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Crítica | Alien: Covenant (Com Spoilers)

Com Spoilers

Existem fãs que aguardam com muito entusiasmo por diversas novas incursões de suas obras favoritas. Seja nos quadrinhos, televisão ou cinema, sempre tem um que puxa o trem do hype com mais força que os outros. No caso, eu só pude experimentar essa expectativa com a franquia Alien agora. 

Não foi com menos entusiasmo que tinha me empolgado pelo retorno de Alien com Prometheus. Porém, para ser bem honesto, meu hype para Alien: Covenant estava mais que nas alturas. A antecipação em ver o filme era tão grande que passava a ter diversos sonhos envolvendo essas malditas criaturas – acredite, não era algo agradável.

Mas tão logo assisti ao filme que meus demônios se acalmaram. As chances de eu dar com a porta na cara e encontrar uma perfeita porcaria eram altas, afinal minhas expectativas estavam fora do normal. Mas, em uma incrível ironia do destino, acabei amando essa nova adição à franquia enquanto outros que nada esperavam, saíram detestando.

Novamente, na mesmíssima época do ano, me encontro defendendo outro blockbuster considerado torto por muita gente – em 2016 foi a vez de Batman vs Superman.

Em Covenant, acompanhamos um grupo de astronautas responsáveis em criar a primeira colônia não-terrestre no espaço profundo. Carregando mais de duas mil almas em sua carga, a nave intercepta um sinal misterioso que a tira de seu trajeto original para Origae VI.

Reparando que o sinal vem de um planeta com perspectivas melhores para a terraformação e instalação da nova sociedade, o capitão decide que toda a tripulação investigue a origem do sinal para confirmar se esse desconhecido planeta é realmente mais convidativo.

Chegando lá, o lugar que poderia ser o novo paraíso para a arca espacial rapidamente se torna no inferno vivo após a equipe encontrar formas de vida nunca antes imaginadas nem em seus piores pesadelos.  

Servir no paraíso

Alien Covenant é sequência direta de Prometheus. Logo, é mais do que necessário ter assistido o longa anterior antes deste, já que os roteiristas não retomam em nada o desenvolvimento do personagem melhor escrito desta nova trilogia: o David de Michael Fassbender. A importância do androide para a narrativa é tanta que a primeira cena da obra já apresenta a origem dele.

Com uma troca de diálogos excelente, vemos David em seus primeiros instantes de vida ser confrontado com diversas perguntas provocantes de seu criador, Peter Weyland – Guy Pearce finalmente entrega uma ótima atuação cheia de detalhes minuciosos importantes. A cena é visualmente muito impactante trazendo o melhor possível da direção de Ridley Scott que busca trabalhar contrastes nítidos.

É impossível não reparar no trabalho de contrastes e simbologias apresentados aqui. A começar pelo figurino que divide Weyland do cenário, mas torna David parte do lugar, como se fosse um mero instrumento ou mobília. O magnata gênio veste cores escuras esverdeadas indicando certa maturidade e corrupção moral enquanto David, recém-ativado, esbanja um traje branco simbolizando ingenuidade e inocência. Ambas as figuras entram em contraste direto com a força da natureza representada pela vista panorâmica. Há ali o perpétuo natural, o homem mortal e o perpétuo artificial criado para a perfeição, mas de função fútil.

Outra boa escolha que explode em níveis estratosféricos a simbologia do androide ocorre apenas em duas frases colocadas no simples diálogo: Qual o seu nome? O robô olha para a estátua renascentista de Michelangelo e responde, David. Nisso, já é necessário leve conhecimento do espectador.

Primeiro, o Renascimento por si só é um movimento intelectual humanista. Logo, temos uma completa subversão deste humanismo ao androide escolher o nome de uma das principais obras renascentistas, pois David descobre em poucos minutos que é mais que um humano, é superior a isso.

Depois, há de se levar em conta a carga bíblica do nome imortalizado tanto pela Bíblia quanto por Michelangelo. A graça de sua estátua é capturar o herói bíblico momentos antes de sua batalha contra Golias. Novamente a obra pede para que liguemos um ponto ao outro. Entre Prometheus para este filme, nitidamente há mudanças em David. Ele não tem mais grilhões o segurando. Agora pode sim enfrentar o Golias, vencer de um modo inteligente seu maior algoz, a humanidade que o concebeu para a mais frívola das funções.

