Crítica | Rei Arthur (2004)
A lenda do Rei Arthur é uma das mais fantásticas já feitas. O garoto que após tirar a espada Excalibur se tornou o rei da Inglaterra e criou a Távola Redonda, etc.. Mas assim como Ridley Scott tentou fazer uma versão mais verossímil de Robin Hood que acabou deixando a desejar, o picareta Antoine Fuqua tentou fazer uma versão “realista” sobre o Rei Arthur em 2004. E o resultado é um filme chato que não consegue despertar um mínimo de interesse ao espectador.
Essa versão mostra Arthur (Clive Owen) como um comandante de Roma que está servindo na Bretanha. Após 15 anos de serviço junto com os seus cavaleiros para evitar que o posto seja atacado pelos rebeldes liderados por Merlin (Stephen Dillane), Arthur recebe a missão para salvar um jovem chamado Alecto (Lorenzo de Angellis), que está em território inimigo. Se concluir essa missão será dispensado junto com os seus comandados.
Além de a sinopse ser um plágio de O Resgate do Soldado Ryan (um esquadrão que recebem uma missão suicida para salvar um jovem), o roteiro de David Franzoni é repleto de personagens apáticos e desinteressantes. Dos comandados de Arthur, apenas Bors (Ray Winstone) é interessante e bem desenvolvido, os outros não passam de cascas vazias que não tem nenhuma substância. O trio principal da “lenda” – Arthur, Lancelot (Ioan Gruffudd) e Guinevere (Keira Knightley) – é insuportável. Os dois primeiros por serem mal humorados e em momento algum parecem que são melhores amigos. Mesmos os próprios dizendo que são não há sinceridade ou química entre os personagens para que o expectador se convença quanto a isso. E essa versão, no mínimo bizarra, de Lady Guinevere é um estereótipo da mulher macho, não uma mulher forte e independente. O próprio triangulo amoroso entre eles só serve para encher linguiça. É um roteiro que não faz jus a própria ideia de ser baseado em fatos históricos.
Se o roteiro de Franzoni se mostra aborrecido, o mesmo pode ser dito quanto a direção de Antoine Fuqua. Em 2004, Fuqua já mostrava um vício que tem até hoje: o diretor parece escolher a dedo as cenas que irá decupar de uma maneira decente, enquanto faz outras de qualquer maneira. Se temos algumas cenas de batalhas “divertidas” – o combate na geleira é muito bem filmado -, em compensação as cenas mais sérias são de bocejar. Não há emoção nas cenas dramáticas e o diretor não consegue extrair algo dos seus atores. Clive Owen está monotônico; Keira Knightley não traz nenhuma personalidade; Ioan Gruffud sempre foi um ator inexpressivo e limitado e não faz diferente; e o geralmente ótimo Stellan Skargard compõe um vilão que resume suas maldades em gritos e olhares ameaçadores. O elenco de coadjuvantes feitos por atore formidáveis como Hugh Dancy, Ray Stevenson, Mads Mikkelsen, Ray Winstone e Joel Edgerton conseguem criar personagens interessantes, mas não são bem aproveitados, uma falha grave de roteiro e direção.
A fotografia e a direção de arte não são das mais inspiradas. Todo o conceito visual do longa parece ter vindo da primeira parte de Gladiador e se contenta em ser uma cópia fiel. Não há uma melhora ou algo novo durante a projeção desse filme. É algo genérico que já foi visto em vários outros filmes: como se passa em locais frios, a paleta de cores é mais fria e tem névoa para dar mistério. Pois é, nada de novo. A recriação de época até é bem feita, mas assim como a fotografia é mais do mesmo. A direção de arte acerta ao trazer personalidade aos designs dos personagens, que vão desde a cor de suas roupas ao seu tipo de espada. Mas é só isso que agrega ao filme.
Enfim, essa versão de Rei Arthur pode ser definida em uma palavra: insossa. Ele acha que vai trazer algo de novo, mas é uma ideia que morre na praia. Nenhum rei ou cavaleiro consegue superar tal desafio: conferir esse filme sem bocejar em momento algum.
Rei Arthur (King Arthur, EUA – 2004)
Direção: Antoine Fuqua
Roteiro: David Franzoni
Elenco: Clive Owen, Keira Knightley, Ioan Grufudd, Stellan Skarsgard, Mads Mikkelsen, Ray Stevenson, Ray Winstone e Joel Edgerton
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 126 min
Crítica | Piratas do Caribe: O Baú da Morte
O sucesso de Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra fora uma coisa incrível. Não só foi capaz de oferecer uma aventura tradicional e com o espírito das matinês que George Lucas e Steven Spielberg buscaram para seu Indiana Jones, misturado a um forte elemento sobrenatural e um senso de humor agradável. O filme avalancou a carreira de Johnny Depp e fez uma bilheteria absurda, tudo isso partindo de uma atração da Disney, o que logo iniciaria a fórmula vista em filmes como Mansão Mal Assombrada e Tomorrowland. Mas mais do que isso, uma continuação para o filme de 2003 era inevitável, então em 2006 tivemos o lançamento de Piratas do Caribe: O Baú da Morte, um filme com escala mais épica e uma trama menos agitada, mas que não deve em nada à seu antecessor.
A trama tem início pouco tempo após os eventos de Pérola Negra, com o casamento de Elizabeth Swann (Keira Knightley) com o ferreiro Will Turner (Orlando Bloom) é interrompido pelo cruel Lorde Cutler Beckett (Tom Hollander), que aprisiona os dois sob acusação de terem conspirado para libertar o pirata Jack Sparrow (Depp). Oferecendo um acordo à Will, o lorde o envia em uma missão para encontrar Sparrow e recuperar sua bússola peculiar, oferecendo sua liberdade e à de sua noiva em troca. Porém, Jack tem seus próprios problemas para lidar quando sua dívida com o pirata fantasma Davy Jones (Bill Nighy) volta para lhe cobrar, colocando uma nova tripulação sobrenatural em seu encalce, tendo no misterioso Baú da Morte a única chance de salvação do protagonista.
Sempre foi um padrão preguiçoso na época, e principalmente agora, repetir todas os elementos e a estrutura do original durante a continuação. Felizmente, o roteiro da dupla Terry Rossio e Ted Elliott acerta ao apostar em um filme diferente em estrutura e progressão narrativa, ao evitar repetições temáticas da donzela em perigo ou tesouro amaldiçoado, preferindo manter os personagens separados em subtramas diferentes e oferecer um macguffin muito mais interessante na forma do Baú titular. Todo o arco de Jack Sparrow correndo para salvar sua alma oferece riscos mais perigosos e ideias realmente brilhantes da equipe, desde a tripulação de condenados que vão lentamente fundindo-se com elementos marinhos e à estrutura do navio Holandês Voador até a ameaça iminente da monstruosa lula gigante mitológica, o Kraken.
Escalação dramática
Os personagens também têm um grande avanço e desenvolvimento comparado ao anterior. O conceito de mortalidade de Jack e também a crescente discussão sobre a bússola moral de seu personagem ganham boas sacadas do texto, com uma recompensa no último ato que oferece um Jack mais maduro e disposto a sacrificar bens importantes pela segurança do bem maior. Enquanto isso, o personagem de Will Turner ganha com a introdução de seu núcleo paterno, ao descobrir que seu pai Bootstrap Bill Turner (um decrépito Stellan Skarsgard) é um dos tripulantes condenados do Holandês Voador e despertar ali uma missão pessoal de libertá-lo dessa condição. E também temos Elizabeth Swann abandonando sua posição previsível e irritante de donzela em perigo para transformar-se em uma figura muito mais forte, lutando espada e demonstrando uma inteligência divertida quando consegue convencer os tripulantes de um navio de uma presença fantasmagórica. E ainda que não seja um personagem ativo, acho sempre agradável quando temos a ironia da inversão de papéis, com o ex-comodoro James Norrington (Jack Davenport) retornando em um estado deplorável e que em nada remete à postura cortês e elegante do antagonista do filme anterior.
Talvez o grande problema do filme seja sua inevitável condição como capítulo do meio. Como este longa e sua continuação, No Fim do Mundo, foram desenvolvidos em conjunto, boa parte da trama de Baú da Morte serve para explicar conceitos e personagens que ganharão mais destaque e aprofundamento no capítulo seguinte, assim como deixar o filme terminar em um gancho arrasador e que perpetua-o como uma obra sem final, mas que é parte de um todo. Outros problemas incluem alguns núcleos inconclusivos, como o forçado e artificial desenrolar de um "interesse amoroso" entre Jack e Elizabeth, que rende apenas uma reviravolta durante o clímax, além de descartáveis momentos de ciúmes entre a moça e Will - sem falar na presença do ex-comodoro.
Rever o elenco reprisando seus respectivos papéis nessa guinada dos personagens também é muito gratificante, especialmente pela magnética performance de Johnny Depp. Tendo recebido uma inesperada indicação ao Oscar por seu retrato do pirata bêbado no primeiro filme, Depp mantém toda sua detalhada construção física e os trejeitos do personagem, como o andar cambaleante e os braços sempre em movimento, como se o personagem precisasse de muita concentração para conseguir manter-se em pé. A sagacidade e ironia do personagem também retornam, mas é notável como Jack está muito mais paspalhão e cômico aqui, vide sua hilária atuação quando é eleito "rei" pelos canibais de uma ilha local. Quanto a seus colegas de cena, infelizmente Bloom mantém sua performance esforçada de uma nota única, com a determinação e força de vontade de Will, enquanto Keira Knightley beneficia-se da melhora em sua personagem para trazer mais dureza à sua performance, ainda que mantenha uma feminilidade - e até uma certa histeria pontual - durante boa parte de seu retrato.
Então, dedico um parágrafo inteiro para falarmos do melhor personagem da franquia Piratas do Caribe, depois do Capitão Jack Sparrow, claro: Davy Jones. Um vilão trágico e de coração partido, Jones é uma presença fantasmagórica que somos capazes de temer e ficar admirados ao mesmo tempo, e muito disso se deve ao impressionante misto de captura de performance de Bill Nighy com os efeitos visuais fotorrealistas da Industrial Light & Magic, merecidamente premiados com Oscar por seu trabalho aqui. Os tentáculos que compõem a barba e a face do pirata são de um realismo inacreditável, com a textura nítida de um molusco e os movimentos quase que independentes e fluidos de seus componentes, além do trabalho preservar com naturalidade cada tique de expressão de Nighy, como suas "fungadas" e barulhos com os lábios que Jones constantemente solta ao longo da projeção. Mesmo sem nunca de fato sair para a ação no filme, Jones é um vilão formidável.
Poderio visual
Em quesitos visuais, temos mais um espetáculo garantido pela direção grandiosa do subestimado Gore Verbisnki. Desde o primeiro frame do filme percebe-se o cuidado de Verbinski em estabelecer um mundo belo e realista, com a belíssima e melancólica imagem de uma cerimônia de casamento deserta castigada por uma pesada chuva, levando-nos imediatamente à um calabouço apavorante onde vemos corvos arrancando olhos de homens vivos... Até quebrar tudo isso com uma introdução apropriadamente hilária para Jack Sparrow, demonstrando seu incrível controle de ritmo e variação de tom, algo que é crucial para o sucesso da produção. A forma como a comédia elegantemente mistura-se ao espetáculo é algo que não deve-se somente ao trabalho certeiro do elenco, mas às diversas brincadeiras visuais do diretor, como no momento quase silencioso em que Jack Sparrow percebe seu desequilíbrio enquanto amarrado a um espetinho canibal ou sua mise en scène ao demonstrar às desastrosas mudanças de gravidade durante a inacreditável luta em uma roda d'água em movimento.
No espetáculo propriamente dito, temos uma escalação notável. Dado o fato de que Jones não pode pisar em terra firme, grande parte da ação e a trama do filme são ambientadas em alto mar, com o grande destaque de tais sequências sendo os três ataques do Kraken que vemos durante a história. O primeiro é algo saído praticamente de um terror, com uma sucção violenta que afunda um pequeno barco pesqueiro em uma questão de segundos, ganhando uma desenvoltura muito mais elaborada quando chegamos no segundo ataque. Aqui, vemos a habilidade do cineasta em controlar a geografia espacial dos acontecimentos, mantendo nosso foco em Will Turner escalando um mastro enquanto sua câmera passeia pelo caos no convés e todos os homens desesperados sendo agarrados pelos tentáculos gigantes da criatura, que parte o navio em dois em um show de efeitos visuais e uma inesquecível trilha de órgão do mestre Hans Zimmer.
São todas sequências visualmente deslumbrantes, onde Verbinski e o diretor de fotografia Dariusz Wolski capturam o naturalismo das belíssimas paisagens e locações por onde a história caminha, que incluem a coloridíssima ilha dos canibais, marcada pelo verde das copas de suas árvores, até o clímax na Isla Cruces, onde temos um duelo de espadas sobre uma praia de areia branquíssima. Cenas internas e que envolvem iluminação de velas, em especial às cabines dos navios e a sequência em Tortuga, trazem um alaranjado típico da chama da fonte de luz e um contraste notável entre as demais cenas, com a coloração mudando drasticamente para uma sombra mais pesada e azulada durante os momentos no Holandês Voador, criando um ambiente aterrador e que parece realmente um inferno marinho - fruto também do espetacular trabalho do design de produção, especialmente nos "dentes" da proa do Holandês.
