Crítica | Rainha de Katwe
Os estúdios Disney têm um passado sombrio quando falamos da retratação de outras culturas além da norte-americana. Em diversos longas, sejam em live-action ou de animação, o comportamento das personagens segue os estereótipos construídos ao longo do tempo, os quais reforçam o conceito equivocado de soberania racial e ideológica de um povo em relação a outro, relembrando-nos inclusive da vertente eurocentrista de outrora. Entretanto, Rainha de Katwe representa um avanço considerável para a companhia, podendo ser considerada uma das obras de maior identidade dos últimos anos.
A história gira em torno de Phiona Mutesi, uma jovem garota da periferia da Uganda cujas capacidades e habilidades para o xadrez a transforaram em uma das mestras mais jovens do esporte - e não é por menos: sua rápida mente, ainda que destoe da educação recebida por crianças mais ricas, pode prever oito jogadas adversárias. Infelizmente, essa capacidade não se restringe à protagonista, e o público também pode prever os acontecimentos do filme apenas pela sinopse. Afinal, histórias de superação normalmente seguem certos padrões narrativos, e o modo de contá-las deve ser o mais original possível para desviar a atenção do espectador de supostos clichês. Entretanto, a direção de Mira Nair, marcada pelo senso vívido de espaço, e as atuações impecáveis de David Oyelowo e Lupita Nyong'o nos encantam de forma sem precedentes. Até mesmo a aparição da novata Madina Nalwanga nos afasta das predições certeiras, tornando Rainha de Katwe um filme agradável e satisfatório em suas próprias medidas.
Como diversas narrativas de superação, o longa de Nair segue o processo formulaico, apresentando-nos a uma protagonista às margens da sociedade que consegue superar obstáculos impossíveis para alcançar seu objetivo e retornar de forma completamente diferente para suas origens. Neste caso, o incidente incitante que a move é o xadrez. E já aqui podemos esperar que o roteiro de William Wheeler, baseado no livro homônimo de Tim Crothers, usará e abusará de todas as metáforas possíveis envolvendo este jogo milenar. Vivendo na pobre comunidade de Katwe, Phiona (Nalwanga) envolve-se de um modo previsível com este esporte: ao seguir o irmão através das ruas superlotadas da cidade, descobre que ele e outras crianças estão se encontrando com o professor Robert Katende (Oyelowo) para treinarem. Após ser rechaçada pela maior parte das crianças, acaba cedendo aos encantamentos do xadrez e apaixona-se pelas peças de madeira - apaixona-se não; torna-se obcecada (de uma forma positiva).
Acontece que Phiona tem tarefas a cumprir e responsabilidades a manter dentro de uma família comandada por sua mãe Harriet (Nyong’o), cujas desgraças que marcaram seu passado insistem em retornar até nas relações com seus vizinhos, e sua personalidade austera sempre age de forma a proteger, além da garota, seus outros três filhos: Brian, Night e Benjamin, os quais constantemente contradizem as escolhas da matriarca e sustentam os breves momentos de tensão da trama. Mas o foco aqui é como a preocupação exacerbada de Harriet impacta inclusive nos desejos da protagonista. Phiona encontra no xadrez uma salvação, um motivo para deixar sua vida consideravelmente “confortável” - no sentido de acostumada - e ampliar suas fronteiras e sua visão de mundo.
A garota de apenas onze anos logo se torna um prodígio, derrotando o campeão da turma - intitulada Os Pioneiros (nome muito apropriado para o estilo da história) - e atraindo a atenção do professor, que a vê como a principal “arma” para alguma mudança naquela comunidade. A partir daqui, já é muito fácil entender o que vai acontecer: Phiona desenvolve suas habilidades, começando a demonstrar táticas e estratégicas que relembram os estilos dos grandes mestres mundiais do esporte e a quebrar paradigmas tanto de gênero quanto de raça e educação - pelo simples fato dela ser mulher, negra e não saber ler. Sua inteligência e sua capacidade de compreensão sempre estiveram dentro de si, e apenas precisavam de um “empurrãozinho”, um gatilho para atingirem a potencialidade máxima. Assim, começa a participar de torneios regionais, nacionais e internacionais, até chegar a um ponto em que toda a confiança que cultivara dentro de si é utilizada contra ela no campeonato russo, no qual se sente tão pressionada que acaba perdendo de se frustrando a ponto de desistir de seus sonhos.
Obviamente, sabemos que tudo dará certo no final. Os clichês existem por todos os lados, mas não posso negar que Rainha de Katwe ousa além de filmes semelhantes. Cada personagem tem o seu próprio arco muito bem desenvolvido, e eles se complementam como podem. Até mesmo a mercadora e o construtor de chaminés, cujas aparições são ínfimas, mostram-se importantes ao estabelecer contrastes de personalidade com os protagonistas. E essa composição antitética é desenvolvida de forma livre de estereótipos: a disparidade de classes sociais existe até entre os ugandenses mais ricos e os mais pobres. As pessoas em cena são reais e não criações de um imaginário preconceituoso e racista - e o mais incrível é que esses temas são tratados de forma fluida, afastando-se completamente da vertente panfletária.
Outro ponto positivo, como já citei, é a sua identidade: o longa é essencialmente africano. E apesar da produção se equiparar a outras obras hollywoodianas, não há nenhum indício do toque norte-americano na narrativa ou na técnica. A trilha sonora de Alex Heffes é colorida, instigante e entoa perfeitamente com o filme, enquanto a paleta de cores chega a ser musical: uma paleta quente e vibrante que resgata o melhor da cultura a qual somos apresentados. Até a fotografia de Sean Bobbitt afasta-se da construção publicitária - o famigerado “cartão-postal” - e opta por planos mais intimistas e que reflitam a relação entre Phiona e o xadrez, por exemplo, Harriet e seus tecidos (única lembrança do marido e da mãe), Katende e os livros, entre outros.
Entretanto, o filme peca nos diálogos, principalmente em cenas-chave: em uma das sequências primordiais, Wheeler parece admitir que o público não tem capacidade de entender as metáforas com o xadrez e opta por falar autoexplicativas que tiram toda a magia do texto. Entendemos que a ascendência da protagonista correlaciona com o peão se transformando em rainha. Tudo bem, a obtenção de consciência pelas crianças - cuja caracterização é semblante de uma sociedade patriarcal e hereditária - justifica comentários óbvios, mas ainda sim causa estranhamento. Esse seja o deslize mais grave e que persiste ao longo de seus 124 minutos.
Em suma, Rainha de Katwe consegue se afastar de narrativas semelhantes e é capaz de nos fornecer uma perspectiva nova da cultura africana. Mas sem qualquer sombra de dúvida o maior mérito recai sobre a química do elenco e a transgressão dos estereótipos raciais que marcaram de forma negativa os estúdios Disney por tantos anos.
Crítica | Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2
Assim como Star Wars e O Senhor dos Anéis, a saga Harry Potter marcou uma era. Uma década se passou desde “A Pedra Filosofal” e agora tudo acaba depois de oito filmes. É triste ver a cinessérie mais lucrativa da história do cinema chegar ao fim. Foi interessante observar como Rupert, Watson e Radcliffe deixaram de ser crianças e como os filmes foram amadurecendo. A série também acompanhou o fim da minha infância e agora o quase fim da minha adolescência. “A Câmara Secreta” foi o primeiro filme legendado que vi na minha vida então é impossível dizer que “Harry Potter” não foi importante para mim e, por isso, o término da sessão do último filme foi uma experiência triste. Foram 1178 minutos, aproximadamente 20 horas, de Harry Potter ao longo de 10 anos, mas vamos nos concentrar nos últimos 130 minutos desta saga que encantou vários espectadores com sua magia única e especial.
Harry Potter acabou de enterrar Dobby em uma encosta próxima ao Chalé das Conchas, mas não há tempo para lamentar. Potter, Weasley e Granger precisam invadir Gringotes com o auxílio de Grampo para destruir a quarta Horcrux que sela uma parte da alma amaldiçoada do Lorde das Trevas. Porém, o grupo terá muitos problemas para encontrar a quinta Horcrux. Ela se encontra perdida em algum lugar secreto de Hogwarts. Todavia, Harry não sabe que sua invasão desencadeará uma batalha violenta na escola, agora supervisionada por Severo Snape. Será neste evento histórico que o destino de dois mundos será definido no combate mortal entre Harry Potter e Lord Voldemort.
Uma história de gerações
Steve Kloves é um roteirista maleável, imaginativo e ousado, por isso tenho grande afeição por este profissional. A cada diretor que entrava na franquia, Kloves mudava o estilo de sua escrita respeitando as exigências de cada um. Desde o super detalhado roteiro de “A Câmara Secreta” ao resumido de “O Enigma do Príncipe”. Porém seu trabalho em “As Relíquias da Morte: Parte 1” foi exemplar. Com diálogos interessantes e seletas cenas de ação, conseguiu manter a atenção do espectador ao decorrer do filme monótono. Entretanto seu trabalho no último filme da série foi de superar qualquer expectativa. Kloves não perde tempo para situar o espectador que nunca viu algum filme de HP ou àquele que não se lembra de alguns detalhes. Portanto é uma boa dica rever algumas aventuras anteriores antes de conferir a conclusão da saga.
Este é um dos roteiros mais fiéis a história do livro. Depois de assistir ao filme, reli os capítulos correspondentes. Por incrível que pareça, Kloves foi mais atencioso em algumas passagens do livro do que a própria J.K. Rowling. As cenas que se passam na Câmara Secreta não existem na obra original e a batalha de Hogwarts não recebeu o detalhamento épico do filme. Os diálogos ficaram praticamente intocados – 85% deles foram transcritos diretamente do livro. Não há dúvida que as longas conversações e essência narrativa ficaram para o penúltimo filme. Agora o que é a força motriz do roteiro são as várias cenas de ação. Isso é evidenciado pelo resumo de várias conversas importantes como a que ocorre entre Dumbledore/Aberforth e Harry. Entretanto, graças a isso, Kloves deixa toda a história muito bem amarrada, lógica, interessante, rápida e óbvio, divertida. Infelizmente, comete algumas decisões bem duvidosas. Por exemplo, quando remove o diálogo fantástico que ocorre no livro entre Voldemort e Harry.
Surpreendentemente, esses resumos dos capítulos encaixam muito bem para o desenvolvimento do roteiro. O segmento das memórias de Snape ficou mais fluído no filme do que no livro. Existem outras diferenças originais entre as duas obras. Ele deu mais atenção para alguns dos personagens coadjuvantes como Neville e McGonagall, além de inserir reviravoltas imprevisíveis fantásticas. Kloves também é criativo ao relacionar o inédito efeito gradativo da destruição das Horcruxes entre o protagonista e o antagonista. Ele também não perde muito tempo da narrativa desenvolvendo Rony e Hermione – essa meta já atingiu seu ápice na primeira parte do filme.
As piadinhas deram lugar ao drama. Kloves assemelha a direção de Snape na escola com regime fascista absoluto. É notável perceber os dois arcos narrativos do longa. Um acompanha Harry, Rony e Hermione procurando a Horcrux em Hogwarts. Outro, que mostra o desespero do antagonista, é o brinde mais legal do filme. Com isso, Harry e Voldemort ganham uma profundidade nunca vista antes na série. O vilão passa a ficar mais complexo e amedrontador ao utilizar o eficaz terror psicológico e matar aliados com muita violência evidenciando o nervosismo do personagem. Já Harry sofre e amadurece com a morte de vários amigos. O protagonista também consegue se tornar mais verossímil quando faz uma pergunta infantil, mas extremamente delicada para seus parentes. Fora isso, o roteirista tem a oportunidade de revelar segredos obscuros da vida do garoto.
Porém, o aspecto mais interessante do roteiro são as pausas acentuadas entre as sequências de ação. São nelas que ele encontra oportunidade de responder várias questões deixadas ao longo da série. Uma que deixou muitos fãs do livro revoltados com a “Parte 1” era a ausência da dúvida de Harry a respeito da figura bondosa de Dumbledore – nesta parte, Harry chega até a odiá-lo. Kloves tem o direito a sua réplica neste filme com uma frase arrebatadora. Só existe uma questão que não é bem trabalhada no filme. O alarde sobre o patrono de Snape não é minuciosamente explicado podendo plantar dúvidas na cabeça de alguns. Quando estava relendo o livro encontrei a resposta óbvia.
O que o roteiro tem de melhor acaba sendo seu maior problema. A grande fidelidade com os capítulos escritos por J.K. Rowling não permite que o roteiro encontre outras formas de chegar ao clímax da obra. Por isso, o filme se concentra demais em Harry e Voldemort e não acompanha os outros personagens como Fred, Gina, Luna, Thomas, McGonagall, Filios, Slughorn lutando na batalha de Hogwarts. Isto foi um erro que Fran Walsh não cometeu ao adaptar “O Senhor dos Anéis” para as telonas. Em todos os intermináveis filmes desta série, o espectador não ficava concentrado apenas em Frodo, Sam e Gollum. Diversas vezes acompanhávamos Aragorn, Legolas, Gimli, Gandalf, etc. explodindo alguns orcs e elefantes no campo de batalha. Mesmo assim, os poucos erros de Kloves não comprometem o desenvolvimento brilhante do filme.