A cena não para por aí. Rapidamente David confronta Weyland inferindo que ele é imortal enquanto seu mestre perecerá e apenas seu legado permanecerá com o risco de findar a qualquer momento. É aqui que temos o melhor que Pearce oferece o personagem, já enrubescendo e perdendo todo o encanto por sua criação. Ao contrário das claras aspirações à grandeza do robô, Weyland já o obriga a realizar tarefas banais como lhe servir o chá. Ser um servo.

Esse podar completo de suas pretensões ainda embrionárias entram diretamente em confronto com a primeira música que David escolhe tocar no piano: A Entrada dos Deuses em Valhalla de Wagner. O nome da sinfonia praticamente explica seu significado, mas há um bom jogo de ironias quando Peter provoca o robô ao dizer “um pouco fraca sem todo o acompanhamento de uma orquestra, não? ” – Importante lembrar dessa frase, pois se trata de um embasamento para as motivações do personagem.

As provocações os colocam em contrapontos claros e definem a parte do Ser do personagem. Algo que já em Prometheus estava mais que superado pelo personagem. Ele já compreendia o que era e repulsava a total ideia de ser um homem. Felizmente, seu desenvolvimento continua até a conclusão da obra, mas é importante distinguir esse prólogo de todo o resto. Ele é a pérola de Covenant e mostra um Fassbender bastante diferente, cru, do que veremos posteriormente com o próprio David e sua versão atualizada, Walter.

Reinar no Inferno

Após a abertura excelente, John Logan e Dante Harper finalmente dão início a narrativa envolvendo os tripulantes da Covenant. Esse primeiro ato lembra bastante os arcos das hqs do xenomorfo em Fire and Stone. Também as comparações com Alien já ficam escancaradas. Após toda a tripulação acordar por conta de um mal funcionamento, compreendemos que há muita camaradagem entre eles.

Entretanto, uma das escolhas mais dúbias dos roteiristas já acontecem nesse despertar: a morte do personagem de James Franco, que nem tem a chance de ter um mísero diálogo com Danny McBride, que interpreta o ótimo Tennessee – baita desperdício de elenco. Passada essa perda, pouco a pouco, compreendemos que quase toda a tripulação é formada por casais – esse é um ponto importante que retomarei mais à frente.

Essa primeira passagem na Covenant é por vezes ociosa, já que não há um bom trabalho para conferir complexidade ou personalidade para a tripulação. A maioria deles é descartável servindo apenas como sacos de carne para as futuras pancadarias e tiroteios. Muita coisa se sustenta por conta do talento dos atores.

Nesse rol de 15 personagens, apenas 3 podem ser consideravelmente desenvolvidos. Oram (Billy Crudup) é quem os roteiristas mais concentram seus esforços. Após o personagem de Franco morrer, Oram passa a ser o responsável pela missão apesar de não ter preparo algum para isso. Há atritos entre ele e sua tripulação, além das escolhas que ele opta praticamente nos forçam a torcer contra o personagem, apesar de compreendermos sua tragédia.

O problema é que, bem estabelecido esse conflito digno, Logan e Harper não procuram desenvolvê-lo adequadamente. Há incongruências nítidas como quando Oram descobre as reais intenções de David desconfiando inteiramente de suas ações. Momentos depois, o personagem confia no robô maquiavélico e enfia a cara perto de um ovomorfo. São as burrices textuais que marcaram Prometheus dando as caras em sua sequência. Felizmente, enquanto Oram é um fracasso como personagem, ele serve de trampolim para desenvolver outros mais interessantes como David e até mesmo Daniels, a proto-heroína do filme.

Daniels, apesar de má escrita e má dirigida, segura mais nosso interesse pela razoável performance de Katherine Waterston. Ela é a primeira das muitas viúvas e viúvos da nave e, por consequência, compramos um pouco mais a sua dor. Recursos um pouco similares a de Shaw são apresentados aqui, como um totem de apego a uma pessoa querida que depois serve como arma para se defender da opressão de terceiros. Ela também serve de contraponto explícito para Oram se opondo à ideia de mudar o curso original para visitar o planeta desconhecido.

