Crítica | Meu Amigo, O Dragão
Para suprir uma demanda avassaladora, a Disney tem estruturado minuciosamente seu novo formato de studio system para os anos 2010 – ao adquirir os direitos Marvel e Star Wars, é possível afirmar que a empresa do Mickey está de bom a melhor. Nesse ano, a Disney lançou filmes de relevância crítica e de público em quase todos os meses até agora: Procurando Dory, Guerra Civil, Zootopia, Horas Decisivas, O Bom Dinossauro, Mogli, BGA e também com os vindouros Rogue One e Doutor Estranho.
É um festival de longas que não acaba mais. Entretanto, tamanha quantidade massiva de produção sempre traz um porém: novas histórias – onde encontrá-las? Onde vivem? Com o remake de Meu Amigo, O Dragão a resposta ficou clara: dessa vez, a Disney teve de arranhar o fundo do baú.
Pegando apenas a amizade de Pete e seu dragão, Elliot, como força motriz, o estúdio encomendou um filme que – ainda bem – tem pouco a ver com o original, aberração de 1977 cheio de cantorias chatas, péssimas atuações e história raquítica. Aqui, acompanhamos Pete ainda muito pequeno, por volta de seus 4 anos, viajando com seus pais para as montanhas. No meio do caminho, um terrível acidente acontece no qual somente ele sobrevive.
Desesperado, corre para a floresta e seus perigos, mas acaba salvo pela misteriosa criatura com asas, pelos esverdeados e cara de cachorro: um dragão. Fazendo amizade com o monstro, Pete vive nas florestas tranquilamente por anos até ser confrontado por outros seres humanos. Nesse enorme choque de realidade, Pete terá de aprender a conviver de novo em sociedade enquanto tenta proteger, escondendo, seu amigo, o dragão.
Com o estúdio dando um projeto que não reúne muitas expectativas e, portanto, pressão financeira mais branda, David Lowery consegue emplacar toda a atmosfera indie – cenário de onde surgiu, em seu blockbuster milionário. Escrevendo e dirigindo, a forte inspiração no mito da Caverna de Platão reverbera inteiramente na obra – até mesmo pegando situações muito semelhantes de Quarto de Jack, filme de proposta mais sombria, mas muito similar a deste daqui.
Colocando o garoto em choque com a realidade e tentando se adaptar aos modos de vida reapresentados pelo casal protagonista e sua filha, Lowery consegue jogar bem com os elementos propostos. A interação mais crível e menos melodramática piegas é a de Pete com a pequena Natalie, interpretada por Oona Laurence, cheia de olhares curiosos e de fascínio pelo menino selvagem que é “adotado” por sua família: um madeireiro e uma guarda florestal – Bryce Dallas Howard estampando sua personagem cheia de afeto açucarado.
Lowery, porém, passa a levar o ritmo de seu longa em passos mais apressados, após o Pete voltar a se integrar na sociedade e redescobrir o amor paternal de Grace e Jack – apesar da interação com o casal ser bem básica e sem graça. O brilho fica por conta das graças de Pete com Elliot, o dragão, que apresentam os únicos momentos genuínos onde o longa parece se lembrar de seu público-alvo, o infantil.
Em questão de pouquíssimo tempo, a Disney surpreendeu com a pegada similar dos projetos de Bom Gigante Amigo e Meu Amigo, o Dragão. Assim como o longa de Spielberg, esse aqui também é uma obra deslocada que não consegue conversar muito bem com sua audiência por conta de não saber definir o assunto que quer abordar com mais afinco: a amizade do garoto com o dragão, a reinserção do menino à sociedade ou a construção de seu núcleo familiar. Mirando em três elementos mais densos que exigem desenvolvimento, Lowery se contenta apenas em arranhar diversos tópicos e contar uma história agradável. Seu filme também tem outra deficiência ao sacarmos que Lowery não é nenhum Steven Spielberg.
Não compartilhando apenas a atmosfera de O Bom Gigante Amigo, Lowery também comete os mesmos erros. Aliás, falhas que diversos filmes baseados em amizades extraordinárias cometem: a presença da figura antagonista desnecessária. Para inserir mais espetáculo visual e não deixar o personagem do dragão esquecido em meio as correrias de Pete, os roteiristas colocam o irmão de Jack, outro madeireiro, e mais alguns comparsas a fim de caçar e capturar o dragão para ganhar algum dinheiro exibindo o bicho. Nesse núcleo, também há uma mensagem contra o desflorestamento.
Novamente, esse núcleo rasteiro para inserir algumas piadas e ação moribunda a um filme mais denso só serviu para retirar tempo de tela que seria melhor utilizado para desenvolver Pete, que assim como Mogli, é bola de pinball que quica em todas bordas da história sem conseguir imprimir quaisquer grandes momentos – parte da culpa vem da atuação fraca de Oakes Fegley.
a direção, Lowery realiza um trabalho equivalente à sua escrita – sem ofender, mas também não surpreende. Como disse, o clima indie é presente no visual da obra conferido por uma paleta de cores frias e dessaturadas que pouco a pouco retomam a cor. O diretor também usa elementos interessantes como o livro que serve de foreshadowing, além de definir os laços profundos de afeto de Pete com Elliot.
O dragão, maravilhosamente construído por computação gráfica que não poupo nos detalhes e na física resultante das ações do bicho, tem suas características e poderes melhores utilizados. Por exemplo, durante a caçada de Gavin, Elliot usa sua invisibilidade o que rende um bom momento de jogo de pontos de vista entre o caçado e caçador, além da inversão de papéis ao longo da sequência.
Mesmo sem ousar, é impossível não afirmar que Lowery tem plena competência sobre a encenação, a câmera e de seus enquadramentos ricos, repleto de decupagem diversificada que explora as sutilezas de cada cenário ou locação. Às vezes, se vale de enquadramentos poderosos inferindo toda a ameaça que a sociedade representa para o dragão solitário – as aéreas que capturam o verde exuberante da floresta em contraste com o marrom pálido da terra desmatada.
Na câmera, o diretor utiliza as abordagens comuns ao seu habitat artístico: muita mobilidade e pouca estabilidade de eixo, além do uso de curta profundidade de campo. Com esses elementos muito simples da cinegrafia, ele consegue deixar o filme com o retrato indie tão desejado. Como não poderia faltar, temos diversas sequências preenchidas por música country “moderna”. Infelizmente, o excesso desse recurso acaba conferindo ares de videoclipe para algumas cenas como a qual Pete foge durante sua primeira visita à cidade.
Aponto que, estranhamente, senti uma profunda melancolia na projeção do longa. Não posso afirmar se isso acometerá outros, mas a atmosfera que Lowery cria aqui é um tanto depressiva. Até mesmo o clímax tenta superar um pouco essa fadiga que persiste, mas, mesmo sendo uma boa sequência, é difícil se livrar de toda a sonolência que pairou nos outros minutos de projeção.
Meu Amigo, o Dragão é um sim um bom filme, mas que dificilmente – pelo menos aqui no Brasil, terá impacto na audiência desejada. De ritmo inconstante, espetáculo com raros momentos de poesia e história que busca atingir diversos temas complexos, apenas consegue encher os olhos com sua exuberante beleza visual e render alguma diversão. Como os estúdios têm demonstrado interesse em história de amizades com criaturas extraordinárias, seria bom estudar um pouco as obras do Studio Ghibli como Ponyo e Meu Amigo Totoro. Se não quiserem observar o que os cineastas japoneses têm a ensinar, basta revisitar 1999 com o fantástico O Gigante de Ferro ou até mesmo E.T.: O Extra-Terrestre em 1982. Filmes de temas similares, mas muito mais felizes em suas realizações.
Crítica | True Detective - 1ª Temporada
São poucas as coisas gritam mais "série de televisão" do que policial. Investigações, detetives e tramas criminosas com a clássica estrutura "caso da semana" foram pivotais para que se estabelecesse um sólido gênero e forma de se criar narrativas seriadas. Inevitavelmente, o padrão acabou viciado em fórmulas repetidas e clichês que tornaram quase impossível manter interesse. Algumas poucas foram capazes de inovar, seja 24 Horas pelo fator tempo real ou The Wire pela abordagem visceral. Então, em 2014, Nic Pizzolatto coloca sua marca no gênero com a estreia de True Detective para a HBO.