Harry Potter, The boy who lived… Come to die
Assim como em “X-Men: First Class”, o núcleo de alta qualidade nas atuações é concentrado em três atores. Neste caso, o destaque fica por conta de Daniel Radcliffe, Ralph Fiennes e Alan Rickman. Radcliffe cresceu muito artisticamente e teve oportunidade de trabalhar em peças de teatro e ajudando muito a desenvolver sua capacidade dramática. Ele está absolutamente brilhante em sua atuação. Enfim, Radcliffe conseguiu aproximar a figura mítica e distanciada de Harry com a plateia muito bem. Pela primeira vez consegui observar expressões faciais complexas que conseguem transmitir o espectador toda a tensão que o garoto vive – as caras de sofrimento e medo são espetaculares. Por falha do diretor, Radcliffe não trabalha muito bem sua expressão corporal em diversas cenas. Porém, em outras, toda a insegurança do destino trágico do personagem é relevante na expressão nervosa de seu corpo. Os olhares também são outro ponto alto de sua atuação. Procure reparar no olhar amedrontado que Radcliffe faz em diversas cenas. No clímax acontece o ápice da expressão do garoto e é nessa cena que ele prova sua força artística.
Finalmente, Ralph Fiennes provou ser a escolha certa para interpretar o icônico antagonista. Ele está soberbo encarnando seu personagem. Ao contrário de Radcliffe, Fiennes, com todos seus anos de experiência, dá um exemplo de atuação. Com o destaque proporcionado pelo roteiro, ele teve a oportunidade de construir um psicológico fantástico contando com diversos desdobramentos. Sua dicção rouca, ofídica e sibilante dá efeito a diversas frases que marcaram o filme. A gama de expressões que ator apresenta é incrivelmente vasta. Fiennes deixa bem claro que o antagonista também vive em um momento pavoroso e ameaçador. As expressões são inquietas e desesperadas e seus gestos começam a tornar-se bruscos ao decorrer do filme. Uma coisa fantástica que Fiennes realiza com maestria é a modelagem de seu olhar. No início do longa, Voldemort não tem uma expressão humana, mas a cada Horcrux destruída seu olhar fica mais comum. O ator também evidencia a falta de naturalidade do antagonista. Ele deixa claro que Voldemort só se importa com ele próprio. Isso é muito evidente no estranho abraço do vilão. Assim como Radcliffe, o ápice de sua atuação se encontra no clímax. O único ponto negativo de sua atuação é a ausência da marca registrada do personagem, os famosos gritos “NYYYYYEEEEAAAA”.
Alan Rickman mostrou um lado desconhecido do personagem pela primeira vez em uma atuação dificílima. A cena da penseira tem tanta força por causa da memória que o espectador tem da figura apática de Snape. Rickman desconstrói seu trabalho de dez anos para criar o personagem mais marcante e complexo da saga. Novamente o ar teatral fala mais alto. Nesta cena é visível a fluidez do controle de seu corpo deprimido combinado com o olhar perdido de seu rosto – são várias paixões juntas, é possível sentir o drama, a ira, o amor e a decepção de Rickman. O resultado disso é uma das partes mais emocionantes do filme. Apesar destas novidades fascinantes apresentadas pelo ator, ele ainda trabalha expressões antigas com a mesma naturalidade. O que acho mais legal deste aspecto da atuação dele é a dicção pausada de suas frases. Isso evidencia como o personagem seleciona cuidadosamente suas palavras. O melhor de tudo é que o roteiro explica a origem desta mania de Snape.
Rupert Grint e Emma Watson não apresentam muita coisa nova mantendo o padrão de qualidade dos filmes anteriores. Rupert ainda possui um timing cômico excelente e Watson consegue chorar novamente pela bilésima vez. Parece um mal deste filme, mas o ápice da expressão de praticamente todos atores ocorre no clímax. Rupert e Emma não fogem desta regra. Outra que retorna a boa forma é Maggie Smith. Sua atuação está mais energética e divertida. Finalmente a atriz deixou o pedestal e conseguiu conversar com a platéia. John Hurt é mais um atrativo que o elenco britânico grandioso tem a oferecer. Em apenas uma cena, Hurt conquista o espectador com seus traços misteriosos.
Matthew Lewis também recebe sua chance para brilhar. O garoto surpreende bastante e entrega seu melhor trabalho até agora. Elegante como sempre, Michael Gambon volta a encarnar Dumbledore. O time dos vilões também sabe impressionar. Helena Boham Carter tornou Bellatrix mais suportável graças a pequena participação. Logo no início do filme, Carter amplia sua atuação e prova sua flexibilidade ao adequar-se a diversos personagens. Entretanto, uma expressão me conquistou ao primeiro olhar. É uma pena que o plano dure pouco, mas o sorriso doentio da atriz é certamente cativante. Jason Isaacs continua a evoluir Lúcio Malfoy competentemente. O resultado de seu trabalho destacou o personagem, além de conferir um toque único e original. Tom Felton continua com a boa atuação apresentada em “O Enigma do Príncipe”.
O elenco de apoio também é muito bom. Formado por diversos atores britânicos, os coadjuvantes apresentam atuações variadas. Evanna Lynch, Helen McCrory, Ciáran Hinds, Bonnie Wright, Gary Oldman, Gemma Jones, Emma Thompson, Julie Waters, Mark Williams, Natalia Tena, Geraldine Somerville, Robbie Coltrane, David Thewlis e George Harris completam o grandioso elenco.
Lumos Maxima!
O português Eduardo Serra apresentou ao público a melhor fotografia da cinessérie em “As Relíquias da Morte – Parte1”. Mas o melhor de seu trabalho ficou para o final da saga. O cinegrafista opta por tons mortos, bucólicos, acinzentados, sóbrios e escuros. Ele retrata Hogwarts com cores tristes inferindo que a magia do local foi extinta. Sua fotografia é muito diferente da apresentada por John Seale em “A Pedra Filosofal”. No primeiro filme, Seale apresenta Hogwarts com cores amareladas fortes que transparecem a segurança que a escola oferece a Harry. Agora nenhum lugar é seguro para o protagonista. Serra deixa isso claro inserindo várias sombras nos cenários escuros.
A modelagem das sombras é outro espetáculo que evidencia a complexidade da fotografia. Em inúmeras cenas pude observar que as sombras projetadas pelos personagens eram inexistentes ou muito escondidas. Este efeito é um dos mais difíceis de realizar e Serra o recria com muita facilidade. Sua iluminação é muito delicada e minuciosa. Com o manejo sábio das luzes e das sombras nas faces dos atores, consegue reforçar o poder da atuação de cada um. Outro destaque de sua fotografia é a rapidez assustadora que ele consegue modelar a luz quando ela varia de um tom para outro.
A criatividade do cinegrafista também é posta a prova. Ele inova com diversos efeitos inteligentes de iluminação. Muitas vezes, Serra adiciona flashes de luz nas cenas. Alguns são lentos, suaves e duradouros enquanto outros são rápidos e violentos. Ele também inova com reflexos fantásticos resultando em imagens muito bonitas de se ver. Algumas vezes ele prefere usar distorções complexas e desfoques nos planos com efeitos criados pelas próprias lentes das câmeras.
Apesar do grande predomínio do cinza na fotografia do português, Serra modela outras cores ao longo do filme. O azul e a névoa são presentes em diversas cenas exteriores. Ele é proveniente do truque mais manjado do cinema e que todos cinegrafistas tem a obrigação de recriar. Trata-se da famosa “luz da Lua”. Até mesmo tons esverdeados, cor pouco explorada pelos cinegrafistas modernos, é presente no jogo de iluminação do longa. Já a névoa deixa os demais personagens do plano com uma aparência fantasmagórica. Entretanto, o mais impressionante de sua fotografia acontece quando tem a oportunidade de estourar tons brancos na tela – as sombras dos personagens também desaparecem nesta parte. A maior dificuldade de trabalhar com cores brancas é manter o padrão do tom na mudança de planos. É incrível observar como Serra mantém a mesma tonalidade do branco durante a cena inteira. Também na mesma cena, é possível distinguir leves sombras ao fundo da imagem. Assim ele consegue proporcionar profundidade e noção de perspectiva na cena.
Existem outros dois aspectos da fotografia que são interessantes de comentar. O primeiro é como o cinegrafista consegue oscilar a luz incidente na face dos personagens simulando a iluminação natural das velas ou chamas. O outro é a única cena que Serra satura as cores do filme – novamente o resultado é belo. Entretanto, há um porém em sua fotografia. O cinegrafista, na maioria das vezes, focaliza o primeiro plano deixando o fundo da imagem completamente desfocado. Até então está tudo certo, mas o filme foi convertido para o 3D estereoscópico e por isso o efeito sai pela culatra. Sem o segundo e o terceiro plano focalizado, a sensação de profundidade causada pelo efeito fica comprometida. Se o cinegrafista tivesse usado uma focalização diferente como o deep focus isso não teria acontecido. O primeiro filme da história a explorar devidamente este recurso de algumas lentes e câmeras foi o brilhante “Cidadão Kane”.
Os efeitos visuais também são um espetáculo. Eles conferem ao ambiente mágico e fantasioso do filme uma grande verossimilhança. Existem vários estúdios de animação gráfica na produção do filme e cada um dedica toda a sua atenção para criar um determinado efeito. As melhores CGs do filme são as que compõe o dragão – o melhor já feito até hoje, a estrutura do campo de força e da cobra Nagini – repare como esta reflete as luzes do cenário. Os raios que emanam das varinhas também recebem um detalhamento melhorado neste filme. Já a direção de arte consegue reproduzir fielmente toda a destruição de Hogwarts. O outro ponto alto deste aspecto técnico é a recriação da sala precisa que nunca deixa de me impressionar. Porém a maquiagem erra feio ao envelhecer os personagens que continuam com suas faces joviais – os únicos que convencem são o casal Potter.
Uma série de fatores
As músicas são a alma de toda produção cinematográfica. Quando são feitas com muita competência, conseguem se fixar em sua cabeça. O mestre de conseguir este efeito é John Williams. Suas composições fantásticas conseguem fazer com que o espectador relembre das cenas que acompanhavam as músicas. Com isso, Williams fixou várias músicas-tema na cabeça dos espectadores de inúmeros filmes sendo as mais notáveis de “Indiana Jones”, “Star Wars”, “Tubarão” e “Jurassic Park”. Ele também criou outro tema único em “Harry Potter”.
Por conflitos de agenda, Williams teve que abandonar o posto de compositor da série depois do terceiro filme. Patrick Doyle foi o segundo compositor da franquia e Nicholas Hooper foi o terceiro. Alexandre Desplat assumiu o cargo nas duas partes de “As Relíquias da Morte”e compôs uma trilha memorável e emocionante. Várias de suas composições remetem as músicas dos filmes anteriores da série. Mas isso não quer dizer que Desplat não foi criativo em sua trilha. O compositor foi muito ousado orquestrar músicas tristes e melancólicas em um filme lotado de ação – é muito comum encontrar trilhas energéticas e pulsantes em filmes deste gênero. Entretanto, sua escolha foi sábia, pois o que acontece em Hogwarts é um evento bem depressivo.
Desplat prova seu talento ao ter sucesso em conseguir deixar tambores e violinos em completa harmonia em uma das melhores composições do longa. Algumas músicas que acompanham Voldemort recebem um caimento ameaçador e instável, além de contar com um toque de suspense. E outras, que seguem a batalha de Hogwarts, soam incrivelmente épicas – é impossível não vibrar ou perder o fôlego na cena clímax do filme. Porém a música mais bela é a que acompanha a cena das memórias de Snape. A brilhante sucessão de instrumentos da orquestra emociona. No início, prevalecem suaves escalas crescentes e decrescentes da flauta que transparecem a passividade da cena, mas conforme a música progride, coros lentos de violinos revelam uma atmosfera triste casando muito bem com a cena.
É muito interessante notar que o compositor utiliza diversos instrumentos incomuns nas trilhas sonoras atuais. Ele esquenta as cordas das harpas, o metal de sininhos, flautas e trompetes, a garganta dos majestosos corais, entre vários outros. Mesmo com uma trilha fantástica, bem orquestrada e emocionante, a música de Desplat não consegue superar a força das lembranças que a música tema da série traz. Nas sessões que fui, pude escutar vários espectadores se lavarem sob suas lágrimas nostálgicas provocadas pela inesquecível trilha de John Williams.
