Crítica | Autópsia
Para a surpresa de todos, o gênero terror tem nos entregado alguns belos exemplares de filmes nesses últimos anos, com destaque para Invocação do Mal 1 e 2, O Homem nas Trevas, A Bruxa e, mais recentemente, A Cura. A Autópsia, terceiro longa-metragem do diretor André Øvredal, mais conhecido por O Caçador de Troll, é mais uma obra que consegue se configurar como um belo filme do gênero, ainda que esteja longe de ser perfeito, já que o realizador cai em velhos problemas comuns a esse tipo de filme.
A trama acompanha Austin (Emile Hirsch) e Tommy Tilden (Brian Cox) filho e pai, respectivamente, que trabalham como legistas em uma pequena cidade americana. Em um dia como outro qualquer, prestes a encerrarem o expediente, o xerife local, Burke (Michael McElhatton), chega no local com o corpo de uma mulher não identificada. Antes da noite terminar os dois precisam descobrir a causa da morte dessa “Jane Doe”, o que não esperavam, contudo, é que estranhos acontecimentos ocorreriam a partir daí, ao mesmo tempo que o mistério acerca desse cadáver aumenta. Não demora para que tudo se torne uma luta por sobrevivência.
Durante a primeira hora de A Autópsia, André Øvredal consegue criar um instigante clima de suspense, que imerge o espectador na narrativa, ao passo que ficamos cada vez mais curiosos para descobrir o que há de diferente nessa mulher desconhecida. O roteiro de Richard Naing e Ian B. Goldberg insere diálogos mais técnicos entre o pai e filho, de forma que não canse o espectador pelo excesso de vocabulário médico – pelo contrário, através das constatações desses legistas entendemos que há algo de errado com aquele corpo na frente dos dois e isso somente aumenta a nossa perplexidade, visto que tentamos entender o que ocorre ali.
Conforme as coisas estranhas começam a acontecer, o longa claramente tem sua narrativa alterada, mas isso não prejudica sua progressão, já que tudo dialoga com as descobertas de Austin e Tommy. Sabiamente, Øvredal não mostra demais ao espectador, deixando muito a cargo de nossa imaginação, o que, claro, funciona muito bem quando se trata desse gênero. Com uma decupagem que não nos permite criar um mapa mental daquele cenário, aos poucos nos sentimos mais claustrofóbicos, a tal ponto que queremos fugir dali tanto quanto os personagens em si. Curiosamente, isso entra em oposição à nossa vontade de descobrir mais sobre a “Jane Doe”.
Ironicamente, o grande problema da obra é justamente a necessidade que sente de explicar tudo. Veja, evidente que grande parte dos espectadores vão querer ter a resposta para tudo, mas isso nem sempre é o melhor caminho a ser seguido no terror, gênero que depende tanto de nosso imaginário para a construção do gênero. Dito isso, o caráter superexpositivo do ato final funciona como um banho de água fria depois de toda a tensão criada pela trama até aqui. Para piorar, temos ainda um epílogo completamente desnecessário e cliché. Igualmente dispensável é a presença da namorada de Austin, Emma (Ophelia Lovibond), que não desempenha qualquer papel ativo na narrativa.
Felizmente, os esforços de Brian Cox e Emile Hirsch nos distanciam desses problemas, embora não os apaguem por completo. Ambos trazem reações perfeitamente plausíveis, aliados, é claro, de um roteiro que não trata seus personagens como estúpidos, fazendo-os se portarem da maneira que, na realidade, alguém poderia se portar. Dito isso, é muito fácil se aproximar dos personagens principais, especialmente considerando que o longa não perde tempo com conflitos internos desnecessários, focando no que deve.
A Autópsia, portanto, se configura, sim, como um belo exemplar do gênero, por mais que deslize em determinados pontos ao longo da projeção, fazendo com que a narrativa fique levemente dilatada, por mais que tenha apenas oitenta e seis minutos. Com uma direção que sabe exatamente o que mostrar e um roteiro que somente erra mais consideravelmente nos trechos finais, temos aqui um filme envolvente que merece seu lugar na lista de bons filmes de terror lançados nos últimos anos.
Norman (The Autopsy of Jane Doe, 2016)
Direção: André Øvredal
Roteiro: Richard Naing
Elenco: Brian Cox, Emile Hirsch, Ophelia Lovibond, Michael McElhatton, Olwen Catherine Kelly, Jane Perry, Parker Sawyers
Gênero: Terror, Mistério, Thriller
Duração: 90 min
Crítica | Norman: Confie em Mim
Se perguntassem para você agora o nome de um filme que Richard Gere tenha feito certamente você responderá Uma Linda Mulher, clássico da década de 90. Queira ou não o nome do ator americano hoje com 67 anos estará sempre associado ao clássico romance em que fez dupla com Julia Roberts. Estreia nessa quinta (04) o longa Norman: Confie em Mim dirigido por Joseph Cedar (Beaufort) e conta com o ator sessentão no elenco.
Na trama ele faz o papel de Norman Oppenheimer um homem solitário que vive na cidade de Nova Iorque e com seu carisma vive tentando fazer amizades com todos, sempre falante e alegre diz ter algum amigo influente e sempre tenta indicar para desconhecidos pessoas conhecidas que não são na verdade seus amigos. São pessoas que ele conheceu em algum evento e pegou o contato e acha que são seus companheiros.
Ele se torna amigo de um secretário da justiça de Israel, um político em declínio e sem importância, ele compra sapatos caros para ele na tentativa de começar a ter uma amizade. Tudo para ganhar uma certa influência no meio político. Diz que trabalha no setor financeiro e que conhece pessoas influentes e assim tenta impressionar o israelense.
O filme leva uma grande parte do tempo mostrando esse estreitamento do laço de amizade com o secretário Micha Eshel (Lior Ashkenazi) e nisso vamos descobrindo mais sobre o personagem de Richard Gere. Descobrimos que ele não quer ser influente no sentido de ser rico e famoso e sim quer ter amigos, pessoas com quem possa conversar e mostrar para outras que ele tem amigos, sendo quase sempre desconhecidas, quer mostrar que ele é importante e que pode ajudar sempre quando for possível. Por isso o subtítulo "Confie Em Mim". Por sinal, sempre que tenta ajudar alguém algo dá de errado e são nessas horas que acontecem as cenas mais engraçadas.
Um salto no tempo é dado e três anos depois aparece o então secretário agora como um influente líder mundial e Norman acaba por encontrá-lo e o contato entre os dois é restabelecido outra vez. Lembre-se que Norman gosta de conversar com desconhecidos e nisso acaba por cair em uma arapuca. A uma dessas pessoas ele acaba por passar várias informações de quem ele era, quem eram seus amigos, quais contatos tem. Acontece que essa pessoa era do FBI e estava investigando um esquema de corrupção envolvendo o atual Ministro Israelense. O ditado popular "morrer pela boca" cabe bem nessa situação, Norman falou demais e acabou se dando mal por isso.
A questão é: O que deu na cabeça de Richard Gere ao participar desse longa? O filme não é ruim. É bom dentro da sua proposta, irá agradar alguns, mas outros sentirão falta de algo a mais. Esse algo a mais poderia ser Gere, mas não é. Um ator com uma história no cinema e uma reputação como a que ele tem deveria escolher melhor seus papéis. O que se percebe é que ele não faz filmes por ser bem pago ou porque vai interpretar um grande personagem. Ele trabalha porque gosta do personagem e não se importa se a produção vai bem ou não. Talvez esse seja seu erro, ele é um grande ator sim e bons filmes tem aos montes por aí, resta a ele escolher melhor o que quer interpretar.
Quanto ao filme Norman: Confie em Mim fica aquela sensação de que podia ser bem melhor do que é. Ele é engraçadinho, bem dirigido, mas ao tratar de temas como política e economia é necessário tomar cuidado para que tudo não fique chato e irracional. Exemplos como O Lobo de Wall Street e A Grande Aposta estão aí para provar que dá para fazer um longa com esse assunto sem perder o foco nem ter um ar de aborrecimento. Richard Gere precisa escolher melhor seus papéis, um ator com o carisma dele não pode trabalhar em produções de segundo escalão como O Benfeitor ou esse Norman.
Norman (Norman: The Moderate Rise and Tragic Fall of a New York Fixer, 2016)
Direção: Joseph Cedar
Roteiro: Joseph Cedar
Elenco: Richard Gere, Lior Ashkenazi, Michael Sheen, Charlotte Gainsbourg, Dan Stevens, Steve Buscemi, Hank Azaria,
Gênero: Drama,
Duração: 117 min
https://www.youtube.com/watch?v=RhWJ3WTpWH0
Crítica | Glória Feita de Sangue
É um fato curioso na história do Cinema que ao longo dos anos quase toda a atenção de roteiristas, produtores, diretores e atores esteve voltada para a Segunda Guerra Mundial em detrimento da Primeira. Talvez uns dos motivos que expliquem essa preferência sejam o maior número de mortos (50 milhões morreram na Segunda Guerra e 30 milhões na Primeira) e o poder cinematográfico que as atrocidades perpetradas pelo Nazismo possuem. Mas seja lá qual forem as razões desse preterimento, a verdade é que as duas guerras produziram um número parecido de obras-primas, e, se filmes como A Lista de Schindler, Além da Linha Vermelha e O Pianista fizeram a cabeça do público recentemente, obras mais antigas como Sem Novidades no Front, A Grande Ilusão e este Glória Feita de Sangue estão aí para provar que a Primeira Guerra é capaz de impactar tanto quanto a Segunda.