A história começa em 2006, com entrevistas sendo conduzidas a dois ex-parceiros policiais: Marty Hart (Woody Harrelson) e Rust Cohle (Matthew McConaughey), que há 10 anos atrás foram responsáveis por resolver o sinistro caso de um serial killer conhecido como Rei de Amarelo, que envolveu o desaparecimento de crianças no interior dos EUA e uma relação com cultos. Quando novas vítimas indicam que o assassino ainda pode estar à solta, acompanhamos em flashbacks o início da parceria dos dois e o que exatamente aconteceu durante a investigação.
Ainda que esteja sendo exibido na televisão, True Detective é um filme. Uma longa e complexa narrativa de 8 horas que mergulha fundo no arquétipo do buddy cop e o desconstrói em uma história povoada por insights filosóficos e se preocupa mais no desenvolvimento de seus personagens do que na resolução do caso em si, que é sempre um pano de fundo para a relação dos dois. Todos os episódios foram escritos por Pizzolatto, e todos foram dirigidos por Cary Fukunaga rodando no formato de película, o que confere ainda mais a impressão cinematográfica; basicamente, uma obra saída de duas mentes, garantindo foco e concentração absolutos na história.
É uma história clássica de investigação que atrairia nomes do calibre de William Friedkin e David Fincher, caso seus roteiros circulassem pela Black List de Hollywood. A figura do Rei de Amarelo torna-se uma presença assombrosa e perturbadora, especialmente pelos relatos de testemunhas e crianças que teriam sobrevivido a encontros com esta "entidade", que ainda deixa símbolos retorcidos e desenhos enigmáticos que atraem a atenção de Rust e seu interesse por simbologia. A estrutura narrativa do vai e vem temporal também torna as coisas mais interessantes, por observarmos como os detetives mudam de opinião sobre um fato, satirizam outro ou, este ainda mais interessante, manipulam eventos; como a criação de um tiroteio heróico no episódio The Secret Fate of All Life, em uma cena excepcionalmente bem escrita e montada por Alex Hall.
Aliás, se disse que era uma obra de duas mentes, permita-me uma correção obrigatória: quatro mentes, as outras duas sendo de Matthew McConaughey e Woody Harrelson. As cenas em que os dois conversam, geralmente no carro, estão entre os momentos de melhor capricho de roteiro que tivemos em 2014. Marty é o típico nice guy que tem um lado sombrio inesperadamente chocante, e uma família aparentemente feliz que vai se desmanchando graças à sua mudança de comportamento, enquanto Rust é um sujeito atormentado e niilista, quase uma versão dark do Martin Riggs de Máquina Mortífera, cuja visão da vida e a transformação desta é um dos pontos mais comoventes e envolventes da série.
Ambos os intérpretes fazem jus a esses perfis tão distintos, com McConaughey entregando aquela que sem sombra de dúvida é a melhor performance de sua carreira (há quem diga que sua vitória no Oscar pelo bom desempenho em Clube de Compras Dallas foi uma forma da Academia reconhecer seu trabalho na TV). Sempre com uma voz frágil e um olhar morto que parece sugerir a presença de insônia e muitos remédios para se manter em pé, e a forma como esse perfil se contrasta com a figura mais expansiva de Marty é um espetáculo à parte. Harrelson também não deve em nada aqui, e seu esforço para manter-se são diante de todo o horror dos assassinatos e a influência um tanto negativa de Rust garantem excelentes momentos ao ator.
O fato de ambos terem concorrido a Melhor Ator em Série Dramática no Emmy foi a coisa mais justa do mundo.
Se há um aspecto da trama que é realmente dispensável é a relação de Marty com sua esposa Maggie (Michelle Monaghan), que é necessária para que tenhamos um núcleo mais forte com o personagem e os desdobramentos de sua persona imperfeita - que envolvem a memorável participação de Alexandra Daddario -, mas completamente descartável e forçada quando uma espécie de "triângulo amoroso" é formado entre Marty, Maggie e Rust. Não é exatamente isso, mas digamos apenas que é um incidente incitante que poderia ter sido provocado por um elemento mais interessante (a fim de provocar a cisão entre a dupla) e que fugisse do clichê.
Em termos técnicos, foi mais um exemplar do patamar altíssimo que a televisão americana alcançou. A decisão de manter Fukunaga em todos os episódios e de se rodar em película garante um visual marcante e cinematográfico, com as paisagens sulistas rurais e decadentes dos EUA rendendo planos memoráveis e uma atmosfera perigosa e assombrosa que se mantém durante toda a série, merecendo créditos ao diretor de fotografia Adam Arkapaw pela paleta de cores predominantemente cinzenta e fria, que mantém-se até mesmo quando acompanhamos as cenas dos detetives nos dias atuais, confinados em uma salinha de entrevistas. É outro caráter fabuloso da série: a direção de arte. Não só a beleza natural retorcida e fantasmagórica das paisagens sulistas garantem o tom perfeito, mas também os cenários desenhados por Alex DiGerlando, que vão desde uma igreja abandonada e partida ao meio como um navio naufragado até o palco do clímax de perseguição entre Rust e o assassino conhecido como Rei de Amarelo, que abraça elementos ocultos de forma memorável e inesperada.
E por falar em direção e fotografia, o plano sequência do episódio Who Goes There tornou-se lendário pelo nível de complexidade e sofisticação, para a cena em que Rust está infiltrado em uma gangue de motoqueiros e é forçado a estragar seu disfarce para capturar uma testemunha, levando a uma perseguição que passa pelo interior de casas, jardins, tiroteios, brigas e até um helicóptero durante uma sequência ininterrupta de 8 minutos - de verdade, nada de truques de montagem ou edição aqui. Não seria exagero dizer que nada assim foi feito na História da televisão.
Ao concentrar-se na relação incomum entre duas figuras únicas e carismáticas, True Detective torna-se uma das séries mais certeiras e inteligentes dos últimos anos, acrescentando ainda mais o caráter cinematográfico à televisão e revitalizando o gênero policial de forma memorável.
True Detective - 1ª Temporada (EUA, 2014)
Criado por: Nic Pizzolatto
Direção: Cary Fukunaga
Roteiro: Nic Pizzolato
Elenco: Matthew McConaughey, Woody Harrelson, Michelle Monaghan, Alexandra Daddario, Michael Potts, Tory Kittles, Kevin Dunn
Emissora: HBO
Episódios: 8
Gênero: Suspense, Crime
Duração: 60 min
https://www.youtube.com/watch?v=8Wm9bLXRIw0
Crítica | O Bebê de Bridget Jones
Desde 2001, Renée Zellweger e as desventuras amorosas de Bridget Jones vem conquistando os corações de solteironas do mundo inteiro. Inspirado nos livros de Helen Fielding, um dos triângulos amorosos mais engraçados do cinema britânico, não levou muito até aparecer em uma sequência em 2004 com Bridget Jones: No Limite da Razão. Deixando a franquia na geladeira por 12 anos, enfim Bridget retorna sua derradeira aventura amorosa definitiva.
Praticamente com quarenta anos e sem marido, namorado ou filhos, Bridget alcança o sucesso no jornalismo tornando-se diretora de um telejornal em Londres. Entre o vai e vem cotidiano, a âncora do programa, sua amiga, a convida para ir em um festival de música que ocorrerá no interior da Inglaterra. Lá ela conhece Jack, galã de meia idade com quem ela acaba indo para a cama. Porém, alguns dias depois, ela reencontra seu ex-marido e antigo amor, Mark Darcy. Depois de um papo e ligeiros coquetéis, também dorme com a paixão de outrora.
Após alguns meses, com todos os sinais de uma gravidez, Bridget se encontra novamente em um dilema tão digno do nome dela: descobrir quem é o pai de seu bebê. Até o nascimento da criança, ela terá que se decidir se reata vida amorosa conservadora e segura com Darcy ou parte para uma grande aventura imprevisível com o bonachão Jack.
Com presença ativa da autora Helen Fielding no texto do longa, é possível afirmar que as características marcantes da franquia continuam presentes – mesmo que o roteiro tenha colaboração de mais outras duas pessoas. Assim como nos outros dois filmes, o conflito principal se desenlaça em mais um triângulo amoroso com Bridget sendo disputada por outros dois homens – Hugh Grant dando a vez para Patrick Dempsey.