Evitando prender-se à estrutura e convenções do primeiro, Piratas do Caribe: O Baú da Morte é uma ótima sequência que oferece uma aventura divertida, envolvente e grandiosa como a de seu anterior. Beneficia-se do amadurecimento de seus personagens, uma direção inspirada e de um núcleo antagonista muito mais poderoso, além de expandir o lore da saga e almejar coisas muito maiores em seus capítulos seguintes.
Piratas do Caribe: O Baú da Morte (Pirates of the Caribbean: Dead Man's Chest, EUA - 2006)
Direção: Gore Verbinski
Roteiro: Terry Rossio e Ted Elliott
Elenco: Johnny Depp, Orlando Bloom, Keira Knightley, Bill Nighy, Naomie Harris, Jonathan Pryce, Stellan Skarsgard, Tom Hollander, Jack Davenport, Kevin McNally, Lee Arenberg, Mackenzie Crook
Gênero: Aventura
Duração: 151 min
https://www.youtube.com/watch?v=ozk0-RHXtFw&t
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Crítica | Excalibur (1981)
A história do Rei Arthur no cinema é algo que sempre me deixou estarrecido. Não sou um conhecedor TOTALMENTE aprofundado sobre as verdadeiras (ou mais fiéis) histórias, versões, re-contos da lenda do Rei Bretão que unificou o seu país contra as forças invasoras do mal e reinou em paz por muitos anos, mas é sim uma história que sempre me deixou instigado e encantado. Desde a clássica animação da Disney A Espada era a Lei quando ouvi falar pela primeira vez sobre a espada mágica chamada Excalibur e só quem poderia retirá-la da pedra e empunhá-la seria o verdadeiro e digno rei, e mais e mais fui conhecendo todas as histórias que a envolviam: o feiticeiro Merlin; os cavaleiros da Távola Redonda; o nobre cavaleiro Lancelot; e mais tarde os fatores mais sombrios como a irmã traidora Morgana; o filho bastardo Mordred, entre outros INÚMEROS fatores conhecidos pelos adeptos e conhecedores da inspiradora e trágica história do grande Rei Arthur.
E o que me deixa um tanto frustrado hoje, é que existem um bom número de adaptações cinematográficas dessa bem conhecida lenda, e não falo com exagero onde quase nenhuma faz real jus à história e lenda base! Não só por várias tomarem certas liberdades criativas em cima, algumas até bizarras, mas por verdadeiras qualidades cinematográficas MUITO aquém de verdadeiramente boas ou ótimas, algo que essa história tão mística merecia!
Algo que não acontece por exemplo no mundo literário onde encontramos várias obras que fazem grande jus a lenda, e entregam diversas versões diferentes, e várias interessantíssimas. Uma das que mais me agradam como As Brumas de Avalon onde vemos a história de Arthur pela ótica de Morgana sua irmã; minha favorita como a trilogia As Crônicas de Artur de Bernard Cornwell, uma versão mais realista e aterrorizamente brutal num nível digno de Game of Thrones (e me pergunto porque nunca tentaram fazer uma adaptação desta, já passou da hora dona HBO!); e Le Morte d’Arthur, um aglomerado, quase em formato de epopéia, de vários contos bem conhecidos que cobrem toda a história do reinado de Arthur, desde o reinado de seu pai Uther até sua morte, que são as versões mais popularmente conhecidas , e que serviram de grande base para este ambicioso filme de John Boorman!
Diretor mais conhecido infelizmente pelo infame O Exorcista II - O Herege, e não por alguns de seus ótimos e pouco conhecidos o drama Esperança e Glória e seu thriller policial À Queima Roupa, e que se mostra aqui ser talvez um verdadeiro fã da famosa lenda de Arthur e sua mística jornada. O filme está longe de ser perfeito ou integralmente leal à TODOS os mitos que circundam a lenda do Rei Arthur (essa minha adaptação dos sonhos não será feita tão cedo...talvez nunca), mas faz um GRANDE jus em conseguir capturar o “básico” dos elementos mais conhecidos da história, e em volta deles criam um verdadeiro filme de fantasia com uma aura quase poética, encantadora, e, por momentos, violentamente perturbadora.
Um Conto lendário em formato cinematográfico
Algo de interessante que se destaca logo de cara nessa adaptação de Boorman é exatamente esse formato de narrativa um tanto ousado que ele opta em seu roteiro junto de Rospo Pallenberg. A história não toma o ritmo mais convencional de um filme por assim dizer. O que vemos se desenrolar em tela é uma sucessão de acontecimentos em um ritmo quase imparável, e quando se nota, praticamente a primeira hora inicial do filme vimos o filme ter cobrido toda a jornada inicial desde feiticeiro Merlin em busca do nascimento de Arthur através de seu impetuoso pai Uther Pendragon, e a jornada do jovem rapaz em conquistar seu status de um digno rei após puxar a espada titulo da pedra. E na segunda hora sua derrocada trágica e os desafios malignos que se apresentam para o seu reino de Camelot graças à sua traiçoeira irmã Morgana.
E com certeza poderia se passar pelo típico caso de má estrutura narrativa, o que pra mim é exatamente o contrário. Pra começar que Boorman está longe de querer propor aqui um filme de estrutura convencional, o que mais se aproxima aqui talvez da definição “filme de arte fantasioso”. Com isso quero dizer que o diretor não está pouco se preocupando (muito) com o que é dito e aprofundado da história narrativamente, e foca nos acontecimentos e ações que se sucedem na vida de Arthur, Merlin e todos personagens em volta que assim compõem essa jornada. Talvez o perfeito “show, don’t tell!”.
Logo na intro do filme quando as seguintes frases aparecem na tela em ordem: A Idade das Trevas - O país dividido sem rei - "E desses séculos perdidos, nasceu uma lenda; Do Mago Merlin; Da Chegada de um Rei; Da Espada do Poder". Tudo isso já sumariza de inicio, a incógnita da verdadeira época da existência do reinado de Arthur e estabelece a situação caótica que se passava na Bretanha, que para os mais adeptos de fatos históricos sabem, viu-se intensos confrontos entre tribos desgarradas e ainda invasões de povos germânicos por todo o território. E talvez a partir desse conhecimento, do caos e violência que se instalava na terra, nasceu uma lenda, de esperança e inspiração, a lenda de um Rei que unificou a todos e salvou a Bretanha. E com a sumarização dessa lenda com: O Mago – O Rei – A espada do poder, revela a estrutura que Boorman vai trabalhar aqui. Dar vida e forma à essa lenda tão bem conhecida.
A Fantasia Poética
Como eu disse, a forma que o filme se constrói, está longe de ser algo considerável “coerente”. Parece mais quase como um poema lírico, ou uma história de contos de fadas e cavaleiros errantes que pais contam para os filhos antes de dormir, tomasse forma na tela. Onde normas de ritmo pouco importam aqui.
Todos as principais e conhecidas etapas da história de Arthur: o incesto de Uther com Igraine fecundando o bebe Arthur com a ajuda de Merlin; a gloriosa retirada da Excalibur da pedra por Arthur o comprovando como verdadeiro Rei; a construção de Camelot e a távola redonda; o amor proibido entre Lancelot e Guinevere; o plano incestuoso de Morgana e a derrocada de Arthur; está tudo aqui presente, os momentos chaves da história sendo restituídos tal e qual possa ser imaginado em toda sua glória fantasiosa e mítica.
Tudo sendo composto e se formando graças à trilha sonora melódica e sinfônica digna de uma opera Européia de Trevor Jones, que mescla os momentos de contemplação e admiração do fantástico, e outros de som perturbador e bucólico nos momentos mais sombrios que a história se desventura. E a composição de cenas e Boorman parece quase um ensaio de teatro vivo. A cena de batalha inicial com cavaleiros saindo das sombras junto de uma figura gigante e misteriosa de Merlin, parece tudo um perfeito prólogo de uma peça de teatro.
Beneficiado ainda à isso, encontramos aqui o que ouso dizer ser uma EXTRAORDINÁRIA fotografia de Alex Thomson, que parece dar vida e movimento a todo o cenário natural do filme de forma tão abaladora e imersiva, como se a magia do filme nos engolisse para dentro dele com extrema facilidade. Ter assistido a esse filme no cinema deve ter sido uma experiência e tanto!
O RESUMO DA OBRA?
Mas não é uma obra que se sustenta em "resumir" os grandes e importantes momentos da jornada de Arthur. Sim, tudo flui nesse ritmo metódico quase lírico, sempre direto ao fio da meada, mas Boorman consegue fazer desses pequenos momentos serem emocionalmente grandes. Não só por ter realmente nos ter feito criado certa empatia pelos personagens em curto tempo, mas por orquestrar cada momento como um evento de extrema importância, como se os Deuses estivessem comandando tudo na terra, a trilha de Jones explode em altos arcodes e a fotografia ESTONTEANTE torna tudo tão grande e épico mesmo em pequena escala. Momentos como a retirada da espada da pedra ou a marcha final para a batalha são de puro arrepio emocional!
E isso até é salientado de forma inteligente na narrativa! Em um momento do filme o Merlin de Nicol Williamson diz para um jovem Arthur de Nigel Terry em um diálogo bem humorado, e de certa forma profético: “olhar para um biscoito é como olhar para o futuro. Antes de você provar, como você vai saber? Aí, claro, é tarde demais. (com Arthur mordendo o biscoito enquanto fissura apaixonadamente Guinevere sem ter prestado atenção a uma palavra) Tarde demais!" - seguido de um corte bem conveniente para anos depois com um Arthur já adulto, depois de anos lutando pelo seu país, mas ainda imaturo. Com Boorman salientando de forma forte na narrativa que o tempo e presente que se sucedem no filme, não passam de pequenas passagens que se assopram facilmente nessa história.
Isso pra quem já havia pensado que passava de uma narrativa fraquejada, o que é o extremo contrário aqui, tudo é salientado em quase uma tonalidade de profecia mítica, muito disso se deve a ILUSTRE presença de Nicol Williamson como o mais famoso feiticeiro da história, e ele merece TODOS os elogios possíveis aqui! Não só pela forma como Boorman o cria como ele se fosse um espírito espectro, encosto medieval, que aparece do nada em cena com sua longa capa preta, mas pelo ator Shakespeareano criar essa personalidade sempre misteriosa e ainda CHEIA de carisma mantendo um excelente nível de humor e certo ar carinhoso por vários momentos, e temido e intimidador em outros. Sem sombra de dúvidas a perfeita adaptação do personagem no cinema, e infelizmente pouco lembrado hoje!
E ironicamente, seu Merlin me lembrou um pouco ao Gandalf da trilogia Senhor dos Anéis (deixe-me explicar). A forma com que Merlin fala em certo momento: "chegou a era dos homens, a sua era Arthur como rei!" - me remeteu para a forma similar que Gandalf diz A MESMA EXATA COISA para Aragorn em Senhor dos Anéis. Peter Jackson seu safadinho! Se inspirou na lenda Arturiana e nesse filme para criar o arco de Rei de Aragon em sua própria trilogia. Talvez isso só mostre a grande influência que esse filme teve por muitos outros filmes de seu mesmo gênero, e comprova talvez sua grandiosidade a ser melhor conhecida e admirada!
UM SHAKESPEARE MEDIEVAL
A linguagem que é construída entre os personagens parece exatamente algo tirado de um texto de peça teatral classicista, com seus refinados vocabulários, ou como no caso de Merlin uma linguagem sempre profética mas carregada de um rico humor vindo de forma muito natural. E o mesmo pode ser dito do resto dos personagens. Talvez seja pela maioria ser de origem Irlandesa e Escosesa que a personalidade deles aflorem bastante (oras, Rei Arthur pode ser escocês, nunca julguei!). Mas não só por causa disso!
Boorman consegue mesmo destacar e desenvolver vários deles mesmo não focando total atenção dramática à todos para além de Arthur e Merlin que são os chamarizes em cena, tanto pelo carisma de Williamson quanto a devoção emocional que Terry demonstra em seu Arthur que começa como um jovem petulante e termina o filme como um rei maduro e perfeito.
Mas surpreendentemente conseguimos conhecer a maioria dos personagens à sua volta: como o cavaleiro Gawain de um jovem Liam Neeson que vemos ser manipulado inicialmente por Morgana, mas no final se mostra devoto e leal à Arthur; a paixão cega de Guinevere de Cherie Lunghi por Lancelot de Nicholas Clay um dos mais honrados cavaleiros mas que luta com suas impossíveis emoções de forma dolorosa; a inveja mortal de Morgana de uma sensual e traiçoeira Helen Mirren para com tudo do reino de Arthur; o jovem Percival de Paul Geoffrey que começa como um jovem rapaz sonhando em ser cavaleiro que perambula pelo Castelo e no final se mostra ser talvez o maior herói do filme ao ser o único sobrevivente da busca pelo santo Graal! E nesse estranho e lindo elenco ainda encontramos caras conhecidas de Gabriel Byrne (Os Suspeitos; Ajuste Final) e Sir Patrick Stewart, ambos muito bem também!