O roteiro, adaptado por Kubrick e Jim Thompson do livro homônimo de Humphrey Cobb, conta a história de um ataque suicida planejado pelos generais George Broulard (Adolphe Menjou) e Paul Mireau (George Macready) do exército francês. O responsável por colocar o plano em ação é o Coronel Dax (Kirk Douglas). Após a primeira leva de soldados fracassar, o pelotão comandado pelo Sargento Roget (Wayne Morris) decide não avançar. Vendo a recusa em seguir em frente dos comandados, o General Mireau decide abrir fogo contra o grupo, mas como tem o seu pedido recusado, ele exige a criação de um tribunal de exceção para que alguns soldados sejam julgados por insubordinação e covardia. Inconformado com a arbitrariedade da decisão, o Coronel Dax, que também é advogado, decide defender os acusados.
Uma das grandes forças do filme é o seu protagonista. Corajoso, o Coronel Dax é também um homem intelectualizado e ciente do papel que exerce. O momento em que ele cita uma frase pejorativa de Samuel Johnson sobre o patriotismo não só ilustra o nível das suas leituras como mostra que, independentemente de concordar com a opinião do filósofo inglês, ainda assim ele aceita de bom grado a missão que lhe é incumbida, o que mostra tanto o seu caráter quanto o processo de auto conscientização pelo qual passou para entender a importância de sua presença e de suas decisões dentro do conflito. Além disso, quando a situação foge do controle, ele se dispõe a defender os soldados no tribunal, mesmo que isso lhe custe a carreira, tudo em nome da ética e dos ideais que defende.
Aliás, a discussão entre idealização e praticidade é uma das principais preocupações temáticas do filme. Embora não afirme categoricamente, a conclusão que a obra chega é a de que uma situação tão complexa e, por incrível que pareça, burocrática como a guerra não tem espaço para ideais de conduta. Um momento que funciona como analogia dessa “tese” é a brilhante cena final onde as batidas marciais que permeiam todo o filme dão lugar ao doce canto da personagem interpretada por Susanne Christiane Kubrick (ela viria a se tornar a esposa do diretor), uma alemã cuja voz comove inúmeros soldados franceses, apenas para momentos depois eles terem de voltar às suas obrigações e os tambores de guerra retornarem com toda a força. Ou seja, a paz idealizada por tantas pessoas é momentânea e rapidamente obliterada pela necessidade de continuar com a luta.
Uma outra inquietação do filme é a de que no final é sempre o sujeito com menos poder que paga o preço das decisões tomadas pelos seus superiores. Esse desnível entre os cargos é muito bem ilustrado pelo design de produção: enquanto a sala do General Mireau e o recinto em que ocorre o julgamento são ambientes suntuosos e amplos (aqui, a equipe de som realiza um excelente trabalho ao fazer ecoar por todo o espaço as falas dos personagens), o “quartel” improvisado por Dax e a prisão na qual são jogados os soldados são paupérrimos e até mesmo sujos. Um momento que também exibe essa disparidade é a sequência de imagens que mostram o General Mireau pedindo para atirar contra o próprio exército da base segura em que se encontra, o oficial que recusa o pedido sentado numa cadeira apenas com os dedos no ouvido para que o barulho das explosões não o impossibilite de ouvir o que o general diz e os soldados lutando e morrendo em pleno campo de batalha.
E o que dizer do trabalho realizado por Stanley Kubrick? Se nos longos diálogos há por parte do diretor o mesmo rigor técnico apresentado em O Grande Golpe, são nas cenas do reconhecimento inicial do local ocupado pelas tropas inimigas e da única batalha presente no filme que o cineasta, ao lado de George Krause, o diretor de fotografia, são realmente brilhantes. Na primeira, a apreensão é criada com exuberância pela fotografia escura e pelos close ups retratando o medo sentido pelos personagens. Há também o auxílio do plano subjetivo que mantém distante a figura de um dos soldados que tinha caminhado até o território hostil, o que faz com que o público não enxergue completamente o que está acontecendo; na segunda, por sua vez, o travelling e o zoom in e out são essenciais para criar a sensação de pânico no espectador e jogá-lo no caos e violência da guerra. Além disso, os recursos visuais usados por Kubrick para mostrar a imensidão das trincheiras geram imitadores até hoje. Basta ver a já icônica cena da fuga do cavalo em Cavalo De Guerra, do Steven Spielberg, para perceber a perenidade do momento criado por Kubrick.
Certa vez, o recém falecido Michael Cimino disse que todo filme de guerra é por si só um filme anti guerra. De fato, tudo o que precisamos para desprezá-la por completo é ver alguns de seus efeitos nas pessoas. No entanto, se basear nisso para dizer se o conflito é útil não é condizente com uma posição adulta, muito menos com a complexidade que rodeia toda a situação. O diretor de O Franco Atirador sabia disso, assim como Kubrick, que ao realizar seu primeiro filme de guerra, o fez de uma maneira tão madura que acabou por transformar Glória Feita de Sangue numa das experiências cinematográficas mais impactantes da história.
Glória Feita de Sangue (Paths Of Glory , EUA – 1957)
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick, Calder Willingham e Jim Thompson; baseado no livro homônimo de Humphrey Cobb
Elenco: Kirk Douglas, Ralph Meeker, Adolphe Menjou, Goerge Macready, Wayne Morris, Richard Anderson
Gênero: Drama, Guerra
Duração: 88 min
Crítica | Guardiões da Galáxia Vol. 2 (Com Spoilers)
Com Spoilers
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Escrever as análises com spoilers aqui do site sempre são um grande divertimento. No melhor dos casos, como esse, até tenho a oportunidade de rever o filme, o analisando ainda melhor e julgando se minha primeira impressão fora mesmo adequada à qualidade que a obra apresenta.
Porém, é a segunda vez que me pego surpreso pela recepção pouco amistosa de diversos colegas para um filme que julgava nada menos que excepcional. Por incrível que pareça, Guardiões da Galáxia Vol. 2 virou um filme divisivo para muita gente com várias opiniões reclamando sobre a permanência do tom cômico e do escopo mais intimista da obra.
Certamente, acho uma bizarrice exigir de Guardiões muito mais do ele pretende ser. Além disso, o filme surpreende bastante ao ser mais corajoso do que grande maioria dos filmes da Marvel diga-se Guerra Civil, Doutor Estranho ou A Era de Ultron. Aqui há atos e consequências e muito, mas muito mesmo, desenvolvimento de personagens.
A Galáxia intocada
Dessa vez, Peter Quill, Gamora, Drax, Groot e Rocket agem como caçadores de recompensa, protegendo diversas raças e cantos da galáxia. Após livrarem os Soberanos da destruição completa de um ser cósmico interdimensional, Peter Quill e seus companheiros são surpreendidos por Ego que afirma ser o pai perdido do protagonista.
Com algum receio, o grupo se separa. Peter, Gamora e Drax partem com Ego e Mantis para seu planeta a fim de descobrirem o que há por trás das intenções do misterioso Ego. Groot e Rocket ficam para reparar a nave que fora danificada durante uma batalha espacial. Porém são surpreendidos pelos piratas Ravagers que foram contratados para saquear a Milano.
Como não poderia deixar de ser, o roteiro é novamente assinado pelo também diretor James Gunn que parece compreender e investir cada vez mais na pureza de seus personagens. O que pode pegar muita gente surpresa com a sequência de Guardiões da Galáxia é a simplicidade de sua narrativa. O próprio James Gunn disse que suas histórias tendem a ser bastante simplificadas e talvez Guardiões 2 seja o seu filme mais simples até então – em termos de narrativa.
Após o que descrevi na sinopse, basicamente ocorrem pouquíssimas coisas. Gunn procura o escopo menor para trabalhar elementos pertinentes envolvendo os temas família e propósito. A transformação dos Guardiões realmente acontece no qual o sentido de heroísmo é menos óbvio e mais inteligente do que no longa anterior. Isso já fica nítido logo no começo com o grupo salvando os Soberanos de um monstro.
Ainda são desconjuntados, sem liderança alguma e não agem em conjunto para deter o oponente – o exemplo mais nítido é Drax saltando para dentro das entranhas da criatura. Claro que tudo vem acompanhado de doses cavalares de comédia, mas ela está sempre em serviço da mensagem que o filme deseja passar.
Gamora e Peter não definem seu relacionamento, Drax parece mais distraído do que nunca, Baby Groot é só um bebê e Rocket continua colocando o grupo em perigos desnecessários ao roubar a bateria sagrada dos Soberanos – particularmente, julgo inteligente como Gunn utiliza esse McGuffin parcial para resolver o clímax da narrativa. Rapidamente, após a breve perseguição, o grupo é jogado em um planeta aleatório para provocar a separação entre as duas narrativas com o surgimento de Ego.
Ego, o planeta vilão
Como muita gente esperava, a alma do filme reside mesmo em Ego, o melhor vilão do MCU até agora contando com o grande carisma de Kurt Russell. O filme já abre com um flashback do personagem namorando Meredith e apresentando uma flor alienígena que plantou em um bosque – repare como Gunn torna a narrativa tão coesa ao apresentar essas características em momentos prévios do filme.