Infelizmente, Daniels também possui incongruências a olhos vistos. A maior opositora à visita, se encanta com o novo planeta em pouquíssimo tempo. Mesmo depois dos horrores acontecerem, a personagem fica serena. Quando enfim o clímax se aproxima, Waterston mantém a expressão chorosa. Até mesmo no fim do filme, já novamente na Covenant, a atriz transita entre o choro e o espírito bad-ass que pouco casa com ela – mais se assemelha a Lambert do que com Ripley que Scott tanto quer forçar a ponto de vesti-la com a clássica regatinha sem sutiã de Aliens, o Resgate.

As boas coisas de Daniels são poucas: sua relação pseudo amorosa com o sintético Walter e o que seria uma pseudo concretização dessa tensão sexual com a construção de uma cabana no lago. Fora isso, nada.

O único que consegue manter sua consistência mesmo tendo pouca coisa para trabalhar é McBride, divertido e certeiro. Outros personagens são mais definidos por características clichês como a de Amy Seimetz com Faris, esposa de Tennessee. A pilota é toda casca-grossa e justamente por essa sua segurança é que torna a sequência do backburster algo verdadeiramente único.

Quando Scott quer dirigir bem, ele consegue e essa cena é o clássico exemplo disso. Apostar nos contrastes da atuação de Seimetz é inteligente. A atriz outrora tão protetora fica totalmente vulnerável e aterrorizada. O pânico é tão genuíno que potencializa todo o horror gráfico que vemos em tela e até justifica algumas burradas que a personagem faz na vã tentativa de matar o neomorfo. De resto, para nos simpatizarmos mais com os personagens, é preciso assistir ao curta The Last Supper que mostra um pouco mais dessa união do grupo que não é muito aparente no filme.

É chato notar que até mesmo Alien³ conseguia fisgar mais nosso interesse pelos personagens do que aqui.

Problemas no Paraíso

Em termos de narrativa em si, Covenant sofre bastante pelo exercício da lógica. Primeiro, para movimentar e incentivar o grupo ir ao planeta desconhecido, é preciso dois deus ex machina repletos de conveniências. Depois, pela primeira vez em um filme Alien, temos os personagens expostos abertamente a atmosfera alienígena que, convenientemente, infecta dois tripulantes através dos esporos oriundos do mutagênico da gosma preta.

Logo, há a origem dos neomorfos que movimentam a trama até David surgir e salvar o grupo (aliás, é uma ótima cena). As coisas seguem com algumas reviravoltas consideravelmente previsíveis e outras decisões estúpidas até que um personagem é infectado por um facehugger, mas consegue se libertar da criatura. Todos fogem do xenomorfo que saiu de Oram, acontece a set piece e retornamos para a Covenant. Lá, o outro xenomorfo sai de Lope (única boa surpresa da obra) gerando outro pequeno clímax até finalizarmos com outra reviravolta previsível.

Basicamente, todas as reviravoltas de causa e efeito acontecem por conta de muitos roteirismos para criar essas conveniências a fim de movimentar a trama rapidamente – o filme voa depois do nascimento dos neomorfos.

Também é incomodo o quanto Harper, Logan e Scott não tem muito interesse em explorar melhor esse novo planeta e a sociedade claramente distinta de Engenheiros dizimados por David. Uma cena importantíssima ficou restrita apenas ao marketing do filme intitulada como The Crossing. Sem ela, toda a conclusão do arco de Shaw termina de modo preguiçoso e limitado.

Basicamente, Covenant expande consideravelmente a mitologia da franquia exibindo a origem do xenomorfo e quem os criou, porém, todas as coisas interessantes nunca resolvidas em Prometheus não tem lugar aqui. Até mesmo essa expansão ocorre rapidamente, apenas expondo e nunca as desenvolvendo por completo – se o espectador pensar, é possível preencher algumas lacunas. O terceiro ato acaba corrido por conta de tanta ação, além de ainda sentir o excesso de personagens. Ironicamente, Covenant comete os mesmos erros do filme anterior – começo lento, meio e final apressadíssimos que se atropelam.

