do programa tinha sido retirada dos olhos do público e não havia mais nada a ser acompanhado.
Sim, os personagens continuavam cativantes e um ou outro mistério mantinha a atenção do espectador, mas não dá para negar que a revelação da identidade do sujeito (ou ente) que tinha matado Laura Palmer foi o ponto final da história. É importante lembrar que o mote do seriado era o assassinato de Palmer, e que a aparente perfeição dos moradores e da cidade na qual habitavam se diluía em razão desse acontecimento. Era como se a morte dessa jovem garota tivesse sido o estopim para que todas as máscaras e todos os véus caíssem, e as verdadeiras identidades das pessoas aparecessem no lugar.
Depois que isso foi solucionado, realmente, não havia mais o que fazer. Aconteceria a mesma coisa se Arquivo X tivesse revelado os seus seus maiores segredos ainda na segunda temporada, ou os criadores de Lost tivessem explicado o que era a Ilha logo nos três primeiros anos. A história não mais se sustentaria, e os programas seriam cancelados imediatamente. Mais uma vez, uma imposição impensada dos estúdios colocaram a perder toda uma criação artística. Não é à toa que depois Lynch voltaria a ter relações conflituosas com os executivos da indústria cinematográfica.
Mas, agora, anos após o lançamento de Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer, um filme que frustrou muitos fãs por não ter dado seguimento à trama e sim mostrado a última semana de vida de Laura Palmer, estamos próximos da estreia da nova e aguardada terceira temporada. 26 anos depois, descobriremos, enfim, o que aconteceu com Dale Cooper e quais foram os caminhos trilhados pelos outros personagens. Para Lynch e Frost, que retomam as rédeas do programa que nunca deviam ter abandonado, é a tentativa de apagar a mancha que foi o último ano da série.
Pois, como o próprio Lynch disse em uma entrevista recente, a segunda temporada de Twin Peaks é uma "droga".
Twin Peaks – 2ª Temporada (EUA, 1991)
Criado por: David Lynch e Mark Frost
Direção: David Lynch, Mark Frost, Duwayne Dunham, Tina Rathborne, Tim Hunter, Lesli Linka Glatter e outros
Roteiro: David Lynch, Mark Frost, Harley Peyton, Robert Engels e outros
Elenco: Kyle Maclachlan, Michael Ontkean, Sheryl Lee, Sherilyn Fenn, Ray Wise, Everett McGill, Russ Tamblyn, Richard Beymer, Lara Flynn Boyle, Dana Ashbrook, James Marshall, Warren Frost, Mädchen Amick, Peggy Lipton, Jack Nance, Billy Zane, David Lynch, Heather Graham, Kenneth Welsh, Lenny Von Dohlen, David Duchovny
Emissora: ABC
Gênero: Suspense
Duração: 990 minutos
Crítica | Camelot - 1ª Temporada
As releituras e adaptações audiovisuais das aventuras épicas de Rei Arthur e a Távola Redonda são inúmeras: desde o surgimento e ascensão de meios de comunicação como o cinema e a televisão, o desafio de traduzir em imagens epopeias literárias como as citadas sempre encantou diversos realizadores - e muitas vezes esse encanto foi justamente o principal motivo de não atingirem resultados satisfatórios para um público fervoroso por batalhas milenares e pelo enfrentamento do impossível.
Infelizmente, é isso o que acontece com Camelot, série da Starz em parceria com a TV GK. Fornecendo uma nova perspectiva para um dos contos que mais inspirou obras-primas como O Senhor dos Anéis e Crônicas de Nárnia, o show pega tanto a narrativa da Távola Redonda - ou seja, pela perspectiva heroica do “cavaleiro templário” (Rei Arthur e seus asseclas) - quanto as delineações feministas arquitetadas por Marion Z. Bradley em As Brumas de Avalon, cujo foco são as protagonistas a povoarem o universo arturiano - como Morgana, Morgause, Igraine e Viviane.