Através de exposição inteligente, entendemos essa nova versão de Ego, sobre sua índole que parece bondosa e, assim como Peter, compramos rapidamente a versão de que ele se trata de uma figura benevolente, que dirá heroica, e negamos as suspeitas que o cercam. De modo orgânico, Gunn encaixa passagens inteligentes apontando que há mais do que as aparências apontam para o personagem. Seja com a descoberta das ossadas por Gamora e Nebula ou através de Mantis. Novamente, nada genial ou revolucionário, mas eficiente para engajar um pensamento de dúvida no espectador.
Ego é o principal meio que o roteirista busca trabalhar o assunto da paternidade. Sua aproximação com Peter é bem desenvolvida seguindo os preceitos básicos de empatia: revelando os grandes poderes oriundos da Luz – uma energia cósmica própria de Ego e, principalmente, por buscar momentos “pai e filho”. Ou seja, oferece presentes e mostra que seus gostos são similares aos de Quill.
Quando digo que Ego é o melhor vilão que já tivemos nesse universo até agora não é por menos. Gunn praticamente o escreve através de muita exposição, mas encaixada de modo orgânico na obra. Duas são bastante similares, mas opostas em sentido. Elas explicam a origem de Ego como celestial e sua busca por vida no universo. Como toda criatura sapiente e sensiente, o vazio da solidão só resultava em angústia e ausência de significado e propósito até encontrá-los ao se deparar outros seres.
A jornada pela vida, a história de amor e gravidez de Meredith trazem humanidade para o alienígena e, portanto, provoca empatia. A segunda exposição ocorre quando Ego revela seus planos muito dignos de seu nome para Peter Quill, quase totalmente seduzido pela ilusão das intenções de seu pai.
É nesse momento que temos a quebra da “humanidade” de Ego com a revelação egoísta do motivo da existência de seus outros filhos e da reviravolta principal do filme: o assassinato de Meredith. Quando vi o filme pela primeira vez, admito que fui pego de surpresa. Não esperava que Gunn conseguiria emplacar algo corajoso assim em um estúdio que ama a zona de conforto. No primeiro filme, o câncer da mãe de Quill era uma das pontas soltas que eu já especulava ser oriundo da relação dela com um ser cósmico – apontei isso na crítica, aliás.
Logo, toda a dimensão do conflito entre Quill e Ego torna-se muito relevante. Apesar de Gunn não deixar a narrativa descansar após a revelação para termos mais um pouco de desenvolvimento nesse tópico, o roteirista escreve uma reação tão crua que chega a ser excelente. Essa cena já é explicitamente contrastante à anterior que possui carga enorme de Quentin Tarantino no texto, com Gunn utilizando a letra de "Brandy" para expor um pouco mais das motivações de Ego, de sua persuasão e da história que teve com Meredith.
Além do drama entre os personagens ser muito bom, gosto muito do desenvolvimento de Ego. Ele não é motivado por vingança ou poder, mas sim por megalomania. É um personagem que nitidamente passa por transformações durante as eras perdendo sua ingenuidade e propósito originário. Se deparando com a fragilidade e, também, futilidade da vida, molda um novo propósito no qual tudo e todos devem se tornar Ego. Porém, em contrapartida, mesmo copulando afim de criar um novo celestial, a emoção genuína do personagem ao ver Peter manipular a luz pela primeira vez imbui um sentido sociológico pertinente que toca a necessidade empática do ser: não ser mais solitário.
Mesmo que não tendo consciência de todo esse bom trabalho de desenvolvimento, o espectador sente, possivelmente pela primeira vez nesses filmes Marvel, a morte de um vilão seja pela sua qualidade ou pelo enorme sacrifício que a morte dela gera: em poderes e pessoas.
Ponto Sem Nó
Como puderam perceber, o escopo intimista de Guardiões da Galáxia Vol. 2 vem muito a calhar para que haja esse florescer de amor e ódio entre Ego e Quill. Uma jornada sempre em movimento prejudicaria muito a essência do drama resultando em mais um vilão genérico insuportável a la Ronan ou Malekith.
Como 90% do desenvolvimento do protagonista fica centrado em um núcleo, os outros coadjuvantes são resolvidos na base do poder da coesão através de muitas discussões. Gunn não tem vergonha de assumir que esse episódio da aventura seja um belo novelão daquelas ótimas de jornada de autodescobrimento. Como apontei anteriormente, boa parte dos personagens continuam perdidos ou com pendencias psicológicas que impedem atingir esse ‘paraíso’.
Como temos uma quantidade considerável de cenas de ação, alguns arcos precisam ser resolvidos em questão de segundos. Para isso, há a inserção inteligente de Mantis, uma personagem que possui semelhanças com o aprisionamento de Gamora por Thanos, mas de modo levemente distinto. Sua relação com Ego é inteligente a fazendo ter muita utilidade durante o clímax da fita – novamente aponto como muitas das coisas apresentadas no primeiro ato são realocadas no terceiro com propósitos diferentes.
Porém, além de sua função primordial, ela serve como aglutinador de Gamora e Drax. Com Drax, novamente há outro belo trabalho de contrastes – Gunn basicamente faz isso no filme inteiro. Na apresentação de seus poderes empáticos, Mantis diz que nunca sentiu uma alegria tão intensa ao tocar Drax soltando uma de suas muitas risadas enormes (Dave Bautista excelente). Porém, já em Ego, durante uma bela contemplação e uma confidência do personagem sobre sua filha, Mantis o toca e chora compulsivamente.
É uma jogada simples sensacional para resolver essa mudança drástica de Drax entre os dois filmes. Em vez de expiar sua dor através da violência impensada que colocou todo o grupo em risco, Drax opta em extravasar o sofrimento se divertindo e aproveitando todos os momentos. Não será a primeira vez que Gunn usará elementos do filme anterior para desenvolver rapidamente os personagens, pois, na verdade, isso acontece com todos os coadjuvantes – com exceção de Groot que está na história para adicionar doses cavalares de fofura.
Já com Gamora, além do núcleo romântico pouco explorado, Gunn prefere desenvolver sua relação familiar com Nebula – algo que julgo adequado. A dimensão do ódio de Nebula contra Gamora torna-se mais clara para o espectador que finalmente compreende a violência das torturas praticadas por Thanos contra ela agregando mais relevância para essa personagem. Mesmo que a resolução do conflito das duas acontece através de um duelo físico, é inegável dizer que não um tratamento para elas. Novamente, coeso, simples e eficiente.
Dupla Dinâmica
Por incrível que pareça é com Yondu e Rocket que temos os conflitos mais densos da narrativa. Yondu é assombrado por Stakar – breve interpretação de Sylvester Stallone, revelando que ele é um Ravager desonrado por ter traficado crianças para Ego no passado. Estabelecendo esse bom conflito sobre honra, Ayesha contrata Yondu e seu grupo para caçarem os Guardiões. Tão pouco ocorre o encontro de Rocket e Groot com Yondu resultando em um motim dentro da trupe de piratas – Kraglin é brevemente desenvolvido aqui.
Novamente através de exposição e conflito de ideias que Rocket é esmiuçado por Yondu. Pode até ser considerada uma cena esquisita por não sabermos se trata de mais uma piada ou de algo sério no começo, mas logo fica claro que Yondu tem a razão ao confrontar o guaxinim espacial. Não há muito o que comentar sobre isso. James Gunn basicamente decide explicar o personagem para o público sem a menor reserva.
O bom disso é que não se trata de exposição gratuita, pois ele escreve isso tratando os dois personagens como um só. Dois caras que se posam como detestáveis, mas que necessitam de redenção e apoio dos amigos.
Não tem erro novamente. Gunn faz com que todo o drama entrelace conflitos do passado e do presente e toca com força o tema da paternidade aqui. Desse modo, há correlações entre Yondu e Ego. A coesão fica a critério no jogo dos contrastes e das lições que cada “pai” de Peter oferece a ele.
Enquanto Ego mostra o poder e a imortalidade, Yondu mostra o caminho para Peter salvar seus amigos durante o confronto final. Ou seja, ela causa a catarse no herói. Efeito esse muito similar ao do primeiro filme, algo bastante legal que reforça ainda mais o conceito de família que Gunn inaugura no clímax contra Ronan. Também há o destaque de Yondu salvar a vida de Quill. Nisso, o roteirista elabora uma alegoria para o pirata, como se ele tirasse pela primeira vez uma das crianças que tinha enviado para a morte naquele planeta.
Gunn novamente resgata memórias do primeiro filme ao elaborar o sacrifício de Yondu para salvar Quill. É uma transformação similar à da cena do primeiro no qual o protagonista se lança para o vácuo do Espaço para salvar Gamora. São rimas entre os dois filmes que casam e conferem dimensão maior para as ações heroicas de Peter que conseguem tirar o egoísmo de seu “pai”. Aliás, outra rima se repete ao fim do filme com o herói recebendo um presente de um parente que dá origem à última música da seleção musical.
Outro elemento belo é a segunda catarse de Quill refletindo a paternidade de seu verdadeiro pai rendendo o momento mais emocionante do longa: o funeral de Yondu.