Os Deuses entram em Valhalla

Apesar de todos esses significativos problemas, Alien Covenant se salva graças a dupla David e Walter interpretados por Michael Fassbender (sublime). Os roteiristas realmente se lixam para todo o resto e concentram seu poder de fogo nos diálogos entre os robôs e as cenas solo de David. Aqui, os humanos e até mesmo os aliens ficam em segundo plano. A filosofia que agora tange a Criação é o foco. E realmente se trata de um acerto.

O que busco comparar nesse sentido é como os filmes da trilogia Ripley sempre esbanjaram personagens descartáveis para desenvolvê-la. Aqui, na trilogia David, ocorre a mesma coisa. A única diferença é que os coadjuvantes nos filmes originais traziam algum carisma e autenticidade.

O contraste entre as psiques dos dois engaja nossa curiosidade e Fassbender consegue conferir minucias na interpretação de modo que conseguimos distinguir ambos com muita facilidade. Walter lembra muito o David que tínhamos visto no prólogo, ainda inocente pela sua programação seguindo à risca seus protocolos para servir e proteger os humanos. David o trata como irmão, já tentando corromper as diretrizes do androide ao buscar construir sua “sinfonia de Wagner” para destruir o que ele mais odeia: humanos.

Em seu núcleo, não há ponto sem nó. David permanece eloquente, citando mil referências filosóficas que só oferecem camadas de complexidade diante tal intelecto desenvolvido. Tão logo começam os diálogos entre eles, vemos David tentando fazer seu semelhante criar alguma coisa. No caso, uma melodia na flauta doce. Aqui, é importante resgatar o quão narcisista era o personagem em Prometheus.

Neste filme, o que era apenas fantasiado, torna-se realidade. A cena da flauta é bastante erótica – não é por menos que o instrumento de escolha tenha forma fálica. Fassbender é tão bom que consegue criar tensão sexual entre os dois personagens que são ele mesmo. É algo surreal. E a fotografia barroca suave de Wolzki à luz de velas com a direção muito mais tranquila de Scott favorecem o clima romântico repleto de inocência e malícia.

Esse arco do Narciso finalmente se fecha aqui. A todo momento David tenta seduzir Walter, seja para ganhar um aliado, seja para se apaixonar ainda mais por si mesmo. Logo, fica claro que existem impulsos sexuais que tornam o sintético, no fim das contas, humano. É por isso que a escolha da tripulação ser constituída de casais é tão interessante. David é um ermitão que, de certa forma, busca seu par. Seja no seu replicante ou através de sua criação. Também vemos esse caminhar para a humanidade no principal confronto de Walter a David quando indaga quem escreveu Ozymandias. 

Surpreendentemente, David erra (lembrem-se, errar é humano) e afirma que foi Byron o autor do soneto. Logo, Walter o corrige afirmando a autoria de Shelley e avisa a seu irmão que quando uma nota está fora de tom, toda a sinfonia é sacrificada. Acredito piamente que isso se trate de um foreshadowing para o desfecho do destino de David no próximo filme. Vejo que o robô megalomaníaco reconhecerá, por fim, que sua obra-prima trata-se de um erro demoníaco, de ordem perversa que subverte os preceitos da natureza, de uma conquista alcançada apenas para saciar seu ego humano. Anotem: David perecerá pelas mãos de sua criação.

Esse contraste humano/sintético é elaborado também pela atuação de Fassbender. Walter é levemente mais travado e robótico como deveria ser, porém David esbanja certa malemolência em seu andar e olhares repletos de preconceitos.

Entretanto, seu narcisismo egocêntrico exposto nessas cenas é apenas uma parte interessante dessa persona. O miolo do desenvolvimento trata-se da extinção dos deuses, de sua substituição pelo inferior e da criação diabólica deste. Para engatar um flashback, David contempla os cadáveres fossilizados dos engeheiros extintos a la Vesúvio e cita o famoso soneto de Shelley: Meu nome é Ozymandias, Rei dos reis: contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!

Aproveitando a força da citação, Scott sabiamente encaixa a sequência que mostra David exterminando aquela sociedade com as bombas dos mutagênicos. O robô é um genocida completo, mas a mesma mão que mata, também cria (assim como um deus haveria de ser). E suas crias, em primeiro momento, são os neomorfos. Isso é bem definido pelo roteiro e, graças a encenação, subentende-se que o complexo de Dr. Frankenstein de David nunca fora satisfeito com as obras defeituosas criadas até então.