As maiores novidades ficam por conta do salto temporal e das mudanças na vida de Bridget, agora uma ex-gordinha e bem-sucedida. Enquanto o filme diverte contando uma história agradável como as outras, é um roteiro bastante pautado por clichês e agora, agravados por conta da história de Um Senhor Estagiário, pois aqui também há aquela intenção discussão sobre o “rejuvenescimento” do mercado de trabalho, jogando profissionais mais adultos em escanteio.
Logo, Bridget é confrontada por uma nova chefe megera e antipática. Um núcleo conflituoso bastante forçado e que não agrega, removendo tempo de tela onde a história tinha que se concentrar mais: no novo personagem Jack interpretado por Patrick Dempsey e sua relação com Mark Dary vivido novamente por Colin Firth.
A inserção de núcleos secundários de conflitos distintos talvez seja o maior problema dessa comédia romântica. Até mesmo nesse drama de sucateamento de antigos profissionais, a amiga de Bridget acaba desaparecendo do filme por um tempo relevante. Também há o mais descartável que acompanha a mãe de Bridget movendo uma campanha eleitoral em busca de um cargo de deputada. Aqui há um jogo de conflitos de gerações a respeito de morais e bons costumes um tanto deslocado para uma obra do cunho Bridget Jones, entretanto serve para inserir certa complexidade em como a gravidez inesperada de Bridget poderia afetar a campanha da mãe.
Então, ao mesmo tempo que a roteirista tenta mostrar que Bridget evoluiu, também cria situações que a jogo diretamente para as enrascadas do primeiro filme. Há quem goste, porém, em termos artísticos, trata-se de uma reciclagem levemente modernizada, adaptada para os tempos de hoje.
Jogando a relevância dos conflitos secundários para trás, o longa oferece o sempre divertido conflito da disputa masculina por Bridget. A novidade é que agora os conflitos são muito mais diretos já que Mark e Jack convivem com a protagonista durante boa parte da gravidez rendendo ótimos momentos – todas as cenas com a ginecologista são ótimas. Nisso, o longa é excelente, trazendo o humor típico da franquia com o trio de personagens interessantes.
Sharon Maguire retorna para dirigir o capítulo final da trilogia – ela é a responsável por O Diário de Bridget Jones. Mesmo estando ociosa por tanto tempo, Maguire consegue conferir o feeling e a atmosfera genuína do início dos anos 2000 para os enquadramentos desse novo filme. Se valendo de uma estrutura tecnológica e de produção maiores, o visual do longa ganha tons mais interessantes assim como a movimentação de câmera. Porém, tudo muito regrado para pertencer àquela unidade visual característica das comédias românticas dos anos 1990 e 2000.
Maguire até mesmo arrisca um plano sequência fácil durante o festival musical e arranha simbologias fortes se valendo de inspiração de O Império dos Sentidos durante o clímax do filme quando Darcy caminha em sentido contrário a uma manifestação denotando todo o cavalheirismo e conservadorismo do personagem. É algo bacana e corajoso de se ver em obras desse gênero. De resto, a diretor ainda continua muito feliz no uso inteligente da trilha musical e no uso correto da montagem em favor da comédia.
Impossível não citar o trabalho divertido que Zellweger construiu ao longo de tantos anos. Aqui, há certa mudança substancial na psique da personagem e ela consegue transmitir isso com maturidade enquanto em diversos momentos repete os maneirismos e nervosismos atrapalhados que marcaram a personagem quando mais jovem. É um trabalho de resgate impressionante que deixará os fãs da franquia tranquilos em ver como Renée preservou bem as características de Bridget.
O Bebê de Bridget Jones tem os mesmos defeitinhos dos filmes anteriores – um tanto previsível e clichê, porém não acho que isso seja lá grande demérito de uma obra tão modesta e despretensiosa quanto é essa querida franquia. Este terceiro longa marca um retorno muito amistoso e divertido capaz de fazer o mais emburrado espectador sorrir em algum momento. As piadas continuam engraçadas, o slapstick ainda é eficiente e os diálogos são mais graciosos. Com certeza qualquer fã sairá satisfeito, pois é mais um Bridget Jones que transborda do carisma tão único desses filmes.
Crítica | Extremis
Pode parecer que não, mas documentários são extremamente difíceis de serem realizados. Entre as diversas formas de se fazer um filme do gênero, há o cinema direto – muito comumente confundido com o cinema verdade. Batizado pelo teórico Dziga Vertov, a teoria define essa forma de documentário como “crua” trazendo a realidade e verdade tal qual ela é. Ou seja, ao contrário da maioria dos documentários, não há a presença verbal do realizador com entrevistas posadas ou captações ensaiadas seja de cunho experimental ou verídico.
Extremis é um desses documentários do cinema verdade, um formato muito audacioso e dificílimo de ser trabalhado a favor de um discurso, já que o cineasta tem de se valer de diversas subjetividades para que o espectador compreenda a sua mensagem. Ou apenas trabalhe com temas fortíssimos – como ocorre aqui.
O documentário em curta-metragem é a aposta principal da Netflix disputar o Oscar pela categoria. Nele, acompanhamos alguns médicos atendendo e confortando pacientes terminais da UTI que precisam fazer a escolha mais dolorosa de suas vidas: se submeter a viver em um estado vegetativo através de uma máquina respiratória anexada por uma traqueostomia ou desligar o respirador comum e esperar pela morte.
Nisso, temos cinco pacientes que são acompanhados pelo cineasta Dan Krauss. A câmera discreta evita invadir tamanho espaço de tristeza e desespero velado. Então o que vale é pouco tempo de espaço amostral oferecido. Nos compadecemos ali pela dor da família angustiada e também pelo olhar melancólico de quem é confrontado com a plena certeza da morte. Logo, as palavras são um privilégio narrativo que esse filme dispensa graças ao poder imagético.
Krauss monta o curta intercalando as reuniões complicadas dos médicos discutindo o que seria ético fazer diante de tal situação, além das conversas com e entre as famílias dos moribundos. Às vezes, se vale de enquadramentos bem inteligentes, com passagens de foco, para dizer muito dependendo da sensibilidade do espectador.
O problema reside na escolha equivocada por um curta metragem. O assunto tratado renderia com facilidade um longa, além de ter maior aprofundamento em diversos dos assuntos e personagens abordados por Krauss. O longa termina sem deixar conclusão de diversos pacientes que aparecem em poucos minutos – apenas dois têm um desfecho. Enfim, o defeito maior reside na falta de aprofundamento nos casos retratados. Mesmo no cinema direto, é possível encaixar maior ênfase no tema estudado, porém são necessários mais minutos.
Extremis é um curta emocionante que aborda um dos assuntos mais intrigantes de todos: a morte. Com seus 24 minutos, é capaz de entregar uma mensagem muito forte, além de abordar elementos relevantes para a carreira médica e tocar sutilmente a polêmica da eutanásia. Uma pena sua duração seja tão curta quanto a vida restante dos pacientes retratados. No mais, é um filme que merece ser visto e que, provavelmente, te marcará.
Crítica | Mate-me Por Favor
Que ótima notícia quando vi que um filme de terror nacional chegaria aos cinemas. Dentre todos os gêneros existentes na atual safra audiovisual, o horror é um campo quase que inexplorado pelo cinema brasileiro, e ao juntar esse estilo a uma temática adolescente em Mate-me Por Favor, estava fisgada minha atenção e interesse. Infelizmente, o filme de Anita Rocha da Silveira é um amontoado de referências desconexas e um exercício de estilo com quase nenhuma substância.
A trama é ambientada na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Somos apresentados à Bia (Valentina Herszage) e suas amigas, estudantes de 15 anos de um colégio local da região, que passa a ser atormentada quando corpos de mulheres assassinadas começam a aparecer noite após a noite, dando alerta de um serial killer nas redondezas. Dessa forma, Bia e suas amigas lidam com o perigo à solta enquanto resolvem seus próprios problemas pessoais de adolescência, namoro e outros afins.
Devo começar dizendo que raramente vi um filme nacional como Mate-me Por Favor. Esteticamente, é uma obra muito à frente da maioria das produções do país, com uma fotografia fria e de cores fortes de João Atala que preenchem a tela de vida com enquadramentos fixos e lindos planos abertos que nos jogam nesse universo familiar e perigoso. A direção de arte de Dina Salem Levy brinca habilidosamente com as cores e decoração de seus respectivos cenários, como a bagunça sempre presente na mesa de trabalho do irmão de Bia (Bernardo Marinho) ou o fato de Bia usar uma camiseta azul enquanto todas as suas amigas usam branco. A iminência do vermelho, representado pelo sangue - tanto real quanto nos fabulosos devaneios - é marcante e causa impacto na paleta.
