Crítica | Narcos - 3ª Temporada

Crítica | Narcos - 3ª Temporada

Pablo Escobar (Wagner Moura) morreu e Steve Murphy (Boyd Holbrook) completou a sua missão e voltou para os EUA. Mas como ficou a situação após a queda do traficante? Essa pergunta foi o que deixou muitos fãs com medo da terceira de temporada de Narcos, mas podem ficar tranquilos. Pois mesmo sem a presença marcante de Wagner Moura, eles fizeram a melhor temporada da série.

Após a queda do cartel de Medellín, o cartel de Cali começa a crescer demais. Ele é liderado pelos irmãos Gilberto (Damián Alcazar) e Miguel Rodríguez (Francisco Denis), “Pacho” Herrera (Alberto Allman) e Chepe Santacrúz (Pêpê Rapazote) que se mostram muito diferentes que Escobar, mas tão cruéis quanto o antigo traficante. Javier Peña (Pedro Pascal) é escolhido para investigar o cartel, com “apoio” da CIA e do Governo norte-americano. Enquanto isso, Jorge Salcedo (Matias Varela), o chefe da segurança do quartel está decidindo se vai continuar com eles, mas sabe o preço dessa escolha.

O primeiro ponto a se destacar é como o ritmo dessa temporada se mostra de longe o mais bem feito. A série pode ser dividida em duas partes: na primeira temos as apresentações dos personagens e da situação, enquanto na segunda vemos todas as consequências. Sei que essa descrição é óbvia para qualquer série, mas nessa terceira essa transição é feita de maneira muito eficiente. Mesmo focando na política e da explicação do cenário, os cincos primeiros são muito intrigantes por mostrar como os novos antagonistas são muito diferentes de Escobar, tendo uma visão em maior escala do negócio e agindo escondido, enquanto o primeiro fazia questão de assinar seus atentados. Além de mostrar toda a burocracia que Peña e sua equipe terão que enfrentar para prender os Cavaleiros de Cali e a situação tensa que Salcedo enfrenta a cada episódio. Já na segunda parte, ela entrega tudo o que ela promete e a maioria dos seus desfechos são dignos e honestos com o público, mesmos alguns sendo forçados.

Os personagens dessa temporada são muito ricos. Destaque para Miguel, que vai mostrando que pode ser muito mais perigosos do que aparenta, e especialmente para Jorge Salcedo. É o personagem o qual o espectador cria mais empatia, porque percebe que não faz parte daquele mundo de violência e ele se mostra uma boa pessoa. É difícil não torcer pelo personagem durante os episódios. Já Peña acaba ficando mais fraco, mesmo o seu arco sendo bem claro: assim como Murphy virou um capacho do governo e se vê cada vez com as mãos mais atadas por conta da burocracia e principalmente por conta da corrupção no sistema.

As atuações também se mostram excelentes. Todos os atores estão ótimos. Além do sempre competente Pedro Pascal, Damián Alcázar se mostra como o ator mais disciplinado por conta do seu personagem. Gilberto é um homem de aparência calma e carismática que se mostra em certos momentos muito explosivo e violento e para isso é necessário um ator que tenha um grande controle emocional. O mesmo pode ser dito de Francisco Denis, que por mais que Miguel aparenta ser o mais calmo dos irmãos e do cartel, vai se mostrando que é o mais volátil e perigoso. Isso se deve a uma evolução muito bem feita de Denis em seu papel. Como Jorge Salcedo é o melhor personagem da temporada, Matias Varela compõe um personagem que nunca expõe os seus reais sentimentos, apenas com a voz. Seu personagem sempre está com a aparência tranquila e calma e isso se mostra muito eficiente na composição de Varela para o personagem. Vale destacar a participação do ótimo Javier Cámara – que já foi fez filmes de Pedro Almodóvar – como o excêntrico contador do cartel que sempre parece que tem uma carta na manga. Já o excelente Pedro Pascal mostra a sua eficiência, mesmo que o arco do personagem não dê muito para o ator trabalhar.

A direção da terceira temporada é a mais coesa. Volta Andi Baiz, que sempre dirige quatro episódios em cada temporada, e se mostra cada vez melhor, principalmente nos últimos dois episódios. Mas o destaque vai para direção do brasileiro Fernando Coimbra nos episódios 7 e 8. O sétimo é um dos melhores episódios da série, facilmente o mais tenso, mostrando que o diretor tem um grande controle de cena e utiliza muito bem montagem paralela. O oitavo também se mostra muito bem dirigido e tenso, com uma boa sequência de tiroteio. E os diretores superaram o estilo documental feito por José Padilha nos primeiros episódios da série.