567 minutes of David Yates
O aspecto mais original de toda a saga Harry Potter foi a mudança de diretores dos projetos. E todas as escolhas foram certas. Chris Columbus era ideal para iniciar a aventura do bruxo. Seus traços infantilizados e bobos conquistaram os pequenos espectadores. Depois veio o fantástico Alfonso Cuáron, o cara que definiu a forma que a cinessérie iria tomar. Os filmes tornaram-se mais sombrios e maduros após sua direção. Já Mike Newell garantiu um quarto filme explosivo e inquieto. E por fim, David Yates terminou o trabalho de gerações com adaptações resumidas, mas com forte apelo visual. Isso resultou em uma grande variedade nos estilos fotográficos, narrativos e musicais em cada filme.
Yates segurou suas pontas na primeira parte do filme. O diretor preferiu desenvolver lentamente os personagens com pouquíssimas, mas, recompensadoras, cenas de ação. Agora, na segunda parte, arregaça suas mangas e mostra todas as cartas que estava reservando para o aguardado grand finale da saga. O filme possui um ritmo muito bom que não permite que o espectador se distraia. Todas as explosões e pirotecnias ficaram guardadas para o final. A arquitetura das sequências agitadas é fenomenal assumindo descaradamente o posicionamento épico necessário. Além disto, Yates confere um trato dramático único a edição do longa.
Admito que não gostava muito do modo que Yates dirigia seus filmes, mas isto mudou quando eu conferi “As Relíquias da Morte – Parte 1”. E agora, gostei ainda mais do que vi. O cineasta mantém uma atmosfera de intensa tensão durante o filme inteiro. A ambientação perigosa é reforçada pelo silencio perturbador de algumas cenas. Outro ponto alto de sua direção é a maneira que ele consegue contar ótimas histórias a partir dos detalhes – a figura do dragão resume os parágrafos em que Rowling o descreve. Mais um aspecto original do diretor são os contrastes que cria constantemente. Por exemplo, o poder de destruição de feitiços delicados. Ele também é muito criativo na condução das cenas utilizando planos holandeses combinados com movimentos de câmera originalíssimos. Yates acerta ao inserir apenas um slow motion característico no filme inteiro aliada com a bela coreografia – a dimensão que a cena toma é indescritível.
Outro aspecto bem legal de sua direção é as inúmeras referências de filmes anteriores da série que Yates encaixa na composição dos cenários. É preciso estar muito atento, mas é bem gratificante reconhecer esses itens. São estátuas, criaturas mágicas, figurinos, objetos, entre várias outras coisas que o diretor coloca nos cenários. Ele até lembra a mitologia original da bruxaria ao inserir um alarme que lembra gritos de gatos. Ele também merece receber destaque pelo tratamento ideal com os atores.
Mas nem tudo é perfeito no último filme de Harry Potter. O diretor não consegue emocionar o espectador com algumas mortes que eram esperadas sendo que algumas possuem um acabamento artístico muito vagabundo, forçado e inverossímil. O que é difícil de compreender, pois ele consegue deixar as mortes de alguns personagens bem emocionantes e atuadas. Como Yates trabalhava apenas com a linguagem televisiva é comum notar vários enquadramentos em big closes. Alguns são muito bem feitos e originais, mas outros acabam prejudicando a atuação dos atores. O melhor exemplo disto é a cena do entrave final de Harry e Voldemort. Na imagem é possível notar que ambos estão de joelhos dedicando o resto de suas forças para sobreviver. E, assim, Yates perde a melhor oportunidade de transmitir a expressão corporal de Radcliffe. Felizmente, acerta ao enquadrar Fiennes no plano. Apesar de trabalhar muito com closes, o cineasta assume o gigantismo de várias imagens a fim de reforçar a abordagem épica do longa.
Tudo Termina
Tudo que é bom acaba. E depois de dez anos a lendária saga chega ao fim. “Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2”é um filme excelente. Ele não chega à perfeição por meros detalhes, entretanto, conclui a história de modo encantador e satisfatório. É difícil sair decepcionado após a sessão. Porém, mesmo que muitos tenham falado que não aguentam mais filmes sobre o bruxo, é impossível não sentir um nó na garganta quando os personagens se despedem pela última vez em um emocionante fade out. A crítica ficou bem longa porque senti a obrigação de me dedicar para entregar um texto minucioso sobre o filme, afinal eles compõem parte significativa da minha própria história. Acredito que meus amigos bruxos que acompanharam episódios importantes da minha vida mereciam uma despedida a altura das alegrias que me proporcionaram. Pela última vez, o Hogwarts Express abandonou a plataforma 9 ¾. Agora ele não parte para Hogwarts, mas sim para a eternidade.
Crítica | Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1
Desde que o cineasta David Yates assumiu o comando da saga Harry Potter, acrescentou a ela um toque político, sombrio e muito mais adulto do que seus antecessores. Finalizar a franquia é uma tarefa tão complexa que o último filme teve de ser dividido em duas partes - o que também duplicou os lucros exorbitantes da Warner Bros e iniciou a terrível mania de dividir adaptações literárias em dois. Todas as coisas consideradas, Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte 1 traz um pouco de tudo o que Yates foi capaz de trazer à saga durante suas incursões, aprimorado em praticamente todos os aspectos.
A trama é ambientada logo após o desfecho de O Enigma do Príncipe. Alvo Dumbledore (Michael Gambon) está morto, e as forças de Voldemort (Ralph Fiennes) vão se fortalecendo e espalhando-se pelo mundo Bruxo e Trouxa de forma avassaladora, com o Lord agora tomando posse do Ministério da Magia. Deixado com a responsabilidade de concluir a missão de seu falecido professor, Harry (Daniel Radcliffe) precisa encontrar as últimas Horcruxes remanescentes, objetos que contém pedaços da alma de Voldemort e que precisam ser destruídos para garantir o fim definitivo do bruxo das trevas. Junto com os inseparáveis Rony (Rupert Grint) e Hermione (Emma Watson), Potter literalmente viajará o planeta para encontrar os objetos misteriosos e garantir paz à seu mundo.
A começar pelo tom, da atmosfera cinematográfica. Dessa vez Hogwarts nem está presente na trama, o que já incomoda pela sensação de insegurança pelos três protagonistas; não mais jovens estudantes de magia, Harry, Rony e Hermione são adultos lançados em mundo perigoso sem qualquer tipo de proteção – além da magia, claro – e sobrevivendo às custas uns dos outros. Há sempre uma aura de perigo, que Yates cria a equilibra muito bem, sobrando espaço para muitos toques de humor também.
O tom obscuro é fruto do favorável roteiro de Steve Kloves, que agora com mais tempo de projeção pode dar atenção à eventos secundários e desenvolver as situações com mais suspense e emoção. Assim, é comum que tenhamos sequências aqui que não avançam necessariamente a história, mas que são importantes para criarem um atmosfera de perigo palpável; um exemplo é a visita de Harry e Hermione ao povoado de Godric's Hollow durante uma noite de Natal, cena que poderia muito bem ser descartada de uma versão única de Relíquias da Morte, mas que enriquece tanto o longa com o sentimento de isolamento dos personagens (a cena é ambientada durante o Natal) e um clima de suspense incomparável quando a dupla se depara com uma armadilha de Voldemort.
É um filme lento, sem dúvida., ainda mais quando comparamos ao festival de pirotecnia e ação da Parte 2, mas é um ritmo devagar que realmente contribui para a experiência do espectador. A montagem de Mark Day é chave nesse quesito, já que mantém considerável tempo em determinados planos e deixa ação fluir naturalmente. Claro, isso muda quando somos jogados nas excelentes sequências de ação, sendo notável como a montagem torna-se frenética durante a selvagem perseguição em uma floresta dominada por sequestradores de Voldemort - ou como poderíamos chamar, Paul Greengrass' Harry Potter.
A fotografia cada vez mais escura é o outro grande acerto técnico da produção. Sai o ótimo Bruno Delbonnel, entra o competente Eduardo Serra com uma paleta de cores frias, predominantemente cinza – que, claro, alterna em alguns cenários – e paisagens belíssimas de montanhas, rochedos e florestas retratadas de maneira artística, assemelhando-se com pinturas góticas. Visualmente, nunca vimos um filme de Potter como esse, ambientado muito mais em locações externas do que internas - a ausência de Hogwarts também garante isso, já que não temos mais o aconchego e conforto do castelo para segurar os personagens. Outro quesito visual importante e inédito é a inesperada sequência de animação que nos explica a história das Relíquias da Morte do título, utilizando uma técnica gótica e deslumbrante, que nos remete bastante a O Estranho Mundo de Jack.
Mostrando-se ainda mais seguro do que nos anteriores, Yates continua impressionando cada vez mais com sua dinâmica direção. É de se admirar seu vasto leque de ferramentas narrativas, passando por seus enquadramentos, rotações (a panorâmica que revela a transformação das cópias de Potter é de uma elegância ímpar) e pela primeira vez aqui, um uso intenso da técnica da câmera na mão. Esse recurso ganha força durante as sequências mais intensas do longa, especialmente a já comentada perseguição na floresta e a armadilha em Godric's Hollow. A câmera digital de Yates também garante um dinanimso vibrante ao apostar em travellings impossíveis e transições literalmente mágicas em cenas como a perseguição aérea dos Comensais da Morte e a conexão priori incantatem ntre Harry e Voldemort, onde a câmera virtual acompanha o faixo de magia até uma rachadura se formar em uma das varinhas.
Depois de um amadurecimento de 8 anos e 7 filmes, o elenco acompanha e preenche bem esse cenário de trevas. Daniel Radcliffe continua o bom trabalho com Harry, acrescentando mais insegurança ao jovem e o peso cada vez maior das responsabilidades em suas costas. Emma Watson apresenta pela primeira vez uma carga dramática relevante e crível à sua Hermione, já levando a personagem a cantos sombrios quando ela é forçada a apagar sua existência da memória de seus pais, a fim de protegê-los. Mas quem é a grande revelação aqui é Rupert Grint, que finalmente transmite a angústia e o sacrifico que Rony sente em relação a ser apenas “o amigo do Eleito”, resultando em uma pesada discussão entre os dois e um arco dramático mais intenso para o jovem Weasley. E novamente, é um arco que é resolvido dentro do próprio filme e que não machucaria o caminhar da história se fosse simplesmente dissolvido, mas o espectador e os personagens só ganham mais com esses desvios dramáticos.
Apresentando-se mais do que um mero prelúdio e indo além do que apenas preparar o espectador para o último filme, Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1 impressiona pela maturidade e a beleza visual comandada por seu diretor, que conduz a trama magistralmente até terminar em um gancho digno para a conclusão de uma das maiores sagas da História do Cinema.
Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte I (Harry Potter and the Deathly Hallows: Part I, UK, EUA, 2010)
Direção: David Yates
Roteiro: Steve Kloves (adaptação da obra de J.K. Rowling)
Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Helena Bonham Carter, Ralph Fiennes, Alan Rickman, Bonnie Wright, Tom Felton
Duração: 146 Min.
Crítica | Harry Potter e o Enigma do Príncipe
Na época de seu lançamento nos cinemas, era o maior clichê e redundância do mundo atestar como Harry Potter estava cada vez mais sombrio e adulto a cada filme. Até virou uma piadinha com o logo da Warner, que surgia cada vez mais decrépito e sem vida a cada novo longa, desde seu lançamento ensolarado em A Pedra Filosofal até o nevoeiro gélido onde o encontramos em Harry Potter e o Enigma do Príncipe. E sim, caio na redundância ao dizer que o sexto filme da saga é um filme consideravelmente mais sombrio que os demais em muitos aspectos, mas que também surpreende por sua inesperada camada de ternura em tempos tão trevosos.
A trama começa com o mundo bruxo enfim aceitando o fato de que Lord Voldemort (Ralph Fiennes) realmente voltou ao poder, colocando toda a sociedade mágica em alerta e paranóia. Harry Potter (Daniel Radcliffe) ganhou a nova reputação de Eleito para destruir o poder de Voldemort, o que também o coloca em uma posição social diferente ao iniciar seu sexto ano em Hogwarts ao lado de Rony Weasley (Rupert Grint) e Hermione Granger (Emma Watson). Enquanto lidam com os dilemas da adolescência e o aparecimento deu um misterioso livro que ajuda Harry em suas aulas de poções e feitiços, o protagonista deve ajudar Alvo Dumbledore (Michael Gambon) a encontrar pistas no passado de Voldemort que enfim revelem a natureza das horcruxes, objetos que podem finalmente destruí-lo.