Infelizmente, é só isso que torna o longa memorável. Anita Rocha da Silveira passa toda a projeção em uma longa e lenta construção de ritmo, onde a ausência de acontecimentos os diálogos vazios e regados a metáforas desconexas incomodam a experiência e podem gerar o desinteresse do espectador. Ao longo da narrativa, vai ficando evidente ao espectador que a trama de assassinato é a última coisa que interessa ao roteiro de Silveira, que parte para um retrato vazio das vidas adolescentes. Claro, a cineasta acerta aqui e ali (pessoalmente me indentifiquei muito com o plano que traz os estudantes lutando para serem atendidos na cantina da escola), mas é um estudo frágil e incapaz de gerar afeto ou aproximamento com qualquer dos personagens.
Até a protagonista é difícil de se aceitar, mesmo que Valentina Herszage tenha uma performance competente e um constante clima de desconfiança quanto às suas ações, mas pouco para justificar alguns dos atos bizarros que Bia protagoniza durante a fita - mas admito que a referência a Um Beijo no Asfalto foi inspirada, ainda que gratuita. A química entre Herszage e as amigas vividas por Dora Freind, Mariana Oliveira e Júlia Roz funciona, assim como os diálogos mais coloquiais em suas interações, mas ainda fica difícil aceitar qualquer afeto entre elas; a briga entre Bia e Mariana explode sem um motivo aparente, e não há uma catarse na resolução de tal conflito.
Do suspense, Silveira transita uma estranhíssima paródia que foge do controle. Há uma linha tênue entre a sátira e o ruim, e isso acontece duas vezes quando a diretora deixa uma cena de dança se estender absurdamente além do necessário e um número musical com funk que começa divertido por tratar-se de uma pastora evangélica, mas que perde totalmente o timing graças a sua duração - soando mais como um merchandising enfiado no meio do filme. Outra falha nessa paródia é quando vemos personagens secundários que seguem os batido estereótipos da "garota popular" e do "fanático religioso", convenções tão batidas que até Hollywood está parando de usar, e que soam terrivelmente artificiais aqui.
Mate-me Por Favor é um dos filmes de estética mais impressionantes que o cinema nacional recente já trouxe, mas não vai além de um exercício de estilo para esconder uma trama vazia e sem graça. Mais como se Anita Rocha Silveira tivesse visto Corrente do Mal e Sob a Pele e resolvesse cruzar os dois com As Patricinhas de Beverly Hills.
Mate-me Por Favor (idem – Brasil/ Argentina, 2015)
Direção: Anita Rocha da Silveira
Roteiro: Anita Rocha da Silveira
Elenco: Valentina Herszage, Dora Freind, Mariana Oliveira, Júlia Roliz, Rita Pauls
Duração: 105 min.
Crítica | Sete Homens e um Destino (2016)
Um dos melhores filmes da História do Cinema deu origem a um ótimo filme em 1960 que, por sua vez, gerou este medíocre filme de 2016. A obra máxima de Akira Kurosawa, Os Sete Samurais, portanto, teve dois remakes. Enquanto o filme de 1960, Sete Homens e um Destino, se destacava pela escolha inteligente de localizar a narrativa no velho oeste protagonizado por sete pistoleiros criminosos, este remake do remake que ninguém havia pedido não consegue oferecer quaisquer atrativos que destaquem a sua existência. Talvez, apenas o avanço do poderio tecnológico da produção.
A população de uma cidadezinha próxima a uma fonte de recursos naturais abundantes é ameaçada incessantemente por um “empreendedor” chefe de uma quadrilha de mercenários. Ele deseja todas as propriedades da cidade para poder explorar as minas próximas sem qualquer distúrbio. Matando, saqueando e incendiando no primeiro contato, Bartolomew Bogue não causa a melhor das primeiras impressões.
Uma viúva das vítimas de Bogue decide combater o criminoso contratando outros pistoleiros tão perigosos quanto ele. Para isso, terá que viajar com Chisolm, o chefe, oficial da lei, que será o encarregado de encontrar mais seis homens para proteger a pequena cidade do retorno sanguinolento prometido por Bogue.
Ao contrário do longa de 1960, o roteiro de Richard Wenk e Nic Pizzolatto buscam “modernizar” a história por onde podem. Nos péssimos minutos iniciais já dá para ter nítida ideia de como o texto se comportará: um vilão “capetalista” simplório, superficial, caricato pela atuação péssima de Peter Sarsgaard e maniqueísta em excesso – as características malignas são tão evidentes e exuberantes que lembram as situações rudimentares do Primeiro Cinema, silencioso, que necessitava do exagero para que os espectadores da época entendessem quem era o vilão e o herói.
Já antiquado no tratamento do vilão empreendedor diabólico, outra alteração um tanto “moderna” é a nova formação do grupo multiétnico composto por afrodescendentes, asiáticos, mexicanos, índios e até mesmo irlandeses. Nisso, dividem-se as habilidades sobre humanas de cada um deles: seja na rapidez do saque, na inteligência estrategista, na mira impecável, no manejo das facas, entre outras coisas.
As habilidades são o que definem os personagens heroicos que também são tão rasos quanto o antagonista. As motivações são escusas, os conflitos não agregam e também é difícil nutrir certa empatia com qualquer um do grupo. Entretanto, graças ao humor do elenco que nitidamente se divertiu durante a produção do longa, é capaz de provocar alguns risos durante os diálogos inusitados entre os integrantes do grupo.
O que mais intriga é como a qualidade do texto possa ser tão rasteira sendo escrita por Nic Pizzolatto, o criador responsável pela excelente primeira temporada de True Detective repleta de diálogos densos e história rica. Aqui, o argumento sustenta o filme mesmo trazendo situações tão “preto no branco”, sem graça e sem inspiração alguma. Ao apostar apenas no carisma dos atores que realmente fazem um trabalho razoável, fica explícita que toda a jornada é vazia, completamente fugaz. Algo bem diferente do que Kurosawa havia imaginado em seu blockbuster de 1954.
Na direção, Antoine Fuqua consagra a curva descendente que acometeu sua carreira. Seguindo o texto estéril de Pizzolatto, sua direção é uma das mais preguiçosas que já pintou nos cinemas em 2016. Não há uma construção de atmosfera digna dos “ápices” emocionais durante as duas horas de projeção. Os enquadramentos seguem uma mesmice que só empobrece o longa. Aliás, não apenas escolhe pontos de vista que originam elementos visuais feios, mas como a fotografia erra em diversos momentos no ajuste do foco das objetivas – não chegam a ser imagens desfocadas, mas notoriamente há problemas com “focos doces” em excesso nesse filme.
Fuqua apenas consegue entregar um clímax que aproveita o salto tecnológico que separam os dois filmes capturando imagens em slow motion, além da grande mobilidade da câmera durante o tiroteio final. Não se trata de um clímax capaz de encher os olhos, mas definitivamente é o melhor momento do longa que pode valer o ingresso de um espectador mais curioso.
Ao mesmo tempo que afirmo que a direção de Fuqua é um desperdício, também declaro com certa tristeza, afinal os longas predecessores são obras bastante generosas para criar elementos visuais riquíssimos, assim como seus personagens protagonistas cada qual com seus problemas e medos. Aqui, apenas dois recebem algum tratamento mais complexo, porém, completamente alheios à experiência daquele segmento retratado no filme.
A apatia deve ter atingido com força o restante das áreas – apenas o elenco se salva (tirando a performance bizarra de Vincent D’Onofrio), pois até mesmo a aguardada última trilha do falecido compositor James Horner não colabora muito em nos envolver naquela experiência. As músicas não chamam a atenção, são quietas, feitas para não serem notadas. Algumas das faixas se salvam buscando inspiração na trilha do clássico de 1960 e de outros westerns consagrados no cinema ou na televisão.
Também há um problema um tanto raro em produções dessa escala aqui em Sete Homens e um Destino: a inserção de uma música boa na cena errada. No caso, uma das melhores faixas, viscerais e crescentes, é utilizada sem muita cerimônia em diversas cavalgadas, porém notoriamente se trata de uma música de perseguição enervante enquanto é inserida durante cenas de transição conforme o grupo se desloca para recrutar mais integrantes na missão suicida.