Armas na Mesa
É evidente que esse é um filme de James Gunn. Interessante notar como o diretor venceu a máquina da Marvel e impregnou sua marca na obra. Não se permitiu ser engolido como Scott Derrickson foi com Doutor Estranho. Explorei por tanto tempo o roteiro nesse texto justamente por estar ali a maior parte de seu trabalho autoral. Para percebermos essa ótima coesão em relacionar itens do começo do filme com o final e até buscar conexões inteligentes com a primeira obra. Ou até mesmo em não tornar nenhum integrante do grupo em um completo inútil durante o clímax com todos desempenhando funções importantes para derrotar Ego.
Gunn buscou evoluir nitidamente seus personagens e não se interessou em nada para movimentar o grande plot desse MCU: Thanos. De fato, Guardiões da Galáxia Vol. 2 é um filme que relembra bons tempos de filmes de herói independentes de um grande universo cinematográfico nos quais somente uma boa história era capaz de segurar as pontas por si só.
Gunn consegue emplacar mensagens muito belas e ainda por cima tem a audácia de explorar o drama e até mesmo assassinar um dos personagens mais legais da aventura em prol da mensagem do filme que finalmente relembra que o heroísmo está muitas vezes associado ao sacrífico pelo bem maior. Os maiores filmes de super-herói tomam essas decisões com coragem como Homem-Aranha 2, X-Men 2, Logan, O Cavaleiro das Trevas, Watchmen, Batman vs Superman e até mesmo Guardiões da Galáxia se encararmos a morte de Groot para salvar a vida do grupo.
Ainda abordando seu roteiro, tudo que comentei acima não diz que o drama é sempre intercalado em equilíbrio por boas cenas de ação e ótimas piadas que não são inseridas em momentos inoportunos. Gunn não atenta à própria obra com essas manias irritantes presentes em outros longas Marvel. Ele respeita o drama, pois reconhece o quão difícil é criar a atmosfera correta. É tão feliz nessa construção que nos consegue fazer chorar – céus, ele fecha o filme "Father and Son" de Cat Stevens e com a imagem do Rocket Raccoon, o personagem mais casca grossa e com pose de invulnerável, chorando com saudades de um amigo caído em batalha. É difícil segurar a emoção.
Mas falando sobre a comédia, Gunn trabalha diversos tipos para todos os gostos sempre com uma acuidade paranormal para tornar suas piadas eficientes. Há escatologia, slapstick, ironias diversas e até mesmo incorpora o humor de Chuck Jones, gênio criador dos Looney Tunes na excelente sequência que Yondu, Groot, Kraglin e Rocket fazem 700 saltos para viajar até Ego o mais rápido possível.
Enquanto esbanja liberdade, criatividade e muito profissionalismo no texto, tive a leve impressão de que James Gunn estava um pouco mais travado em termos de decupagem e câmera. É óbvio que ainda se trata de um filme muitíssimo bem gravado e sequenciado, porém em muitos termos é uma obra quadrada na linguagem cinematográfica quando comparada às criativas sequências do primeiro filme.
Audácia Visual
Talvez seja por uma familiaridade que Gunn ainda tenha que conquistar nos próximos trabalhos, já que esse longa possui uso exaustivo de CGI para construir cenários completos. E, como todos pudemos ver, se trata de computação gráfica da mais alta qualidade. A topografia de Ego é tão hiper-realista que me fez sentir estar dentro de um mundo crível e real assim como tinha acontecido com Pandora em Avatar de James Cameron.
É irônico ter essa impressão já que os créditos de abertura são muitíssimos criativos ao acompanharmos boa parte da luta dos Guardiões contra a criatura a partir do “ponto de vista” do Baby Groot se divertindo enquanto dança "Mr. Blue Sky"da Electric Light Orchestra. É um bom plano sequência que quebra a mesmice que víamos tantas vezes no gênero.
Aliás, já na abertura do filme, durante o flashback, percebe-se que Guardiões da Galáxia Vol. 2 é um divisor de águas para a Marvel. Uma das reclamações mais constantes dos filmes do MCU era o visual ‘feio’. Um efeito negativo provocado pela falta de um color grading mais expressivo que tornassem as imagens mais estilizadas ou vivas, abandonando as cores chapadas que protagonizavam em todo bendito filme.
Felizmente, isso virou história. Este novo longa é belíssimo, repleto de cores vivas e contrastes agradáveis aos olhos. Finalmente as cores serão um instrumento eficiente para potencializar a encenação desses filmes. Gunn já usa tons nobres como o azul marinho e o dourado para o belíssimo salão dos Soberanos cujas linhas apontam o nosso olhar para a sacerdotisa Ayesha – apesar do texto ser muito bom em geral, a vilã é inexpressiva apenas gerando alguns minions para os heróis combaterem ao longo da jornada.
Além de usar a cor para oferecer uma estética aprazível, o diretor também não menospreza em nada o 3D. Finalmente, depois de eras, temos um filme cujo recurso justifica sua existência. Seja na abertura ou na espetacular cena de prison break na qual Yondu e Rocket causam uma carnificina contra os tripulantes amotinados da nave.
Aliás, essa excelente sequência é uma das poucas que mostram uma linha autoral que é traduzida pela câmera e montagem. Gunn referência os westerns spaguettis mais uma vez ao juntar planos rápidos com leves zooms nos rostos de capangas conforme a flecha os executa no melhor estilo da trilogia do Homem Sem Nome. Depois toda a cena continua se elevando com uso adequado de slow motions e até mesmo planos azimutais maravilhosos, além do jogo muito inspirado de Yondu e Rocket destruírem muitos inimigos com o auxílio de monitores.
Outra ótima sequência é que marca a principal luta de Gamora contra Nebula em uma planície e caverna de Ego. Apostando somente na encenação e em nenhum uso de trilha musical, Gunn constrói o embate mais visceral da franquia até então. Quando o quebra pau vai para o mano-a-mano, a referência estética a Quentin Tarantino, especialmente na ênfase em Kill Bill, vem à tona mimetizando breves momentos da luta da Noiva contra Vernita Green.
Apesar de não apresentar encenação extremamente inventiva, outras cenas sempre possuem uma energia tão fantástica que é difícil permenacer impassível ao talento do diretor. Sempre existem gags inteligentes que a tornam únicas: Rocket detonando um grupo de Saqueadores ao melhor estilo Esqueceram de Mim ao som da ótima "Southern Nights", das naves soberanas controladas via interface que mimetiza antigos fliperamas ou já da inesperada participação especial de Pac Man – repare que há uma leve brincadeira em um plano que Gunn mostra a nave de Ego chegando ao planeta em certo ângulo que forma o rosto do clássico personagem.
Sobre a já tão comentada tracklist de Guardiões Vol. 2, me limito a apontar que a escolha das músicas continua excelente, porém seu uso é menos inspirado do que no primeiro filme. Aqui, boa parte delas encaixam muito bem como "My Sweet Lord", "Brandy" e "Father and Son". Outras simplesmente colorem a ação com eficiência.
Uma coisa que poucos apontam também é a qualidade de Gunn como diretor de atores. Ele extrai muito mais do que o básico até mesmo com Bradley Cooper, limitado a dublar Rocket. As performances excelentes até mesmo surgem de Dave Bautista, Michael Rooker, Pom Klementiff e Kurt Russell. Também fui pego de surpresa pela qualidade que Chris Pratt apresenta ao ver e se maravilhar com a ilusão do plano de Ego. Tudo é muito orgânico mesmo quebrando o aspecto enlatado que esses filmes estavam adquirindo.
Menos é Mais
Já estava ficando agonizado depois de tanto tempo sem conseguir gostar verdadeiramente de um filme da Marvel Studios. Para a minha sorte e alegria, Guardiões da Galáxia Vol. 2 é uma daquelas pérolas que o gênero deve se agarrar com força. O filme corrige o maldito vício da zona de conforto que a produtora estava solidificando a cada obra. Revigora o gênero, traz uma belíssima história sobre família e paternidade e ainda aborda a dor da perda com bastante relevância.
É preciso encarar essa obra como ela é. Compará-la incessantemente com o primeiro filme não irá tornar sua experiência melhor. As propostas são consideravelmente distintas e ainda assim Gunn faz de tudo que ambos os filmes conversem com o propósito louvável de engrandecer os personagens e ajustá-los para a grande batalha que os aguarda em Guerra Infinita.
No que muitos julgam como erro, aponto como o maior acerto e qualidade desta obra. James Gunn entendeu que menos é mais e trouxe uma das melhores diversões que poderíamos conferir neste 2017. Vou além, muito mais do que isso, Gunn entende que os seus personagens não são apenas meros bonequinhos de ação, mas os aborda com sentimentos, relações, atos e consequências reais.
São personagens vivos. É isso que torna Guardiões da Galáxia, simplesmente, único.
Guardiões da Galáxia Vol. 2 (Guardians of the Galaxy Vol. 2, EUA – 2017)
Direção: James Gunn
Roteiro: James Gunn
Elenco: Chris Pratt, Zoe Saldana, Dave Bautista, Vin Diesel, Bradley Cooper, Michael Rooker, Karen Gillan, Pom Klementieff, Sylvester Stallone, Kurt Russell, Elizabeth Debicki, Chris Sullivan, Sean Gunn, Tommy Flanagan, Laura Haddock, Miley Cyrus, David Hasselhoff, Stan Lee, Ving Rhames, Michael Rosenbaum, Michelle Yeoh
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 136 min
https://www.youtube.com/watch?v=4-i8nTNSQFI
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Crítica | Girlboss - 1ª Temporada
Girlboss tenta ser algo que não deveria ser.