O sexto filme da saga traz as obrigações da história de transição. Na realidade, é a transição para a transição, já que haveríamos ainda duas partes para a adaptação de Harry Potter e as Relíquias da Morte, o que inevitavelmente transformaria O Enigma do Príncipe em um filme de ponte. Porém, sob o comando do diretor David Yates - retornando à função após seu trabalho eficiente em A Ordem da Fênix - o longa transforma-se em algo muito mais especial. A atmosfera de perigo iminente e ameaças invisíveis acaba por gerar um ritmo mais lento e tenso por boa parte da narrativa, mas que é engenhosamente equilibrada por momentos mais bem humorados e intimistas dos personagens.
A fotografia brilhante de Bruno Delbonnel é essencial nessa mistura. Apostando em um filtro embaçado e em cores que variam entre o quente e o cinzento, é uma atmosfera completamente imersiva e palpável. Ainda que estejamos vendo uma cena engraçada com os Gêmeos Weasley, retornando aos animados jogos de quadribol ou ouvindo a harmoniosa trilha sonora de Nicholas Hopper, Delbonnel mantém o filtro gélido, já estabelecendo através da imagem que - mesmo diante da diversão - os personagens encontram-se em um contexto perigoso, até mesmo pelos corredores de Hogwarts, aqui muito mais carregados e preenchidos por sombras.
Essa lógica visual ajuda muito o trabalho de David Yates e sua composição. Por exemplo, é revelador como Harry e Rony estão rindo à toa em um degrau acima de todos os outros estudantes em um corredor lotado, já nos demonstrando a "superioridade" dos dois no início do ano letivo ou como Draco Malfoy (Tom Felton) constantemente surge nos cantos da tela ou indo para caminhos opostos aos do demais personagens, ilustrando com perfeição o caráter irreversível de sua jornada sombria. A segurança ameaçada também ganha lindos e significativos retratos, como aquele em que vemos o caloroso Grande Salão do lado de fora, com dois seguranças postos em cada canto da tela para protegê-lo nas trevas. É um filme plasticamente perfeito e sem dúvida o mais bonito da saga, fazendo jus à sua merecida indicação ao Oscar de Melhor Fotografia.
E Yates também acerta quando somos surpreendidos por momentos mais tensos. A cena de abertura já merece aplausos pelo dinamismo e qualidade de efeitos visuais durante o ataque dos Comensais da Morte em Londres, passando pela repentina invasão de Bellatrix Lestrange (Helena Bonham Carter, deliciosamente maligna) na casa dos Weasleys ou quando uma aluna é possuída por um objeto amaldiçoado; fazendo à levitar em forma de cruz no melhor estilo Exorcista. Vale notar também a frieza e o realismo do duelo entre Harry e Draco em um banheiro deserto e cinzento. A ausência de música e o uso de câmera na mão trazem muito mais violência para a cena, algo que Yates exploraria ao máximo no filme seguinte.
Porém, os grandes momentos ficam para o terceiro ato, quando Harry e Dumbledore adentram a uma caverna puro breu para encontrar uma das horcruxes de Voldemort, rendendo uma sequência tensa e digna do cinema de terror bem feito; mérito também de Delbonnel, do trabalho de som e o design das criaturas que atacam a dupla. A outra sequência é logo em seguida, quando testemunhamos o chocante assassinato de Alvo Dumbledore pelas mãos de Severo Snape (Alan Rickman, sempre excelente). É uma cena difícil e que Yates acerta ao mantê-la tensa e silenciosa, sem a presença de música ou muitos diálogos (a edição de som aqui é vital para passar a impressão de algo escondido, na calada da noite), e pelas nuvens negras que circundam o cenário.
É inevitável que em algum momento Harry, Rony e Hermione teriam seus hormônios à flor da pele, e o roteiro de Steve Kloves acerta ao torná-los elementos que servem à trama e não soem como uma distração tola. Ver o início da paixão entre Rony e Hermione é um arco divertido e que contrapõem-se à toda a escuridão, além de render ótimas performances de Rupert Grint e Emma Watson, cada vez mais à vontades em seus papéis. Até mesmo Daniel Radcliffe tem um ano mais leve, sem a pressão de ser chamado de mentiroso no longa anterior ou as ameaças à sua vida em Cálice de Fogo e Prisioneiro de Azkaban, chegando até mesmo no ponto em que brinca com seu status de "Eleito", revelando um lado muito curioso do personagem.
O elenco de apoio continua eficiente como sempre, mas temos um destaque maior do Dumbledore de Michael Gambon e um lado surpreendentemente vulnerável de Tom Felton. Sempre orgulhoso e malicioso como Draco Malfoy, vemos o medo e insegurança do personagem pela primeira vez, à medida em que tenta realizar a missão imposta por Voldemort. A principal adição ao time fica na forma de Jim Broadent como o professor Horácio Slughorn, um antigo colega de Dumbledore que substitui Severo Snape no cargo de Mestre de Poções. Broadent traz uma estranheza e ironia divertidas para o personagem, principalmente quando vamos descobrindo sua conexão com Voldemort e as horcruxes.
Talvez o único demérito do filme encontre-se justamente em seu elemento-título. Não só é completamente descartável para o andamento da trama, o Príncipe Mestiço e seu Enigma ganham um tratamento regular e um desfecho igualmente decepcionante, e confesso que essa falha já estava presente no livro de J.K. Rowling. Aliás, considerando a identidade do tal Príncipe, é decepcionante que tenhamos tão pouco de Alan Rickman no filme, ainda que eu compreenda que seu passado seria melhor explorado nos capítulos seguintes da saga. De qualquer forma, um grande exagero nomear a história por um elemento tão superficial à narrativa.
Harry Potter e o Enigma do Príncipe é um dos mais satisfatórios exemplares da saga, tanto em narrativa quanto em quesitos técnicos. Consegue a difícil tarefa de equilibrar seu clima cada vez mais sombrio com uma camada de ternura ao explorar os trancos e barrancos da adolescência dos protagonistas. É uma eficiente preparação de terreno para o grandioso final e um eficiente estudo de personagens com o melhor cuidado audiovisual possível.
Harry Potter e o Enigma do Príncipe (Harry Potter and the Half-Blood Prince, EUA/UK - 2009)
Direção: David Yates
Roteiro: Steve Kloves, baseado na obra de J.K. Rowling
Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Michael Gambon, Alan Rickman, Tom Felton, Bonnie Wright, Jim Broadbent, Helena Bonham Carter, Robbie Coltrane, David Thewlis
Gênero: Aventura
Duração: 154 min
https://www.youtube.com/watch?v=tAiy66Xrsz4
Crítica | Animais Fantásticos e Onde Habitam (Com Spoilers)
Obs: somente leia após assistir ao filme
Obs2: texto longo.
J.K. Rowling devolveu magia ao mundo. E que época mais propícia para a Warner marcar uma geração inteira com a adaptação do sucesso literário da já histórica inglesa revolucionária da literatura, assim como abalou profundamente o modelo de negócios de filmes licenciados. Um novo milênio surgia e já em 2001 teríamos a primeiríssima aposta em encantar o mundo com A Pedra Filosofal.
Não por mera coincidência que a Warner traria também, naquele ano, a adaptação de Senhor dos Anéis. Estava renascendo um espaço de gênero que havia sido esquecido nos anos 1980. A fantasia épica retornou em sua melhor forma, plantando novos sonhos para uma geração que veio ao sol em uma era profundamente lógica, tecnológica e científica. Nela, sofreríamos uma revolução da extensão do homem de modo nunca visto antes.
Então, esse grande contraste fantasioso que dominou os cinemas dos anos 2000 eram uma bela resposta a tudo isso. Nada mais óbvio do que afirmar como o experimento da Warner foi realmente algo inédito. A geração de 1994, 1995 foi uma das mais fiéis a saga do bruxinho, pois tivemos a oportunidade de crescer quase que no mesmo compasso de idade que os personagens em cada novo filme. Foi algo verdadeiramente mágico.
Mas mesmo para quem sempre acompanhou, a conclusão da saga em 2011 apontava que não seria a última vez que veríamos aquele universo onírico. Obviamente, perder uma fonte de renda tão expressiva como eram os filmes Harry Potter não estava nos planos da Warner e J.K. Rowling já dava as pistas certas para os produtores seguirem buscando atender uma demanda de mercado no tempo de hiato correto: 5 anos.
Harry Potter era apenas a ponta de um universo expandido com sua própria história e diversos personagens interessantes que poderiam ser explorados em obras cinematográficas. Animais fantásticos e onde habitam foi a escolha mais óbvia, de título mais atraente, para fazer Rowling retornar ao seu mágico universo com histórias originais, mas dessa vez desenvolvendo tudo como roteirista.
E, pois, bem, Animais Fantásticos é um excelente retorno da mitologia Harry Potter. Nos cativa justamente por ser um prequel contando as histórias que ocorreram muito antes de Voldemort se tornar a ameaça suprema do mundo bruxo. Nos anos 1926, havia apenas problemas corriqueiros como feitiços defeituosos e criaturas fantásticas perigosas fujonas que colocariam a vida de uns trouxas em perigo. Porém a aventura de Newt Scamander reserva descobertas de ameaças muito mais inteligentes do que a bruxandade esperava.
Partiremos então para a análise com spoiler, nós já recomendamos e discorremos sobre o filme aqui e aqui. Caso não queira saber nada, desaconselho a leitura, mas se já tiver visto e esteja procurando uma análise mais aprofundada da obra veio ao lugar certo.
A fantástica mente de J. K. Rowling
Acompanhamos a chegada de Newt Scamander à Nova Iorque em 1926 trazendo consigo sua maleta mágica repleta de criaturas fantásticas, umas menos amistosas que outras. No caminho para seu destino, se depara com o discurso dos fanáticos Segundo Salemianos, uma organização controlada por uma mulher que carrega profundo ódio contra os bruxos, pregando sua exterminação completa.
Ali, após uma pequena confusão com um no-maj – a designação americana para trouxa, Newt se dá conta que um Pelúcio, uma criatura fascinada por objetos brilhantes, fugiu de sua mala se dirigindo diretamente a um banco. Correndo para resgatá-la, Newt se atrapalha e troca de malas com o mesmo no-maj, um homem rechonchudo chamado Jacob Kowalski.
Desavisado, o pobre trouxa abre a maleta de Newt, libertando diversas criaturas que tocam o caos em Manhattan. Por sorte, o herói encontra Jacob, mas, nessa altura, ‘Tina’, uma ex-aurora do Macusa, já está envolvida com o caso de Newt e trabalhará com a dupla para resgatar todos os animais antes que mais vidas sejam postas em risco. Entretanto, não são apenas animais fantásticos que ameaçam a segurança da cidade. Um poder oculto e cruel agora despertado, trará muito mais desafios para o grupo.
Obviamente, este não é o primeiro passeio de J. K. Rowling em narrativas cinematográficas, mas se trata sim de seu primeiro roteiro feito exclusivamente para os cinemas. Uma grande novidade de uma excelente contadora de histórias. E como é a estreia da autora inglesa em terras novas? Com toda a certeza, posso afirmar que sim, é uma ótima estreia.
Rowling novamente introduz o mundo mágico para o espectador. Não é à toa que Newt, britânico e ex-aluno de Hogwarts, vai para a América. A intenção de Rowling é expandir os conceitos anteriormente vistos em Harry Potter, já que ela não desgrudava o ponto de vista do personagem. Aqui veremos como o mundo mágico funciona, com suas leis e diversas burocracias, sob a legislação do Congresso de Magia dos EUA – Macusa.
Nesse sentimento expansivo justamente se encontra a fisgada para nos encantar novamente. Além da brilhante sacada de mostrar um universo pré-Voldemort e da Guerra Bruxa, concentrando em males menores do início do século XX, nos anos loucos em plena Manhattan em ebulição expansionista enquanto a aura da Grande Depressão avança, além da situação absurda da Lei Seca da época – Gnarlak, sua figura “alcaponesca” e seu bar de jazz é uma representação dos buracos ilegais que vendiam bebidas alcoólicas na época. É um contexto histórico frio, de calmaria, perfeito para inserir a mágica história de Newt Scamander.
Mesmo que Rowling não se aprofunde muito nesse conceito de mundo pós-guerra e pré-crise, seu filme tem uma proposta completamente diferente como já foi explicado. Uma das grandes novidades de sua técnica é a liberdade de ponto de vista. Na saga Harry Potter, raríssimas vezes acompanhávamos o núcleo antagonista, independente da visão do herói – quando acontecia, era justificado através da oclumência.
Aqui não somos restritos aos heróis. O espectador tem mais poder de conhecimento em Animais Fantásticos mesmo que ainda haja um grande mistério pairando sobre esse núcleo. Temos Percival Graves, um personagem mal resolvido na lógica da trama, mas de uso importante para mover o lado antagônico da obra. Ele procura por uma criança de imenso poder e conta com a ajuda de Credence, um dos garotos adotados pela fanática Mary dos Segundos Salemianos.