Justamente por isso a cena da tentativa do imprinting do androide com o novo neomorfo nascido de humanos é poderosa. A horrenda criatura quase domesticada por David é morta por Oram que, pela primeira vez, assume um posto protetor para seus companheiros. Logo, já vira a vítima perfeita para o robô criar sua obra-prima – repare que essa ideia de obra-prima é abordada por David em diálogos com Walter sendo que no principal deles, David afirma que o criador pode morrer em paz depois de alcançar tal conquista. O roteiro, infelizmente, não dá muitos detalhes sobre como David criou os ovomorfos se limitando apenas a dizer que tudo foi conquistado através dos anos por experimentações do mutagênico com tecidos orgânicos – conveniente, mais uma vez.

Apesar de tirar todo o mistério exótico sobre a origem da nefasta criatura, Covenant oferece um olhar inédito em todo o cinema de ficção científica: um robô criar vida motivado não apenas por vingança, mas para se tornar um deus. Quando isso é levado em conta, percebe-se que Scott, mesmo não possuindo a mesma graça na realização que teve em 1979, consegue sempre adicionar elementos novos para o gênero tornando muito válida essa nova trilogia.

Também gosto da ironia de David somente se tornar um deus “completo” se um humano estiver envolvido no processo da concepção do xenomorfo. Outro elemento cínico adequado é o fato de Oram ser o primeiro hospedeiro da franquia. Afinal, ele como capitão sempre deveria tomar as decisões para garantir a segurança de seu grupo, mas acaba dando origem a criatura que caça incessantemente os tripulantes na tentativa de não os deixar fugir do planeta.

Infelizmente, o arco do David basicamente se encerra por aqui. O personagem é plenamente desenvolvido e consegue, por fim, corromper Walter que não recebe um fim adequado – apostam no mistério para engajar o espectador, afinal ele morreu ou não? Infelizmente, sua última reviravolta é muitíssima previsível, mas, por outro lado, fico contente em saber que todo este arco de David ainda não terminou – só vejo ele morrendo nas garras dos xenomorfos.

Complexo de Criador

Para o bem ou para o mal (depende do fã) os filmes Alien como conhecíamos estão oficialmente mortos. Bom, isso até Scott deixar a franquia de lado e se interessar por outra coisa. Covenant só confirma o que suspeitávamos em Prometheus: Scott quer contar a história de um sintético com complexo de deus. Algo bastante válido e interessante no universo de Alien, diga-se.

Assim como a natureza desta narrativa mudou, a técnica de Scott acabou evoluindo para novos padrões estéticos da atualidade. Um dos poucos diretores a adotar sempre o esquema de três câmeras para gravar o filme mais rápido, vemos que há falta de certo refinamento na fluidez do corte ou da construção da cena.

Uma das poucas que conseguem nos impactar de tal forma é a do prólogo tão bem dirigida com cortes orgânicos, movimentos de câmera graciosos que refletem picos mínimos de tensão pela boa decupagem. 

Ao chegar no planeta dos engenheiros, as coisas mudam levemente de rumo com ótimas sequências como a do backburster e do ataque dos neomorfos nos campos de trigo. Entretanto, outras que deveriam ser épicas, como a setpiece do clímax ou o extermínio de David usam a decupagem mais banal possível: a descritiva apenas.

Tudo se torna objetivo demais para mostrar uma ação bem gravada sim, mas que não possui um pingo de originalidade – céus, basta nos lembrarmos do Big Chap matando um a um na Nostromo que já causa certo arrepio.

Algo positivo nessa nova direção do britânico é seu senso de humor deturpado. Covenant é um filme bastante cínico e acaba te conquistando pelas ironias cruéis que ele oferece. Vejamos, novamente na cena do backburster, vemos uma personagem tentar abraçar o homem que convulsiona antes de morrer. Porém, seu breve ato de compaixão logo provoca um ferimento ao ter sua mão perfurada pelos espinhos da dorsal do neomorfo que atravessa a pele da vítima. Destaco isso pois é uma característica impressionante de Scott inferir que essas personagens estão condenadas, não há redenção, não há remissão através da compaixão. Diante da natureza perversa que será mostrada logo depois, somente a lei do mais forte é a que prevalece. Nessa cena, de certo modo, Scott obriga as personagens a tomarem atitudes animalescas geradas pelo pânico da sobrevivência. Por isso é irônico. Gera humor, mas se trata de algo tão desolador e cruel quanto. 