Começar um texto assim parece algo muito duro, mas é isso que a nova série original Netflix nos passa - principalmente para aqueles que já são assíduos acompanhantes da gigante do streaming. Baseado livremente na obra homônima assinada por Sophia Amoruso, a história gira em torno de uma garota que, aos 28 anos de idade, tornou-se multimilionária e comanda, atualmente, uma das marcas de roupa estadunidenses mais rentáveis dos últimos anos.
É interessante dizer que o conteúdo original do serviço supracitado sempre optou pela variedade. Desde seu surgimento, já tivemos dramas políticos (como House of Cards), comédias literárias (Orange is the New Black), ficções científicas (Stranger Things), entre outros gêneros. Recentemente, entretanto, o tato para a realização de uma grande obra audiovisual parece ter sido deixado de lado como forma de atender à demanda crescente para seu catálogo. E, infelizmente, a série produzida por Charlize Theron parece ter sido atingida pelo raio do simulacro tragicômico.
Protagonizado por Britt Robertson, a narrativa nos lembra bastante das sitcoms que se tornaram sucesso a partir da década de 1990, como Seinfeld e Friends. Cada um dos personagens tem a sua característica principal que os torna bem diferentes uns dos outros e que funcionam, na maior parte do tempo, como arquétipos de tipos sociais. No episódio piloto, já somos introduzidos à personalidade irreverente e extrovertida de Sophia, que contrasta de forma harmônica com o jeito mais reservado de seu vizinho, Lionel (a presença muito bem-vinda de RuPaul), e que corresponde à liberdade criativa de Annie (Ellie Reed). Ao longo do capítulo de meia-hora, outros personagens vão surgindo e adicionam camadas de complexidade a uma narrativa que poderia ter tudo para ser a mais sincera e comovente possível.
Entretanto, mesmo com o aviso no início de cada episódio - “recriação muito livre dos acontecimentos reais” - não podemos deixar de nos sentir incomodados com a necessidade muitas vezes equívoca da série em ser “diferente”. A montagem e a história trazem seus tons de dinamismo para o conceito identitário, sem falar nas ótimas quebras de expectativa provindas da marca já conhecida de Kay Cannon (franquia A Escolha Perfeita e Como Ser Solteira). Mas à medida em que o tempo passa, como dito anteriormente, Girlboss deixa o brilho de sua originalidade de lado para se inclinar a outras obras semelhantes.
Os próprios diálogos entregam esse desejo de inclusão em alguma vertente estilística: em vários momentos, vemos flashbacks ou sequências muito bem ritmadas que se baseiam na autoexplicação exacerbada, cuja característica é retirada diretamente de Unbreakable Kimmy Schmidt ou 30 Rock. Sophia e Annie são as protagonistas desses momentos, mas o gênero escolhido para a série - que oscila entre o drama, a comédia e a impossibilidade narrativa - contrasta de forma negativa e começa a se arrastar em direção a um final que obviamente roga por uma continuação.
Além de momentos pontuais, o desenvolvimento da história principal tenta também seguir um modo único, como se estivesse tentando encontrar uma linha reta numa bifurcação. É de se esperar que ramificações narrativas passem a existir uma vez que nos conectemos aos personagens. Mas o time criativo assume que a construção destes laços entre obra e público aconteçam num estalar de dedos - e definitivamente esse é o grande deslize. O aguardado par romântico já dá às caras no terceiro ato do episódio piloto, e lá pela metade da série seu arco é relembrado. Personagens vem e vão como se estivessem apenas numa suspensão transitória de estereótipos - os supostos “conselheiros” da protagonista, diga-se de passagem. Nem mesmo os cameos de celebridades e rostos conhecidos do gênero cômico despertam pontas de interesse nos telespectadores.
A série não é de toda um “desperdício”. É inegável que a direção de arte e o design de produção foram projetados com bastante cautela, resvalando-se na escola kitsch e vintage. Os acessórios e roupas utilizados pelos personagens, com ênfase em Sophia e Annie, são essencialmente chamativas e complementares entre si: dentre as combinações feitas, vemos uma calça jeans skinny ornando com um cinto Gucci e uma jaqueta multicolorida de couro de bezerro do estilo country da década de 1970. Os detalhes por vezes são perceptíveis pela maior parte do público, mas são direcionados a um nicho específico - ou seja, aquela que realmente se interessa pela moda.
Apesar da improbabilidade de eventos de Girlboss, sua pegada histórica é interessante. A série é ambientada no ano de 2006 e mostra a crescente evolução e controle de sites de compra/venda online, como eBay, Amazon, entre outros, bem como a dominação por certos grupos comerciais que desejavam “devorar” os novos empreendedores. Sophia esteve em linha de combate com a maioria deles, e talvez sua história pudesse realmente ter sido mais envolvente. Mas, como já disse, a sucessão de eventos ocorre de modo tão brutalmente exposto que podemos prever o desfecho dos arcos antes mesmo de eles darem indício de começarem.
A jornada do herói é outra característica pobremente explorada na série. Apesar da química entre o elenco e da satisfatória interpretação de Robertson, sua personagem entra em uma viagem de autodescobrimento e maturidade que não segue uma escalada evolutiva, por assim dizer, mas incansáveis parábolas que tornam o acompanhamento dos episódios cansativo e monótono. Aqui, é possível vermos a maioria das características identitárias extraídas diretamente de outras obras do gênero, como o inenarravelmente superior O Diabo Veste Prada: no longa, a personagem Andrea Sachs (Anne Hathaway) passa por altos e baixos para conseguir uma posição de destaque e um reconhecimento no competitivo e assustador mundo da moda; em Girlboss, Sophia passa pelos mesmos obstáculos, mas de forma a resolvê-los através de um senso de humor ácido e sarcástico, banhado por constantes torrentes de irreverência.
Mais uma vez, a ideia aqui é buscar a originalidade; mas tudo é direcionado para o impossível, e a resolução destes arcos de culpa e redenção citados no parágrafo acima não são coerentes o suficiente para torná-la uma obra completa. A nostalgia está no figurino, somente; e ao invés de resgatar os anos 2000 de forma a causar uma aproximação maior com o público, a série deseja se corresponder o máximo possível com a contemporaneidade.
A nova série Netflix tinha tudo para ser ótima. Entretanto, através de metáforas vencidas e de uma história falha, fica oculta pelo brilho de produções audiovisuais semelhantes - mas infinitamente melhores.
Girlboss – 1ª Temporada (Idem, 2017, Estados Unidos)
Criado por: Kay Cannon
Direção: Christian Ditter, Jamie Babbit, Amanda Brotchie, Steven K. Tsuchida, John Riggi
Baseado em: #Girlboss, de Sophia Amoruso
Roteiro: Kay Cannon, Sonny Lee, Jake Fogelnest, Caroline Williams
Elenco: Britt Robertson, Ellie Reed, Johnny Simmons, Alphonso McAuley, RuPaul, Josh Couch
Gênero: Comédia
Duração: 28 min.
Crítica | Além da Ilusão - Um filme sem magia
Além da Ilusão é o tipo de filme que tem tudo para dar certo, mas ao término dele você pensa "O que o diretor (a) quis com tudo isso?". Na realidade é uma produção de difícil assimilação, depois de pensar muito e ir digerindo o que assistiu é que você vai entendo qual a proposta da diretora Rebecca Zlotowski. Entende em partes.
Logo no início vão apresentando as duas personagens principais e suas características. As irmãs Laura Barlow (Natalie Portman) e Kate Barlow (Lily-Rose Depp) aparecem em uma casa de espetáculos fazendo shows para um seleto público. O longa não diz qual época é, mas tudo leva a crer que seja ambientado nas décadas de 40. Nessa casa de show elas se apresentam como uma dupla de videntes que conseguem entrar em contato com os mortos. Laura é a mediadora de tudo, ela conversa com sua irmã em uma mesa e então ela acaba por evocar algum fantasma.
Elas tem o sonho de mudar de vida, fazer espetáculos em locais pequenos não é o que Laura almeja para sua vida. Lá ela é mal paga, não é o que é ela quer para sua irmã Kate. Eis que aparece Emmanuel Salinger (André Korben) um produtor de cinema, ele e alguns empresários da área querem dar mais originalidade as produções francesas e querem trazer algo novo para poder competir com o cinema americano. É aí que ele encontra as duas irmãs e as convida para fazer uma seção com ele em sua casa. Elas vão e acontece que um espírito acaba por fazer contato com ele e isso prova que a garota (Laura) realmente tem um dom e que não é uma charlatã.
Emmanuel então propõe a Laura (irmã mais velha) que se mudem para sua residência e que trabalhem com ele em um projeto cinematográfico. Ele irá tentar gravar a aparição desse fantasma e assim provar que espíritos existem. Esse é o elemento novo que ele tanto procura para passar nos cinemas e dar uma maior originalidade ao cinema francês. A questão é que ele precisa de financiamento e tudo começa a ficar caro demais. Esse fenômeno sobrenatural seria a ilusão que dá nome ao filme, a mágica que o cinema faz para entreter o público, isso em uma metáfora de não tão fácil associação.