O remake de Sete Homens e um Destino é um dos filmes que mais se contenta com pouco que já tenha visto nos últimos anos. Não há qualquer impulso criativo relevante. É uma obra frígida, opaca de inspiração, sem graça que possui apenas uma cena de ação boa, sem engajamento qualquer com os personagens que só contam com o carisma dos atores. Não é um longa que ofende sua inteligência também, nem mesmo com o discurso absurdo do antagonista caricato. Somente é esquecível recontando uma história que muita gente já conhece graças a dois filmes muito superiores. Na dúvida, é melhor revisitar os clássicos.
Crítica | Todos Envolvidos
Todos Envolvidos foi escrito para chocar e, com toda a certeza, cumpre essa finalidade. É um livro violento sobre os seis dias de caos que aconteceram em 1992, em Los Angeles. Na época, policiais foram absolvidos por agressão pelo espancamento de Rodney King, um taxista negro e desarmado, capturado em vídeo. Motins eclodiram na cidade: lojas foram saqueadas, motoristas assaltados e carros incendiados - alguns lojistas passaram a trabalhar armados para se protegerem dos ladrões e das bombas. Para restaurar a lei e a ordem, foi necessário chamar milhares de reservistas da Guarda Nacional e soldados federais. Durante os seis dias de tumultos são estimadas mais de 60 pessoas mortas e mais de 2.000 feridas. Embora seja ficcional, o livro é baseado nesses fatos e em alguns relatos de testemunhas oculares.
Mesmo sendo bem escrito, Todos Envolvidos pode desapontar alguns leitores, pois, para muitos, o período escolhido gera a expectativa de um livro que ajude a analisar e explicar as nuances socioeconômicas e raciais persistentes até hoje, e que levam não só a confrontos trágicos entre a polícia e os afro-americanos, mas também a um sistema judicial que parece se inclinar a favor da aplicação da lei sob qualquer circunstância.
Pode ser injusto com o romance atribuir tais objetivos, especialmente se essa não era a intenção do autor. No entanto, o título e a natureza ambiciosa do livro sugerem que o leitor não pode ser responsabilizado por ter tamanha expectativa. Todos Envolvidos tem 17 diferentes narradores em primeira pessoa, cada um dando um relato pessoal de algumas horas desses seis dias. Essa amplitude de vozes faz o leitor, ao ler a sinopse, aguardar por uma visão caleidoscópica e expansiva dos eventos, mas, ao invés disso, temos uma história surpreendentemente estreita e episódica que está faltando para este núcleo aparentemente vital - a narrativa praticamente se resolve antes da primeira metade e as dezenas de personagens restantes tornam-se descartáveis, já que, mesmo com tendo chances de serem explorados, não contribuem para praticamente nada pela falta de espaço.
A leitura pode se tornar um pouco irritante e exaustiva para os que não estão acostumados a ler obras muito violentas e com uma grande quantidade de palavrões. Muitas cenas - especialmente aquela em que o viciado rouba uma van arrastando um motorista para fora do veículo e lhe dando um tiro - lembram muito o jogo Grand Theft Auto (GTA).
O romance é uma coleção de histórias de ficção ligadas e ambientadas no mundo de dois grupos rivais, membros de gangues latinas. Gattis faz um trabalho muito bom com a imersão do leitor nesta atmosfera, que é lotada de lealdade e retribuição, impulsionando esses personagens em direção confrontos trágicos e infelizmente inevitáveis. Enquanto as dúzias de personagens relacionados com gangues são diferenciados, algumas histórias são muito mais envolventes do que outras, como a lésbica adolescente que está fora para vingar seu irmão.
Quase todos os narradores vêm de um grupo de membros de gangues latinas e aqueles ao seu redor. Há apenas dois narradores afro-americanos, um dos quais é um homem sem-teto - que, embora vagueie através do caos, não contribui muito para a história - e outro, que não é dado um nome, mas é membro de uma unidade não reconhecida de uma agência federal sombria enviado para L.A. para mutilar e matar membros de gangues, que de outra forma poderiam escapar da justiça.
Mesmo que os personagens tenham uma base na realidade, eles não passam essa sensação no romance. Certamente a leitura seria menos cansativa e atraente se o único narrador fosse um membro da L.A.P.D. Da mesma forma, a história está clamando por pelo menos uma voz afro-americana dos bairros onde os tumultos realmente ocorreram.
É chocante pensar no que o livro poderia ter sido, pois em grande parte o que prometia ser uma história de vingança e/ou uma forma de tentar adicionar mais pontos de vista para o que realmente aconteceu, se tornou uma desculpa para mostrar fatos que já sabíamos antes de começar a ler - como o desinteresse das autoridades com quem morria nas ruas dos bairros mais perigosos, a demora dos bombeiros para chegar nos locais incendiados e muitas mortes sem motivo.
Ainda assim, a escrita de Gattis é livre e sugestiva, nos puxa para uma parte de Los Angeles onde os motins são vistos como nada mais do que uma oportunidade para acertar as contas e criar o caos, enquanto a polícia está de outra forma ocupada. Quando o contexto mais amplo do julgamento de King é ignorado, é fácil se meter em detalhes sórdidos e desagradáveis dessas almas perdidas. Outros personagens nobres, incluindo uma enfermeira e um bombeiro, também têm os seus momentos para brilhar com uma pungência que deveria ter merecido mais espaço no romance.
Os fragmentos de Todos Envolvidos convergem em uma narrativa final, concentrando-se em um adolescente e seu pai que são diretamente afetados pelos motins. Essas páginas finais, uma grande história curta em seu próprio direito, sugerem o que o romance poderia ter sido se Gattis tivesse permitido aqueles que eram mais do que perifericamente envolvidos na história em torno deles pudessem falar.
Todos Envolvidos (All Involved) – EUA, 2016
Autor: Ryan Gattis
Publicação: Intrínseca
Páginas: 384
Crítica | Bruxa de Blair (2016)
É espantoso como toda uma novíssima geração de fãs dos filmes de terror simplesmente não conhece o original “A Bruxa de Blair” e, como tal, não pode reconhecer sua extensa e persistente influência sobre dezenas de filmes produzidos neste século, entre eles sucessos como “Atividade Paranormal” (2007), “REC” (2007) até títulos muito recentes como “A Forca” (2015).
Recordando: em 1999, Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, dois jovens cineastas (norte-americano e cubano, respectivamente), levaram a cabo uma operação cinematográfica sui generis, que consistia em soltar três atores numa floresta desconhecida munidos de câmera e bússola, e enviar a eles durante o processo instruções eventualmente contraditórias e assustá-los durante a noite com barulhos e objetos para que a filmagem de um documentário falso se tornasse o mais real possível.
O resultado foi a reinvenção moderna do “mockumentário”, na verdade uma junção entre o clássico “Canibal Holocausto” (uma infame produção italiana de 1980 e banida em diversos países) e “Aconteceu Perto de Sua Casa” (a comédia belga de humor negro de 1992) que inauguraria também uma era de filmes-eventos que transcendem sua rede de distribuição e acabam por ser incorporados irremediavelmente pela mídia e pela cultura popular (na época do lançamento, os realizadores deixaram aberta a possibilidade de o filme ser um documentário de verdade, o que provocou polêmica e alavancou as vendas do filme, até hoje um dos mais bem-sucedidos em relação a seu custo em toda a história do cinema).
O relativo esquecimento a respeito do filme de Myrick e Sánchez está certamente relacionado ao irônico fato de que ambos, após sacudirem a indústria de maneira quase que irreversível – ao, juntamente com “El Mariachi” (1992), abrir as portas da distribuição em larga escala ao cinema de “No-Budget” (um passo além, ou abaixo, do habitual “Low-Budget”) –, envolveram-se em uma série de projetos decepcionantes, o que, antes de atentar contra o talento da dupla, reforça o caráter inovador e impossível de ser integralmente replicado da experiência original. Embora nada a ser comparado com o esquecimento reservado ao similar “The Last Broadcast”, produção de 1998 que teria custado menos de mil dólares e cujo pioneirismo acabou sobrepujado pelo sucesso imediatamente subsequente de “Blair Witch Project”.