Mesmo pegando uma temática forte que flerta com a intolerância, preconceito, abusos físicos e psicológicos e que faz referência direta aos julgamentos de Salem e da perseguição de bruxas no século XVII, os antagonistas são bastante esquecíveis – problema próximo ao que havia em A Pedra Filosofal. Não fosse a competência de Ezra Miller em tornar a figura de Credence em uma criatura tão sofrida, seria um núcleo facilmente esquecível.
Miller anda curvado, com olhares sempre congelantes de profunda melancolia e pavor, além de manter postura rija adequada. Onde Rowling acerta no trato do personagem é justificar bem as ações feitas pelo Obscuro que ataca Manhattan. Como o Obscuro na verdade é o próprio Credence, ele ataca justamente quem o maltrata o que, obviamente, mantém o fio narrativo bem coeso no quesito da motivação do personagem. Afinal ele é um adolescente reprimido, abusado e infeliz que só enxerga a raiva para canalizar sua magia.
Rowling é competente nesse didatismo para explicar o que raios são obscuriais, conceitos novos até mesmo para veteranos da franquia. Ao dizer que se trata da supressão de toda a magia existente em uma criança amedrontada, ela tenta fazer de Credence em um Harry às avessas. Um bruxo que nunca recebeu sua carta para Hogwarts e que, por meio de um lar insalubre, aprisiona sua magia para sobreviver.
Essa é uma das grandes reviravoltas do filme, pois Rowling faz de tudo para que o espectador creia que o obscuro seja outra pessoa: a irmãzinha sinistra de Credence, Modéstia. É um trabalho bastante similar à Prisioneiro de Azkaban, onde Rowling também condicionava a opinião do espectador ao apontar tantos dedos para Sirius Black ao acusá-lo como vilão. É o mesmíssimo conceito, porém mais interessante por tratar-se de uma criança que não possui intenções malignas. Clássico jogo do vilão mal compreendido.
Colocar Credence justamente no ambiente que prega a destruição completa de sua natureza é um jogo inteligente de tornar o personagem complexo em poucas cenas. Poder de síntese excelente. Porém, enquanto acerta aqui, Rowling erra bastante com Percival Graves, encarnado pelo ótimo Colin Farrel que busca inspiração no seu papel de In Bruges.
Rowling falha em dizer quem é Graves, qual seu ofício e onde ele se encontra depois que é revelado, no melhor estilo de A Pedra Filosofal e Cálice de Fogo, que o personagem na verdade é Gerardo Grindelwald, interpretado por Johnny Depp. São muitas pisadas na bola com esse personagem, mas, ao menos, ela é competente em expor sua motivação clichê em poucas frases. Novamente, teremos um combate clássico sobre visões extremas da mesma opinião.
Xavier vs. Magneto. Dumbledore vs. Grindelwald. Mesmíssimo conflito. Sobre a escolha da não supremacia da bruxandade sobre a humanidade trouxa.
Também é curioso notar que Rowling insere, timidamente, como diversas políticas do Macusa são retrógradas em relação ao trato com os no-majs – algo similar ao que prega Voldemort, aliás. Mas por se passar em 1926, é evidente que Rowling está explorandoo progresso nas leis bruxas assim como há progresso no mundo trouxa.
Enfim chegou a hora de comentar sobre o outro lado da moeda, o quarteto protagonista encantador de Animais Fantásticos. Nesse núcleo inteiro, mesmo que muito divertido e orgânico, Rowling abusa demais de conveniências narrativas. Coincidências narrativas e o uso diversos animais para safar os heróis de diversas encrencas são recursos utilizados a todo momento.
Enquanto é inteligente ver os bichos se portando de modo mais ativo em favor da narrativa do que antes, também é complicado notar o uso e abuso para solucionar as poucas burocracias do roteiro. Então realmente não há nada que seja gravamente ruim na narrativa criado por Rowling.
Ela acerta bastante com os seletos diálogos do grupo que mimetiza um pouco da personalidade do trio de Harry Potter. Como a narrativa se move rapidamente, exigindo as sequências divertidas das capturas dos animais fujões, são poucos os momentos onde os personagens são devidamente explorados, incluindo oferecendo algum panorama de backstory.
Em diálogos oportunos, descobrimos um pouco mais da vida de Newt, do passado de aurora de Tina e dos sonhos de Jacob, a principal novidade por ser um no-maj que cai diretamente para uma realidade que desconhecia até então – mais uma vez temos um longa com a temática da Caverna de Platão presente como força narrativa.
Desse rol de novos personagens os que se destacam são Jacob Kowalski e Queenie, a irmã bela que lê mentes de Tina. Rowling acerta com excelência nos diálogos entre os dois e na figura de Jacob em geral –auxiliado muito pela excepcional verve cômica de Dan Fogler.
Boa parte da história se concentra na busca de Newt pelas criaturas que fugiram, enquanto tenta lidar com Tina que quer capturá-lo a todo custa para restaurar seu cargo como aurora. Como disse, as motivações são bem definidas para cada um deles enquanto Rowling apresenta, aos poucos, fagulhas de romances que guiarão os próximos filmes. De costume, o romance coadjuvante e proibido entre Jacob e Queenie diverte muito mais por ser baseado em personagens muito carismáticos.
Com Newt e Tina, os dois de persona mais retraída, tímida e corajosa, há outro desenlace de atração entre perseguido e perseguidor. Novamente, jogos clássicos de atração muito genuínos do cinema dos anos cinquenta e seus melodramas. Também gosto de apontar como a roteirista é feliz em definir, na mágica sequência da maleta, o amor de Newt, o magizoologista, pelos seus animais transmitindo assim uma boa dose de mensagens sensatas sobre ecologia e preservação de fauna. É brilhante explorar esses conceitos de uma comunidade bruxa ainda não tão sábia como ela pensa que é.
Apesar do pouco desenvolvimento, Eddie Redmayne configura um charme esquisitão em seu Newt Scamander mesclando tiques e andares curvados vistos em A Teoria de Tudo e A Garota Dinamarquesa. Inclusive, em uma das melhores sequências do filme, Redmayne consegue criar uma dança ritualística ridícula que não chega nem perto de ultrapassar o limiar da vergonha alheia. Tenho a impressão de que improvisou toda a impagável coreografia. É uma atuação ótima condizente com a psique retraída e fofa do personagem. Há enorme potencial aí, basta explorá-lo mais a fundo, apresentando conflitos mais pertinentes ao personagem nos próximos longas para exigir mais destaque ao protagonista que acaba eclipsado pela performance de Fogler.
David Yates e o regresso ao mundo mágico
Quando anunciaram David Yates como diretor de Animais Fantásticos, admito que torci o nariz. Já não gostava do trabalho dele em A Ordem da Fênix e custou para eu reconhecer o quanto havia crescido nos outros três filmes restantes. Porém, ante minha antipatia pela técnica dele, admito que se trata de uma das melhores direções que ele já fez em sua carreira.
Entendendo a proposta de Rowlin, Yates molda a obra para conversar com os melodramas clássicos da década de cinquenta. Mas seu melhor acerto reside na concepção visual e na encenação de todo o núcleo que acompanha o Segundo Salém. A inspiração de casting e figurino não poderia ser mais óbvia: A Tara Maldita e A Colheita Maldita.
Ao pegar essa personificação tão forte de conceitos imagéticos já tão abundantes no imaginário popular, as crianças que vivem na tutela de Mary rapidamente refletem esse conceito. O legal é que Rowling faz uma subversão, tornando o espectador preconceituoso ao já presumir que há algo de maligno e maldito com as sinistras crianças.
Aqui também há melhor trabalho da fotografia, já revelando nítidos contrastes de cor e esquemas de iluminação entre os núcleos antagônicos. Nos que acompanham o Segundo Salém, Yates e o diretor de foto, Phillippe Rousselot, apostam em planos fixos, de cor cinzenta quase monocromática castigada por luzes duras que geram sombras bem destacadas no cenário sintetizando toda a atmosfera opressiva do lugar. O mesmo se dá nos encontros quase paternais entre Graves e Credence, marcados por silhuetas que os envolvem em segredo.
Com os protagonistas, mesmo que a paleta de cores seja também opaca variando em tons marrons, a iluminação é bem mais branda e delicada. Um bom momento de iluminação excelente é concentrado quando o quarteto se reúne para jantar.
Em maior parte, Yates comporta a câmera no jeito clássico dele, a movimentando quando pode. Por outras vezes, tem melhores momentos de decupagem quando o texto exige maior deslumbre visual para encantar o espectador, resgatando aquele sentimento nostálgico das saudades daquele universo. Isso acontece diversas vezes. As mais claras são quando Tina leva Newt para o Macusa pela primeira vez – destaque para a maravilhosa trilha musical de James Newton Howard nesse segmento, e quando temos toda a sequência de apresentação de Queenie, onde ela utiliza magia para realizar diversas tarefas domésticas. Aliás, a decisão de colocar um enorme relógio indicando o grau de periculosidade do contato do mundo humano com o da bruxandade remete diretamente ao famoso doomsday clock que indica os “minutos” antes de situações catastróficas se irromperem.
São cenas que deixam o peito mais quente e, portanto, indicam como Yates está calejado nesse universo conseguindo resgatar sensações tão boas. Logo, se trata de uma escolha muito adequada, além da concepção visual, mesmo que de época, lembrar vagamente os trabalhos feitos em As Relíquias da Morte. Portanto, o espectador tem uma boa conexão visual entre as franquias.
Aliás, no quesito ação, Yates ainda é excelente conseguindo gerar uma intensa sequência de destruição e reparo em Manhattan durante o clímax – uma pena que a concepção visual do obscuro seja tão batida e reutilizada. Ao menos, todos os planos da reconstrução das áreas afetadas pela destruição são fantásticos.
Não há como não mencionar a excelente sequência da apresentação do interior da maleta de Newt, quando Kowalski é convidado para entrar – assim como o público.
É o melhor momento do filme que exibe o desempenho mais criativo de Yates até então na franquia. No uso correto de muitos planos-sequência cria uma encenação inteligente mostrando novas criaturas – feitas com design ótimo e efeitos visuais muito bons, a todo o momento para nos encantar ainda mais. Literalmente, um cena mágica que, graças a concepção visual inteligente, mesclando diversos habitats e cores vívidas no recinto, transmitem toda a sensação de refúgio e segurança que os animais sentem no santuário.
Porém, não nego que é possível um futuro desgaste caso Yates dirija todos os filmes planejados para a franquia. É nítido que esse filme é bastante deficiente no uso de simbologias inspiradas ou de metáforas visuais ricas. A única dica visual que ele oferece é enquadrar tanto Grindelwald e Graves do mesmo modo em suas apresentações já oferecendo a pista de que são a mesma pessoa. Para os fãs, o mistério é facilmente descoberto quando o vilão entrega o símbolo das relíquias para Credence.
Aliás, seria injusto terminar os parágrafos dedicados a Yates sem mencionar o trabalho estupendo em relação a timing cômico. Lembro-me bem de como a sequência de Felix Felicis em Enigma do Príncipe era impagável de tão divertida, porém a atmosfera tão depressiva dos últimos filmes não possibilitava um trabalho concentrado em comédia.
Aqui em Animais, ele finalmente pôde brilhar, pois o filme é muito engraçado. Os alívios cômicos funcionam espetacularmente, além do texto de Rowling sempre encaixar a dose humorística equilibrada em cada ato do filme. Boa parte das gags dependem do talento de Yates em traduzí-las para imagens. Ótimas sequências como as duas capturas de Pelúcio, da comédia non-sense do Zoológico do Central Park até mesmo com o flerte apaixonado das duas duplas.
Outro ponto que faço questão de frisar é o clima tão inspirado em Casablanca para o desfecho dos dois romances. Seja com Newt partindo de volta para o Reino Unido ou com Jacob se entregando para a chuva encantada com poções de esquecimento – uma das atitudes altruístas que ajudam o personagem a crescer muito. São acenos singelos ao melodrama gostoso dos anos cinquenta que casam com perfeição para conferir essa atmosfera peculiar da obra.
A Magia está de volta
É um prazer notar que Animais Fantásticos se trata de um ótimo filme, contrariando as baixas expectativas reservadas para seu lançamento. Apesar de Rowling abusar das conveniências narrativas e tropeçar ao deixar um buraco em seu roteiro, ela consegue trabalhar muitíssimo bem a maioria dos conceitos propostos mantendo a integridade de sua obra, por muito pouco que não se trata de um roteiro redondo.
Também é bem nítido que o público desse filme ainda é o mesmo que cresceu com os livros e filmes Harry Potter. Para crianças novas, talvez não se trate de uma ótima dica, mesmo contando com uma estrutura linear bem simples, de fácil entendimento, além do carisma dos animais diversos e dos personagens cativantes. Talvez haja uma falta de entendimento maior nesse universo para os novatos, o que pode acabar incomodando, mesmo que a história seja forte o suficiente para entreter.