Laura logo vê nisso uma oportunidade de conseguir algo melhor para ela e sua irmã. Kate já vê nisso apenas uma chance para se manter com uma carreira estável no cinema, ela gosta de ser e se sentir uma atriz. Kate também aceita participar das filmagens e por ser mais nova acha tudo muito interessante. Gosta do que está fazendo e não se importa de se mostrar para os outros. . Ela acaba por conhecer o produtor André Korben (Louis Garrel) com quem tem um breve romance.
A ideia do filme era fazer uma homenagem ao cinema e suas fantasias. Desde sua concepção, ou seja, reunião da produção com empresários do setor, até o processo de construção dos personagens, gravação e sua versão final. O problema do filme é o modo como tudo nele é construído. Como produção é bem fraquinho, para não dizer chato e sonolento em um contexto geral.
Um filme que fala sobre o cinema falha justamente naquilo que é o principal para a sétima arte: o roteiro e a direção. Rebecca não é uma diretora iniciante, já havia feito outros dois longas Belle Épine e Grand Central. Você percebe que enquanto a história vai passando a ela vai ficando mais confusa com o tempo. Começa a falar da vidência da garota e você acha que o filme será sobre fantasmas, mas depois começa a falar de cinema e você acha que o foco será esse e não é. Depois mostra o romance de Laura com o personagem vivido por Louis Garrel e nada novamente. Acabou ficando uma história vazia e sem saber qual seu verdadeiro foco. Um filme que tinha tudo para ser bom acabou ficando chato e monótono.
Vamos usar como exemplo o longa A Invenção de Hugo Cabret de Scorsese que trabalha muito bem o lado lúdico do cinema, como tudo começou com Meliês, a magia do cinema, a paixão, tudo de forma clara e bem feita. Nesse há uma tentativa de mostrar o processo de criação, mas o abordade forma tão errada que você nem percebe o que eles estão querendo te mostrar. Há sim bons momentos nesse longa como as atuações de Natalie e da Depp (filha), a fotografia e direção de arte são belas. Mas não existe filme sem um bom roteiro e sem uma direção competente. Seria interessante se esse filme fosse mais focado na fantasia e menos no real.
Nem a bela Natalie Portman consegue segurar as pontas. Ela está bem em seu papel, o problema é que sua personagem é bem chata, amarga e sem vida. Lily-Rose Depp pelo nome já se percebe a relação com o pai famoso Johnny Depp está graciosa, bem inserida em sua personagem. É uma atriz que pode vir a se tornar um sucesso assim como seu pai é. Uma coisa que não foi entendida é: Porque Louis Garrel recebe tão poucos papéis de destaque ultimamente? É um ator completo, qualquer papel que interpreta fica bom. E esse não é diferente, ele aparece tão pouco que chega a ser ridículo colocar um ator do quilate dele em um personagem tão sumido e apagado quanto o que ele interpretou. A verdade é que Além da Ilusão foi uma oportunidade perdida de homenagear o cinema e tudo que nele está inserido.
Além da Ilusão (Planetarium, França, Bélgica – 2016)
Direção: Rebecca Zlotowski
Roteiro: Rebecca Zlotowski
Elenco: Natalie Portman, Lily-Rose Depp, Emmanuel Salinger, Amira Casar, Pierre Salvadori, Louis Garrel, David Bennet, Damien
Gênero: Drama
Duração: 105 min
https://www.youtube.com/watch?v=k1HlEsqHsek
Crítica | O Grande Golpe
Uma das principais críticas direcionadas ao corpo de trabalho de Stanley Kubrick é a de que os seus filmes são frios ou racionais demais. Essa recepção negativa existe tanto por parte do público em geral quanto por parte dos críticos e cineastas. Jacques Rivette, o célebre diretor francês da Nouvelle Vague, disse certa vez que Kubrick “era uma máquina, um mutante, um marciano” e que “ele não tinha sentimento humano algum”. No entanto, se as suas obras mais famosas possibilitam esse tipo de impressão, são os filmes realizados ainda no começo da carreira que mostram um coração pulsante por detrás de cada frame. Glória Feita de Sangue e O Grande Golpe são os dois maiores expoentes dessa fase inicial.
O filme de 1956 conta a história de um complexo plano de roubo a um hipódromo idealizado e perpetrado por um grupo heterogêneo de ladrões. Estes preveem cada uma das etapas para que tudo saia de acordo com o planejado, mas a partir do momento em que as idéias começam a ser colocadas em prática uma série de eventos inimagináveis entram em ação e põem o sucesso da empreitada em risco.
Embora Kubrick estivesse dando os primeiros passos, a sua direção neste filme é surpreendentemente segura. É comum que diretores intelectualmente voluptuosos busquem fazer malabarismos com a câmera nos seus primeiros trabalhos, mas, no caso do terceiro longa-metragem de Kubrick, o que se tem é um diretor consciente de cada elemento em cena e rígido na composição dos quadros e na hora de estabelecer a movimentação dos atores. Um exemplo dessa destreza é o primeiro diálogo entre Sharry Peatty (Marie Windsor) e o marido, George Peatty (Elisha Cook), no qual a distância que a câmera do diretor mantém dos dois ilustra o abismo que separa o casal e a opção de colocar em boa parte do tempo Sharry no lado direito (sempre o mais forte do quadro) enquanto George ocupa o lado esquerdo ou a periferia do plano é essencial para mostrar o poder emocional e psicológico que a esposa exerce sobre o marido (Kubrick acerta também na escolha dos atores, já que Marie Windsor é fisicamente superior à Elisha Cook).
O diretor é igualmente competente no trabalho que realiza ao lado do montador e do diretor de fotografia. A montagem alternada (porém com quebra na linearidade do tempo) usada brilhantemente durante o assalto serve tanto para ajudar o espectador a se localizar na sucessão de eventos (há o auxílio de aparições recorrentes de outros personagens e da locução da corrida para surtir esse efeito) quanto para criar a tensão necessária. E no que diz respeito à cinematografia, ao investirem em sombras e contrastes, Kubrick e Lucien Ballard não só flertam com o noir (O Grande Golpe é considerado por muitos críticos como um legítimo filme noir, mas isso é um erro, pois trata-se claramente de um heist movie) como determinam a ambiguidade moral dos personagens.
Aliás, essa dubiedade dos personagens é corroborada constantemente pelo roteiro escrito pelo próprio diretor, ao lado de Jim Thompson (responsável pelos diálogos), a partir de um livro de Lionel White. Percebam como o sujeito contratado para atirar num dos cavalos de corrida surge em cena acariciando docemente um filhote de cachorro e como há certa “nobreza” em alguns dos motivos que levam determinados personagens a cometerem o crime (um desses personagens quer o dinheiro para cuidar da esposa moribunda). Além disso, há a breve porém inesquecível aparição do lutador Kola Kwariani, cujo personagem esconde atrás dos músculos e da voracidade física a alma de uma poeta e filósofo. É um outro acerto do roteiro o tempo dado para que cada um dos personagens (embora uns apareçam mais que outros) surja em cena e tenha a oportunidade de justificar a sua participação no roubo. Isso faz com que o público se envolva mais emocionalmente com a narrativa.
No entanto, é no pessimismo do filme que Kubrick parece estar inteiramente desnudo. Assim como a personagem que, logo após ser baleada, diz: “Uma piada de mau gosto sem nenhuma lição de moral”, o cineasta parece acreditar nessa fatalidade e, aparentemente, na inutilidade dos nossos esforços. Nesse sentido, o uso da máscara de palhaço durante o roubo passa a adquirir um significado muito mais simbólico, e a insistência do roteiro em construir boa parte do filme sobre cenas de longas conversas é imensamente potencializada pela imagem do papagaio preso na gaiola nos momentos finais.
Não obstante, a narração em off usada em alguns momentos da história e a comicidade dos eventos finais não deixam de gerar na mente do espectador a interpretação de que o aparente “acaso” que coloca tudo a perder nada mais é do que uma correção moral do universo, destino ou coisa parecida. Essa visão, além de ser oposta à apresentada anteriormente, dá à obra uma dimensão metafísica que ninguém suporia existir num “mero” filme de roubo e mostra como Kubrick estava aberto para inúmeras possibilidades.
Inclusive, é curioso notar como O Grande Golpe parece fazer um comentário de maneira premonitória sobre essa tal de “racionalidade fria” na obra posterior de Kubrick. Interessado nas diversas facetas humanas e na dualidade acaso/destino, o filme trata de questões que são pertinentes para cada um de nós, e não deixa de ser uma ironia que a obra do diretor passasse a sofrer ao longo dos anos a pecha de ser maquinal, mais interessada em técnica do que em conteúdo.
Com uma rica rima visual envolvendo um outro cachorro no minuto final, O Grande Golpe é uma daquelas obras cuja aparente superficialidade esconde um tesouro de significados e interpretações que só podem ser escavados a cada novo retorno do espectador ao filme. E este parece ser um dos principais problemas enfrentados por alguns críticos e até mesmo cineastas tão grandiosos quanto Jacques Rivette quando analisam a obra de Stanley Kubrick: ao passo que há filmes que gritam aos quatro cantos toda a sua humanidade e generosidade, existem algumas histórias que reservam para o espectador o prazer de encontrar aos poucos todo o seu poder e toda a sua magia. Kubrick construiu a sua carreira levando em conta a verdade desse segundo caso.