Ao contrário da continuação “A Bruxa de Blair 2-O Livro das Sombras” (2000), uma fracassada e apressada tentativa de criar uma franquia para o original, este novo “Bruxa de Blair”, que chega aos cinemas em 2016, é uma reedição bastante fiel da experiência de 1999 para um novo público que não sentiu o arrepio inevitável do pequeno e perturbador “The Blair Witch Project”. Embora a distribuidora avise que esta “não é uma refilmagem”, mas uma “continuação”, o tributo ao trabalho de Myrick e Sánchez está evidente na forma e na estrutura do novo enredo, que não dispensa até mesmo citações diretas do seu predecessor.
Na nova trama, James Allen McCune interpreta o irmão da cineasta desaparecida há 15 anos, numa floresta do estado norte-americano de Maryland. Ele está de volta ao local onde a irmã jamais seria encontrada, novamente acompanhado por uma (ou melhor, duas) equipe(s) de filmagem. Seu objetivo é finalmente descobrir o que realmente aconteceu com os desaparecidos do filme (documentário) anterior, depois de encontrar uma fita nova e que supostamente mostraria sua irmã numa casa no meio da floresta. Este não é o principal objetivo da cineasta Lisa Arlington (Callie Hernandez), mais preocupada em tirar da coisa toda um filme de sucesso para si mesma. A equipe se completa com um casal de técnicos (Brandon Scott e Corbin Reid) e é guiada por outro casal de nativos (Wes Robinson e Valorie Curry) que, por sua vez, tem seus próprios planos “cinematográficos” para a viagem que será feita coletivamente.
Evidentemente, o que poderia ser uma aventura de final de semana em grupo acaba perturbado por acontecimentos inexplicáveis, mentiras e uma confusão – ora proposital, ora não – entre o que é verdadeiro e o que é falso, testando os limites emocionais dos jovens (e da plateia).
O cinema mudou muito nas últimas duas décadas e este novo “Blair’ ensaia aderir a alguma forma de militância politicamente correta quando propõe um foco de conflito entre os cineastas nativos (red necks que expõem uma bandeira confederada) e o casal afroamericano que chega aparentemente de uma cidade maior, mas tal registro cede velozmente ao humor e o tema se desfaz. Não é este o foco do roteiro de Simon Barrett, nem da direção de Adam Wingard (dupla responsável pelo inteligente “Você é o Próximo”, de 2011). Seu olhar é muito mais próximo do original e seu objetivo parece ser replicar a sensação brutal de impotência diante do selvagem desconhecido que encontra na escuridão de uma floresta à noite sua perfeita tradução.
A principal limitação do estilo “Found Footage” manifesta-se sempre que o ponto de vista da “câmera-atriz” mostra-se insuficiente para contar a história em todas as suas nuances. Aqui, tal problema é superado maliciosamente com a inserção das minúsculas câmeras auriculares, que tornam possível cobrir toda a ação necessária para a narração da história praticamente o tempo todo. Isso não impede, contudo, que a direção trabalhe muito bem o espaço externo, aquilo que se ouve, mas não se vê, e que é uma das bases do suspense presente o tempo todo.
Outro problema que o filme parece superar é o de se manter dentro de sua premissa mesmo tendo à disposição um orçamento de grande estúdio, o que não acontecia com a produção de 1999, que efetivamente era muito barata e não dispunha de recursos hoje elementares para Hollywood. Sem revelar muitos detalhes da trama para não comprometer os sustos e as surpresas, “Bruxa de Blair” não precisa de muito mais que o conceito brutal, primitivo, para provocar medo na plateia, e isso o eleva a um patamar aonde outros títulos do gênero repletos de firulas em computação gráfica (como “Mama”, de 2013) jamais sonhariam chegar.
Mesmo quando o enredo ameaça levar o filme para algum tipo de reedição de “Alien” ou quando, perto do desfecho, os efeitos especiais começam a aflorar (e os fãs mais entusiásticos do gênero temem, talvez, por algum final ao estilo J.J.Abrams, onde tudo se explicaria com a chegada de uma nave espacial, o que definitivamente não é o caso), a direção e o roteiro retornam o filme para sua linha mestra, a ponto de o protagonista repetir literalmente alguns trechos do roteiro original. Mais uma vez, este novo “Blair” desiste, felizmente, da tendência excessivamente digitalizada, artificial, que tem marcado a indústria nos últimos anos, e opta por momentos em que tudo que se precisa é dos recursos tipicamente cinematográficos (inclusive numa cena claustrofóbica que remete a outro filme valioso, “O Abismo do Medo”, de 2005).
Aqueles que possivelmente não estão familiarizados com o “Blair” de 1999 ou com o estilo originado dele possivelmente oscilarão, em alguns momentos, entre a incompreensão e o atordoamento diante das câmeras frenéticas e tremidas, repletas de sujeira e granulação, e serão intrigados pelo plano final (que também referencia o original, mostrando mais uma vez que, se esta nova trama continua a anterior, sua abordagem reedita a experiência com visível reverência).
Nada, entretanto, que atrapalhe ou comprometa uma sessão de cinema dotada de alguma originalidade e inegável competência ao dar continuidade a um dos mais bem-sucedidos experimentos em toda a história do gênero. “Bruxa de Blair” é garantia de entretenimento em duração precisa, sufocante, incômodo e, muitas vezes, apavorante. Tanto a produção de 1999 quanto a de 2016 terminam com um “pedido de desculpas” dos protagonistas pelos seus projetos malfadados.
Tais pedidos não se aplicam ao público, que em ambos os casos está diante de exemplares de cinema cada vez mais raros: filmes repletos de matizes e texturas naturais, pensados prioritariamente para a sala escura e cujos realizadores sabem lançar mão de recursos muito simples e genuinamente cinematográficos que continuam funcionando (a contraposição entre luz e trevas, preenchido e vazio, ruído e silêncio, movimento e paralisia), sem lembrar a todo tempo que o filme passou por dezenas de computadores antes de ficar pronto. O que seria exigido, além disso, de um simples filme de terror?
Crítica | Os 33
Onde você estava no dia 11 de setembro de 2001? Muito provavelmente a resposta estará na ponta da língua. Mas e se eu te perguntar onde estava no dia 5 de agosto de 2010? É bem mais difícil de lembrar, não é mesmo? Por uma curiosidade do destino, eu me lembro o que estava fazendo quando os telejornais brasileiros já começavam a anunciar com alarde o desmoronamento da mina San José que tornou os trinta e três mineiros sobreviventes em seus reféns por setenta dias. Ainda cursava o segundo ensino médio na época e não dei muita atenção ao fato – só fui procurar me informar sobre o ocorrido no dia do resgate.
A história por si só já é fortíssima. Tem todos os requintes de uma obra adaptada para as telonas poderia pedir: uma catástrofe, conflitos psicológicos, temática de sobrevivência, viver no extremo, luta de familiares, saudades, amor, chances de redenção eu um grande e gordo final feliz. Às vezes, por uma simples ironia, o destino é o melhor roteirista que Hollywood pode pedir.
Feliz do texto dos quatro roteiristas que trabalharam em cima do livro de Hector Tobar que possui os direitos autorais sobre essa propriedade intelectual – hoje, os mineiros estão desempregados e abandonados depois da fama. Mesmo com esse monte de gente trabalhando em cima de uma história só, o roteiro do longa agrada e é coeso no limite do possível. Porém, convenhamos, com uma história fantástica dessas não é lá uma obra tão impossível.
Como esperado, não há ênfase para desenvolver os trinte e três mineiros e suas famílias. Eles se concentram em algumas figuras-chave. No caso, os mineiros Mario – que se assume como líder diante a calamidade, o chefe de segurança Luiz Urzua, o alcoolotra Dario e sua irmã Maria e o ministro das Minas, Laurence. Os outros mineiros e suas famílias servem apenas para preencher quórum quando a diretora Patricia Riggen precisa agregar mais valor de produção aos planos. Nas demais vezes, os roteiristas se limitam a usar conflitos da vida real dos mineiros como no caso de Yonni que é disputado por duas mulheres que o aguardam na superfície, em outro chileno religioso ou no bullying que o boliviano Carlos Mamani sofre com as constantes tiradas dos outros sobreviventes.