Entretanto, para os órfãos da saga, não há dica melhor. Yates, Rowling e o fantástico elenco conseguiram trazer a magia de volta aos cinemas. E lhes afirmo, já estava mais que na hora do consagrado retorno da franquia mágica que deixou muitas saudades quando partiu da encantadora plataforma 9 ¾ há cinco anos. Querendo ou não, é impossível ficar indiferente tamanha magia que esse filme carrega.
Animais Fantásticos e Onde Habitam (Fantastic Beasts and Where To Find Them, EUA/UK - 2016)
Direção: David Yates
Roteiro: J.K. Rowling
Elenco: Eddie Redmayne, Katherine Waterston, Dan Fogler, Colin Farrell, Ezra Miller, Jon Voight, Alison Sudol, Carmen Ejogo, Johnny Depp
Gênero: Aventura
Duração: 133 min
https://www.youtube.com/watch?v=ViuDsy7yb8M
Crítica | Marias: A Fé no Feminino
Quando estamos em apuros, em quem buscamos amparo? Nas nossas mães, que supostamente nunca nos negam. Seguindo a lógica, depositamos, então, nossas fés na grande mãe, a figura do feminino supremo, Maria.
Em “Marias”, a equipe responsável viajou pelos países Brasil, Cuba México, Nicarágua e Peru entre 2009 e 2013 à procura de diferentes devoções, representações religiosas e relações entre a Virgem Maria e aquelas – aqueles também – que carregam o nome consigo no batismo.
Ainda que o filme coloque como protagonista a mãe de todos (os cristãos), não é uma obra sobre religião. “Buscamos a devoção mariana que evoca o feminino, a mãe, que cuida, que ouve. Não é preciso ser devoto para se encantar com estas histórias", conta Joana Mariani (até ela carrega a alcunha no sobrenome), diretora estreante do documentário. “Saí para fazer um filme sobre a Nossa Senhora. Acabei voltando com um filme sobre o feminino”, termina explicando que as viagens, pesquisas e convívios durante esses quatro anos de filmagem mudaram a forma como enxergava a concepção do projeto.
A fé mariana das Marias é delineada de forma afetuosa, com base em suas memórias. É longa a lista de entrevistadas, que traz uma amostra bem diversificada de mulheres e ofícios. Uma das histórias mais interessantes é justamente a primeira, protagonizada pela restauradora e funcionária do MASP, Maria Helena Chartuni. Em 1978, um “fanático” adentrou a Basílica de Nossa Senhora da Aparecida (Aparecida, SP), local onde a santa padroeira do Brasil fica alojada, e atirou a estátua sacra no chão. Maria Helena foi designada para cuidar do restauro e conta que “quando chegou, em uma caixa, toda quebrada, senti pânico”. Ela, que era cética até então, garante que ao ficar sozinha com a santa teve momentos de paz e revelação. "Restaurei a imagem e ela restaurou minha alma, meu espírito, minha vida", complementa.
Algo que atrapalha um pouco na assimilação dos relatos é o amálgama de Marias que o documentário se torna. No meio do filme, o espectador já não se lembra mais quais Marias falaram o quê e de onde eram, com exceção de alguns casos mais notáveis. Os relatos, ao mesmo tempo, ficam mais lentos e repetitivos, o que pode até ajudar a explicitar a mensagem que, segundo a diretora, “Maria somos todas nós, mulheres. Até as que não se chamam Maria ou não creem são influenciadas por ela”.
Há 24 países na América Latina e todos têm como padroeira a Virgem Maria. Mesmo sabendo que cada culto seja distinto um do outro, o fato da figura ser tão grande acaba tornando-a fundamental na identidade do povo latino. Na simbologia, Maria carrega consigo um grande poder da força feminina, o que dá ainda mais relevância para sua imagem nos tempos atuais. É um filme maçante, mas que pode servir como inspiração ou mesmo preencher a curiosidade para as(os) interessadas(os). E se você tem em si o santo nome em nome próprio, corra para os cinemas que as Marias entram de graça na primeira semana.
Crítica | Harry Potter and the Goblet of Fire
Não deve ser uma tarefa fácil lançar um game junto à estreia de um filme, e a EA Games foi capaz de realizar um trabalho muito decente com adaptações dos três primeiros filmes de Harry Potter. A Pedra Filosofal e A Câmara Secreta seguiam o mesmíssimo padrão e jogabilidade, em um sistema clássico de missões, chefões e passagens de nível. Pela primeira vez, O Prisioneiro de Azkaban avançou de geração e garantiu a possibilidade de explorarmos o castelo de Hogwarts em um sandbox divertido e revolucionário para seu tempo. Então quando chegamos ao Cálice de Fogo, o game não deixa de ser mais uma inovação, ao passo em que representa um passo para trás.
Na verdade, experimento é a palavra mais adequada aqui. Provavelmente evitando repetir a fórmula e a estrutura dos demais, os desenvolvedores da EA optaram por um formato radicalmente diferente. Não temos mais o mundo aberto do anterior, mas temos a possibilidade de viajar livremente por todos os níveis do jogo, e esse constante retorno é a grande mudança na série de games. Por exemplo, como a trama envolve a chegada do Torneio Tribruxo, o jogador tem a missão de encontrar "Triwizard Shields" em cada fase, e só é possível destravar as fases seguintes se obtermos a quantidade desejada desses objetos.
É uma opção interessante por fazer o jogador explorar diferentes possibilidades em níveis já concluídos, que oferecem diversos desafios e modos de combate alternativos. Porém, a estrutura pode cansar e tornar-se repetitiva muito rápido, ainda mais quando somos forçados a coletar 11 escudos Triwizard, sendo obrigados a recomeçar o nível no momento em que obtemos um - não é possível embarcar de única viagem para coletá-los, temos que sair, voltar ao menu e selecionar novamente a fase desejada.
Outro fator que contribui para o rápido esgotamento é a jogabilidade. Aliás, é mais uma das inovações que Cálice de Fogo oferece, com a possibilidade de um multiplayer cooperativo. Em cada nível, podemos escolher entre jogar com Harry, Rony ou Hermione (não é possível realizar a troca durante o gameplay, tal como era em Prisioneiro de Azkaban), e o jogo oferece inúmeros desafios que necessitam da cooperatividade entre os personagens. Seja para juntarem as varinhas para levitar um pedregulho enorme ou combinar diferentes feitiços para criar novos ataques; enquanto Harry levita uma criatura, o feitiço de ataque usado por Hermione transforma-se em uma nova forma de encantamento, garantindo mais XP e recompensas para o jogador.
Mas ainda que seja uma mecânica dinâmica e funcional, esgota rapidamente. As batalhas com criaturas são repetitivas e baseadas em apertar botões rapidamente para vencê-los, com a exceção do mecanismo cooperativo descrito no parágrafo acima. O motor gráfico do jogo é até que decente para um jogo lançado em 2008, e convence principalmente no design das bizarras criaturas que encontramos ao longo da história e pela variedade dos cenários - a expansão do Banheiro dos Monitores é particularmente fascinante, onde os designers criaram uma gigantesca caverna para explorar a tubulação do local.
O grande diferencial fica com as fases dedicadas ao Torneio Tribruxo. Todas elas são julgadas pelo critério de tempo, sendo recompensadas por medalhas e três escudos de acordo com a classificação (Ouro, Prata e Bronze). A missão da primeira tarefa recria o espetacular voo de Harry em sua Firebolt enquanto é perseguido pelo feroz dragão Rabo Córneo Húngaro, onde ganhamos o controle da vassoura e voamos pelo cenário virtual que se movimenta independentemente. Como jogador, nossas principais funções resumem-se em atravessar aros de velocidade que dão um boost para a Firebolt, passar por círculos de feijões para XP e, claro, não morrer.
A segunda tarefa fica mais interessante quando mergulhamos no Lago Negro. Os mesmos princípios são mantidos, com os aros de velocidade (aqui formados por Guelricho) e feijões, e a câmera independente. A grande diferença fica na duração da fase, que é consideravelmente mais longa, e nas criaturas que atacam Harry durante seu percurso. É uma boa diversão, mas repetitiva e cansativa à medida em que nossos únicos obstáculos resumem-se a destruir corais e destroços de navio no caminho.
Por fim, temos as últimas duas fases que consistem na tarefa do Labirinto e no confronto com Voldemort. A primeira também baseia-se no fator tempo, além de termos feijões para coletar e raízes de árvore malignas para confrontar. O grande barato é o enquadramento o da câmera durante a fase, que mantém-se levemente elevado, para que possamos ver a dimensão e as passagens do labirinto, mas também centralizado de forma que possamos ver os personagens perfeitamente. É fácil de se perder e provavelmente é a missão mais divertida do jogo, ganhando ritmo quando somos jogados na perseguição para a taça da Chave de Portal.
Já o confronto com Voldemort é mais simples do que poderíamos imaginar, com duelos de feitiço no cemitério da família Riddle e um duelo com o Lorde das Trevas através da conexão priori encantatem. A jogabilidade é criativa por controlarmos justamente a energia das varinhas durante a conexão, e o jogo torna-se mais empolgante quando Voldemort começa a jogar uma estátua gigantesca em cima de Harry, sendo necessário destruí-la justamente com a priori encantatem.
Harry Potter e o Cálice de Fogo é um acontecimento curioso e fascinante dentro da saga de games de Harry Potter. É surpreendentemente intimista e faz bom uso do co-op, ao passo em que deixa a desejar em termos de exploração de universo e um escopo maior de narrativa. Porém, vale a visita e os desafios do Torneio Tribruxo.
Crítica | Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban
Obs: contém spoilers. Texto longo.
Eu juro solenemente não fazer nada de bom
A audácia marcou a produção do terceiro episódio da franquia Harry Potter nos cinemas. Rowling conquistou o mundo literário em 1997. Não pouco depois, em 2001, conquistaria os cinemas e uma geração inteira de fãs, além de calcar um novo modelo de negócios copiado até hoje sem um substituto digno da qualidade cinematográfica da cinessérie.
O amadurecimento, enfim, deu as caras na saga do bruxo mais amado do cinema. Depois de dois ótimos filmes, o anúncio da saída de Columbus da direção pode ter deixado alguns um tanto aflitos, pois em 2004, Alfonso Cuarón não era um nome muito conhecido tendo trabalhado apenas em um projeto infantil, A Princesinha.
Entretanto, a escolha da Warner pelo mexicano não poderia ser mais acertada. O cara entregou o melhor filme Harry Potter que temos até agora e terei o prazer de lhes explicar o porquê. Então se acomode, fique tranquilo e prepare-se para uma boa leitura, afinal é um privilégio discorrer sobre um filme tão inteligente como este.
Tempos de mudança
Harry está com 13 anos, morando com os destetáveis Dursley. Sua rotina fugaz sofre uma reviravolta com a chegada de tia Guida, uma senhora mais desprezível que toda a família-trouxa aglomerada em um espaço apertado, com fome, sono e sob um calor escaldante.
Em mais uma discussão acalorada sobre a memória de seus pais, Harry acaba inflando a tia Guida, a condenando à uma vida flutuante. Possuído por raiva, o adolescente abandona a casa dos Dursley e se dirige ao Caldeirão Furado – que fica em Londres, importante ressaltar. Antes de adentrar o noitibus andante, Harry observa uma figura nada amistosa se escondendo entre os arbustos, o observando.
Retomando seu contato com o mundo mágico, o jovem bruxo reencontra seus grandes amigos Rony e Hermione discutindo sobre o rato Perebas e o gatinho que o tenta caçar incessantemente. Lá, Arthur Weasley o alerto sobre a fuga de Sirius Black, o primeiro detento de Azkaban a ter conseguido fugir do local maldito e isolado. Black foi um amigo do casal Potter que vendeu a informação para Voldemort descobrir onde estavam escondidos. E sabendo da existência de Harry, Black fará de tudo para matá-lo em tributo ao Lorde das Trevas.
O clima de retorno à Hogwarts é sombrio, depressivo e implacável. Ignorando os conselhos de todos, Harry volta para a escola mágica, porém, dessa vez enfrentará perigos ainda mais ameaçadores graças à presença dos guardas desalmados de Azkaban, as criaturas chamadas de Dementadores, que possuem voraz apetite pelo espírito forte de Harry Potter. Os desafios do ano letivo nem chegarão perto ao sentimento real de ameaça que trio enfrentará no terceiro ano em Hogwarts.
O horror intransponível da adolescência
Se podemos apontar o principal discurso de Prisioneiro de Azkaban, em mais uma execução exemplar de Steve Kloves no roteiro, é sentir pela primeira vez o peso da enorme responsabilidade que recai sobre os ombros de Harry. Isso muito tem a ver com a chegada de seu 13º aniversário. A entrada pela adolescência denotada pelo número místico é algo importante para diversas culturas. Marca sim um pré e pós o ritual da fase que flerta com a idade adulta, mas que ainda corre para os pais em busca de amparo e proteção.