O hibridismo, configurando-se como principal característica desta curta obra, é um dos seus pontos altos. Perscrutado com atuações incríveis e que por vezes ofuscam o roteiro falho e os monótonos acontecimentos ao final de cada capítulo, a trama principal começa com Morgana (Eva Green) retornando de seu “exílio espiritual” em um convento para casa, a qual ainda é comandada por Uther Pendragon (Sebastian Koch) e sua nova esposa, Igraine (Claire Forlani). As diferenças da obra original já são perceptíveis aqui, afinal, como sabemos, Morgana era filha de Igraine e do Duque de Gorlois, tendo Uther como seu padrasto após a morte em batalha do legítimo rei de Camelot. Entretanto, a simplificação da cronologia e da genealogia nesta série casa com seu propósito - que é, além da contextualização simbólica destas histórias místicas dentro da História concreta, mostrar que a emissora ainda tem sua carga de veracidade para colocar dentro de produções audiovisuais (vide Roma).
A cena inicial do episódio piloto é justamente a descrita acima - e seu único problema é o tempo curto. É claro, conseguimos sentir o tom dos conflitos a serem construídos entre os personagens principais - principalmente entre pai e filha -, mas um cuidado maior e uma lapidada mais concisa em diálogos supérfluos e expositivos poderia ter um brilho digno do elenco em cena. O grande momento vem numa sequência justaposta - dentro de uma montagem um tanto quanto equivocada - na qual a antagonista envenena sangue de seu sangue para finalmente postar-se como a real e única herdeira do trono.
É interessante notar que o conceito de “jornada do herói” é transgredido em momentos pontuais, mas de exímia importância para o conceito identitário da série. Primeiramente, somos introduzidos ao maniqueísmo do “lado ruim” da história antes de sermos transportados para a ambiência do “lado bom”. Arthur (Jamie Campbell Bower), assim como diversos heróis de epopeias gregas e romanas, é um simples garoto exilado de sua real condição de rei, vivendo em uma fazenda com pais adotivos. Comparando com tramas contemporâneas - apesar dessas concepções terem surgido milhares anos antes da Era Comum - vemos que os criadores da série se basearam franquias de grande sucesso contemporâneo, como Star Wars e Harry Potter, para, ao mesmo tempo, garantir a atemporalidade desta história de cavalaria e aproximá-la da cultura pop. Entretanto, é aqui que as coisas começam a desandar.
Sabemos que a teorização do monomito explanada por Joseph Campbell ao final da década de 1940 implica alguns momentos de pura importância para que o arco do herói ou heroína tenha início, meio e fim e crie uma parábola trazendo e representando os conflitos e amadurecimentos pelos quais passou através de sua viagem sobrenatural de autodescobrimento. Em diversas obras cinematográficas, o tempo real de exposição cênica se mostrou o suficiente para desenvolver todas as subtramas e viradas necessárias - mas Camelot, em seus dez episódios de quarenta e cinco minutos cada, pareceu não ter encontrado um ritmo adequado para que Arthur, Morgana e os outros chegassem a uma conclusão que lhes desse justiça.
Logo no capítulo de estreia, o garoto descobre através de Merlin (Joseph Fiennes), seu conselheiro e guardião espiritual, que pertence à linhagem real e que, após a morte de seu pai, deve voltar para Camelot e restaurar a paz entre seu povo. O protagonista é um bastardo, visto que é filho da segunda esposa de Uther e, por essa razão, é visto com maus olhos pela meia-irmã e por outros duques que fazem parte da aliança inglesa da época - incluindo o impetuoso e cruel James Purefoy saindo de sua estadia em Roma para encarnar o Rei Lot, o qual faz um pacto com Morgana para depor Arthur.