Depois, durante o grande desespero que consegue até contagiar o espectador, as personagens tropeçam no sangue do morto na tentativa de matar a criatura recém-nascida. Outro bom momento, é encenar o xenomorfo recém-nascido fazer a pose de alguém crucificado (imitando o gesto provocador de David) em cima do único personagem claramente religioso (Oram) – em termos gerais, a cena dessa concepção deixa muito a desejar, apesar do esquemas de iluminação interessantes de Dariusz Wolski. Antes disso, vemos Oram enfiar a cara no ovomorfo também gerando uma boa piada para a plateia que já conhece o fatídico fim de quem se aventura a olhar para dentro da ‘caixa de Pandora’. 

Abro aqui uma breve reflexão. Já destaquei essa dita “burrice” tão arrotada por diversos entendidos do assunto, milhões de vezes “mais” inteligentes e melhores do que a obra que se propõe a analisar. Vejo que essa “burrice”, de modo geral, é um instrumento para o diretor mostrar essa humanidade obviamente inerente a nós. Isso é justificado dentro da obra: são fatores claramente humanos que dão origem a todo horror presenciado em Covenant. Duvida? Então descreveremos.

Oram nitidamente repousa muito de sua responsabilidade em sua dita Fé e, irresponsavelmente, joga a tripulação ao novo planeta. Lá, por conta de certos vícios, seja de entorpecentes ou da curiosidade, originam a infecção pelos esporos do mutagênico gerando os neomorfos. Depois, durante a cena do backburster temos o trabalho mais interessante disso tudo: Faris, assim que abre a camiseta de Ledward, recebe um jato de sangue na cara (hipoteticamente, ficando infectada). Ela sai da enfermaria e tranca Karine.

Essa é a fina ironia de Scott: a humana que claramente pode estar infectada condena sua colega à morte na base de uma justificativa hipócrita pelo bem comum: conter a infecção. É evidente que não se trata disso, mas apenas de puro instinto de sobrevivência: deixar outra vítima atrasar a criatura e se salvar. Porém, há uma certa mudança em Faris. Seja por pânico ou, pior, compaixão, tenta salvar Karine. Novamente, outro erro de julgamento que condena o restante do grupo ao isolamento no planeta. De toda a tripulação, é somente Faris quem consegue errar duas vezes consecutivas. Esses foram apenas os exemplos mais claros possíveis para eu ilustrar o que Scott tenta comunicar no filme todo: a sucessão de erros em jornada ao caos. Como apontei no trecho sobre David, se trata de um paralelismo intenso para mostrar erros de diferentes naturezas para deixar muito crível toda a descida para a loucura que o androide ruma. E, também, para a sua humanidade, afinal errar é… humano. 

Mas, caro leitor, há ainda mais elementos interessantes por trás disso tudo. Não é por menos que Covenant é uma missão colonizatória. É a expansão da humanidade como nunca vista antes. E, para o discurso que Ridley Scott constrói aqui, onde quer que a humanidade vá, o pior que há com ela irá junto. Enquanto o monstro alienígena de David é objetivo, o monstro da humanidade subjetivo e imaterial. Aqui, são facilmente ilustrados pelos Sete Pecados Capitais. E, pasmem, há passagens que corroboram exatamente isto que escrevo agora. Novamente, irei ilustrar através de alguns personagens. 

O pecado do Orgulho geralmente é o mais presente. Oram é o perfeito exemplo disso só por decidir mudar todo o itinerário da missão para provar seu ponto. O fato de Oram ser o mais religioso do grupo torna tudo mais perverso e cruel, pois claramente ele não tem a consciência disto. A Gula já é retratada pelo próprio propósito da existência da missão: expandir o domínio humano na galáxia. A Preguiça é representada por Rosenthal quando ela opta por se isolar no templo para banhar-se e descansar – isolamento que leva à sua morte que possui peso diferente da dos outros, pois ela é decapitada pela criatura (a decapitação, historicamente, é uma das execuções mais humilhantes por tirar o que seria a personalidade do assassinado, além da cabeça servir como troféu em diversas sociedades).