Os outros personagens servem também para enfatizar os dramas da situação desconfortável que os mineiros se encontram seja no esboço do drama psicológico, do medo, da terrível fome e o racionamento de comida, da falta de esperança entre outras coisas habituais características de filmes de sobrevivência. Obviamente, isso tira os personagens do plano superficial. Entretanto, o mais esquisito é como o texto desanda a respeito da figura de Mario, o líder, a partir do momento no qual os mineiros entram em contato com a equipe de resgate que está na superfície. Há uma pressa e necessidade de criar um conflito que serve apenas para constar na lista – como a fama mundial afeta o comportamento de Mario em relação aos seus companheiros. É um conflito estupido que se resolve mal.
Já na superfície, a dinâmica do texto também é boa na primeira metade do longa perdendo um pouco o rumo nos momentos finais. Nesse núcleo, acompanhamos os esforços dos familiares representados por Maria Segovia para cobrar soluções do governo Piñera, este, representado pelo Ministro das Minas Laurence. Em certo momento, o texto até prepara um interesse romântico entre os dois, mas logo deixa de lado. Os personagens só possuem a força que tem graças às ótimas atuações de Juliette Binoche – que mostra sua incrível versatilidade ao retratar a latina um tanto histérica e desesperada, Maria – e Rodrigo Santoro – interpretando um político santo que realmente se preocupa em salvar todos os mineiros.
Novamente, a força da história se reflete no trabalho da diretora que tem vislumbres criativos bons, porém óbvios. O maior mérito é o fato do longa ter sido filmado totalmente em locação do início ao fim – as minas utilizadas para simular a de San José ficam na Colombia enquanto o restante é filmado de fato no Chile.
A posição dela trata com cinismo os esforços do governo apresentando logo de cara o presidente Piñera como uma figura apática – me faz pensar como ela retrataria Bachelet, caso fosse a presidente na época. Depois, reforçando o desdém pelo governo, ela exibe contrastes do alto poder que oferece ajuda procurando melhorar a imagem da gestão enquanto o povo se desfaz em lágrimas aplaudindo o governo “salvador”.
Patricia Riggen entende bem de cinema latino, já que ela mesma é mexicana. Logo a pegada é latina. Trabalho intenso de câmera na mão – movimentos bem livres que disfarçam a encenação, cenas de cotidianos para planos de cobertura, além de valorizar muito bem o belíssimo Deserto do Atacama com planos estonteantes. Com os atores, os guia para a nossa histeria características o calor latino, a afobação, o festim diabólico que vira qualquer notícia extraordinária para os canais sensacionalistas, o circo que se forma ao redor da mina, além de martelar diversas vezes a nossa forte presença religiosa – os Hermanos não são tão diferentes dos brasileiros.
Entretanto, ela sabe conduzir bem o filme que consegue te emocionar até certo ponto. Só há verdadeiramente uma única cena que se sobressai e revela um pouco do possível brilho de Riggen como cineasta – e não, não se trata da boa sequência do desmoronamento da mina. A simbologia utilizada é óbvia – Danny Boyle fez o mesmo em 127 Horas, a já bela e plural fotografia barroca de Checco Varese se torna fabulosa e o roteiro conquista com algumas piadas, mas quase tudo é destruído graças a um humor non sense ridículo e fora de tom que por muito pouco não joga a beleza da cena no lixo.
Varese realiza um trabalho ótimo em todo o filme, preocupando-se sempre em manter uma pluralidade de cores saturadas – representando o calor latino, e explorando bem os diversos modos para fazer a luz principal dos mineiros confinados – utilizando quase sempre a luz guia instalada nos capacetes dos atores para iluminar uns aos outros. O resultado é ótimo e só mostra o quão eficiente e inventivo o departamento de fotografia pode ser.
De resto, Riggen é uma cineasta eficaz que domina a linguagem. Carrega o filme sem muitas preocupações e cumpre o que promete ser – uma adaptação bem realizada sobre um dos acontecimentos mais marcantes da última década. O que carece mesmo é a tensão e o marasmo que deve ter assombrado a rotina diária dos mineiros.
Os 33 é a adaptação do maior resgate bem-sucedido de pessoas em situações extremas da História. Não espere muita profundidade aqui. Os horrores já trazidos por outros filmes do segmento se tornam meras piadas. É mais um bom filme para nos sentirmos bem – tão família que conhecemos os verdadeiros mineiros, um a um, em um piquenique na praia acompanhados de uma música light. Aliás, prepara-se para ouvir a penúltima trilha do clássico compositor James Horner que realiza um ótimo trabalho agregando tons latinos aliados aos seus coros angelicais vindos de Titanic. Além disso, há um elenco bem localizado com diversos atores latino americanos interessados em fazer um trabalho satisfatório – principalmente Juan Pablo Raba que trabalha bem a abstinência alcoólica de Darío.
Obviamente este longa poderia ser uma conquista cinematográfica, mas realmente preferiu ficar na margem de segurança nesta adaptação. Certamente um bom filme, mas que não triunfa tanto quanto o momento real da glória dos mineiros ao emergir de volta à superfície que encerrou o martírio destas pessoas e a apreensão do mundo no dia 14 de outubro de 2010.
Crítica | No Coração do Mar
Existem pessoas na indústria cinematográfica que reconhecem suas limitações. Ron Howard é uma delas. Considerado um ator razoável, Howard não poupou suas oportunidades para ingressar na direção cinematográfica. Com cara e coragem, fez alguns trabalhos para a televisão e alguns curtas chegando em seu primeiro longa para os cinemas em 1977 com Grand Theft Auto – poucos anos depois emplacou seus primeiros sucessos Splash – Uma Sereia em Minha Vida e Coccon. Hoje, indubitavelmente, Howard continua um ator mediano, porém se tornou um dos diretores mais relevantes da indústria. Afinal, quem não queria ter Apollo 13, Frost/Nixon, Uma Mente Brilhante e a sua obra-prima Rush: No Limite da Emoção, no currículo? Certamente eu queria.
Agora, com um hiato curto entre um blockbuster e outro (especialmente aventuras de Robert Langdon), Howard retorna com o controverso No Coração do Mar baseado no livro de Nathaniel Philbrick que traz a história desventurada da tripulação de Essex, um navio baleeiro, que é atacada por uma grande baleia branca levando-os ao naufrágio e à luta pela sobrevivência.
A história é famosa. Tão famosa a ponto de ter inspirado o clássico Moby Dick de Herman Melville. Aliás, o próprio livro de Philbrick é em si, excelente. Logo, com uma história tão forte, com ação na medida certa, um drama sobre a condição da fragilidade humana em relação aos seus meios de extensão, era de se esperar um baita filme digno de Oscar, não é? Pois bem, parece que a baleia não afundou somente o Essex, mas sim com boa parte da adaptação da obra, infelizmente.
Os problemas residem em sua maioria no texto do filme escrito a seis mãos somente em seu argumento – em si, um exagero. Amanda Silver e Rick Jaffa, os roteiristas mais bipolares da indústria – assinam o roteiro exemplar de Planeta dos Macacos: O Confronto e do deplorável Jurassic World¸ unem forças com Charles Leavitt que faz o tratamento do texto. Se levarmos em conta a quarta cabeça de Nathaniel Philbrick, já é possível ter uma ideia de que as coisas vão se atropelar.
Já começam com o uso para lá de corriqueiro de um clichê condenado: um senhor assombrado pelo passado resolve revelar uma grande história. Logo, o tema do filme se concentra em um enorme flashback – muito mal resolvido, aliás, já que o narrador não é onisciente como o texto apresenta. O diálogo se dá entre um dos marujos sobreviventes do massacre e Herman Melville que acredita que a história tenha força o suficiente para virar sua obra prima.
Quando o longa começa de fato, o dinamismo toma conta de forma avassaladora. Apenas em quinze minutos já temos três conflitos importantes, antes mesmo dos personagens embarcarem no Essex. Somente esses conflitos iniciais já exigem um tempo satisfatório para serem desenvolvidos – algo que não ocorre. E o filme não cessa em criar conflitos novos enquanto vai esquecendo de alguns outros. Ele tenta explorar a justiça da meritocracia, os relacionamentos amorosos dos marujos, os conflitos de classe e hierarquia nas embarcações, o impacto ambiental da caça às baleias, a condição do náufrago, o “antagonismo” da baleia branca e sua relação com o primeiro imediato Owen Chase (Chris Hemsworth) tentando mimetizar Moby Dick, o custo da sobrevivência, as ingerências e corrupção de grandes corporações capitalistas, o terror do passado obscuro e o medo do futuro sobre um sucesso improvável. Listei somente dez, mas existem mais coisas que não posso citar por comprometer a sua experiência enquanto espectador. Enfim, dez grandes tópicos para explorar em apenas cento e vinte minutos. Logo, o filme não consegue se adequar em praticamente nada contando apenas com um (!) diálogo relevante e bem elaborado e três sequencias memoráveis – todas envolvendo as baleias, efeitos visuais, direção e zero de roteiro.