A mudança já é sentida por uma perturbação básica no ritual inicial dos filmes da saga. Harry combate ativamente, pela primeira vez, os abusos cometidos na casa Dursley. Ao contrário de A Pedra Filosofal e Câmara Secreta, o protagonista não se acovarda ou se resigna diante do conflito. Ele segue diretamente para o combate com a tia Guida, pouco se importando com as consequências. Antes, inapto e angustiado, esperando o resgate. Agora, movimentado, cometido pelos impulsos emocionais da adolescência como a raiva e a inconsequência.
É aí que já vemos os acertos de Alfonso Cuarón com o duro contraste entre o ambiente hostil, mas ainda seguro da casa Dursley, com as ruas mal iluminadas, úmidas, abandonadas e silenciosas. Ali vemos Harry completamente desamparado. Eis o 1º dos inúmeros choques de realidade que o protagonista tomara nesta aventura, menos mágica e mais perigosa, humana.
A questão de que esse longa trará muita movimentação já é abordada no próprio título de abertura do longa. Sob o efeito catártico do Lumus Maxima, o letreiro “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” se movimenta altivamente.
O flerte com a independência logo se arrefece no momento que chegamos ao Caldeirão Furado. Ali, se inicia outro trabalho presente no texto inteiro de Kloves, algo bem inteligente. Ao longo de toda a aventura, teremos alternâncias, quase matemáticas, entre momentos felizes e de onirismo impossível contrastando com sequências que jogam, cruel e violentamente, o protagonista para a realidade de que ele ainda é um garoto, de certa forma, amaldiçoado e, portanto, seus desafios levarão a caminhos muito tristes até a conquista do triunfo – como nós bem sabemos, isso é comprovado pelo restante dos outros filmes.
Após ser confrontado a respeito do uso de magia fora de Hogwarts (negativo), Harry reencontra seus amigos (positivo), porém, pouco depois, Arthur o puxa para uma conversa avisando que Black irá persegui-lo e mata-lo (negativo). Então retornam características do texto que novamente denotam a mudança de tom, anteriormente mágico e humorado, para esse sombrio e opressivo.
Qual melhor jeito de mostrar como Hogwarts não está segura tornando a clássica sequência da viagem do trem, um ambiente tão vivo e colorido, em uma verdadeira sequência de horror e desolação? Pois é exatamente nela que temos a introdução de duas peças-chave da narrativa: os dementadores e o Remo Lupin, o novo professor de defesa contra as artes das trevas – o cargo sempre rotaciona na saga como sugestão de que o mal é uma entidade muito poderosa a ponto de expelir sempre o patrono que, supostamente, deveria ser o porto seguro dos alunos.
A partir disso, o roteiro se assume nesse enorme vai-e-vem entre o positivo e o negativo, na lembrança que Harry estará em constante perigo, sempre. Outra sequência clássica é alterada, mais sóbria e menos feliz, apresentando um novo Dumbledore. Com a morte de Richard Harris, houve uma dor de cabeça para encontrar alguém que sustentasse o grande trabalho do britânico.
Em boa decisão, Michael Gambon entra em cena, já captando as mudanças de ares propostas por Cuarón e da exigência do texto de Kloves. Gambon encarna um Dumbledore um tanto quanto menos amistoso, mais rígido e enigmático. Novamente, outro indicador de maior independência para Harry neste terceiro ano. Mesmo assim, Gambon acerta quando o papel requer mais afeto com o trio de protagonistas.
Kloves, apesar de mais enfático no lado sombrio de seu texto, dá folga a Harry em algumas sequências que marcam o humor tão sutil do filme. Outra boa característica do filme é seu flerte com a nova disciplina, ‘Adivinhação’, marcada pela presença genial de Emma Thompson como a profa. Trelawney.
Cuarón e Kloves trabalham intensamente com diversos foreshadowings para oferecer dicas de que a narrativa brincará com o tempo, não só denotando a mudança e amadurecimento, mas sim como parte ativa para o desenrolar da trama. Muito disso marca o tom leve do filme com as constantes piadas de Rony se espantando com a presença-surpresa de Hermione em diversas classes que ela não poderia cursar, afinal batiam com o horário de outras matérias.
Essas premonições também podem ser auto-explicativas como tudo que envolve o Sinistro, Sirius Black. Outras já são mais visuais, requisitando a acuidade imagética de Cuarón como as pegadas de Harry na neve enquanto ele caminha para Hogsmeade que logo se tornam pegadas voyeur do Mapa do Maroto – outro artefato mágico que pertenceu ao pai do protagonista que retorna para suas mãos.
Com a narrativa tão poderosa em tantas coisas, o que sobra para o trato dos personagens? Muita coisa, acredite. Com Harry, muito já foi explorado no texto, sobre a crescente mudança de atitude, de pinceladas claras de isolamento, da subversão de sequências anteriormente alegres e do primeiro contato com a prospecção de um futuro mais zeloso com Sirius Black, um tutor afastado injustamente. Novamente vemos ele lidar com a dor de outros personagens como Hagrid e Lupin, além de ter o contato valioso sobre um pouco mais do passado de seus pais.
Nesse longa, Rony e Hermione são um pouco mais apagados, reforçando a sensação de isolamento proposto pelo roteiro e direção. O legal é a inversão do jogo visto em Câmara Secreta. Dessa vez é Rony quem fica acamado, permitindo maior interação entre Hermione e Harry no clímax do filme. Em tom de mudanças, quem mais se destaca é Emma Watson mostrando um lado menos correto e chorão de Hermione, levando a personagem a ser mais proativa na ação do longa.
Até mesmo com Remo Lupin, há uma bela síntese entre a boa e a má natureza do homem. Dividido entre razão e instinto, além da dor em causar morte e destruição sem intenção. Lupin sabe que é refém de si mesmo e projeta o afeto que tinha por Lily em Harry. Logo todas as cenas com os dois personagens são excelentes e profundas, com diálogos bem construídos. O tema do foreshadowing retorna com o personagem ao encarar o bicho-papão, outra sequência bem enfática sobre o contraste da descontração vs. perigo real e imediato.
Assim como tantas outras coisas, obviamente que os dementadores também possuem sua própria simbologia nítida no longa. A representação é clara: os seres malditos são a personificação do estado depressivo/deprimido de muitos personagens como Harry, Lupin, Sirius, Pettigrew, Hagrid e Bicuço. Criaturas melancólicas e esquálidas que só removeram o encantamento de um lugar encantado.
Se não esperávamos mais surpresas no texto de Prisioneiro de Azkaban, eis que Rowling e Kloves entregam uma peça de terceiro ato absolutamente fantástica: os dois clímaces da obra. O conceito de viagem no tempo encanta pela pouca burocracia que foi apresentada aqui. O mais interessante, o uso não tem a finalidade de corrigir os erros dos personagens, mas sim em realizar mais ações no mesmo período de tempo.
A graça do primeiro desfecho se dá na grande reviravolta que marca o desenvolvimento de Sirius Black. É a total subversão dos conceitos criados até então, mostrando que o antagonista nada mais é do que um injustiçado que sofreu por décadas em Azkaban. O diálogo entre Lupin, Harry, Sirius, Snape, Hermione e Rony na Casa dos Gritos é excelente por ser curto, trabalhando mais com a “mostração” das evidencias do que uma longa exposição de diálogos. Excelente ponto em fazer o espectador perder completamente seu chão assim como com Harry, afinal a visão dos dois foi muito bem manipulada em toda a história.
Com essa jogada, o roteiro resolve seus próprios deus ex machina que marcam o 1º clímax como a desistência de Lupin perseguir a dupla ou da conjuração do poderoso patrono. Outro bom conceito bastante aprazível é um trabalho de simbologia ainda mais elaborado com a libertação de Sirius, Bicuço e Harry. Os dois representam todo a esperança de liberdade que o bruxo possui, então a decapitação é traumática justamente por isso. A libertação ocorre com a conjuração do patrono, anteriormente projetado como um resquício infantil da psique de Harry ainda esperando uma ajuda conveniente (pedra filosofal, fênix e espada de Grifinória) na ressurreição do pai. É um belo momento de catarse e superação onde Harry caminha definitivamente para ser o herói de sua própria história.
O homem que mudou o Jogo
Se tudo isso que explorei é de fácil interpretação, foi porque o trabalho da direção não foi nada menos que perfeito. E realmente foi. Cuarón chutou o balde com sua direção impecável em traduzir o longa para tocar diversos espectadores de todas as idades. A escolha era uma das mais acertadas para estabelecer a adolescência dos personagens devido o talento de Cuarón em E Sua Mãe Também.
Porém, mesmo que o diretor trabalhe bem com os conceitos de amadurecimento, de fazer cada um ter seu próprio estilo usando vestes normais ou customizando os uniformes para o uso dos alunos, indicando um clima mais despojado, seu verdadeiro trabalho reside na magnifica encenação.
É muito raro encontrar qualquer sequência de Azkaban que seja completamente estática. O diretor sempre está movimentando sua câmera para lá e para cá, com extrema sutileza elevando o conceito de câmera invisível, além de ter elevado o padrão de realismo da saga para níveis nunca alcançados antes. São diversos planos-sequência com muitos efeitos acontecendo ao mesmo tempo conforme há toda a encenação – por exemplo, todas as cenas do salão do Caldeirão Furado.
O motivo da câmera se movimentar tanto também é para reforçar o tom de transformação que a narrativa exige, além de nunca sugerir um terreno seguro, revelando uma atmosfera de possível desconforto e desconfiança. Ora trabalha com bastante contemplação para as cenas estacionárias que exigem esse respiro para que os personagens tenham interações mais profundas.
Cuarón oferece o insight da mudança justamente na cena crucial da revelação que Black está atrás de Harry. Na encenação, Arthur isola Harry no canto do quadro, enquanto conversam debaixo do alambrado do Caldeirão. Nos pilares que emoldura a cena, há diversos pôsteres de procurado de Black, o colocando como um espectro que ronda Potter. No ótimo jogo de encenação, os pilares sempre separam Harry de seus pontos de segurança até quando Arthur o leva para o isolamento completo, na escuridão.
Enquanto o roteiro trabalha muito com o tempo e transformação, Cuarón, além de ter que ilustrar isso, também fica a cargo de desenvolver esse sentimento de isolação que aflige Harry, dele finalmente se tocar que o fardo de ser o Eleito é somente seu e encarar todas as terríveis passagens que isso o trará.
O diretor indica isso com a canção original Double Trouble, um aceno à obra de Shakespeare, enquanto avisa que algo de maléfico vem por aí – Voldemort.
Mesmo com tudo isso, ainda o que descrevi aqui é limitar o trabalho de Cuarón. O cineasta tem muito respeito por diretores-mestre da sétima arte. Ele faz questão de frisar isso. Spielberg é um deles. Repare na quantidade absurda de similaridades que há na sequência sombria onde os dementadores são apresentados com a introdução do Tiranossaurdo em Jurassic Park. Lhes garanto que não serão poucas. Inspirado em um grande mestre, Cuarón basicamente constrói a sequência mais horripilante que já tenhamos visto em um filme Harry Potter, provocando o primeiro enorme choque de atmosfera que ele representa.
Em outro momento, com mais sutileza, acena para Hitchcock com planos fechadíssimos de corvos voando histericamente assim como em Os Pássaros.
O trabalho é tão competente que temos momentos que emanam o verdadeiro significado de Cinema. Concentremo-nos no terceiro ato do longa, a partir do momento que Harry e Hermione voltam no tempo – também outra metáfora de desejo por parte de Harry em busca de amparo e tempos melhores. Assim que eles abandonam a enfermaria, passando pela torre do relógio, a câmera de Cuarón voa e atravessa os mecanismos do relógio até passar pelo vidro. Aqui, temos outra piscadela indicando que os personagens saíram do tempo e, portanto, fugiram das regras naturais.
Isso é confirmado logo quando a dupla fecha o loop, ao retornar para a enfermaria. Cuarón eleva a câmera no pátio e atravessa novamente o vidro e os mecanismos do relógio, agora indicando a normalidade de tudo, com o mecanismo girando no sentido natural. Sutileza e inteligência.
Outro grande momento se dá em diálogo entre Harry e Hermione, enquanto esperam toda a ação na Casa dos Gritos transcorrer. Antes da transformação de Lupin em um lobisomem esquálido, patético e choroso, Harry conta à Hermione que Sirius ofereceu a tutela novamente. Então ele divaga e sonha com uma vida romântica e bucólica com o primeiro contato real de família que teve.
Ali, a iluminação estupenda de Michael Seresin atinge a face direita dos personagens, porém assim que gritos começam a surgir, ela subitamente muda para o lado esquerdo, como se jogasse novamente Harry para a realidade inóspita e perigosa que vive.
