Crítica | True Detective - 1ª Temporada

São poucas as coisas gritam mais "série de televisão" do que policial. Investigações, detetives e tramas criminosas com a clássica estrutura "caso da semana" foram pivotais para que se estabelecesse um sólido gênero e forma de se criar narrativas seriadas. Inevitavelmente, o padrão acabou viciado em fórmulas repetidas e clichês que tornaram quase impossível manter interesse. Algumas poucas foram capazes de inovar, seja 24 Horas pelo fator tempo real ou The Wire pela abordagem visceral. Então, em 2014, Nic Pizzolatto coloca sua marca no gênero com a estreia de True Detective para a HBO.

A história começa em 2006, com entrevistas sendo conduzidas a dois ex-parceiros policiais: Marty Hart (Woody Harrelson) e Rust Cohle (Matthew McConaughey), que há 10 anos atrás foram responsáveis por resolver o sinistro caso de um serial killer conhecido como Rei de Amarelo, que envolveu o desaparecimento de crianças no interior dos EUA e uma relação com cultos. Quando novas vítimas indicam que o assassino ainda pode estar à solta, acompanhamos em flashbacks o início da parceria dos dois e o que exatamente aconteceu durante a investigação.

Ainda que esteja sendo exibido na televisão, True Detective é um filme. Uma longa e complexa narrativa de 8 horas que mergulha fundo no arquétipo do buddy cop e o desconstrói em uma história povoada por insights filosóficos e se preocupa mais no desenvolvimento de seus personagens do que na resolução do caso em si, que é sempre um pano de fundo para a relação dos dois. Todos os episódios foram escritos por Pizzolatto, e todos foram dirigidos por Cary Fukunaga rodando no formato de película, o que confere ainda mais a impressão cinematográfica; basicamente, uma obra saída de duas mentes, garantindo foco e concentração absolutos na história.

É uma história clássica de investigação que atrairia nomes do calibre de William Friedkin e David Fincher, caso seus roteiros circulassem pela Black List de Hollywood. A figura do Rei de Amarelo torna-se uma presença assombrosa e perturbadora, especialmente pelos relatos de testemunhas e crianças que teriam sobrevivido a encontros com esta "entidade", que ainda deixa símbolos retorcidos e desenhos enigmáticos que atraem a atenção de Rust e seu interesse por simbologia. A estrutura narrativa do vai e vem temporal também torna as coisas mais interessantes, por observarmos como os detetives mudam de opinião sobre um fato, satirizam outro ou, este ainda mais interessante, manipulam eventos; como a criação de um tiroteio heróico no episódio The Secret Fate of All Life, em uma cena excepcionalmente bem escrita e montada por Alex Hall.

Aliás, se disse que era uma obra de duas mentes, permita-me uma correção obrigatória: quatro mentes, as outras duas sendo de Matthew McConaughey e Woody Harrelson. As cenas em que os dois conversam, geralmente no carro, estão entre os momentos de melhor capricho de roteiro que tivemos em 2014. Marty é o típico nice guy que tem um lado sombrio inesperadamente chocante, e uma família aparentemente feliz que vai se desmanchando graças à sua mudança de comportamento, enquanto Rust é um sujeito atormentado e niilista, quase uma versão dark do Martin Riggs de Máquina Mortífera, cuja visão da vida  e a transformação desta é um dos pontos mais comoventes e envolventes da série.

Ambos os intérpretes fazem jus a esses perfis tão distintos, com McConaughey entregando aquela que sem sombra de dúvida é a melhor performance de sua carreira (há quem diga que sua vitória no Oscar pelo bom desempenho em Clube de Compras Dallas foi uma forma da Academia reconhecer seu trabalho na TV). Sempre com uma voz frágil e um olhar morto que parece sugerir a presença de insônia e muitos remédios para se manter em pé, e a forma como esse perfil se contrasta com a figura mais expansiva de Marty é um espetáculo à parte. Harrelson também não deve em nada aqui, e seu esforço para manter-se são diante de todo o horror dos assassinatos e a influência um tanto negativa de Rust garantem excelentes momentos ao ator.

O fato de ambos terem concorrido a Melhor Ator em Série Dramática no Emmy foi a coisa mais justa do mundo.