Enfim, não há muito o que reclamar da terceira temporada de Narcos. É disparada a mais bem executada e trabalhada e é incrível quando uma série tem uma melhora tão gritante a cada temporada. Que fique ainda melhor na quarta.

Narcos – 3ª Temporada (Idem – Season 3, EUA/Colômbia – 2017)  

Showrunner: Chris Brancato, Carlo Bernard e Doug Miro
Direção: Fernando Coimbra, Andi Baiz, Joseph Wladyka e Gabriel Ripstein
Roteiro: Chris Brancato, Carlo Bernard, Doug Miro, Dave Mathews, Andy Black, Eric Newman, Clayton Trussell, Santa Sierra, Jason George
Elenco: Pedro Pascal, Damián Alcazar, Alberto Allman, Francisco Denis, Matias Varela, Javier Cámara, Pêpê Rapazote, Andrea Londo, Eric Lange, Arturo Castro e Kerry Bishé

Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Policial
Duração: 50 min

https://www.youtube.com/watch?v=Ory6b2EJ3Bk


Crítica | Narcos – 2ª Temporada

Crítica | Narcos – 2ª Temporada

Após o sucesso da primeira temporada, era óbvio que haveria uma segunda temporada de Narcos. Se na primeira vimos a ascensão de Pablo Escobar (Wagner Moura), na segunda vemos a sua queda. Além da mudança de foco -enfim, há um protagonista - , há uma melhoria narrativa gritante.

Ainda acompanhamos tudo na visão de Steve Murphy (Boyd Holbrook), de como todos decidiram declarar guerra a Escobar e a queda do cartel de Medellín, enquanto os outros narcotraficantes aumentavam a sua influência.

Os arcos são muito mais interessantes, o desenvolvimento dos personagens é mais eficiente e a série se torna muito mais objetiva. Como na primeira temporada, Murphy estava aprendendo sobre a política colombiana e suas burocracias, a série perdia muito tempo para explicar como funcionava. Como já tinha deixado muito claro na temporada passada como era o cenário político e social, a segunda já mostra tudo de maneira direta.

Parece que escutaram todas as críticas que haviam na primeira e melhoraram de maneira gritante, deixando claro que o protagonista não é Murphy, mas sim Escobar. O roteiro se mostra muito coerente quando foca no núcleo envolvendo a família Escobar, principalmente da esposa, Tata (Paulina Gaitán) – que ganha uma grande importância e é muito bem desenvolvida – e da mãe, Hermilda (Paulina Garcia). É mostrada uma família unida, mas que por conta das “popularidade” de Pablo – que vai se tornando cada vez mais odiado pelo povo -, vai tendo consequências graves e a vida de todos mudam, sendo que a mãe nem pode ir mais para a Igreja, por conta dos inimigos de Escobar.

Além do núcleo de Pablo ser muito bem desenvolvido, é muito interessante como a série constrói para a sua queda. Mostrando inimigos como Judy Moncada (Cristina Umaña), que forma um grupo chamado Los Pepes com o objetivo de destruir Escobar; Gilberto Rodríguez (Damián Alcazar), o chefe dos rivais do cartel de Medellín, o cartel de Calí; os políticos liderados pelo presidente Gaviria (Raúl Mendéz), que decide acabar com o traficante; e a polícia, focando em Javier Peña (Pedro Pascal) que se vê em meio a uma escolha perigosa para chegar  a Pablo Escobar.

Como dito essa segunda temporada se mostra muita mais coesa que a primeira, mas comete o mesmo pecado a antecessora: o ritmo. Os primeiros quatro episódios são muito bem feitos e intrigantes, mas depois ela perde um pouco o gás. Por mais que o foco seja a política e a burocracia, a série recupera o fôlego em poucos momentos, como o ataque a casa de Pablo. Mas no geral ela fica com um ritmo irregular, que recupera muito bem nos dois últimos episódios. Alias, o penúltimo episódio da temporada - o qual Pablo não se vê como outra opção a não ser ficar escondido na humilde fazenda de seu pai, Abel (Alfredo Castro) – é o melhor de toda a série. É o mais bem dirigido e com a cena mais poderosa: o embate entre pai e filho. Além de ser muito bem escrito, contém um trabalho incrível dos dois atores, em especial de Wagner Moura.