O Realismo Fantasioso
Outra coisa interessante é notar como Boorman lida com a ação do filme. Pode-se imaginar com ao vermos um bando de cavaleiros em cena com um bando de armaduras reluzentes, poderemos ver batalhas limpas bem coreografadas, mas não é bem o caso aqui...
Vemos os golpes sendo proferidos com certa dificuldade; os gritos de dor que se ouve são agonizantes; vemos membros sendo decepados e sangue jorrando de forma às vezes bem gráfica. Os cavaleiros têm as armaduras sujas de lama e sangue, e andam de forma lenta e dificuldade mostrando o peso das armaduras e talvez a dor de alguns ossos quebrados.
É como se seu diretor quisesse mesmo desmistificar o conto fantasioso que ele próprio dá vida aqui, adicionando essa dose de realismo quase seco nas batalhas que vemos se suceder na história, e um tom quase tenebroso e brutal na violência que se cria. E impressiona o nível de detalhe construído nela, quando vemos lanças ou espadas atravessando corpos e braços sendo cortados parece TUDO muito realista e ainda mais angustiante (e gratificante de se assistir). Um pré Game of Thrones?!
A História de uma Espada
Alguns até tem a dizer que Excalibur é uma bela bagunça, e que não tem nada a dizer sobre a história de Arthur e seu reinado. O que foi exatamente esse ser humano e o que fez; a importância de sua lenda; um resumo dos verdadeiros mitos?!
Talvez no final, a resposta esteja exatamente no título, a espada lendária. A arma que é retratada na história como uma arma criada no âmago da magia da natureza presente nesse universo e que só pertencerá ao verdadeiro e digno rei. O rei que com a espada se tornará um só com a terra, o líder perfeito!
O grande Boorman quis sim construir aqui uma jornada. Não só a jornada de um homem rumo ao seu destino de Rei, mas sim de como sua vida e história, se tornaram a lenda que todos conhecem em parte e se ecoa até hoje. E o filme talvez seja exatamente isso, uma lenda, fantasiosa ou real, em total vida cinematográfica! Não é o perfeito filme de Rei Arthur e sua história, mas com certeza BELÍSSIMO de se deslumbrar, encantar e talvez se inspirar!
Excalibur (Idem, EUA - 1981)
Direção: John Boorman
Roteiro: Rospo Pallenberg, Thomas Malory
Elenco: Nigel Terry, Helen Mirren, Nicholas Clay, Gabriel Byrne
Gênero: Fantasia, Drama, Aventura, Medieval
Duração: 140 min.
Crítica | Antes Que Eu Vá
Histórias sobre jovens vivendo dramas no período da adolescência tem aos montes. Algumas deslizam no excesso de sentimentalismo para tentar focar em alguma situação outras recorrem para a comédia escrachada. Antes Que Eu Vá novo longa da diretora Ry Russo-Young (Caminho Para o Coração) faz parte da nova geração de produções focadas para o público dessa idade e é uma mistura de muitos filmes e produções recentes, mas com um toque mais de suspense. Filmes como Cidade de Papel mostram esses adolescentes em viagens de auto-descoberta e querendo viver emoções diferentes.
No longa de Ry Russo o tema principal é sim de auto-conhecimento, mas aqui o dramatismo é deixado mais de lado e o direcionamento é mais sério e realista. Baseado na obra de mesmo nome escrito por Lauren Oliver longa vai levar aos cinemas os fãs recentes de John Green que se espelham nessas tramas. Lauren, apesar de ser desconhecida por grande parte do público brasileiro ela já conta com uma vasta carreira como escritora. Já publicou mais de uma dezena de livros entre eles o mais famoso é a trilogia Delírio lançado por aqui assim como Antes Que Eu Vá pela editora Intrínseca.
Em Before I Fall (nome original em inglês) apresenta a rotina de quatro amigas que vivem suas vidas enter curtição e amores. Uma não faz algo sem a outra, sabem da vida uma das outras e vivem indo à festas. Estão no último ano do colégio, mas nada disso é o foco do filme. Zoey Deutch (Samantha Kingston) e Lindsay (Halston Sage) são as amigas principais de um quarteto ainda composto por Elody (Medalion Rahimi) Ally Harris (Cynthy Wu).
Tudo começa com Samantha perguntando: o que você faria hoje se fosse seu último dia de vida? Daí a história passa a ser desenvolvida com as amigas aparecendo, sua irmã mais nova, seu namorado que parece não gostar muito dela e a garota que faz tudo mudar que é Juliet vivida muito bem pela atriz Elena Kampourius.
Juliet é a personagem que faz ter toda a reviravolta no filme. Os alunos do colégio a chamam de esquisita, aberração por ser diferente. As quatro amigas em questão realizam bullying diário com a garota. Tudo piora quando no dia do cupido, em que os alunos podem enviar flores para qualquer pessoa da escola no anonimato, as garotas enviam uma flor com um conteúdo não mostrado para ela, provavelmente algo para a humilhar. Há uma festa na casa de um dos alunos e todas estarão lá.
Eis que Juliet aparece na festa para tirar satisfação com as quatro e acaba por sofrer uma humilhação pesada das 4. As amigas saem chateadas da festa com a discussão e vão embora juntas. Então acontece do carro delas bater em algo e elas consequentemente morrem. Tudo isso é mostrado de forma rápida, pois a continuação dele que é o que importa. Samantha parece receber ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Ela acorda literalmente todo mesmo dia em que vai morrer e nisso ela vai tentando fazer sempre algo diferente para ver qual o resultado na prática. Isso é o que pode se dizer resumidamente de Antes Que Eu Vá sem estragar o final que vai surpreender a muita gente.
Em tempos que 13 Reasons Why faz sucesso por falar de um tema tão atual e que pouco é discutido que é o do bullying excessivo Antes Que Eu Vá poderia ter sido mais do que é. Ele não debate o tema a fundo, o foco é total na personagem de Samantha e em ela ter que viver seus dias para sempre até que consiga mudar o rumo de sua vida. Esse é o caminho da produção, enquanto ela não saber quem ela é e o que realmente quer não vai conseguir chegar ao fim de seu dia, no caso no fim de sua vida já que tudo conspira para que ela fique dentro do carro na hora do acidente.
Mas não é 13 Reasons a maior referência de Antes Que eu Vá. A história, tanto do livro quanto a do filme parecem lembrar bastante obras pops do cinema como Feitiço do Tempo com Bill Murray no papel do jornalista que acorda todos os dias e Carrie, A Estranha obra clássica de Stephen King que já teve várias versões para o cinema e sempre é referência quando falam em bullying no colégio.
Na realidade, Before I Fall é uma trama focada mais no período da passagem da adolescência para a fase a adulta. Samantha tem vários dramas que vai percebendo durante o tempo que vai passando, viver todos os dias na verdade a faz perceber o quão errada algumas decisões são e ela tem a possibilidade de mudá-las. Ela ao término de tudo entende sua função na vida até ali. Quem nunca quis ter mais chances para arrumar algo de que se arrependeu no futuro?
Antes Que Eu Vá (Before I Fall, EUA 2017)
Direção: Ry Russo-Young
Roteiro: Maria Maggenti
Elenco: Zoey Deutch, Halston Sage, Logan Miller, Kian Lawley, Elena Kampouris, Cynthy Wu, Medalion Rahimi
Gênero: Drama, Mistério
Duração: 98 min
https://www.youtube.com/watch?v=i-W0gZm_1LE
Crítica | Lancelot do Lago
Entre as frases que povoam o livro Notas sobre o cinematógrafo, podemos encontrar algumas como: “A utilização dos meios do teatro leva fatalmente ao pitoresco do olhar e do escutar”; “Expressão por compreensão. Colocar numa imagem o que um literato diluiria em dez páginas” ou ainda “Música. Ela isola seu filme da vida de seu filme (deleite musical). Ela é um possante modificador e até destruidor do real, como álcool ou droga”. O que poderia ser mero diletantismo nas mãos de um cineasta menos rigoroso, abundantes no cinema contemporâneo, torna-se a linguagem aproximada da perfeição humana pretendida por Robert Bresson.
Filmou da década de 30 até a de 80, quando morreu, e a cada filme mostrava – na redundância que surge para trazer questionamentos valoroso – a busca pela depuração máxima, filmes cada vez mais mínimos. Nesse movimento gradativo, quando Bresson passa a fazer filmes coloridos, algo em sua essência parece mudar. Os roteiros saltam de escritores franceses como Georges Bernanos (Diário de um Padre e Mocuhette, a Virgem Possuída) para um tom cada vez mais pessimista e seco. Dos cinco filmes coloridos que encerram sua carreira, só dois não são adaptações literárias de Dostoiévski ou Tolstói: O Diabo, Provavelmente e Lancelot do Lago. Ainda assim, são dois filmes em que as questões caras aos mestres russos reverbera exemplarmente.
Após essa curta introdução, é mais fácil de digerir os primeiros instantes de Lancelot: dois cavaleiros lutam, a câmera acompanha o peso das espadas. Um é decapitado, seu sangue escorre líquido, vibrante, jorra com força, como urina. Cavalos aparecem e contemplam mais dois curtos e secos assassinatos. Dois esqueletos de armadura enforcados aparecem no caminho dos cavaleiros: são um aviso. A partir desse instante, só há morte.
Em seguida, vemos corpos queimando e um oratório e velas são derrubados, antes de entrar um letreiro (“Après une suite d’aventures qui relèvent du merveilleux…”, isto é, depois de uma série de aventuras enquadradas no maravilhoso…) e afirmar de vez que esse é um filme póstumo. Não de Bresson, mas da própria saga arturiana. Uma camponesa afirma: “O presságio é o mesmo para todos eles”. Os Cavaleiros sobreviventes estão retornando da busca pelo Santo Graal de mãos vazias. Teria sido a busca em vão? Qual o valor da honra dos cavaleiros? A incerteza se instaura como um dos pilares do filme, contagiando o tema da fé cristã em plena época medieval.
Lancelot do Lago é um filme muito telúrico. A câmera está desde o início preocupada com o que se passa na terra: foca nas patas dos cavalos, no andar empostado dos cavaleiros. O som é duro, a trilha sonora ausente ressalta o retinir das armaduras e a solidão crescente dos diálogos, alegoricamente dos personagens e seus atores. Ou melhor, “modelos”, como nomeava Bresson. Porque são isso mesmo, pessoas desconhecidas, fora de qualquer star system, não são atores famosos, seguidores de qualquer método de atuação, inexpressivos, austeros. Cada cena tem pouco de contemplação, de pausa nos diálogos, o que incrementa o caráter anti-apoteótico, mais do que anti-teatral. Isto é, o fato dos atores praticamente vagarem pelas cenas ressalta o aspecto do travamento das personagens.
Com a Távola Redonda incompleta, não se fazem mais reuniões, não há senso de unidade. Sem a configuração circular, em que as lideranças se diluíam, as relações tornam-se pontiagudas, com a mesma natureza lancinante das espadas e lanças. Lancelot, cavaleiro da rainha Genebra, vive com ela a tensão do amor carnal e do amor cortês. Mordred (nome que significa "mau conselho") entra em conflito com Lancelot e Gauvain. O Rei quase não aparece em cena. Não há governo, senão o da intriga.
Um dos momentos chave que demonstra isso é o da participação de Lancelot em um torneio, onde ele exibe toda a sua habilidade como guerreiro. São seis longos minutos, que parecem ainda mais longos pela repetição. A cada cavaleiro que surge, sobe-se uma bandeira – reforçando presença do dever perante uma autoridade nobre – as trombetas são tocadas e é mais um cavaleiro no chão. Quase não vemos o choque da lança e do escudo, mas mais a surpresa da plateia. Sabemos que é Lancelot pela cena anterior ao torneio e também pela conversa entre Gauvain e o Rei. Porém, visto que não há um só segundo em que o rosto de Lancelot aparece, a cena é tão elíptica quanto todo o resto do filme.
Só muitas cenas depois é que o rosto do cavaleiro é revelado, quando é recolhido ferido por uma camponesa – a mesma do aviso no começo do filme. “Mas eu estou vivo e vou partir”, afirma Lancelot. “Então vá, e morra”, responde a camponesa. Seu dever é mais com a rainha do que com o rei. Diante dos perigos da extinção, sua e da ordem dos cavaleiros, só resta a opção de cumprir seu dever. Acaba perdendo o amor sensual da rainha e vai lutar por Arthur quando Mordred se rebela com outros contra a autoridade.
O presságio se cumpre para todos. No meio da floresta, os exércitos se movem. Não há a grandiosidade da floresta que acaba com o reinado de Macbeth, mas algo mais próximo do que Manoel de Oliveira viria a fazer dezesseis anos depois com Non ou a Vã Glória de Mandar. É uma batalha sem qualquer noção de heroísmo, sem qualquer objetivo senão o da autodestruição.