Também há uma estranheza com os protagonistas. Isso acontece porque ambos simplesmente não te prendem. Em meio a guerra de egos de Owen Chase e o capitão Pollard, o espectador é que sai mais prejudicado já que diversas vezes os conflitos agregam pouco e são repetitivos – briguinhas de namorados adolescentes muito musculosos. Hemsworth sofre do mal do ator de um papel só até o naufrágio do Essex. Nesse tempo, ele é uma réplica do Thor, só que mais impaciente, carrancudo e gritão. Depois, a coisa melhore e ele desenvolve mais o drama, mas pesando novamente o sotaque que já começa a cansar. No fim do filme ele volta a ser Thor. O formato do filme, graças aos muitos personagens com divisões de tempo em tela similares uns aos outros, também contribui por nós não nos familiarizarmos com eles e tampouco com seus conflitos e tragédias. Uma pena, pois aqui poderia ter algo muito relevante.
Entretanto, apesar de não desenvolver esses conceitos de modo apropriado e tratar o destino de alguns personagens com bastante desdém – vide o caso do marinheiro Joy interpretado pelo sempre competente Cillian Murphy, o roteiro apresenta bons conflitos como apontei anteriormente, mesmo que sejam bem antagônicos e maniqueístas, mereciam mais substância. O tratamento da baleia com o imediato Chase realmente é o que salva a história do filme.
Apesar de Howard ter terminado Rush, aparentemente, Rush não saiu dele – nesse caso, é péssimo. Não somente o texto apressa o filme inteiro, mas o diretor utiliza uma montagem aceleradíssima durante todo o longa. Não há espaço para respirar. É como se víssemos um filme de Michael Bay sobre navios e baleias. Pela matemática que eu fiz, dá aproximadamente um plano com duração média de quatro a cinco segundos, isso quando eles não são ainda mais ligeiros. Ou seja, em termos de enquadramento e movimentação de câmera, No Coração do Mar é riquíssimo, porém isso prejudica o filme.
A primeira razão disso é que a montagem frenética nos cansa. São muitos planos e, entre eles, a quantidade de enquadramentos sujos é equivalente à de planos belos – e quando eles surgem, logo são interrompidos para um menos apurado esteticamente. Howard faz uma decupagem de cenas de ação para diversas cenas, incluindo às dedicadas para a vivência dos homens à deriva pós naufrágio. É lastimável, pois essas sequencias clamam por planos mais longos que remetam à contemplação e reflexão. Não espere nada disso aqui. A reflexão realmente é rasteira e o drama humano, pouco palpável, porém as boas cenas existem – como a que confere a resolução do conflito da baleia com Chase. Além disso, Howard tem a constante mania de inserir elipses que evitam que o filme perca o ritmo nas cenas destinadas aos náufragos. Ali, realmente era necessário nos sentirmos um pouco do marasmo que eles sentiram ao ficar à deriva. Para ilustrar o que quero dizer, temos algumas passagens como essas em As Aventuras de Pi.
Entretanto, nas sequencias de ação, realmente Howard se sobressai, mesmo que sejam curtas, são excelentes e muito bem dirigidas. São espetáculos à parte e as dedicadas ao ataque da baleia, realmente conferem um ar ameaçador e temível para o animal. Uma mais interessante e criativa que a outra. Nesses casos, cabem os diversos planos que ele faz com câmeras que tomam pontos de vista semelhares às imagens captadas por GoPros (no filme, se trata da Canon C300) – há um excesso desses planos em diversas cenas.
Também é esquisito notar que Howard não valoriza a transformação física intensa que seus atores sofreram para cumprir a lógica interna do filme. Nunca vemos Chris Hemsworth magérrimo como ele apareceu nas fotos de divulgação, mas isso é por falha de Howard que nunca o enquadra para enfatizar o físico do ator. Bom, um desperdício de bom profissionalismo.
Assim como em Rush, Howard retoma a parceria com seu diretor de fotografia consagrado Anthony Dod Mantle que cria esquemas de iluminação verdadeiramente belos, além de conseguir entregar um resultado clean e flat para a luz guia dos personagens. Porém, mesmo sendo muito competente, Dod Mantle tem uns vícios que podem irritar. No caso, a estilização exagerada da pós-produção de correção de cor em suas imagens. Com isso, a imagem é lotada de filtros de cor – mais comum o esverdeado e dourado no caso, que tiram um pouco da naturalidade da cena nos lembrando que tudo ali se trata de imagens artificiais para um filme que tem uma temática realista.
O cinematografista cria tons surreais como o dourado intenso das ondas que refletem a luz do sol, além de alguns personagens terem um bronze extremamente alaranjado. Lembrando, isso não é algo que realmente me incomode, afinal é a marca autoral do cara e ele sabe fazer isso muitíssimo bem – vide a foto absolutamente fantástica de Dredd. Então espere encontrar uma cinematografia intensa, estilizada, vibrante e muito saturada. Pode parecer que o projetor está sofrendo de aberração cromática, mas realmente se trata da fotografia final da concepção de Dod Mantle.
Para compensar alguns infortúnios com a cor, Howard e Mantle nos presenteiam com um trabalho fantástico de câmera quando os personagens ficam confinados aos botes. Assim como também acertam com as belíssimas imagens aéreas e submarinas dignas de dar inveja a qualquer um. Para finalizar, também lamento a escolha do formato 1.85:1 quando esse filme tinha tudo para ser gravado em Cinemascope. Ou seja, dependo da sala que você for, a exibição acontecerá com as famigeradas letterbox cada canto lateral da tela.
Na incessante trilha musical, temos Roque Baños apresentando ótimos temas. Mesmo que alguns sejam bem genéricos e batidos, é inegável que o compositor consegue casar com muita facilidade música com ação tornando a experiência ainda melhor. Assim como o filme inteiro, poderia ser mais ousada durante o tempo que os marinheiros se refugiam nos botes.
Já os departamentos que merecem muito destaque são os de design de produção e figurino. Ambos trazem o clima certeiro da Inglaterra do séc XIX. Uma recriação absolutamente fidedigna de cenários que contam pequenas histórias por si só – claro, cabendo à sua imaginação e vontade de exercitar a cabeça.
Como é de se esperar, esse filme se sustenta muito com o auxílio de efeitos visuais. No que tange os efeitos de atmosfera que agregam ao ambiente da cena e auxiliam o design de produção, não há o que por defeito. São belíssimos como todo estúdio de grande porte tem a competência de entregar. Entretanto, com os efeitos primários que se tratam das baleias, as coisas já não são tão fabulosas assim. É um resultado que transita entre o satisfatório para o ruim. Por vezes, lhes faltam textura, outras vezes, a animação que não agrada. Até entendo, porque baleias devem ser seres de difícil estudo.
Enfim, No Coração do Mar é um bom filme. Sai da sessão um tanto decepcionado, mas sem dúvida alguma, tinha me divertido com ele. É um ótimo entretenimento muito bem produzido que deve agradar bastante, afinal tem a direção de Ron Howard que não é nenhum imbecil, mas sim um diretor bem perspicaz, aliado de um elenco grandioso e uma equipe competente. Se gosta de filmes como Mestre dos Mares ou Náufrago, certamente vai gostar deste, mesmo que em menor intensidade já que se trata de um filme mais fraco. A verdade é que o relato que Nathaniel Philbrick trouxe foi um dos mais fortes da literatura marítima e ganhou um filme que se apequenou diante da obra original.
É uma pena, pois o livro merecia um filme tão impactante quanto.
No Coração do Mar (In the Heart of the Sea, EUA - 2015)
Direção: Ron Howard
Roteiro: Amanda Silver, Rick Jaffa e Charles Leavitt, baseado na obra de Nathaniel Philbrick
Elenco: Chris Hemsworth, Benjamin Walker, Brendan Gleeson, Cillian Murphy, Tom Holland, Ben Whishaw, Michelle Fairley, Frank Dillane
Gênero: Aventura
Duração: 122 min
https://www.youtube.com/watch?v=E_hwdx5k5_k