Moura também se mostra muito mais a vontade nessa temporada que a anterior. Com uma composição rica em detalhes, em nenhum momento Pablo se torna uma caricatura de um vilão, apesar dos seus atos. Vemos que mesmo sendo um monstro, o personagem tem algumas virtudes e sonhos, como demonstrado no último episódio que abre com ele sonhando como presidente da Colômbia ou o momento que queima dinheiro para aquecer sua família. É mais um grande trabalho desse ótimo ator.

Tecnicamente, a série continua muito bem feita. Com uma fotografia natural e uma direção de arte que recria muito bem a Colômbia dos anos 80 e suas pequenas cidades. Os figurinos são muito detalhados, assim como os cenários como as casas que Pablo fica perto do seu final.

Enfim, essa temporada de Narcos se mostra mais concisa que a primeira e mais bem executada, mas infelizmente tem o mesmo problema de ritmo da antecessora. Mas continua ainda uma série acima da média.

 Narcos – 2ª Temporada (Idem – Season 2, EUA/Colômbia – 2016)  

Showrunner: Chris Brancato, Carlo Bernard e Doug Miro
Direção: Geraldo Naranjo, Andi Baiz e Joseph Wladyka
Roteiro: Chris Brancato, Carlo Bernard, Doug Miro, Julie Siege, Clayton Trusell, Gideon Yago, Curtis Gwinn, Zachary Reiter, T.J. Brady, Rasheed Newson e Steve Lightfood.
Elenco: Wagner Moura, Boyd Holbrook, Pedro Pascal, Joanna Christie, Juan Pablo Raba, Maurce Compte, Jorge A. Jimenez, Paulina Gaitán, Stephanie Sigman, Bruno Bichir, Rául Méndez, Manolo Cardona e Cristina Umana
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Policial
Duração: 50 min


"Ed & Lorraine Warren: Lugar Sombrio" traz relato mais visceral sobre o Exorcismo de Connecticut

Todos nós amamos uma boa história de fantasma, não é? Felizmente, vivemos uma nova era de resgate do horror elevando o gênero com obras de muita qualidade, principalmente no cinema. Com a “descoberta” da Warner com o casal Warren em Invocação do Mal, rapidamente os casos da carreira dos demonologistas viraram uma mina de ouro aguardando pacientemente ser descoberta.

Ainda sem uma adaptação na franquia cinematográfica da Warner (é especulado que o terceiro filme adapte essa história), a Editora Darkside trouxe um dos casos mais terríveis que os Warren já encaram em suas carreiras: o famigerado Exorcismo de Connecticut.

Previamente, a história fora adaptada pelo longa Evocando Espíritos, mas com diversas convenções narrativas para abrandar levemente a história triste da família Snedeker em sua maldita residência em Southington, Connecticut. Evidentemente, muita coisa foi alterada incluindo a completa remoção do envolvimento dos Warren.

Porém, com Ed & Lorraine Warren: Lugar Sombrio, finalmente temos um dos relatos mais fiéis aos acontecimentos que importunaram a vida família Snedeker por mais de um ano. Apesar de bem escrito com leitura muito fluída, Ray Garton, o romancista responsável em adaptar a história para os moldes da narrativa clássica da literatura, parece ignorar a curiosidade do leitor sobre o quanto daquilo que é descrito é realmente verídico.

Garton não se preocupa nem em estabelecer que o conteúdo do livro se trata de uma história real e tampouco oferece apêndices para explorar melhor certas passagens atribuladas. Porém, verdade seja dita, o livro é ótimo e um dos mais aterrorizantes que já li na vida. O autor tem um talento e estilo muito eficientes para contar a história. Ao contrário de 1977: Enfield, temos um livro com abordagem de romance. Ou seja, ele é e não é biográfico ao mesmo tempo, pois Garton escolhe trazer a história sob uma escrita convencional de ficção.

Logo, os acontecimentos se desenrolam com naturalidade, há arcos fechados, diferentes pontos de vista com protagonistas distintos entre os capítulos, além uma riqueza de detalhes e sentimentos que tornam o horror extremamente palpável para o leitor. Logo, a estrutura oferece um nítido desenvolvimento da história para que sintamos o escalonamento das atividades e da opressão que a família experimentou.