Através dela, o homem pode chegar à transcendência, como é até comum aos personagens de Bresson (o burrinho Balthazar, Mocuhette, Charles...). É também quando fica clara a analogia da câmera com o cavalo: o animal está para o cavaleiro, assim como o olhar da câmera está para o filme. Com a pilha de mortos, o sangue jorrando, pode o homem deitado em sua tumba profana, junto de seu rei e seus companheiros de aventuras, finalmente ver a beleza do céu cinzento no qual voa suavemente uma ave negra. Lancelot suspira por Genebra. A espada fincada no chão forma a silhueta de uma cruz. E morre na terra.
Lancelot do Lago (Lancelot du Lac, França, Itália, 1974)
Direção: Robert Bresson
Elenco: Luc Simon, Laura Duke Condominas, Humbert Balsan, Patrick Bernhard
Gênero: Drama histórico, Romance
Duração: 85 min.
https://www.youtube.com/watch?v=TdTmk9_mAHc
Crítica | Rei Arthur: A Lenda da Espada
O diretor Guy Ritchie definitivamente já provou sua marca ao cinema. Com filmes como Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch: Porcos e Diamantes, seu estilo diretorial foi estabelecido e, com o passar do tempo, mantido, porém não aperfeiçoado. Com o seu crescimento na indústria, esse cineasta "street-level" foi flertando mais e mais com modelos mais clássicos de cinema, como no filme de espião descolado e retrô O Agente da U.N.C.L.E. e a reinterpretação blockbuster da maior criação de Arthur Conan Doyle em Sherlock Holmes e sua sequência. Encontrou sucesso financeiro nas duas aventuras do investigador, e certo sucesso artístico em U.N.C.L.E. Dito isso, a sua marca vista nas suas primeiras obras não era tão forte nestas mais recentes, portanto tendo um estilo mais seguro e garantido.
Mas chegou 2017 e Ritchie está lançando seu novo filme, seu novo blockbuster, sua nova reinterpretação de uma figura clássica. Essa figura é Arthur Pendragon (Charlie Hunnam), ou Rei Arthur, como é mais conhecido. A proposta desse primeiro capítulo de uma suposta (mas improvável) trilogia é contar a história de seu personagem por um viés desromantizado, cru e ocasionalmente humorístico. Ou não. Veja bem, Rei Arthur: A Lenda da Espada não tem certeza do que quer ser. Por mais que momentos do filme tragam uma direção inspirada, edição precisa e energética e o que for de Ritchie e sua equipe, outros falham em se destacar do número até notável de aventuras capa e espada medíocres que recebemos nos últimos anos, de Fúria de Titãs até o chocante O Sétimo Filho. Antes de explorarmos esses méritos e deméritos, uma breve sinopse.
A família Pendragon, linhagem real da Bretanha, é inicialmente ameaçada por feiticeiros, que conjuram elefantes gigantescos para uso nos campos de batalha. O pai de Arthur (Eric Bana), com sua espada Excalibur, derrota tais feiticeiros, mas acaba pego de surpresa pela traição de seu irmão, Vortigern (Jude Law), que conspirava com os feiticeiros para conseguir poder ilimitado sobre o reino, além da própria espada. Arthur, nesse momento apenas uma criança, é colocado em um bote pelos pais, indo rio a baixo. Orfão, é encontrado por mulheres do bordel local, de Londinium, onde é criado. Com o passar dos anos, Arthur envelhece e Vortigern acumula poder sobre o reino. Até que Arthur se depara com seu passado e a interferência de certas figuras, e segue então a missão de recuperar o que é seu por direito e salvar o reino. Nada profundo ou surpreendente. Usam cavalos de verdade e não cocos, não há coelho assassino.
A trama é previsível, como a maioria das prequels. Seu estilo, nem tanto. O crescimento de Arthur é exposto energicamente, em uma excelente e memorável cena, produto da inspiração então alinhada de Ritchie, seu montador James Herbert, o cinematógrafo John Mathieson e o excepcional compositor Daniel Pemberton, que aqui traz temas baseados em batidas e sons respiratórios que ficam com o espectador após a sessão. Grande parte do filme possui tal estilo, mas nunca alcançando novamente a inspiração dessa maravilhosa cena. Certos diálogos entre os personagens, como Bedivere (Djimon Hounsou) e Goosefat Bill (Aidan Gillen, o inconfundível Little Finger de Game of Thrones) trazem aquele carisma e certa esperteza dos primeiros filmes de Ritchie, que inspiraram cineastas como Matthew Vaughn, de Kingsman: O Serviço Secreto, onde a temática também envolve, curiosamente, a ideia de Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda. Até aí, Rei Arthur constrói sua identidade, uma visão idiossincrática dessa antiga lenda. Charlie Hunnam faz um ótimo trabalho, provando que também consegue ser um bom protagonista de blockbuster além de séries ou dramas (e futuro Arqueiro Verde, por favor), enquanto Jude Law traz sua versatilidade ao papel do vilão, alternando entre seriedade e uma prazerosa faceta paranoica, esquisita e insana (não é um Eddie Redmayne em O Destino de Júpiter, felizmente).
Em meio a esses momentos e qualidades até empolgantes, no entanto, o filme cai nas armadilhas típicas de um blockbuster mediano. O uso de CG alterna entre econômico e exageradamente ridículo, com cenas ao final que trazem à memória a cena de Neo contra os Smiths em Matrix Reloaded, onde a transição entre atores e "bonecos" computadorizados só ressalta o quão não convincente a tecnologia consegue ser. E qualquer construção de clima e estabelecimento do duelo entre Arthur e Vortigern é jogado pela janela com um embate final digno de "quick time event" decepcionante de videogame (aquelas cutscenes que exigem pressionar botões, que te matavam e irritavam em Resident Evil 4), onde a batalha é travada entre um homem (computadorizado) e... algo, também computadorizado.
Se não fosse a confusão do ato final, que se estende demais e apresenta eventos e eventos até que nem esperemos um final, o filme seria uma maneira divertidíssima de passar o tempo no cinema, sendo conduzido por uma direção, elenco e trilha entusiásticas. O que gera todos esses problemas é a insegurança de seus criadores e produtores, temendo que um filme inteiramente Guy Ritchiesco (de nada, pelo neologismo) não fosse garantir a proposta trilogia. Assim, encheram o filme de certo espetáculo vazio em momentos e cordas soltas em outros, deixando alguns dos principais elementos do personagem e seus cavaleiros para uma sequência.
Mesmo com todos esses problemas, preciso admitir: com todas as qualidades presentes, e um elenco promissor, eu pagaria para ver uma sequência mais confiante e determinada. Esse é ainda competente e se diferencia, além de ser um entretenimento fácil e (na maior parte) bem realizado. Não chega aos níveis de outras adaptações da lenda como Monty Python e o Cálice Sagrado e Excalibur, mas sem dúvida é bem melhor que a versão entediante de Antoine Fuqua com Clive Owen no papel, Rei Arthur. Como um próximo não deve rolar, pelo menos levo para casa o desejo imenso de escutar de novo e de novo a trilha de Daniel Pemberton, que já marcou presença em sua colaboração com Ritchie em U.N.C.L.E. e marca novamente neste filme aqui. Se existe alguma lenda nessa obra, é a de Pemberton que estamos vendo crescer.
Texto escrito por Júlio Vechiato
Rei Arthur: A Lenda da Espada (King Arthur: Legend of the Sword, EUA/ Reino Unido - 2017)
Direção: Guy Ritchie
Roteiro: Guy Ritchie, Joby Harold, Lionel Wigram
Elenco: Charlie Hunnam, Jude Law, Eric Bana, Djimon Hounsou, Astrid Berges-Frisbey, Aidan Gillen, Tom Wu, Freddie Fox, Annabelle Wallis
Gênero: Aventura, Ação
Duração: 126 min
https://www.youtube.com/watch?v=iUJXje976RM&t
Crítica | O Rastro
O Rastro é aquela produção que você vai assistir com a expectativa nas alturas devido ao compartilhamento massivamente do trailer ser divulgado nas redes sociais e muitos já diziam muito antes da estreia que seria o melhor filme nacional de terror já feito. Infelizmente isso está longe de ser verdade.
Projeto que levou oito anos para chegar as salas do cinema tentou trabalhar vários elementos que deram certo em filmes de terror de outros países. A ideia da casa amaldiçoada que foi muito bem adaptada em Invocação do Mal aqui se tornou um hospital demonizado por uma garotinha. Sua aparição, por sinal lembra os espíritos que são de assustar qualquer um em produções coreanas e japonesas. Há também o fator loucura psicológica do personagem vivido pelo ator Rafael Cardoso ao estilo O Iluminado.
E são essas referências que mais atrapalharam o andamento do filme. O cinema nacional de antigamente tinha uma pegada mais macabra e bizarra com Zé do Caixão, tinha uma identidade nacional. Já O Rastro quis pegar tantas e tantas referências que acabou ficando sem foco e não conseguiu criar um estilo próprio. Para começar, o diretor na entrevista coletiva de promoção disse que usou como base alguns longas como Babadook, O Orfanato, Labirinto do Fauno entre outros.
É possível fazer um cinema que tenha elementos do terror brasileiro ou terror tropical como muitos chamam sem precisar tentar copiar ou usar produções estrangeiras que deram certo em seus respectivos países como inspiração. O Rastro tem uma boa ideia, mas o uso excessivo de referências faz o filme se perder. Quem o assistir vai perceber que em um momento ele é uma coisa em outros momentos ele muda o caminho da narrativa, até que ao final eles tentam dar uma virada que se tivesse sido colocada muito antes seria excelente, mas acabaram perdendo a chance. Tentaram chocar e surpreender ao mesmo tempo.
A história segue a vida de João (Rafael Cardoso) um ex-médico que trabalha em uma central de transferência de pacientes de um hospital para outro. Ele notifica um antigo amigo que ele não pode mais colocar ninguém em nenhum leito, pois seu hospital estava proibido de atender novos pacientes devido a precaridade do lugar. Não há higiene, aparelhos quebrados e mais uma soma de fatores fizeram com que João chegasse a decisão de fechá-lo. Antes ele conhece uma garota menor de idade e internada sozinha por lá, sem acompanhamento de uma pessoa maior de idade. Ela não tem família, não tem pais nem mãe. Ela vive em um internato e por estar doente foi parar lá.
Feito o fechamento e a retirada de todos pacientes (com foco na revolta da população e que o lugar atendia aos pobres por isso estava sendo fechado) João repara que essa menina estava desaparecida, o nome dela não constava na troca de leitos e por isso ela devia estar lá perdida ou algo havia acontecido com ela de mais sério. Eis que aí começa tudo, ele passa a correr loucamente do hospital para sua residência procurando por ela. Em seus sonhos tinha vislumbre dela como se fosse um fantasma. Sua esposa Leila (Leandra Leal) até então não tinha destaque nenhum e só aparecia para conversar com o marido. A protagonista feminina até então era a personagem de Cláudia Abreu, a médica Olivia do agora hospital abandonado e que ajuda João (um pouco) a procurar a garota. Mais para frente em sua investigação ele encontra o nome da médica envolvido em vários casos de operação de pacientes que sumiram do nada.
Ele continua investigando e o espírito da garota passa a aparecer mais vezes para ele e então começa a ter surtos psicóticos. É aí que o diretor tenta enganar o telespectador. Estaria João com problemas psicóticos e teria visões da garota? Será que ela morreu de fato e essa imagem que aparece para ele é um fantasma? Não, nada disso. O que pode ser dito sem estragar nada é que o filme fala sobre tráfico de órgãos. É um tema muito interessante se levar em conta que era um hospital quase abandonado e que cuidava da população de baixa renda. Mas precisava enrolar tanto para chegar nisso. A ideia é tão boa que deveria ser o tema central de tudo. Deveriam esquecer os fantasmas e tudo o mais. Seria um suspense excelente.
Com certeza a falha de tudo foi por parte do roteiro. A direção é boa, tem enquadramentos que dão um toque de suspense, o elenco é bem dirigido e sai bem na interpretação e a fotografia dá um ar de filme de terror. O problema como dito foi querer fazer um mistério excessivo e levar para um caminho da garota. Os efeitos especiais dela personificada em fantasma é tão ruim que lembra os do também filme brasileiro O Caseiro. Fora que os gritos dela em vez de fazer você sentir medo causam um certo constrangimento de tão forçado. Filme de terror é 50% som, ele que te causa na maioria das vezes aquele pânico. Em O Rastro ele é usado em tantas cenas desnecessárias que chega a ficar enjoativo e repetitivo e acaba matando uma cena que poderia dar algo.