Os eventos que se sucedem são muito rápidos e, incrivelmente, realizados com uma preguiça quase absurda. Não conseguimos nos conectar o suficiente com os personagens para que as viradas sejam impactantes o bastante - em outras palavras, a catarse em constante desenvolvimento pelos roteiristas nunca encontra um ápice, mantendo-se linear e chegando ao ponto de angustiar os telespectadores. Em The Sword and The Crown, por exemplo, temos Arthur numa jornada pela lendária Excalibur. Porém, os obstáculos que ele enfrenta nos livros são deixados de lado e readaptados para uma simplória escalada numa cachoeira - tudo bem, ele enfrenta a morte diversas vezes, mas isso em momento algum traz delineações sinceras sobre as provas que enfrentará durante seu mandato como rei.
Apesar da monotonia que enfrentamos, não posso deixar de ovacionar em pé o grande trabalho de atuação, principalmente de Green. Seu histórico com personagens memoráveis tanto no cinema quanto na TV estende-se até os dias de hoje (como, por exemplo, ao encarnar Vanessa Ives em Penny Dreadful), e o mesmo faz ao dar vida a uma das personagens mais contraditórios da história da literatura. Entretanto, sua perspectiva afasta-se do melodramático romântico de Morgana nas novelas medievais para construir feições e trejeitos mais sombrios. Os próprios traços maleáveis da atriz contribuem para essa veracidade realista em detrimento de diálogos definitivamente mal escritos. Sua química com outros personagens em cena também é digna de nota - e seu desfecho, apesar da temporada única da série, mostra-se palpável e emocionante.
Bower, entretanto, se parece muito mais com um jovem Indiana Jones que com o lendário Rei que cruzou territórios inefáveis para recuperar o que lhe era direito. Sua caracterização irreverente e jovial por vezes não casa o tom da série, mas entra em contraste interessante com o poderoso e definitivamente mergulhado no nonsense de Fiennes como Merlin. Devo dizer que, apesar de cair no ridículo em algumas sequências que demandavam uma atmosfera mais tensa, o grande feiticeiro tem uma performance agradável e digna de equiparação a de Morgana - tanto em termos de arco narrativo quanto em interpretação e presença de cena.
Apesar de seus momentos de glória, Camelot é uma série que não acredita no próprio potencial. O desperdício de um elenco invejável e de locações críveis leva a temporada para a pilha de mais uma releitura desperdiçada das incríveis aventuras da Távola Redonda - implorando para que seja reanalisada e, basicamente, refeita com a atenção que merece.
Camelot – 1ª Temporada (Idem - Reino Unido, 2011)
Criado por: Chris Chibnall, Michael Hirst
Direção: Mikael Solomon, Stefan Schwartz, Ciaran Donnelly, Jeremy Podeswa, Michelle MacLaren
Roteiro: Chris Chibnall, Michael Hirst, Louise Fox, Terry Cafolla, Steve Lightfoot, Sarah Phelps, Thomas Malory
Elenco: Eva Green, Jamie Campbell Bower, Joseph Fiennes, , Tamsin Egerton, Peter Mooney, Claire Forlani, Philip Winchester, Clive Standen, Chipo Chung
Emissora: Starz
Gênero: Drama, Fantasia
Duração: 45 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=vYZImCVvbVU
Crítica | A Espada Mágica: A Lenda de Camelot
Durante os anos 90, a Disney estava em sua segunda era de ouro. Tinha lançado longas de sucesso como O Rei Leão, A Bela e a Fera e Aladdin. Mas claro que havia outros estúdios que tinham inveja da fórmula que havia feito tanto sucesso, entre eles a Warner Bros. Aproveitando a estreia da nova versão da lenda do Rei Arthur, decidimos falar sobre uma animação que se passa no universo dos Cavaleiros da Távola Redonda e que mostra como o estúdio tentou copiar a rival: A Espada Mágica: A Lenda de Camelot, que apesar de ser um filme que não ofende, mostra que não basta apenas pegar a fórmula que deu certo, tem que dá um sentido a ela.