A Luxúria é o último pecado representado pelo casal Ricks e Upworth que se isolam (novamente) para transar nos chuveiros e acabam morrendo após a criatura violá-los (a cauda toca a pelve de Upworth e a língua interna penetra o crânio de Ricks até sair pela boca). A Inveja e a Avareza são representadas por Weyland na criação de seu primeiro sintético, David, extravasando seu desejo de imortalidade, e pelo acúmulo absurdo de riquezas. Através dessa criação, Weyland consegue dominar materialmente esse desejo impossível. Representa uma subversão de superioridade: o mortal que comanda imortais.

É aí que entra o fator primordial para o espectador entender o quão humano David se torna ao final desta obra. David, por ser uma criação humana, acabaria, a um certo ponto, herdando o pior da humanidade. Scott exibe isso ao nos fazer pensar em contrastes. Apesar da tripulação representar todos os Pecados Capitais, nenhum deles acumula mais de dois em sua personalidade. Já David, ao longo de toda a obra, apresenta ter todos.

O Orgulho claramente é representado por sua vaidade manifestada pelo intelecto, pompa e eloquência. A Gula é mostrada por sua sede de conhecimento que transpões qualquer limite moral ou ético a ponto de profanar o cadáver de sua única amada. A Luxúria é manifestada pela tentativa de estupro a Daniels. A Avareza pode ser interpretada pelo acumulo de tanta quinquilharia “científica” em seu covil ou nos corpos petrificados no pátio dos quais ele tem orgulho por constituírem sua vista do “Paraíso”. A Inveja é reforçada em tantas passagens que ele cita obras-primas de autores humanos como Ozymandias de Shelley. E, por fim, a Ira representada em sua criação torpe motivada apenas pelo ódio profundo que ele sente pelo Homem. A Preguiça é a única que não há aqui, afinal David é uma máquina e esse pecado é um dos mais abstratos do sete (talvez o mais complexo).

Desse modo, o diretor cria sua maior ironia na mensagem da obra. Logo David, o antagonista que detesta e abomina praticamente tudo o que a humanidade representa, acaba desenvolvendo as nossas piores características, as potencializa, e, por fim, a materializa com o xenomorfo. Portanto, a partir dessa visão que Scott nos fornece aqui, o xenomorfo vira a objetificação do pior que há na humanidade. É o demônio perfeito que, até então, era invisível, mas que sempre esteve ali ao nosso lado. E ainda chamam esse filme de burro… Quisera eu ser burro desse jeito então. 

Enfim, voltando ao assunto anterior, Scott usa esse humor para conferir climas bastante estranhos à franquia. Destaco aqui que eu não condeno de forma alguma. Gosto de ver essa autoria e vontade de realizar coisas novas em cineasta que há tempos gerava filmes cada vez menos inspirados. De certa forma, chega até a recordar algumas das bizarrices de Alien – A Ressurreição. Na verdade, Scott mistura características dos quatro filmes neste daqui. Temos até mesmo os famigerados planos subjetivos do xenomorfo tão criticados em Alien³. Aliás, muito da estratégia de encurralar o bicho na nave se assemelha ao plano de Ripley para matar o alien no terceiro filme. Sua estrutura de dois clímax vem diretamente de Aliens

O clima que Scott busca mimetizar dentro da nave vem do primeiro filme. Além de termos sequências de ação explosivas a la Aliens. E talvez seja justamente nesse aspecto que Scott mais se perca, já que não se tratam de elementos elegantes. A luta entre David e Walter parece saída de Matrix que, por mais que tenha me empolgado e seja bem coreografada, reconheço não tem nada a ver com a mitologia desses filmes. 

O que ainda sempre é válido e que merece ser parabenizado é o grau de realismo que Scott que consegue imprimir em cada cenário, criatura e situação. Contar com cenários construídos fisicamente e não por CGI faz uma baita diferença para a encenação desejada. Destaco o ótimo trabalho no covil de David, cheio de ilustrações e criaturas em formol, para o grande pátio com os engenheiros fossilizados e para os corredores da Covenant.