O arco dramático de Cláudia Abreu poderia ter sido melhor desenvolvido e deram muito destaque para ela sendo que foi esquecida na última meia hora. A questão é o porque de terem colocado uma crítica social/política em uma produção que o foco é o terror? Nosso sistema de saúde é sim falido e bizarro. Um filme de terror perfeito por si só, mas porque colocar as cenas reais de pessoas em hospitais? Muito apelativo e desnecessário sendo que o foco é outro. Isso poderia ter sido melhor inserido se o roteiro tivesse sido bem escrito. A cena final com Demestrio Montagner nem o diretor conseguiu explicar porque estava lá, essa cena foi colocada sem nenhum contexto com o resto do longa.
O Rastro tentou criar uma identidade moderna para uma história já vista em muitas outras produções e empregada de melhor forma. Cinema nacional vai continuar sofrendo rejeição enquanto produções assim continuarem sendo tão ruins. Mas há uma esperança, pelo menos o elenco mandou bem e isso já é uma melhora em relação a produções anteriores.
Escrito por Gabriel Danius.
O Rastro (2017)
Direção: J.C. Feyer
Roteiro: André Pereira
Elenco: Leandra Leal, Rafael Cardoso, Cláudia Abreu, Alice Wegmann, Jonas Bloch, Felipe Camargo
Gênero: Terror
Duração: 90 min
https://www.youtube.com/watch?v=gJA9Wbaeq1U
Crítica | Invocação do Mal
Antes de entrar na sala para a sessão de Invocação do Mal, o bilheteiro do cinema olhou para o título do filme presente nos ingressos e soltou um apavorado “boa sorte” a mim e minha amiga. Primeira vez que encaro uma situação divertida como essa e, ao fim da projeção do longa, ressalto – ainda suando devido à tensão provocada por estes 110 minutos – que o funcionário não exagerara. Temos aqui um dos melhores filmes de terror dos últimos anos.
Na trama, uma família acaba de se mudar para uma casa enorme e misteriosa, mas não demora para que seja sentida a presença de entidades paranormais dentro do local (como sempre). O que faz a diferença é a presença do casal de demonólogos/investigadores/caça-fantasmas Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga, ambos excelentes) que é contratado para analisar e tentar por um à sinistra situação. Tudo isso baseado em fatos reais – mas, claro, pode apostar que há muita ficção e liberdades artísticas aqui.
Quando o gênero demanda fenômenos sobrenaturais, não tem como alterar muito a fórmula. O roteiro assinado por Chad e Carey Hayes mantém-se à tradicional premissa da “casa mal assombrada”, mas acerta ao trazer, de forma controlada e coesa, praticamente TODOS os elementos populares nas mais diferentes variações do gênero: espíritos, demônios, exorcismos, brinquedos sinistros (a boneca Annabelle entra para a História), fotos borradas, câmeras dentro da história… Daria pra passar a madrugada inteira enumerando-os. Isso sem falar que a dupla acertadamente brinca com diversos “medos clássicos”, como a suspeita de aparições embaixo da cama ou no interior de armários – todos esses escapam do velho clichê do susto rápido, graças à competência de seu diretor.
Aliás, que revelação é James Wan. Saído de projetos medianos dentro do gênero (seu longa mais famoso é o primeiro Jogos Mortais, além de ter sido contratado para comandar o sétimo Velozes e Furiosos), Wan demonstra um talento invejável para causar medo – e não apenas sustos – no espectador. Optando por longos planos que exploram cada cômodo da residência em um cruel exercício de provocação, o diretor é hábil ao criar movimentos de câmera inteligentes e que contribuem na revelação de suas perturbadoras ameaças (e quando as vemos, o efeito é multiplicado). Além de comandar uma das mais poderosas (e até, veja só, emocionantes) cenas de exorcismo que já vi na vida, Wan mostra sua admiração pela escola Alfred Hitchcock de suspense ao trazer um súbito ataque de pássaros que atravessa janelas e uma lâmpada pendurada que alcança o efeito de iluminação em uma das cenas-chave de Psicose. Olha só…
Mas um dos pontos centrais para o sucesso deste filme reside em seus personagens. Contando um núcleo familiar extenso, todas as cenas com a família Perron são extremamente eficientes e comoventes, agradando pela naturalidade com que trata temas clichês, mas que também nos faz torcer e ficar ao lado daqueles personagens - que definitivamente ignoram a burrice das figuras que geralmente povoam o gênero. O amor da mãe vivida por Lili Taylor é genuíno a cada cena, e o fantástico trabalho da atriz é um dos pontos altos de toda a produção, seja em suas cenas mais amorosas, ou naquelas em que é literalmente tomada pelo demônio. E já falei brevemente sobre os dois ali em cima, mas Patrick Wilson e Vera Farmiga são simplesmente impecáveis como o casal Warren, deixando explícito o profissionalismo do casal para lidar com eventos sobrenaturais, assim como a forte paixão que os mantém unidos. Se eu visse algo estranho na vizinhança, eu definitivamente chamaria Farmiga e Wilson.
Contando também com um trabalho de som espetacular, Invocação do Mal é uma grande surpresa. O terror não anda lá grande coisa nas terras ianques, mas é sempre bom encontrar uma obra decente em um gênero cada vez mais esgotado. Que James Wan siga comandando a arte de nos meter medo por muito tempo.
Obs: Uma curiosidade divertida: em determinado momento do filme, a personagem de Vera Farmiga menciona “um caso em Long Island”. Trata-se de uma referência ao famoso massacre de Amityville, episódio investigado pelo casal na vida real.
Invocação do Mal (The Conjuring, EUA - 2013)
Direção: James Wan
Roteiro: Chad e Carey Hanes
Elenco: Vera Farmiga, Patrick Wilson, Lili Taylor, Ron Livingston, Joey King, Mackenzie Foy, Shanley Caswell, Joseph Bishara
Gênero: Terror
Duração: 112 min
https://www.youtube.com/watch?v=GQrrXceHn2E
Crítica | Alien: Covenant (Com Spoilers)
Com Spoilers
Existem fãs que aguardam com muito entusiasmo por diversas novas incursões de suas obras favoritas. Seja nos quadrinhos, televisão ou cinema, sempre tem um que puxa o trem do hype com mais força que os outros. No caso, eu só pude experimentar essa expectativa com a franquia Alien agora.
Não foi com menos entusiasmo que tinha me empolgado pelo retorno de Alien com Prometheus. Porém, para ser bem honesto, meu hype para Alien: Covenant estava mais que nas alturas. A antecipação em ver o filme era tão grande que passava a ter diversos sonhos envolvendo essas malditas criaturas – acredite, não era algo agradável.
Mas tão logo assisti ao filme que meus demônios se acalmaram. As chances de eu dar com a porta na cara e encontrar uma perfeita porcaria eram altas, afinal minhas expectativas estavam fora do normal. Mas, em uma incrível ironia do destino, acabei amando essa nova adição à franquia enquanto outros que nada esperavam, saíram detestando.
Novamente, na mesmíssima época do ano, me encontro defendendo outro blockbuster considerado torto por muita gente – em 2016 foi a vez de Batman vs Superman.
Em Covenant, acompanhamos um grupo de astronautas responsáveis em criar a primeira colônia não-terrestre no espaço profundo. Carregando mais de duas mil almas em sua carga, a nave intercepta um sinal misterioso que a tira de seu trajeto original para Origae VI.
Reparando que o sinal vem de um planeta com perspectivas melhores para a terraformação e instalação da nova sociedade, o capitão decide que toda a tripulação investigue a origem do sinal para confirmar se esse desconhecido planeta é realmente mais convidativo.
Chegando lá, o lugar que poderia ser o novo paraíso para a arca espacial rapidamente se torna no inferno vivo após a equipe encontrar formas de vida nunca antes imaginadas nem em seus piores pesadelos.
Servir no paraíso
Alien Covenant é sequência direta de Prometheus. Logo, é mais do que necessário ter assistido o longa anterior antes deste, já que os roteiristas não retomam em nada o desenvolvimento do personagem melhor escrito desta nova trilogia: o David de Michael Fassbender. A importância do androide para a narrativa é tanta que a primeira cena da obra já apresenta a origem dele.
Com uma troca de diálogos excelente, vemos David em seus primeiros instantes de vida ser confrontado com diversas perguntas provocantes de seu criador, Peter Weyland – Guy Pearce finalmente entrega uma ótima atuação cheia de detalhes minuciosos importantes. A cena é visualmente muito impactante trazendo o melhor possível da direção de Ridley Scott que busca trabalhar contrastes nítidos.
É impossível não reparar no trabalho de contrastes e simbologias apresentados aqui. A começar pelo figurino que divide Weyland do cenário, mas torna David parte do lugar, como se fosse um mero instrumento ou mobília. O magnata gênio veste cores escuras esverdeadas indicando certa maturidade e corrupção moral enquanto David, recém-ativado, esbanja um traje branco simbolizando ingenuidade e inocência. Ambas as figuras entram em contraste direto com a força da natureza representada pela vista panorâmica. Há ali o perpétuo natural, o homem mortal e o perpétuo artificial criado para a perfeição, mas de função fútil.
Outra boa escolha que explode em níveis estratosféricos a simbologia do androide ocorre apenas em duas frases colocadas no simples diálogo: Qual o seu nome? O robô olha para a estátua renascentista de Michelangelo e responde, David. Nisso, já é necessário leve conhecimento do espectador.
Primeiro, o Renascimento por si só é um movimento intelectual humanista. Logo, temos uma completa subversão deste humanismo ao androide escolher o nome de uma das principais obras renascentistas, pois David descobre em poucos minutos que é mais que um humano, é superior a isso.
Depois, há de se levar em conta a carga bíblica do nome imortalizado tanto pela Bíblia quanto por Michelangelo. A graça de sua estátua é capturar o herói bíblico momentos antes de sua batalha contra Golias. Novamente a obra pede para que liguemos um ponto ao outro. Entre Prometheus para este filme, nitidamente há mudanças em David. Ele não tem mais grilhões o segurando. Agora pode sim enfrentar o Golias, vencer de um modo inteligente seu maior algoz, a humanidade que o concebeu para a mais frívola das funções.
A cena não para por aí. Rapidamente David confronta Weyland inferindo que ele é imortal enquanto seu mestre perecerá e apenas seu legado permanecerá com o risco de findar a qualquer momento. É aqui que temos o melhor que Pearce oferece o personagem, já enrubescendo e perdendo todo o encanto por sua criação. Ao contrário das claras aspirações à grandeza do robô, Weyland já o obriga a realizar tarefas banais como lhe servir o chá. Ser um servo.
Esse podar completo de suas pretensões ainda embrionárias entram diretamente em confronto com a primeira música que David escolhe tocar no piano: A Entrada dos Deuses em Valhalla de Wagner. O nome da sinfonia praticamente explica seu significado, mas há um bom jogo de ironias quando Peter provoca o robô ao dizer “um pouco fraca sem todo o acompanhamento de uma orquestra, não? ” – Importante lembrar dessa frase, pois se trata de um embasamento para as motivações do personagem.
As provocações os colocam em contrapontos claros e definem a parte do Ser do personagem. Algo que já em Prometheus estava mais que superado pelo personagem. Ele já compreendia o que era e repulsava a total ideia de ser um homem. Felizmente, seu desenvolvimento continua até a conclusão da obra, mas é importante distinguir esse prólogo de todo o resto. Ele é a pérola de Covenant e mostra um Fassbender bastante diferente, cru, do que veremos posteriormente com o próprio David e sua versão atualizada, Walter.
Reinar no Inferno
Após a abertura excelente, John Logan e Dante Harper finalmente dão início a narrativa envolvendo os tripulantes da Covenant. Esse primeiro ato lembra bastante os arcos das hqs do xenomorfo em Fire and Stone. Também as comparações com Alien já ficam escancaradas. Após toda a tripulação acordar por conta de um mal funcionamento, compreendemos que há muita camaradagem entre eles.
Entretanto, uma das escolhas mais dúbias dos roteiristas já acontecem nesse despertar: a morte do personagem de James Franco, que nem tem a chance de ter um mísero diálogo com Danny McBride, que interpreta o ótimo Tennessee – baita desperdício de elenco. Passada essa perda, pouco a pouco, compreendemos que quase toda a tripulação é formada por casais – esse é um ponto importante que retomarei mais à frente.
Essa primeira passagem na Covenant é por vezes ociosa, já que não há um bom trabalho para conferir complexidade ou personalidade para a tripulação. A maioria deles é descartável servindo apenas como sacos de carne para as futuras pancadarias e tiroteios. Muita coisa se sustenta por conta do talento dos atores.
Nesse rol de 15 personagens, apenas 3 podem ser consideravelmente desenvolvidos. Oram (Billy Crudup) é quem os roteiristas mais concentram seus esforços. Após o personagem de Franco morrer, Oram passa a ser o responsável pela missão apesar de não ter preparo algum para isso. Há atritos entre ele e sua tripulação, além das escolhas que ele opta praticamente nos forçam a torcer contra o personagem, apesar de compreendermos sua tragédia.