Se há um aspecto da trama que é realmente dispensável é a relação de Marty com sua esposa Maggie (Michelle Monaghan), que é necessária para que tenhamos um núcleo mais forte com o personagem e os desdobramentos de sua persona imperfeita - que envolvem a memorável participação de Alexandra Daddario -, mas completamente descartável e forçada quando uma espécie de "triângulo amoroso" é formado entre Marty, Maggie e Rust. Não é exatamente isso, mas digamos apenas que é um incidente incitante que poderia ter sido provocado por um elemento mais interessante (a fim de provocar a cisão entre a dupla) e que fugisse do clichê.

Em termos técnicos, foi mais um exemplar do patamar altíssimo que a televisão americana alcançou. A decisão de manter Fukunaga em todos os episódios e de se rodar em película garante um visual marcante e cinematográfico, com as paisagens sulistas rurais e decadentes dos EUA rendendo planos memoráveis e uma atmosfera perigosa e assombrosa que se mantém durante toda a série, merecendo créditos ao diretor de fotografia Adam Arkapaw pela paleta de cores predominantemente cinzenta e fria, que mantém-se até mesmo quando acompanhamos as cenas dos detetives nos dias atuais, confinados em uma salinha de entrevistas. É outro caráter fabuloso da série: a direção de arte. Não só a beleza natural retorcida e fantasmagórica das paisagens sulistas garantem o tom perfeito, mas também os cenários desenhados por Alex DiGerlando, que vão desde uma igreja abandonada e partida ao meio como um navio naufragado até o palco do clímax de perseguição entre Rust e o assassino conhecido como Rei de Amarelo, que abraça elementos ocultos de forma memorável e inesperada.

E por falar em direção e fotografia, o plano sequência do episódio Who Goes There tornou-se lendário pelo nível de complexidade e sofisticação, para a cena em que Rust está infiltrado em uma gangue de motoqueiros e é forçado a estragar seu disfarce para capturar uma testemunha, levando a uma perseguição que passa pelo interior de casas, jardins, tiroteios, brigas e até um helicóptero durante uma sequência ininterrupta de 8 minutos - de verdade, nada de truques de montagem ou edição aqui. Não seria exagero dizer que nada assim foi feito na História da televisão.

Ao concentrar-se na relação incomum entre duas figuras únicas e carismáticas, True Detective torna-se uma das séries mais certeiras e inteligentes dos últimos anos, acrescentando ainda mais o caráter cinematográfico à televisão e revitalizando o gênero policial de forma memorável.

True Detective - 1ª Temporada (EUA, 2014)

Criado por: Nic Pizzolatto
Direção: Cary Fukunaga
Roteiro: Nic Pizzolato
Elenco: Matthew McConaughey, Woody Harrelson, Michelle Monaghan, Alexandra Daddario, Michael Potts, Tory Kittles, Kevin Dunn
Emissora: HBO
Episódios: 8
Gênero: Suspense, Crime
Duração: 60 min

https://www.youtube.com/watch?v=8Wm9bLXRIw0


Crítica | Todos Envolvidos

Todos Envolvidos foi escrito para chocar e, com toda a certeza, cumpre essa finalidade. É um livro violento sobre os seis dias de caos que aconteceram em 1992, em Los Angeles. Na época, policiais foram absolvidos por agressão pelo espancamento de Rodney King, um taxista negro e desarmado, capturado em vídeo. Motins eclodiram na cidade: lojas foram saqueadas, motoristas assaltados e carros incendiados - alguns lojistas passaram a trabalhar armados para se protegerem dos ladrões e das bombas. Para restaurar a lei e a ordem, foi necessário chamar milhares de reservistas da Guarda Nacional e soldados federais. Durante os seis dias de tumultos são estimadas mais de 60 pessoas mortas e mais de 2.000 feridas. Embora seja ficcional, o livro é baseado nesses fatos e em alguns relatos de testemunhas oculares.

Mesmo sendo bem escrito, Todos Envolvidos pode desapontar alguns leitores, pois, para muitos, o período escolhido gera a expectativa de um livro que ajude a analisar e explicar as nuances socioeconômicas e raciais persistentes até hoje, e que levam não só a confrontos trágicos entre a polícia e os afro-americanos, mas também a um sistema judicial que parece se inclinar a favor da aplicação da lei sob qualquer circunstância.