A protagonista é Kayley (Jessalyn Gilsic), uma fazendeira que deseja se tornar uma cavaleira da Távola Redonda para honrar a memória de seu pai, Sir Lionel (Gabriel Byrne), que foi morto ao impedir que Ruber (Gary Oldman) – um cavaleiro que se rebelou contra Camelot – assassinasse o rei Arthur (Pierce Brosnan). Ruber retorna depois de dez anos e sequestra a mãe de Kayley e a garota para que consiga entrar em Camelot com o objetivo se tornar o rei, tirando-lhe a espada mágica que Arthur empunha: a lendária Excalibur. O plano do vilão dá errado quando o seu monstro perde a espada no meio de uma floresta encantada e Kayley consegue escapar. Com a ajuda do guerreiro cego Garret (Cary Elwes) e do dragão de duas cabeças Devon (Eric Idle) e Cornwall (Don Rickles) eles vão atrás da espada para devolvê-la ao rei, antes que Ruber a possua.
Bom, sei que a sinopse parece que é uma história com dramas sérios, mas o tom que tem que seguir é Disney, ou seja, um drama mais light. E essa escolha de seguir essa fórmula deixa o longa muito deslocado em vários momentos. Que vão desde as músicas – já que a tentativa é de fazer um longa como a ilustre rival, precisa de números musicais – até os alívios cômicos que são bem ruins, além do dragão de duas cabeças ter um senso de humor semelhante ao do Timão e Pumba de O Rei Leão e o Gênio de Aladdin. O próprio design dos personagens lembram aos já vistos nos filmes da Disney e essa cópia acaba deixando o filme sem personalidade.
Além dessa falta de personalidade, o longa tem falhas grotescas de roteiro. Escrito por quatro pessoas – que nunca é um bom sinal – os personagens cometem ações estúpidas durante boa parte da projeção. E alguns dos personagens serem maus estruturados, como o vilão Ruber. Horas é um vilão ameaçador e outra é só um alivio cômico patético. Outros são mais interessantes como o dragão e o casal protagonista. Embora o jeito como Kayley e Garret se apaixonam (Uau! Que novidade!) seja o mais óbvio possível, da para comprar o amor entre eles e como se completam. Kayley se sai bem como a protagonista, mostrando que para ser guerreira e corajosa não precisa seguir a fórmula da mulher macho e Garret se mostra o personagem mais interessante do longa.
A trilha sonora instrumental composta por Patrick Doyle é muito boa. Além de ter uma boa regionalização, funciona nos momentos mais dramáticos. Já as partes cantadas são irregulares. Tem musicas boas e divertidas, ao mesmo tempo em que há bem ruins, como a cantada pelo vilão que além de não ter ritmo, Oldman se mostra um cantor pior que Russel Crowe em Os Miseráveis.
A animação em 2D funciona até hoje, não diria tanto a 3D. Ainda no começo da tecnologia, as partes com animação em 3D são artificiais e ficam estranhas quando interagem com os personagens. Mesmo sendo feito no meio dos anos 90, a Disney já tinha feito boas animações com 2D e 3D como o clímax no Big Ben em As Peripécias de Um Ratinho Detetive e a sequência da dança em A Bela e a Fera.
Enfim, por mais que A Espada Mágica: A Lenda de Camelot seja problemático é um filme que tem o seu charme. Por mais que seja uma cópia fiel da fórmula da rival Disney, é uma aventura que diverte. Para uma criança que se interessa em uma aventura que se passa na lenda do Rei Arthur é uma escolha divertida.
A Espada Mágica: A Lenda de Camelot (Quest For Camelot, EUA – 1998)
Direção: Frederick Du Chau
Roteiro: Kirk De Micco, William Schifrin, Jacqueline Feather e David Seidler
Baseado em: The King’s Damosel, de Vera Chapman
Elenco: Gary Oldman, Pierce Brosnan, Cary Elwes, Jessalyn Gilsic, Eric Idle, Don Rickles e Gabriel Byrne
Gênero: Animação, Fantasia
Duração: 86 min.
https://www.youtube.com/watch?v=UV5kS_B6Zws