O problema é que, bem estabelecido esse conflito digno, Logan e Harper não procuram desenvolvê-lo adequadamente. Há incongruências nítidas como quando Oram descobre as reais intenções de David desconfiando inteiramente de suas ações. Momentos depois, o personagem confia no robô maquiavélico e enfia a cara perto de um ovomorfo. São as burrices textuais que marcaram Prometheus dando as caras em sua sequência. Felizmente, enquanto Oram é um fracasso como personagem, ele serve de trampolim para desenvolver outros mais interessantes como David e até mesmo Daniels, a proto-heroína do filme.
Daniels, apesar de má escrita e má dirigida, segura mais nosso interesse pela razoável performance de Katherine Waterston. Ela é a primeira das muitas viúvas e viúvos da nave e, por consequência, compramos um pouco mais a sua dor. Recursos um pouco similares a de Shaw são apresentados aqui, como um totem de apego a uma pessoa querida que depois serve como arma para se defender da opressão de terceiros. Ela também serve de contraponto explícito para Oram se opondo à ideia de mudar o curso original para visitar o planeta desconhecido.
Infelizmente, Daniels também possui incongruências a olhos vistos. A maior opositora à visita, se encanta com o novo planeta em pouquíssimo tempo. Mesmo depois dos horrores acontecerem, a personagem fica serena. Quando enfim o clímax se aproxima, Waterston mantém a expressão chorosa. Até mesmo no fim do filme, já novamente na Covenant, a atriz transita entre o choro e o espírito bad-ass que pouco casa com ela – mais se assemelha a Lambert do que com Ripley que Scott tanto quer forçar a ponto de vesti-la com a clássica regatinha sem sutiã de Aliens, o Resgate.
As boas coisas de Daniels são poucas: sua relação pseudo amorosa com o sintético Walter e o que seria uma pseudo concretização dessa tensão sexual com a construção de uma cabana no lago. Fora isso, nada.
O único que consegue manter sua consistência mesmo tendo pouca coisa para trabalhar é McBride, divertido e certeiro. Outros personagens são mais definidos por características clichês como a de Amy Seimetz com Faris, esposa de Tennessee. A pilota é toda casca-grossa e justamente por essa sua segurança é que torna a sequência do backburster algo verdadeiramente único.
Quando Scott quer dirigir bem, ele consegue e essa cena é o clássico exemplo disso. Apostar nos contrastes da atuação de Seimetz é inteligente. A atriz outrora tão protetora fica totalmente vulnerável e aterrorizada. O pânico é tão genuíno que potencializa todo o horror gráfico que vemos em tela e até justifica algumas burradas que a personagem faz na vã tentativa de matar o neomorfo. De resto, para nos simpatizarmos mais com os personagens, é preciso assistir ao curta The Last Supper que mostra um pouco mais dessa união do grupo que não é muito aparente no filme.
É chato notar que até mesmo Alien³ conseguia fisgar mais nosso interesse pelos personagens do que aqui.
Problemas no Paraíso
Em termos de narrativa em si, Covenant sofre bastante pelo exercício da lógica. Primeiro, para movimentar e incentivar o grupo ir ao planeta desconhecido, é preciso dois deus ex machina repletos de conveniências. Depois, pela primeira vez em um filme Alien, temos os personagens expostos abertamente a atmosfera alienígena que, convenientemente, infecta dois tripulantes através dos esporos oriundos do mutagênico da gosma preta.
Logo, há a origem dos neomorfos que movimentam a trama até David surgir e salvar o grupo (aliás, é uma ótima cena). As coisas seguem com algumas reviravoltas consideravelmente previsíveis e outras decisões estúpidas até que um personagem é infectado por um facehugger, mas consegue se libertar da criatura. Todos fogem do xenomorfo que saiu de Oram, acontece a set piece e retornamos para a Covenant. Lá, o outro xenomorfo sai de Lope (única boa surpresa da obra) gerando outro pequeno clímax até finalizarmos com outra reviravolta previsível.
Basicamente, todas as reviravoltas de causa e efeito acontecem por conta de muitos roteirismos para criar essas conveniências a fim de movimentar a trama rapidamente – o filme voa depois do nascimento dos neomorfos.
Também é incomodo o quanto Harper, Logan e Scott não tem muito interesse em explorar melhor esse novo planeta e a sociedade claramente distinta de Engenheiros dizimados por David. Uma cena importantíssima ficou restrita apenas ao marketing do filme intitulada como The Crossing. Sem ela, toda a conclusão do arco de Shaw termina de modo preguiçoso e limitado.
Basicamente, Covenant expande consideravelmente a mitologia da franquia exibindo a origem do xenomorfo e quem os criou, porém, todas as coisas interessantes nunca resolvidas em Prometheus não tem lugar aqui. Até mesmo essa expansão ocorre rapidamente, apenas expondo e nunca as desenvolvendo por completo – se o espectador pensar, é possível preencher algumas lacunas. O terceiro ato acaba corrido por conta de tanta ação, além de ainda sentir o excesso de personagens. Ironicamente, Covenant comete os mesmos erros do filme anterior – começo lento, meio e final apressadíssimos que se atropelam.
Os Deuses entram em Valhalla
Apesar de todos esses significativos problemas, Alien Covenant se salva graças a dupla David e Walter interpretados por Michael Fassbender (sublime). Os roteiristas realmente se lixam para todo o resto e concentram seu poder de fogo nos diálogos entre os robôs e as cenas solo de David. Aqui, os humanos e até mesmo os aliens ficam em segundo plano. A filosofia que agora tange a Criação é o foco. E realmente se trata de um acerto.
O que busco comparar nesse sentido é como os filmes da trilogia Ripley sempre esbanjaram personagens descartáveis para desenvolvê-la. Aqui, na trilogia David, ocorre a mesma coisa. A única diferença é que os coadjuvantes nos filmes originais traziam algum carisma e autenticidade.
O contraste entre as psiques dos dois engaja nossa curiosidade e Fassbender consegue conferir minucias na interpretação de modo que conseguimos distinguir ambos com muita facilidade. Walter lembra muito o David que tínhamos visto no prólogo, ainda inocente pela sua programação seguindo à risca seus protocolos para servir e proteger os humanos. David o trata como irmão, já tentando corromper as diretrizes do androide ao buscar construir sua “sinfonia de Wagner” para destruir o que ele mais odeia: humanos.
Em seu núcleo, não há ponto sem nó. David permanece eloquente, citando mil referências filosóficas que só oferecem camadas de complexidade diante tal intelecto desenvolvido. Tão logo começam os diálogos entre eles, vemos David tentando fazer seu semelhante criar alguma coisa. No caso, uma melodia na flauta doce. Aqui, é importante resgatar o quão narcisista era o personagem em Prometheus.
Neste filme, o que era apenas fantasiado, torna-se realidade. A cena da flauta é bastante erótica – não é por menos que o instrumento de escolha tenha forma fálica. Fassbender é tão bom que consegue criar tensão sexual entre os dois personagens que são ele mesmo. É algo surreal. E a fotografia barroca suave de Wolzki à luz de velas com a direção muito mais tranquila de Scott favorecem o clima romântico repleto de inocência e malícia.
Esse arco do Narciso finalmente se fecha aqui. A todo momento David tenta seduzir Walter, seja para ganhar um aliado, seja para se apaixonar ainda mais por si mesmo. Logo, fica claro que existem impulsos sexuais que tornam o sintético, no fim das contas, humano. É por isso que a escolha da tripulação ser constituída de casais é tão interessante. David é um ermitão que, de certa forma, busca seu par. Seja no seu replicante ou através de sua criação. Também vemos esse caminhar para a humanidade no principal confronto de Walter a David quando indaga quem escreveu Ozymandias.
Surpreendentemente, David erra (lembrem-se, errar é humano) e afirma que foi Byron o autor do soneto. Logo, Walter o corrige afirmando a autoria de Shelley e avisa a seu irmão que quando uma nota está fora de tom, toda a sinfonia é sacrificada. Acredito piamente que isso se trate de um foreshadowing para o desfecho do destino de David no próximo filme. Vejo que o robô megalomaníaco reconhecerá, por fim, que sua obra-prima trata-se de um erro demoníaco, de ordem perversa que subverte os preceitos da natureza, de uma conquista alcançada apenas para saciar seu ego humano. Anotem: David perecerá pelas mãos de sua criação.
Esse contraste humano/sintético é elaborado também pela atuação de Fassbender. Walter é levemente mais travado e robótico como deveria ser, porém David esbanja certa malemolência em seu andar e olhares repletos de preconceitos.
Entretanto, seu narcisismo egocêntrico exposto nessas cenas é apenas uma parte interessante dessa persona. O miolo do desenvolvimento trata-se da extinção dos deuses, de sua substituição pelo inferior e da criação diabólica deste. Para engatar um flashback, David contempla os cadáveres fossilizados dos engeheiros extintos a la Vesúvio e cita o famoso soneto de Shelley: Meu nome é Ozymandias, Rei dos reis: contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!
Aproveitando a força da citação, Scott sabiamente encaixa a sequência que mostra David exterminando aquela sociedade com as bombas dos mutagênicos. O robô é um genocida completo, mas a mesma mão que mata, também cria (assim como um deus haveria de ser). E suas crias, em primeiro momento, são os neomorfos. Isso é bem definido pelo roteiro e, graças a encenação, subentende-se que o complexo de Dr. Frankenstein de David nunca fora satisfeito com as obras defeituosas criadas até então.
Justamente por isso a cena da tentativa do imprinting do androide com o novo neomorfo nascido de humanos é poderosa. A horrenda criatura quase domesticada por David é morta por Oram que, pela primeira vez, assume um posto protetor para seus companheiros. Logo, já vira a vítima perfeita para o robô criar sua obra-prima - repare que essa ideia de obra-prima é abordada por David em diálogos com Walter sendo que no principal deles, David afirma que o criador pode morrer em paz depois de alcançar tal conquista. O roteiro, infelizmente, não dá muitos detalhes sobre como David criou os ovomorfos se limitando apenas a dizer que tudo foi conquistado através dos anos por experimentações do mutagênico com tecidos orgânicos – conveniente, mais uma vez.
Apesar de tirar todo o mistério exótico sobre a origem da nefasta criatura, Covenant oferece um olhar inédito em todo o cinema de ficção científica: um robô criar vida motivado não apenas por vingança, mas para se tornar um deus. Quando isso é levado em conta, percebe-se que Scott, mesmo não possuindo a mesma graça na realização que teve em 1979, consegue sempre adicionar elementos novos para o gênero tornando muito válida essa nova trilogia.
Também gosto da ironia de David somente se tornar um deus “completo” se um humano estiver envolvido no processo da concepção do xenomorfo. Outro elemento cínico adequado é o fato de Oram ser o primeiro hospedeiro da franquia. Afinal, ele como capitão sempre deveria tomar as decisões para garantir a segurança de seu grupo, mas acaba dando origem a criatura que caça incessantemente os tripulantes na tentativa de não os deixar fugir do planeta.
Infelizmente, o arco do David basicamente se encerra por aqui. O personagem é plenamente desenvolvido e consegue, por fim, corromper Walter que não recebe um fim adequado – apostam no mistério para engajar o espectador, afinal ele morreu ou não? Infelizmente, sua última reviravolta é muitíssima previsível, mas, por outro lado, fico contente em saber que todo este arco de David ainda não terminou – só vejo ele morrendo nas garras dos xenomorfos.
Complexo de Criador
Para o bem ou para o mal (depende do fã) os filmes Alien como conhecíamos estão oficialmente mortos. Bom, isso até Scott deixar a franquia de lado e se interessar por outra coisa. Covenant só confirma o que suspeitávamos em Prometheus: Scott quer contar a história de um sintético com complexo de deus. Algo bastante válido e interessante no universo de Alien, diga-se.
Assim como a natureza desta narrativa mudou, a técnica de Scott acabou evoluindo para novos padrões estéticos da atualidade. Um dos poucos diretores a adotar sempre o esquema de três câmeras para gravar o filme mais rápido, vemos que há falta de certo refinamento na fluidez do corte ou da construção da cena.
Uma das poucas que conseguem nos impactar de tal forma é a do prólogo tão bem dirigida com cortes orgânicos, movimentos de câmera graciosos que refletem picos mínimos de tensão pela boa decupagem.
Ao chegar no planeta dos engenheiros, as coisas mudam levemente de rumo com ótimas sequências como a do backburster e do ataque dos neomorfos nos campos de trigo. Entretanto, outras que deveriam ser épicas, como a setpiece do clímax ou o extermínio de David usam a decupagem mais banal possível: a descritiva apenas.
Tudo se torna objetivo demais para mostrar uma ação bem gravada sim, mas que não possui um pingo de originalidade – céus, basta nos lembrarmos do Big Chap matando um a um na Nostromo que já causa certo arrepio.