Metáforas com espelhos, vidros, luzes, movimentação de câmera e até mesmo com diversas sequências fabulosas explorando a geografia de Hogwarts e indicando as passagens das estações através da folhagem do Salgueiro Lutador, são meios que o diretor utiliza para transmitir suas poderosíssimas mensagens.
Há tanto mais o que falar sobre a técnica de Cuarón que eu tornaria esse texto em um verdadeiro pergaminho digno das aulas de Snape. O que tento provar aqui é a vasta superioridade de linguagem e significância cinematográfica que o mexicano possui. Ele eleva Harry Potter para o estado de arte ao nos impactar e chocar de tantas formas possíveis – isso inclui aqui a rígida paleta de cores monocromáticas puxadas para tons neutros como variações de azul e cinza, abandonando completamente a saturação alegre vista nos anteriores.
A Magia do Cinema
Aqui, confio uma confissão. Na primeira vez que vi a Prisioneiro de Azkaban, tinha apenas dez anos. Naquela fase da vida onde não somos muito bem crianças, mas também nem chegamos perto de sermos adolescentes. Eu ainda aguardava com muito encantamento pelo terceiro título e estava completamente desligado dessa mudança completa que ele traria.
Logo, apesar das fortes emoções que o filme me proporcionou, eu tinha me convencido de que não havia gostado do filme, mesmo compreendendo sua história em totalidade – algo que sempre irei aplaudir o trabalho das produções Harry Potter em deixar os filmes tão compreensíveis para crianças pequenas, afinal eu já tinha visto os dois primeiros quando era ainda menor.
Hoje eu consigo reconhecer exatamente o motivo de eu não ter gostado na época enquanto confio nota máxima atualmente. Assim como Harry, antes de conjurar o patrono, eu não queria largar o encantamento ingênuo presente em Pedra Filosofal e Câmara Secreta. Não estava pronto para me desgarrar completamente daquela magia aventureira que flertava com o perigo mais sutilmente. Aqui fui confrontado com um universo pálido, sombrio e depressivo. Era um amadurecimento semiótico para o qual eu também não estava preparado.
Agora vejo isso como uma passagem até mesmo bonita em minha vida. Reconhecer a qual ponto um filme pode te marcar e ainda assim, nos recordarmos de sensações provocadas há doze anos. Cuarón e Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban não só me apresentaram, em outra adivinhação, as grandes dificuldades que a vida aguarda e que nós não temos as menores condições de negá-las, mas como também me educou cinematograficamente.
Se há algo que podemos afirmar em todos esses filmes Harry Potter é o excelente serviço que ele prestou e presta para diversas novas gerações em seus primeiros contatos, íntimos e honestos, com o cinema da mais verdadeira qualidade:
O verdadeiro Cinema.
Malfeito feito.
Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (Harry Potter and the Prisoner of Azkaban, EUA/Reino Unido, 2004)
Roteiro: Steve Kloves, baseado no livro de J.K. Rowling
Direção: Alfonso Cuarón
Elenco: Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson, Gary Oldman, Michael Gambon, Alan Rickman, Maggie Smith, Julie Christie, Timothy Spall, David Thewlis, Fiona Shaw, Emma Thompson, Richard Griffths, Robbie Coltrane, Tom Felton
Duração: 142 min.
Crítica | Um Estado de Liberdade
O cinema norte-americano tem mostrado atualmente um grande interesse pelo período final da escravidão, durante o século XIX. Só prestar atenção que em menos de quatro anos foram feitos “Django Livre”, “Lincoln”, “12 Anos de Escravidão”, “O Nascimento de Uma Nação” e agora é lançado “Um Estado de Liberdade” (Free State of Jones).
Mesmo a qualidade dos filmes sendo questionáveis às vezes (Lincoln), são importantes para retratar a crueldade desse período. Dito isso, “Um Estado de Liberdade”, novo trabalho de Gary Ross (“Jogos Vorazes” e “Alma de Herói”) conta uma história muito importante, mas que por conta de alguns problemas não consegue ter a força de “12 Anos de Escravidão” ou de “Django Livre”, mas não chega a ser um filme ruim.
Durante a Guerra Civil Americana, o soldado da Confederação, Newton “Newt” Knight (Mathew McCounaughey), decide fugir da batalha após a morte do seu sobrinho, que também era soldado. Ao se tornar um desertor, Knight se esconde das tropas do exército em um pântano e nesse lugar estão escondidos outros desertores e escravos fugitivos. Sendo assim o soldado acaba criando um grupo de resistência contra a Confederação e a escravidão, se intitulando como “Os Homens Livres do Condado de Jones”.
A história retratada é muito interessante e poderosa, mas o roteiro, que é assinado por Ross, peca ao tentar ser muito abrangente, principalmente no terceiro ato. Temos ótimos personagens que contém motivações coerentes, mas quando o roteiro tenta aumentar a relevância de algum personagem, como no caso de Moses (Mahersala Ali), o longa acaba ficando mais longo do que deveria, deixando-o até sem foco. Parece que no terceiro ato, Ross quer fazer um grande painel político e social do Sul dos Estados Unidos e isso acaba enfraquecendo o filme, mesmo falando de fatos muito relevantes como: o começo da Ku Klux Khan; que a escravidão não chegou ao fim, mesmo com Lincoln decretando o seu fim com a Décima Terceira Emenda em 1865; da primeira votação em que negros libertos tinham o direito votar, etc....
Mesmo sendo temas que precisam ser contados, dá para perceber que não eram necessários para a narrativa e isso acaba cansando o espectador. Outro ponto em que o roteiro erra é na personagem de Keri Russel, que se torna uma personagem mal explicada e sem muita função na história.
Outro problema está na montagem, assinada pela dupla Pamela Martin e Juliette Welfling, que dá um ritmo inconstante ao longa. Quando o filme fica incessante nas sequências de batalha, ele se torna morno ao retratar ao mesmo tempo um julgamento com o neto de Knight, durante a década de 1860. Essas cenas do julgamento são uma barriga a mais para a narrativa e acaba estragando o ritmo, além de dizerem coisas que ainda acontecerão na primeira linha temporária, como deixar claro que Newt vai se apaixonar por uma escrava e terá um filho, quando o primeiro acaba de conhecer a amada. E a montagem também acaba sendo um dos elementos que atrapalham a resolução do terceiro ato.
Outro fator tão inconstante quanto à montagem é a fotografia feita por Benoít Delhomme, que muda de tom, pelo menos umas quatro vezes. Se fosse apenas durante as cenas do passado e do presente, faria mais sentido. Mas ela muda a quase todo o momento. No começo, quando Newt está em batalha é uma, quando ele volta é outro tom, quando está em ambientes externos é outro e se torna outro quando ele está no pântano com os seus homens. Acaba que a fotografia acaba não tendo uma coesão. Mais fica parecendo que ela quer dizer o que espectador quer sentir naquele momento. Um trabalho, no mínimo, esquisito.
Já o elenco merece elogios, pois todos fazem muito bem o seu trabalho. O ótimo Matthew McCounaghey que cria um homem íntegro, mas que nunca se torna um herói clichê. Newt se mostra um personagem que tem motivações compreensíveis, mas erra de vez em quando. Além do ator acertar ao criar um tom de voz que não soa heroico em momento algum e ter uma ótima presença junto com um grande carisma. Nunca pensaríamos que McCounaghey iria parar de fazer o galã de comédias românticas para se tornar um dos atores mais reconhecidos da atualidade. Outro destaque fica por Mahersala Ali, que cria Moses como um personagem admirável e amável. Outro personagem que poderia cair no clichê, mas o ator consegue criar um personagem muito interessante.
Já a direção de Gary Ross se mostra segura durante boa parte do filme. O que vale destacar é que como a sua direção vai se tornando mais sutil durante o longa. No começo, Ross se mostra visceral mostrando a crueldade da guerra, com soldados sendo mortos de maneira brutal. Mas ao decorrer do longa, vai ficando cada vez mais sutil, fazendo um trabalho muito clássico, mesmo que outras vezes opta ao utilizar a câmera na mão para deixar uma sensação de naturalismo. É um trabalho muito interessante e eficiente.
“Um Estados de Liberdade” poderia ser um grande filme sobre o assunto abordado, mas por conta de problemas de ritmo e na tentativa de ser mais abrangente do que deveria ser, ele se torna um longa cansativo mais para o final. Mesmo com ótimas atuações e uma história interessante e importante, fica a sensação que poderia ser um longa melhor. Mesmo compreendendo as boas intenções de Gary Ross, não dá para negar que temos um bom filme, mas que poderia ter sido muito mais.
Crítica | Harry Potter and the Prisoner of Azkaban
Finalmente chegava a hora dos games de Harry Potter entrarem em uma nova geração. Com A Pedra Filosofal e A Câmara Secreta seguindo praticamente os mesmos padrões e atingindo resultados similares em termos de jogabilidade e gráficos, a EA Games daria um passo enorme na adaptação de O Prisioneiro de Azkaban, que seria lançado na época para Playstation 2, Nintendo GameCube, PC, Xbox e Game Boy Advance. Pela primeira vez, teríamos o castelo de Hogwarts como um playground quase que 100% interativo, com missões paralelas, quests e diferentes caminhos para chegar a um mesmo local.
Assim como os anteriores, o game adapta a trama do filme homônimo enquanto acrescenta outras informações do livro e toma liberdade criativas para tornar a experiência mais "gâmeficada" ao criar tarefas e desafios diversos. Por exemplo, iniciamos o jogo no melhor estilo dos saudosos anteriores ao procurarmos "Livros de Feitiço" que liberam novas habilidades e encantamentos para o jogador, algo que faremos durante praticamente todo o curso da narrativa - e é importante atestar que apenas alguns personagens acabam com determinados feitiços, o que já demonstra uma dependência fundamental no conceito do co-op. Podemos jogar com Harry, Rony e Hermione e trocar de personagem livremente ao longo da jogatina, algo que é útil para a resolução de puzzles e passagens de níveis; apenas Rony é capaz de destravar paredes, por exemplo.
A liberdade pelos corredores e terrenos de Hogwarts é o grande destaque, porém. Lembro-me bem de jogar pela primeira vez com apenas 10 anos de idade, e o senso de imersão e atmosfera proposto pelo game era a melhor coisa do mundo. Hoje, claramente o resultado empalidece diante de jogos da geração atual, mas ainda é um feito admirável e que merece aplausos para algo lançado na época, especialmente pela atenção aos detalhes dos programadores de design 3D e os diferentes espaços do castelo. O melhor fator dessas possibilidades, porém, é o fato de podermos voar livremente com o hipogrifo Bicuço, que fica no quintal de Hagrid quase que em tempo integral - apenas quando chegamos no ponto da trama onde sua vida fica em perigo, o animal fantástico desaparece. A dinâmica e jogabilidade desse voo garante alguns dos melhores momentos da jogatina, principalmente pela liberdade e a beleza do terreno externo do castelo e pela facilidade em deslocar-se para diferentes pontos.
No quesito de personagens, é claramente um avanço monumental da geração antiga para o novo game, mas confesso que a mecânica não evoluiu bem. Não só Harry, Rony e Hermione não se assemelham em nada com o físico do elenco da série cinematográfica, como são muito inexpressivos e fadados às mesmas expressões e tiques faciais para representar diferentes mudanças de humor. O trabalho de voz, por sua vez, é mais inspirado do que a animação 3D - pense em como Mark Hamill era absolutamente fantástico, enquanto a animação de A Piada Mortal não fazia jus à sua performance vocal inspirada. As criaturas também surgem muito bem trabalhadas, com atenção especial para os arrepiantes dementadores, que conseguem ser tão sinistros e perturbadores quanto no filme; digamos apenas que, em qualquer missão envolvendo as criaturas, o jogador estará no limite - cenas em que precisamos arrastar algum personagem enquanto fugimos das criaturas sugadoras de almas são verdadeiramente tensos.
Infelizmente a experiência pode vir a tornar-se um pouco repetitiva, ainda mais na dinâmica de encontrar livros de feitiços, batalhar criaturas da mesma forma e coletar feijões de todos os sabores. Isso só muda quando temos eventos marcantes da história, especialmente no final que envolve uma empolgante travessia por dentro da Casa dos Gritos (apropriadamente ampliada para garantir mais ação) e o clímax onde devemos enfrentar dezenas de dementadores ao controlar o próprio Patrono em forma de cervo.
A adaptação de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban é importante pelo avanço tecnológico notável da geração anterior para aquela que iniciava-se em 2004, garantindo boa diversão e uma exploração magistral do castelo de Hogwarts. Peca pela estrutura repetitiva e o caráter artificial de seus personagens, mas definitivamente é um dos melhores jogos da marca Harry Potter.