O Grande Golpe (The Killing, EUA – 1956)
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick e Jim Thompson
Elenco: Sterling Hayden, Jay C. Flippen, Marie Windsor, Elisha Cooke Jr., Joe Turkel
Gênero: Suspense/Policial
Duração: 85 min
Crítica | Guardiões da Galáxia Vol. 2 (Sem Spoilers)
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Fazer a sequência de um filme aclamado sempre oferece seu leque de vantagens e desafios. Por um lado, é mais interessante do ponto de vista de roteiro colocar os personagens em novas situações, assim como desenvolver suas personalidades e o universo onde vivem; afinal, criá-los do zero e introduzi-los é um desafio muito mais complexo. Porém, manter o nível à altura de seu predecessor é algo difícil, e basta observar como as continuações de Homem de Ferro e Os Vingadores desastrosamente falharam em recapturar o brilho do original.
Para o cineasta transformado em estrela James Gunn, ele tinha um desafio ainda maior com este novo filme. Com Guardiões da Galáxia, o diretor e roteirista teve a vantagem de estar trabalhando com personagens desconhecidos pelo público geral, dando origem a uma estratégia de estúdios que acabou influenciando a chegada de adaptações de Deadpool e Esquadrão Suicida, pra citar os mais recentes. Com a continuação, Gunn tinha a tarefa de apresentar algo novo e que não soasse como uma mera repetição do original, além de manter justamente a essência que possibilitou seu sucesso. Para a alegria geral, Guardiões da Galáxia Vol. 2 é aquele raro tipo de continuação que supera o primeiro em todos os níveis, e o faz justamente por manter o foco em seus personagens.
A trama se passa algum tempo após o anterior, com o grupo formado pelo Senhor das Estrelas, Peter Quill (Chris Pratt), Gamora (Zoe Saldana), Drax (Dave Bautista), Rocket (Bradley Cooper) e o adorável Baby Groot (Vin Diesel) aproveitando a reputação favorável de sua aventura em salvar Xandar e a Tropa Nova para coletarem recompensas ao redor da galáxia. Quando um serviço para a raça batizada de Soberanos acaba terminando em um mal entendido, os Guardiões são postos sob a mira da impiedosa Ayesha (Elizabeth Debicki), que coloca os Saqueadores (liderados pelo Yondu de Michael Rooker) em seu encalce. Para complicar ainda mais, o misterioso Ego (Kurt Russell) encontra o grupo e revela-se como o pai perdido de Peter Quill.
Dinâmica de grupo
Em muitos sentidos, este novo Guardiões segue a fórmula certeira de algumas das melhores continuações já feitas, como O Exterminador do Futuro 2 e Homem-Aranha 2, mas a mais óbvia e apropriada é mesmo O Império Contra-Ataca. Assim como George Lucas, Irvin Kershner e Lawrence Kasdan fizeram no melhor episódio da franquia Star Wars, Gunn elabora um roteiro onde um fiapo de história muito simples é excepcionalmente preenchido com personagens e relações bem aprofundadas entre estes; e quando estes envolvem guaxinins falantes, árvores bebês e um sujeito que é literalmente um planeta vivo, acredito que vê-los interagindo e lidando com questões humanas é muito mais interessante do que uma mera pancadaria.
Literalmente todos os personagens do filme passam por algum tipo de dilema moral ou enfrentam conflitos com outros, eficientemente mostrando a evolução de uma relação entre indivíduos defeituosos e que foram unidos pelo único motivo de sobreviver em uma prisão. Agora, tal como um relacionamento, vemos Peter Quill e Gamora desajeitadamente lidando com a atração deste por ela, o fato de que Rocket é tão agressivo e egoísta com os outros, Drax cada vez mais perdido (e hilário) com sua incapacidade de entender metáforas e o próprio Baby Groot revela-se confuso e um peso quase desnecessário à equipe, além de promover uma dose de fofura.
Até mesmo Yondu tem um papel imensamente mais relevante aqui, que infere diretamente com suas decisões em ajudar Quill e os Guardiões no anterior, trazendo um bem-vindo drama para o personagem e em sua relação com o protagonista, e a ciborgue Nebulosa (Karen Gillan) tem a oportunidade de sair da cartunesca categoria de capanga a qual foi conferida no primeiro filme, ganhando mais profundidade e um peso maior em sua relação de irmã com Gamora. Surpreendentemente, o filme coloca esses elementos pessoais e dramáticos em primeiro plano.
E o melhor é que todos esses personagens têm uma distribuição favorável, sendo capaz de criar um equilíbrio perfeito entre suas histórias e núcleos narrativos. Temia pela inclusão de novos membros da equipe quando o longa foi anunciado, mas uma personagem tão rica e carismática como Mantis (Pom Klementieff), uma aliada de Ego que tem a habilidade de sentir emoções, torna a dinâmica do grupo ainda mais divertida - especialmente em suas interações com Drax, e aqui Gunn age sem medo de ser bobo ou exagerado e oferece um leque de piadas mais insano e histérico do que o original, com destaque especial para as referências aos anos 70 e 80 que o personagem de Quill lança constantemente.
Daddy Issues
Ainda seguindo a escola de O Império Contra-Ataca, Gunn separa os personagens para diferentes e ações e joga nosso protagonista em uma fascinante trama envolvendo sua paternidade. Quando o personagem de Ego é apresentado, vemos um lado realmente notável da escrita de Gunn, que mantém todo seu bom humor e habilidade em escrever diálogos sarcásticos, mas também revela uma naturalidade palpável ao lidar com um tema tão espinhoso, com Ego realmente demonstrando um apego por Peter e também por seu tempo na Terra. Então, aprendemos todo o passado do personagem e sua natureza realmente grandiosa e impressionante, indo mais longe na exploração do Universo Cósmico da Marvel do que qualquer outro filme da editora até então. É algo realmente belo de se ver, e ao mesmo tempo muito simples, e Russell merece créditos por dar vida tão bem a uma das figuras mais envolventes e complexas que o gênero já viu até então.
O elenco segue mais entrosado do que nunca. Chris Pratt segue com seu carisma invejável e um timing cômico acertado, mas revelando um lado mais interessante quando o personagem é tentado por forças sombrias aqui, onde o ator faz um ótimo trabalho ao equilibrar uma certa fúria com sua persona de crianção. Certamente notando a resposta positiva no primeiro filme, Gunn aproveita muito mais de Dave Bautista, que surge duplamente engraçado e exagerado como Drax, beneficiado também por algumas das melhores piadas e sacadas; e a confusão do ator diante de ironias e metáforas segue divertida, assim como a inesperada carga dramática que vemos aqui e ali quando o personagem recorda de seu passado. Zoe Saldana ganha mais o que fazer e garante uma Gamora mais complexa aqui, especialmente pela relação com sua meia-irmã Nebulosa, e confesso que alguns momentos entre as duas são realmente emocionantes em sua abordagem sincera - um tanto novelesca em certos momentos, mas nada menos do que eficiente.
Com um papel muito maior e relevante do que no primeiro filme, Michael Rooker traz um Yondu mais humano e menos fanfarrão, com um drama muito presente ao sofrer um motim de sua equipe de Saqueadores. A relação entre o alienígena azul e Peter Quill também ganha uma nova camada, e fico feliz que a Marvel Studios tenha dado a liberdade a James Gunn de fazer as coisas que ele faz aqui. E claro, temos o trabalho vocal agressivo e descolado de Bradley Cooper como Rocket, que segue divertido e garante bons momentos de sarcasmo aqui - e contribuem para a lição moral que o personagem precisa superar no longa. E, bem, Vin Diesel tem 80% de seu trabalho de dublagem aqui modificado pela edição de som, já que Groot tem uma voz muito mais aguda aqui. Eu disse 80%, vejam bem...
Gunn' down
Não que isso signifique que Guardiões Vol. 2 seja um drama familiar, já que em suas ambições de espetáculo, o filme se sai tão bem quanto. Surgindo muito mais seguro e maduro na direção, Gunn já impressiona logo na memorável sequência de créditos de abertura, onde acompanhamos uma colossal batalha com um monstro extradimensional através do ponto de vista de um Baby Groot dançante ao som de "Mr. Blue Sky " da Electric Light Orchestra, esbajando um elaborado plano sequência digital que diverte pela interação do pequenino personagem com a ação em grande escala ao fundo. De forma similar, Gunn mistura estilo e personalidade para a incrível cena em que Yondu e Rocket lidam com o motim dos Saqueadores, com muita câmera lenta, planos abertos e a canção "Come a Little Closer", de Jay & The Americans.
E se mencionei duas canções ao analisar o trabalho de Gunn, é porque a seleção musical para o Awesome Mix Vol. 2 está fantástica, e o diretor sabe bem como aproveitar as músicas em seus diversos momentos. Há, inclusive, uma piadinha sensacional com um ator/cantor icônico que eu nunca imaginaria que poderia ser feita em um filme do gênero, e para que tenham a mesma surpresa que eu tive, paro de falar qualquer coisa relacionada ao assunto aqui mesmo.