Algo positivo nessa nova direção do britânico é seu senso de humor deturpado. Covenant é um filme bastante cínico e acaba te conquistando pelas ironias cruéis que ele oferece. Vejamos, novamente na cena do backburster, vemos uma personagem tentar abraçar o homem que convulsiona antes de morrer. Porém, seu breve ato de compaixão logo provoca um ferimento ao ter sua mão perfurada pelos espinhos da dorsal do neomorfo que atravessa a pele da vítima. Destaco isso pois é uma característica impressionante de Scott inferir que essas personagens estão condenadas, não há redenção, não há remissão através da compaixão. Diante da natureza perversa que será mostrada logo depois, somente a lei do mais forte é a que prevalece. Nessa cena, de certo modo, Scott obriga as personagens a tomarem atitudes animalescas geradas pelo pânico da sobrevivência. Por isso é irônico. Gera humor, mas se trata de algo tão desolador e cruel quanto.
Depois, durante o grande desespero que consegue até contagiar o espectador, as personagens tropeçam no sangue do morto na tentativa de matar a criatura recém-nascida. Outro bom momento, é encenar o xenomorfo recém-nascido fazer a pose de alguém crucificado (imitando o gesto provocador de David) em cima do único personagem claramente religioso (Oram) - em termos gerais, a cena dessa concepção deixa muito a desejar, apesar do esquemas de iluminação interessantes de Dariusz Wolski. Antes disso, vemos Oram enfiar a cara no ovomorfo também gerando uma boa piada para a plateia que já conhece o fatídico fim de quem se aventura a olhar para dentro da 'caixa de Pandora'.
Abro aqui uma breve reflexão. Já destaquei essa dita "burrice" tão arrotada por diversos entendidos do assunto, milhões de vezes "mais" inteligentes e melhores do que a obra que se propõe a analisar. Vejo que essa "burrice", de modo geral, é um instrumento para o diretor mostrar essa humanidade obviamente inerente a nós. Isso é justificado dentro da obra: são fatores claramente humanos que dão origem a todo horror presenciado em Covenant. Duvida? Então descreveremos.
Oram nitidamente repousa muito de sua responsabilidade em sua dita Fé e, irresponsavelmente, joga a tripulação ao novo planeta. Lá, por conta de certos vícios, seja de entorpecentes ou da curiosidade, originam a infecção pelos esporos do mutagênico gerando os neomorfos. Depois, durante a cena do backburster temos o trabalho mais interessante disso tudo: Faris, assim que abre a camiseta de Ledward, recebe um jato de sangue na cara (hipoteticamente, ficando infectada). Ela sai da enfermaria e tranca Karine.
Essa é a fina ironia de Scott: a humana que claramente pode estar infectada condena sua colega à morte na base de uma justificativa hipócrita pelo bem comum: conter a infecção. É evidente que não se trata disso, mas apenas de puro instinto de sobrevivência: deixar outra vítima atrasar a criatura e se salvar. Porém, há uma certa mudança em Faris. Seja por pânico ou, pior, compaixão, tenta salvar Karine. Novamente, outro erro de julgamento que condena o restante do grupo ao isolamento no planeta. De toda a tripulação, é somente Faris quem consegue errar duas vezes consecutivas. Esses foram apenas os exemplos mais claros possíveis para eu ilustrar o que Scott tenta comunicar no filme todo: a sucessão de erros em jornada ao caos. Como apontei no trecho sobre David, se trata de um paralelismo intenso para mostrar erros de diferentes naturezas para deixar muito crível toda a descida para a loucura que o androide ruma. E, também, para a sua humanidade, afinal errar é... humano.
Mas, caro leitor, há ainda mais elementos interessantes por trás disso tudo. Não é por menos que Covenant é uma missão colonizatória. É a expansão da humanidade como nunca vista antes. E, para o discurso que Ridley Scott constrói aqui, onde quer que a humanidade vá, o pior que há com ela irá junto. Enquanto o monstro alienígena de David é objetivo, o monstro da humanidade subjetivo e imaterial. Aqui, são facilmente ilustrados pelos Sete Pecados Capitais. E, pasmem, há passagens que corroboram exatamente isto que escrevo agora. Novamente, irei ilustrar através de alguns personagens.
O pecado do Orgulho geralmente é o mais presente. Oram é o perfeito exemplo disso só por decidir mudar todo o itinerário da missão para provar seu ponto. O fato de Oram ser o mais religioso do grupo torna tudo mais perverso e cruel, pois claramente ele não tem a consciência disto. A Gula já é retratada pelo próprio propósito da existência da missão: expandir o domínio humano na galáxia. A Preguiça é representada por Rosenthal quando ela opta por se isolar no templo para banhar-se e descansar - isolamento que leva à sua morte que possui peso diferente da dos outros, pois ela é decapitada pela criatura (a decapitação, historicamente, é uma das execuções mais humilhantes por tirar o que seria a personalidade do assassinado, além da cabeça servir como troféu em diversas sociedades).
A Luxúria é o último pecado representado pelo casal Ricks e Upworth que se isolam (novamente) para transar nos chuveiros e acabam morrendo após a criatura violá-los (a cauda toca a pelve de Upworth e a língua interna penetra o crânio de Ricks até sair pela boca). A Inveja e a Avareza são representadas por Weyland na criação de seu primeiro sintético, David, extravasando seu desejo de imortalidade, e pelo acúmulo absurdo de riquezas. Através dessa criação, Weyland consegue dominar materialmente esse desejo impossível. Representa uma subversão de superioridade: o mortal que comanda imortais.
É aí que entra o fator primordial para o espectador entender o quão humano David se torna ao final desta obra. David, por ser uma criação humana, acabaria, a um certo ponto, herdando o pior da humanidade. Scott exibe isso ao nos fazer pensar em contrastes. Apesar da tripulação representar todos os Pecados Capitais, nenhum deles acumula mais de dois em sua personalidade. Já David, ao longo de toda a obra, apresenta ter todos.
O Orgulho claramente é representado por sua vaidade manifestada pelo intelecto, pompa e eloquência. A Gula é mostrada por sua sede de conhecimento que transpões qualquer limite moral ou ético a ponto de profanar o cadáver de sua única amada. A Luxúria é manifestada pela tentativa de estupro a Daniels. A Avareza pode ser interpretada pelo acumulo de tanta quinquilharia "científica" em seu covil ou nos corpos petrificados no pátio dos quais ele tem orgulho por constituírem sua vista do "Paraíso". A Inveja é reforçada em tantas passagens que ele cita obras-primas de autores humanos como Ozymandias de Shelley. E, por fim, a Ira representada em sua criação torpe motivada apenas pelo ódio profundo que ele sente pelo Homem. A Preguiça é a única que não há aqui, afinal David é uma máquina e esse pecado é um dos mais abstratos do sete (talvez o mais complexo).
Desse modo, o diretor cria sua maior ironia na mensagem da obra. Logo David, o antagonista que detesta e abomina praticamente tudo o que a humanidade representa, acaba desenvolvendo as nossas piores características, as potencializa, e, por fim, a materializa com o xenomorfo. Portanto, a partir dessa visão que Scott nos fornece aqui, o xenomorfo vira a objetificação do pior que há na humanidade. É o demônio perfeito que, até então, era invisível, mas que sempre esteve ali ao nosso lado. E ainda chamam esse filme de burro... Quisera eu ser burro desse jeito então.
Enfim, voltando ao assunto anterior, Scott usa esse humor para conferir climas bastante estranhos à franquia. Destaco aqui que eu não condeno de forma alguma. Gosto de ver essa autoria e vontade de realizar coisas novas em cineasta que há tempos gerava filmes cada vez menos inspirados. De certa forma, chega até a recordar algumas das bizarrices de Alien – A Ressurreição. Na verdade, Scott mistura características dos quatro filmes neste daqui. Temos até mesmo os famigerados planos subjetivos do xenomorfo tão criticados em Alien³. Aliás, muito da estratégia de encurralar o bicho na nave se assemelha ao plano de Ripley para matar o alien no terceiro filme. Sua estrutura de dois clímax vem diretamente de Aliens.
O clima que Scott busca mimetizar dentro da nave vem do primeiro filme. Além de termos sequências de ação explosivas a la Aliens. E talvez seja justamente nesse aspecto que Scott mais se perca, já que não se tratam de elementos elegantes. A luta entre David e Walter parece saída de Matrix que, por mais que tenha me empolgado e seja bem coreografada, reconheço não tem nada a ver com a mitologia desses filmes.
O que ainda sempre é válido e que merece ser parabenizado é o grau de realismo que Scott que consegue imprimir em cada cenário, criatura e situação. Contar com cenários construídos fisicamente e não por CGI faz uma baita diferença para a encenação desejada. Destaco o ótimo trabalho no covil de David, cheio de ilustrações e criaturas em formol, para o grande pátio com os engenheiros fossilizados e para os corredores da Covenant.
Muito disso, obviamente, por conta do domínio estético absurdo que Scott tem em criar imagens maravilhosas e terríveis. Covenant é uma obra vivíssima e isso não pode ser menosprezado de forma alguma. O que havia dito em termos de fluidez há poucos parágrafos acabam prejudicando sim o apuro visual da obra. A montagem às vezes é tão ligeira que mal dá para captar a mensagem visual de um plano que, na maioria das vezes, possui enquadramentos fantásticos. Scott torna até mesmo cenários grotescos em verdadeiras obras de arte de pesadelos. Não há erro. É um dos filmes mais estonteantes desse ano, apesar da nítida decadência visual apresentada logo que a narrativa chega à necrópole do robô.
Também fico contente por ter uma leve confirmação de algo que especulava há tempos pela direção de Scott: as diferentes personalidades dos xenomorfos que ele já trouxe nesses filmes (3, no total). Revendo a Alien, me peguei pensando o quanto de Kane aquela criatura carregava consigo. Eles compartilham certas semelhanças assombrosas como uma curiosidade anormal – o xenomorfo quase tortura psicologicamente suas vítimas antes de matá-las. Aqui, porém, há clara distinção entre um alien e outro. O de Oram é muito mais animalesco e violento e parece sentir um ódio diferenciado por alguns tripulantes da nave – talvez trazendo um pouco da frustração do personagem que já deixava claro o quanto desgostava diversos companheiros.
O de Lope é mais inteligente e sabe que está dentro de um jogo quando é encurralado por Daniels e Tennessee. Scott também faz a criatura brincar com suas vítimas antes de matá-las assim como ocorria com o Big Chap. Aliás, a morte de Rosenthal compartilha semelhanças com a de Lambert por não ficar muito claro o que ocorre com ela depois que seu namorado é penetrado pelo bicho. Enfim, é mera especulação, mas acho que Scott consegue criar personalidades interessantes para essas criaturas – isso inclui os neomorfos.
Cinzas do Dr. Moreau
Apesar dos pesares, Alien: Covenant é um ótimo retorno à franquia que tanto amo. Fiquei bastante satisfeito com o que vi e me diverti com as bizarrices filosofais de Scott. Os pontos positivos, creio eu, conseguem superar as ditas "burradas" e conveniências de roteiro que incomodam tanta gente. Para mim, o ineditismo dessa proposta com boas cargas filosóficas já me conquista, além de David continuar sendo um dos personagens mais bem escritos do cinema contemporâneo como já ficou provado nos dois textos enormes que dediquei para essa nova trilogia.
A tecnologia atual também é aproveitada. Temos cenas mais viscerais, bons designs de criaturas, além de dar maior liberdade para o diretor movimentar os bichos com mais vivacidade conferindo camadas que muitas vezes eram impossibilitadas pelas fantasias e praticáveis de outrora, embora certamente falta algum peso ou presença de cena dessas criaturas.
Também, se viu ao filme, é certeza que notou os fã services obrigatórios, porém, o mais agradável deles talvez se encontre dentro da ótima trilha musical de Jed Kurzel que incorpora diversas vezes o espírito romântico misterioso da trilha original de Jerry Goldsmith.
Porém, é de certo imperdoável como tantas coisas de Prometheus ficam ao deus dará como se o próprio Scott tivesse desistido do potencial deixado pela obra. Hoje, creio que seja razoavelmente fácil gostar de Covenant. É quase um blockbuster completo que pecou em erros comuns, mas, principalmente, por não ousar mais do que devia ao recusar tanta coisa de seu antecessor.
Clique aqui apra ler nosso texto SEM SPOILERS
Alien: Covenant (Idem, EUA – 2017)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: John Logan e Dante Harper, argumento de Michael Green e Jack Paglen
Elenco: Katherine Waterston, Michael Fassbender, Danny McBride, Carmen Ejogo, Billy Crudup, Demián Bichir, Callie Hernandez, Tess Haubrich, Amy Seimetz, Nathaniel Dean, James Franco, Noomi Rapace
Gênero: Ficção Científica, Suspense
Duração: 122 min
https://www.youtube.com/watch?v=5incfB5jHWU
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Review | Aliens: Colonial Marines
(SPOILERS ADIANTE!)
Aliens: Colonial Marines foi desenvolvido pela Gearbox Studios e publicado pela SEGA em 2013, após o que pareceu ser uma verdadeira odisséia (os estágios iniciais de produção foram anunciados em meados de 2007).