Pode ser injusto com o romance atribuir tais objetivos, especialmente se essa não era a intenção do autor. No entanto, o título e a natureza ambiciosa do livro sugerem que o leitor não pode ser responsabilizado por ter tamanha expectativa. Todos Envolvidos tem 17 diferentes narradores em primeira pessoa, cada um dando um relato pessoal de algumas horas desses seis dias. Essa amplitude de vozes faz o leitor, ao ler a sinopse, aguardar por uma visão caleidoscópica e expansiva dos eventos, mas, ao invés disso, temos uma história surpreendentemente estreita e episódica que está faltando para este núcleo aparentemente vital - a narrativa praticamente se resolve antes da primeira metade e as dezenas de personagens restantes tornam-se descartáveis, já que, mesmo com tendo chances de serem explorados, não contribuem para praticamente nada pela falta de espaço.

A leitura pode se tornar um pouco irritante e exaustiva para os que não estão acostumados a ler obras muito violentas e com uma grande quantidade de palavrões. Muitas cenas - especialmente aquela em que o viciado rouba uma van arrastando um motorista para fora do veículo e lhe dando um tiro - lembram muito o jogo Grand Theft Auto (GTA).

O romance é uma coleção de histórias de ficção ligadas e ambientadas no mundo de dois grupos rivais, membros de gangues latinas. Gattis faz um trabalho muito bom com a imersão do leitor nesta atmosfera, que é lotada de lealdade e retribuição, impulsionando esses personagens em direção confrontos trágicos e infelizmente inevitáveis. Enquanto as dúzias de personagens relacionados com gangues são diferenciados, algumas histórias são muito mais envolventes do que outras, como a lésbica adolescente que está fora para vingar seu irmão.

Quase todos os narradores vêm de um grupo de membros de gangues latinas e aqueles ao seu redor. Há apenas dois narradores afro-americanos, um dos quais é um homem sem-teto - que, embora vagueie através do caos, não contribui muito para a história - e outro, que não é dado um nome, mas é membro de uma unidade não reconhecida de uma agência federal sombria enviado para L.A. para mutilar e matar membros de gangues, que de outra forma poderiam escapar da justiça.

Mesmo que os personagens tenham uma base na realidade, eles não passam essa sensação no romance. Certamente a leitura seria menos cansativa e atraente se o único narrador fosse um membro da L.A.P.D. Da mesma forma, a história está clamando por pelo menos uma voz afro-americana dos bairros onde os tumultos realmente ocorreram.

É chocante pensar no que o livro poderia ter sido, pois em grande parte o que prometia ser uma história de vingança e/ou uma forma de tentar adicionar mais pontos de vista para o que realmente aconteceu, se tornou uma desculpa para mostrar fatos que já sabíamos antes de começar a ler - como o desinteresse das autoridades com quem morria nas ruas dos bairros mais perigosos, a demora dos bombeiros para chegar nos locais incendiados e muitas mortes sem motivo.

Ainda assim, a escrita de Gattis é livre e sugestiva, nos puxa para uma parte de Los Angeles onde os motins são vistos como nada mais do que uma oportunidade para acertar as contas e criar o caos, enquanto a polícia está de outra forma ocupada. Quando o contexto mais amplo do julgamento de King é ignorado, é fácil se meter em detalhes sórdidos e desagradáveis dessas almas perdidas. Outros personagens nobres, incluindo uma enfermeira e um bombeiro, também têm os seus momentos para brilhar com uma pungência que deveria ter merecido mais espaço no romance.

Os fragmentos de Todos Envolvidos convergem em uma narrativa final, concentrando-se em um adolescente e seu pai que são diretamente afetados pelos motins. Essas páginas finais, uma grande história curta em seu próprio direito, sugerem o que o romance poderia ter sido se Gattis tivesse permitido aqueles que eram mais do que perifericamente envolvidos na história em torno deles pudessem falar.

Todos Envolvidos (All Involved) – EUA, 2016
Autor: Ryan Gattis
Publicação: Intrínseca

Páginas: 384