A condução do diretor em sequências de ação mais diretas também melhorou consideravelmente, especialmente no quesito efeitos visuais. Além da já mencionada batalha com a criatura, temos duas cenas que envolvem centenas de pequenas espaçonaves perseguindo a nave principal do grupo, e Gunn se sai muito melhor ao não poluir a imagem com explosões ou destroços, além de estabelecer uma física de movimentos muito mais orgânica do que no primeiro filme. Isso sem falar na inventiva solução para o fato de que os heróis estariam cometendo um genocídio em massa durante as batalhas espaciais, colocando os tripulantes para controlar as naves remotamente em uma espécie de fliperama - o que curiosamente condiz com a natureza mais requintada dos Soberanos.
O melhor filme da Marvel Studios?
E um quesito que torna este Guardiões infinitamente melhor do que todos os seus antecessores é uma birra que muitos especialistas vinham apontando há tempos, e que você pode ver com detalhes neste ótimo video essay: a paleta de cores. Com o auxílio do diretor de fotografia Henry Abraham, e também pelo uso de um novo modelo da potente câmera RED e um trabalho mais evidente de color grading, Guardiões da Galáxia 2 é simplesmente maravilhoso de se olhar. As cores aqui são muito mais vibrantes e vivas do que os longas anteriores, e percebe-se que o nível de preto é nitidamente mais escuro e contrastado, com as luzes de Abraham constantemente balanceando tons quentes e azulados. O momento em que vemos a sala do trono dos Sobreanos é um dos pontos altos nesse quesito, pelo contraste impecável criado entre a pintura dourada dos habitantes e dos objetos com a parede branca e azul. É uma explosão visual no melhor sentido possível, e até o 3D torna-se relevante.
Finalmente a Marvel Studios consegue oferecer algo realmente incrível, depois de tanto tempo. Guardiões da Galáxia Vol. 2 é um filme onde percebe-se a total liberdade e segurança de seu diretor, seja em oferecer uma aventura verdadeiramente engraçada ou aprofundar nos sentimentos e na relação de seus personagens cartunescos, saindo dali com resultados imprevisíveis.
Guardiões da Galáxia Vol. 2 (Guardians of the Galaxy Vol. 2, EUA - 2017)
Direção: James Gunn
Roteiro: James Gunn
Elenco: Chris Pratt, Zoe Saldana, Dave Bautista, Bradley Cooper, Vin Diesel, Kurt Russell, Michael Rooker, Pom Klementieff, Karen Gillan, Elizabeth Debicki, Sean Gunn, Sylvester Stallone, Chris Sullivan
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 137 min
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Crítica | 78/52
Setenta e oito diferentes posicionamentos de câmera e 52 cortes. Eis o que Hitchock precisou para filmar a cena mais popular do seu cinema. Isso e uma sabedoria absurda sobre o Cinema, o suspense e o público: o assassinato na banheira em Psicose. Não bastasse ser uma cena valorosa pela quebra na história e no paradigma do protagonismo, o assassinato em si é uma obra à parte. Fascinado pelos bastidores, pelo estudo das minúcias da produção cinematográfica, o diretor Alexandre O. Philippe reuniu em 78/52, seu novo documentário, uma gama muito matizada de profissionais para comentar, em preto e branco, o episódio. Nem que seja só para elogiar em termos genéricos. (O IMDb registra “apenas” 42 entrevistados, mas não me surpreenderia se o total de falantes seja, na verdade, de pelo menos 52, para fazer um brincadeira com o título)
A velocidade e a quantidade levam, apesar das qualidades do filme, maior atenção. Bem diferente da famosa instalação de Douglas Gordon, 24 Hour Psycho, em que o artista decidiu expandir Psicose para que durasse precisamente um dia inteiro. Já não fosse Hitchcock o gênio celebrado que é, o diretor optou por inserir entrevistas com profissionais do cinema, de áreas menos prestigiadas, para que a cena em questão – ou melhor, em reafirmação – possa ser sublimada por todos os 90 minutos.
Entre depoimentos em que exala a história do cinema, de gente como Peter Bogdanovich, Danny Elfman, Guillermo Del Toro, Mick Gravis, Walter Murch; entram também comentários mais jocosos, ligados à recepção, às reações do espectador que (re)assiste Psicose para ver além do ralo da banheira. Nesses momentos, não faltam referências mais pop: figuras como Elijah Wood, Leigh Whannell, Jamie Lee Curtis (filha de Janet Leigh); e os reflexos da cena em produções audiovisuais variadas ao longo desses 57 anos do filme.
Muitas informações e análises vão sendo costuradas nas falas dos entrevistados, depois entremeadas com cenas não só de Psicose, mas de toda a obra de Hitchcock, seja para traçar paralelos, ressaltar a importância do filme para o contexto cultural norte-americano ou evidenciar coerências de auteur; da produção do filme, mostram-se storyboards e roteiros (apesar do livro, e da relação de Hitchocock com adaptações literárias, nunca ser citada); do seu lançamento, as regras que o diretor passava para as salas de cinema e seus espectadores, a reação do público frente à morte da até então protagonista.
É um movimento que em certos momentos até parece sem foco por ir e voltar no tempo e na linha narrativa: passamos de uma leitura crítica do quadro que Bates tira da parede (“Suzana e os Velhos”, do holandês Frans Van Mieris, o Velho) para se tornar voyeur de sua futura vítima (uma das melhores e mais comunicativas análises do documentário), e passamos para um mero falatório de impressões menos valiosas.
O movimento de altos e baixos é desgastante, e essa tendência didática que quer também agradar cinéfilos mais bem embasados acaba alongando o filme. Quem por si só já é convencional, e percebe que tem seus limites, deveria sair de cena um pouco antes. Pelo menos, a abertura do filme respeita a sinceridade hitchcockiana: coloca a dublê de Janet Leigh (Marli Renfro) na cena do banho para reencenar, na atualidade, a entrada no Bates Motel. 78/52 sabe que não chega aos pés de aprofundar Hitchcock como ele merece. Apesar de imperfeito, tenta se legitimar pelo fator homenagem, reverência.
Um brinde à Hitchcock dos colegas do cinema.
78/52 (EUA – 2017)
Direção: Alexandre O. Philippe
Gênero: Documentário
Duração: 91 min
https://www.youtube.com/watch?v=5nHPX3Emup4
Crítica | Mexeu Com Uma, Mexeu Com Todas
O filme militante não é um problema em si. Muitos tem uma importância pontual, passageira ou duradoura. Em tempos complexos, tornam-se inevitáveis. O maior problema com Mexeu Com Uma, Mexeu Com Todas, documentário participante da Competição Nacional de Longas e Médias-metragens do É Tudo Verdade de 2017, é que ele não faz nada além de replicar discursos no seu sentido mais básico, alcançando um aspecto ralo que lembra muito a de um passar de olhos pela timeline de Facebook.
Quem acompanha minimamente o movimento feminista, pela mídia mesmo, já se deparou com os confusos embates ideológicos entre homens e mulheres, e até mesmo entre grupos diferentes de feministas. É fato que a violência contra a mulher está enraizada em diversas culturas diferentes pelo mundo, e são excelentes as entradas que a Arte oferece como uma válvula de escape, de expressão. Porém, é difícil elogiar um longa que confia, do princípio ao fim, na força de imagens (absolutamente figurativas) que estão impregnadas no lugar comum, no protesto que é, na acepção mais contemporânea do termo, “compartilhado”.
Essa natureza do que provoca engajamento, que estimula a atividade do usuário parece ser a única alternativa encontrada pela diretora Sandra Werneck (Cazuza – O Tempo Não Para, 2004). Isto é, o filme alterna entrevistas com mulheres que sofreram abusos, foram assediadas, agredidas (tanto famosas como a farmacêutica Maria da Penha, a atriz Luíza Brunet, a nadadora Joana Maranhão, a escritora Clara Averbuck, tanto com cidadãs comuns, da classe média ou média baixa), e gravações de alguns protestos feministas, disponibilizadas por veículos como o Jornalistas Livres.
Algumas histórias são particularmente difíceis de serem encaradas pela brutalidade dos acontecimentos, paralisam o espectador frente à impunidade dos agressores, com o desenrolar dos casos, das relações de dependência – que, enfim, já todos sabem que existe. O que Mexeu Com Uma, Mexeu Com Todas parece não respeitar é seu próprio título, no final das contas: as entrevistas em série não conduzem um fluxo sólido, rico, em que as histórias se conectam umas nas outras. A lógica, apesar de compor um mosaico, não parece tecer relações de interdependência. Talvez até funcionasse melhor se as entrevistas compusessem um quadro semanal de alguma programa de televisão. Já que não passa muito do senso comum, creio que cumpriria melhor sua função chegando, digamos, de modo mais involuntário para um público que insiste em fugir do assunto.
O movimento feminista não possui um eixo só. Mexeu Com Uma não se propõe a sair da sua casinha. A sensação no final, quando vemos seis garotas cantando a poderosa “Maria da Vila Matilde” de Elza Soares, é de incompletude, mero relâmpago de manifesto, fugaz. Um filme que não adiciona nem subtrai nada de perene ao movimento, nem à filmografia relacionada a ele. Um produto, enfim, espelho plano do fervor de sua época.
Mexeu Com Uma, Mexeu Com Todas (Brasil – 2017)
Direção: Sandra Werneck
Gênero: Documentário
Duração: 71 min