Haveria de se pensar que, com tanto tempo para trabalhar no jogo, a Gearbox entregaria algo digno do panteão dos épicos, como os aclamados títulos de sua série Borderlands. No entanto, para frustração de muitos e desespero de alguns, o resultado nada se parece com a incrível demonstração apresentada na E3 de 2012. O produto final era apenas uma casca do que se viu na feira, senão pior.
Antes de falar de ACM é necessário tomarmos nota de algo: embora seja um fracasso comercial, a qualidade dele foi amplamente afetada por um âmbito de desenvolvimento conturbado, trocando de mãos diversas vezes. Embora as histórias estejam majoritariamente sustendas em rumores, o impacto no jogo é muito perceptível.
Fracasso ou não, ACM é considerado parte oficial da franquia de Ridley Scott e se passa 17 semanas após os acontecimentos de Aliens, O Resgate. A premissa é básica (e deveras clichê): a nave militar USS Sephora é despachada para investigar o pedido de socorro da USS Sulaco, que está orbitando o planeta LV – 426, local dos eventos ocorridos em Aliens.
BONECOS DE CERA
O protagonista é o cabo Christopher Winter, parte da força tarefa de procura e resgate designada para investigar a Sulaco. Após uma breve cutscene repleta de testosterona e um resumo da missão, o jogador é subitamente arremessado no jogo. Não há qualquer aproximação gradual à aprendizagem das mecânicas – não que elas sejam muitas – e já se pode sair atirando granadas nas paredes (no meu caso, no próprio pé, achando que “F” era o atalho para a lanterna).
É importante destacar que não há qualquer tentativa de explorar a personagem de Winter; ele é simplesmente designado para ser o avator do jogador e é isso aí. Nada de pano de fundo, melhores amigos ou família, nem mesmo um gato. Passa-se o jogo inteiro na pele de um fuzileiro qualquer.
De imediato nota-se o estado sofrível da qualidade gráfica: mesmo após patches de correção visual de 5 GBs, os modelos e animações são mecânicos e não transpiram qualquer tipo de emoção; um grande contraste com a excelente qualidade de dublagem dos personagens, talvez uma das poucas virtudes do game.
Apesar disso, o diálogo é tosco, entediante e repleto de chavões militares utilizados em vão na tentativa de criar algum tipo de atmosfera ou humor que sustente o vazio da narrativa. O bordão do jogo, repetido à exaustão é “nunca deixamos fuzileiros para trás”.
OS ALIENS ATACAM (OU TENTAM)
Talvez devêssemos, de fato, deixar os fuzileiros para trás. As poucas funções delegadas às CPUS que acompanham o jogador são frequentemente mal executadas (SE forem executadas). Os “companheiros” de equipe tem o péssimo hábito de, por vezes, ignorar as hordas de xenomorfos que disparam em nossa direção e ficam parados contemplando o teto enquanto o jogador vira picadinho.
Outrora pensaríamos que isso é apenas uma tentativa frívola e indiscreta de aumentar a dificuldade artificialmente, mas, não, não é. A deplorável IA do jogo é de longe a pior característica.
Conhecidos nos filmes por empregarem táticas furtivas e de ataques em grupo com grau razoavelmente elevado de estratégia, os xenos em ACM preferem correr em linha reta até o jogador numa tentativa suicida de acertar pelo menos um ataque, falhando miseravelmente devido ao suprimento aparentemente infinito de cartuchos do imenso arsenal carregado por Winter e seus colegas. Também é muito comum os aliens prenderem-se em algum pedaço do terreno ou simplesmente ficarem parados no meio da fase enquanto levam chumbo.
Essa situação se agrava pois a IA inimiga prioriza atacar o jogador ao invés dos bots a não ser que ele esteja bem longe. Se quem está jogando se mantiver suficientemente afastado, poderá matar todos os aliens em segurança enquanto seus aliados servem de escudo de carne.
Ainda por cima, as CPUs são invulneráveis. Se forem “derrotados”, ficarão deitados no chão até que a área seja completamente expurgada de inimigos, mas continuam sendo alvos válidos para a IA dos aliens. Isso gera um exploit grave, no qual o jogador pode matar oponentes em espaços abertos à vontade enquanto o pelotão ferido barra todos os ataques.
A IA dos soldados da Weyland Yutani não é muito melhor e faz com que eles procurem cobertura na frente do jogador, literalmente dando as costas para nós numa tragicômica tentativa de se protegerem.
DETECTAMOS UM MONTE DE NADA
Uma das mecânicas centrais envolve a utilização do icônico motion tracker. O jogador pode erguer seu rastreador com a tecla “Q” a fim de detectar inimigos, aliados, objetivos, etc. Embora funcional e interessante, o dispositivo é praticamente inútil, outra adição supérflua que se enquadra no quesito “fan service”.
O simples fato de que não se pode atirar e rastrear ao mesmo tempo reduz drasticamente a utilidade do aparelho, pois o ritmo veloz do jogo raramente permite uma análise propícia dos arredores. Ainda assim não é necessário saber a posição dos inimigos, pois eles invariavelmente fazem ataques frontais. Enfim.
O jogo possui dois tipos de coletáveis que podem ser encontrados nas fases: plaquetas de identificação e registros de áudio. Caçar extras pelos cenários é uma tradição bem conhecida e antiga no mundo dos games, como em Megaman X, Bioshock, Duke Nukem, entre outros.
ACM falha até mesmo nesse aspecto. A grande razão de procurarmos segredos em jogos é, em geral, a satisfação de encontrá-los, achando caminhos alternativos, alavancas e outros meios para então sermos recompensados com partes ocultas da história, easter eggs, itens, habilidades, etc.
Talvez uma das escolhas de design mais contraditórias do jogo, porém menos influentes no gameplay, é que os extras podem ser rastreados pelo sensor de movimento, fazendo com que as já limitadas razões para exploração dos níveis ficassem ainda menos relevantes.
SIGA EM FRENTE, OLHE PARA FRENTE
Falando-se em níveis, o level design é muito mal aproveitado. As fases não contém quase nada, exceto alguns extras, pick ups de vida, armadura e, dependendo da fase, “armas lendárias”, as quais são versões melhoradas (leia-se: redundantes) de algumas das armas do jogo e que pertenciam ao elenco de fuzileiros do segundo filme.
Embora a composição visual dos estágios seja bem trabalhada, o tamanho exagerado deles, aliado à linearidade atordoante acabam por lembrar os cenários de Final Fantasy XIII, enormes corredores isentos de ambientes complementares para os jogadores explorarem.
Conforme o jogador derrota inimigos, ele ganha pontos de experiência e eventualmente sobe de patente, ganhando uma incrementação de arsenal por nível, a qual serve como moeda para comprar melhorias para armas. Ao atingir certas patentes ele destrava ainda mais armamentos e melhorias para eles.
A maioria desses upgrades é redundante ou inútil; silenciadores nunca verão a luz do dia já que não há segmentos de ação furtiva real por causa da acuidade de detecção dos inimigos; outros, como lança granadas, escopetas acopladas e miras laser são bons, mas encontrados em praticamente todo o arsenal, descaracterizando a maior parte dele e conferindo um aspecto de shooter genérico ao jogo (o que ele é).
Por mais estranho que soe, os armamentos futurísticos de ACM são extremamente imprecisos. O rifle de assaulto, por exemplo, quase nunca acerta o alvo, mesmo com disparos em rajada, por conta das doses homeopáticas de recuo que possui. Além disso, a mira tem um balanço terrível, que não ameniza nem quando Winter está agaichado, resultando em uma tremenda dor de cabeça para alvejar os oponentes, estejam eles próximos ou distantes.
Essa é apenas uma das muitas contradições que o game apresenta. A maior delas está calcada no fato de que ACM é um jogo de Aliens que raríssimamente nos faz sentir vulneráveis. E esse é o ponto em que a experiência degrada de verdade. Com tantos armamentos, dispositivos, companheiros imortais e péssima IA, é fácil percorrer o jogo sem sequer sentir-se ameaçado. A sensação persistente de que algo está nos espreitando e de perigo iminente é a marca registrada dos xenomorfos da franquia Alien, mas isso sequer ocorre em Colonial Marines. Deve-se apenas seguir em frente, atropelando qualquer coisa que se mova.
NOSTALGIA
Para ser justo, o jogo tem seus momentos de glória, por mais breves que sejam. E quase todos são puro fan service! Além da caracterização extremamente fiel ao filme, no que diz respeito aos equipamentos, cenários, etc, é possível encontrar vestígios dos acontecimentos. No hangar da Sulaco, por exemplo, jogadores encontrarão a metade inferior de Bishop.
Na fase No Hope in Hadleys o jogador pode revisitar a colônia que serviu de bastião para os fuzileiros desafortunados de Aliens, completamente recriada, com o infame corredor barricado e com duas torres automáticas, o centro de operações e os laboratórios. Apesar dos gráficos serem muito inferiores ao que se esperaria de um triple A de 2013, a fidelidade estética impressiona.
A quinta missão, The Raven, é possivelmente a que mais se aproxima de uma atmosfera de terror e, ao meu ver, a melhor. Nela, Winter está completamente desarmado e deve esgueirar-se pelos esgotos de Hadleys Hope evitando os boilers, xenos cegos que se movem esporadicamente e correm até fontes de som para então explodir-se. É um estágio que tem um bom acúmulo de tensão e ótima composição de nível, utilizando corredores sombrios com luzes intermitentes e “cascas” de boilers já expirados que são aterrorizantes. É possível, inclusive, encontrar a boneca de Newt!
No entanto, nem todo o fan service do mundo pode remediar o que talvez seja um dos maiores tropeços na história dos jogos em termos de ritmo de gameplay. E isso se deve a uma boss fight que beira a imbecilidade.
MAMÃE
Após muitos tiroteios e enrolação, o jogador deve enfrentar a Alien Queen, o zênite da hierarquia alienígena. Haveria de se esperar que a batalha contra a rainha fosse utilizar todas as mecânicas já implementadas, o vasto arsenal e esquadrão de fuzileiros. Eu honestamente tinha esperanças de que um último, épico duelo contra o espécime mais poderoso pudesse dar um pouco de brilho a um jogo tão opaco. Porém.
O confronto final é entregue no formato de puzzle. A esperada batalha contra a rainha não aproveita absolutamente nada do pouco que foi apresentado no jogo. Não há uso de power loaders, combate em grupo, exploração de pontos fracos, motion tracker, nada.
Winter deve simplesmente correr sozinho pelo hangar de uma nave FTL (faster than light) enquanto ativa alavancas que gradualmente armam uma plataforma. A rainha fica confinada a uma área no centro na qual estão as ditas alavancas, mas os espaços ao redor da arena são inalcançáveis para a criatura. Não é necessário nem mesmo levar um golpe do monstro para terminar a luta.
Ao atrair a rainha alienígena para cima da plataforma armada, basta apertar um botão para ejetá-la para fora do local, como se ela nunca estivesse ali. E é isso. Após “vencer”, há uma curta cinemática na qual ocorre um dos suprassumos dos clichês: a rainha, na realidade, não caiu. Ela consegue se agarrar ao chão da FTL e volta para o hangar. O comandante Cruz, em um último esforço heróico (e mais clichê ainda) utiliza a pequena nave na qual está preso para se jogar junto com a rainha de volta ao planeta, matando ambos na queda.
A “batalha” contra a rainha não faz o menor sentido, como grande parte do jogo, é uma quebra de ritmo injustificável e a definição de anticlimático. Sem contar que inutiliza todo o trabalho de ganhar patentes e melhorar o arsenal, já que a criatura não pode ser ferida por meios convencionais.
NÃO, OBRIGADO
O que mais impressiona no jogo não é a quantidade anômala de escolhas duvidosas de design ou a péssima implementação delas: é o que falta. ACM é um antro de bugs com execução pífia e imaginação paupérrima, mas a ultra simplicidade mecânica é o que torna-o monótono e desinteressante. Os modelos e animações de personagem apenas retificam essa percepção e afastam ainda mais a atenção do jogador de uma trama já notoriamente rasa.
No início, Aliens: Colonial Marines até consegue ser fresco e divertido. Só que as raras vezes em que acerta em suas escolhas - como o fan service e dublagem impecáveis – rapidamente são ofuscadas pela avalanche de problemas e inconsistências apresentadas e um gameplay extremamente enfadonho e repetitivo. ACM teve potencial para ser o melhor jogo da franquia, e o fator primário para sua destruição pelos críticos e fãs foi justamente a disparidade de qualidade entre promessas e o produto entregue.
Aos fãs da saga Alien: se seu objetivo é uma experiência imersiva, de altíssima fidelidade aos filmes e narrativa envolvente, não percam tempo e adquiram Alien: Isolation.
Aliens: Colonial Marines (Idem, EUA - 2013)
Desenvolvedora: Gearbox Studios, Time Gate Studios, Demiurge Studios, CheckSix Games e Nerve Software
Publisher: SEGA
Gênero: FPP – Fracasso em Primeira Pessoa
Data de lançamento: 11 de fevereiro de 2013
Plataformas: Microsoft Windows, Ps3 e Xbox 360.
Texto escrito por Bruno Ribeiro de Mello