Muito disso, obviamente, por conta do domínio estético absurdo que Scott tem em criar imagens maravilhosas e terríveis. Covenant é uma obra vivíssima e isso não pode ser menosprezado de forma alguma. O que havia dito em termos de fluidez há poucos parágrafos acabam prejudicando sim o apuro visual da obra. A montagem às vezes é tão ligeira que mal dá para captar a mensagem visual de um plano que, na maioria das vezes, possui enquadramentos fantásticos. Scott torna até mesmo cenários grotescos em verdadeiras obras de arte de pesadelos. Não há erro. É um dos filmes mais estonteantes desse ano, apesar da nítida decadência visual apresentada logo que a narrativa chega à necrópole do robô.

Também fico contente por ter uma leve confirmação de algo que especulava há tempos pela direção de Scott: as diferentes personalidades dos xenomorfos que ele já trouxe nesses filmes (3, no total). Revendo a Alien, me peguei pensando o quanto de Kane aquela criatura carregava consigo. Eles compartilham certas semelhanças assombrosas como uma curiosidade anormal – o xenomorfo quase tortura psicologicamente suas vítimas antes de matá-las. Aqui, porém, há clara distinção entre um alien e outro. O de Oram é muito mais animalesco e violento e parece sentir um ódio diferenciado por alguns tripulantes da nave – talvez trazendo um pouco da frustração do personagem que já deixava claro o quanto desgostava diversos companheiros.

O de Lope é mais inteligente e sabe que está dentro de um jogo quando é encurralado por Daniels e Tennessee. Scott também faz a criatura brincar com suas vítimas antes de matá-las assim como ocorria com o Big Chap. Aliás, a morte de Rosenthal compartilha semelhanças com a de Lambert por não ficar muito claro o que ocorre com ela depois que seu namorado é penetrado pelo bicho. Enfim, é mera especulação, mas acho que Scott consegue criar personalidades interessantes para essas criaturas – isso inclui os neomorfos.

Cinzas do Dr. Moreau

Apesar dos pesares, Alien: Covenant é um ótimo retorno à franquia que tanto amo. Fiquei bastante satisfeito com o que vi e me diverti com as bizarrices filosofais de Scott. Os pontos positivos, creio eu, conseguem superar as ditas “burradas” e conveniências de roteiro que incomodam tanta gente. Para mim, o ineditismo dessa proposta com boas cargas filosóficas já me conquista, além de David continuar sendo um dos personagens mais bem escritos do cinema contemporâneo como já ficou provado nos dois textos enormes que dediquei para essa nova trilogia. 

A tecnologia atual também é aproveitada. Temos cenas mais viscerais, bons designs de criaturas, além de dar maior liberdade para o diretor movimentar os bichos com mais vivacidade conferindo camadas que muitas vezes eram impossibilitadas pelas fantasias e praticáveis de outrora, embora certamente falta algum peso ou presença de cena dessas criaturas.

Também, se viu ao filme, é certeza que notou os fã services obrigatórios, porém, o mais agradável deles talvez se encontre dentro da ótima trilha musical de Jed Kurzel que incorpora diversas vezes o espírito romântico misterioso da trilha original de Jerry Goldsmith.

Porém, é de certo imperdoável como tantas coisas de Prometheus ficam ao deus dará como se o próprio Scott tivesse desistido do potencial deixado pela obra. Hoje, creio que seja razoavelmente fácil gostar de Covenant. É quase um blockbuster completo que pecou em erros comuns, mas, principalmente, por não ousar mais do que devia ao recusar tanta coisa de seu antecessor.

Clique aqui apra ler nosso texto SEM SPOILERS

Alien: Covenant (Idem, EUA – 2017)

Direção: Ridley Scott
Roteiro: John Logan e Dante Harper, argumento de Michael Green e Jack Paglen
Elenco: Katherine Waterston, Michael Fassbender, Danny McBride, Carmen Ejogo, Billy Crudup, Demián Bichir, Callie Hernandez, Tess Haubrich, Amy Seimetz, Nathaniel Dean, James Franco, Noomi Rapace
Gênero: Ficção Científica, Suspense
Duração: 122 min

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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