Além disso, o fator que mais elogio da escrita de Garton é que ela não é nada repetitiva – algo que infelizmente acontece com frequência no outro livro 1977: Enfield. Cada capítulo traz acontecimentos distintos e novas formas de assombrações. Apesar de detalhar bem as atividades, o autor decide resumir grandes passagens de tempo que não contaram com atividades distintas ou acontecimentos que já não são do conhecimento do leitor.

Enter the Devil

Somos apresentados à família Snedeker em um de seus piores momentos: a descoberta do linfoma de Hodgkin, um câncer de garganta, no filho mais velho do casal, Stephen, um pré-adolescente de 13 anos – é curioso notar que o nome de todos os menores de idade (na época) foram alterados no relato do livro (no total, são 6 alterações). Obrigados a viajar 270km diariamente para tratar a doença do menino, a família Snedeker decide se mudar para a cidade na qual estava o hospital do tratamento. Porém, na pressa e desespero, Carmen, matriarca da família, decide alugar o apartamento superior de uma casa colonial restaurada.

Ao visitar o lugar, Carmen se maravilhou com o tamanho e disposição dos quartos. Era um lugar perfeito e na faixa de preço que estava procurando. Ao ligar para o senhorio, porém, uma reviravolta acontece. O homem oferece apenas o apartamento inferior da casa que ela não tinha visitado na época. Desconfiada, mas também desesperada pela situação, acaba aceitando a oferta, afinal, o quão pior poderia ser?

E realmente era pior. Carmen e Al, seu marido, no dia da mudança, decidem dar uma inspecionada mais apurada no lugar visitando o gigantesco porão da casa. Ali, descobrem um fato desconcertante. No porão há diversos cômodos perturbadores, paredes manchadas de sangue, uma rampa de propósito nada agradável, além de uma maca presa a correntes com mecanismo de elevador... Sim, a casa que eles acabaram de alugar era uma antiga funerária. Bom, somente um detalhe meio mórbido, não é? Foi o que os Snedeker também pensaram. Até a vida deles se tornar um inferno.

Como esse é o melhor relato sobre o caso até então, fica difícil definir onde a imaginação de Ray Garton começa a interferir na veracidade dos fatos. Porém, a história dos Snedeker não poderia ser mais cinematográfica: uma mudança motivada por uma tragédia, uma família com diversas crianças e, ainda por cima, um pai ausente na maior parte da semana por conta do trabalho ainda ser em Nova Iorque. Logo, temos o cenário vulnerável perfeito.

No livro, os protagonistas mais importantes são Carmen e Stephen que, pelo menos até 2/3 da obra, representam lados contrastantes. Stephen é o menino mais sensitivo às assombrações desde o início da mudança, se sentindo desconfortável na casa, a taxando de maligna. Já Carmen e Al acham tudo aquilo uma instabilidade psicológica do filho por causa do tratamento do câncer.

Logo, rapidamente temos perfis irritantes e um ciclo de acontecimentos que enervam o leitor. Mesmo que os fatos não sejam repetitivos, o conflito é. Mesmo com diversas experimentações sobrenaturais que Stephen relata, Carmen e Al ignoram, além tratarem o garoto como um completo imbecil. Mesmo que a mãe também vivencie experiências desconcertantes como o chão sangrento da cozinha, a mulher não dá o braço a torcer e permanece desacreditando do menino.

Obviamente que isso gera uma ruptura profunda na relação familiar entre eles na qual Stephen sofre uma transformação radical e perfeitamente compreensível. Nos tornamos íntimos do menino conforme as assombrações se tornam mais invasivas, além do temperamento abusivo dos pais do garoto que passam a se tornar vilões da história. Digamos que o clichê da descrença dos adultos é levado ao extremo aqui, pois os dois presenciam elementos que já deveriam trazer atitudes para resolver o problema.

Porém, mesmo assim, os trechos sob o ponto de vista dos outros personagens também conseguem prender a leitura – principalmente os de Al. Obviamente, não cabe aqui mencionar tudo o que acontece, pois estragaria a maior graça do livro, mas há alguns problemas severos no meio do divertimento do texto.

Primeiro, Stephen acaba sumindo na metade do livro e nunca mais é mencionado apropriadamente de novo. Não há conclusão para ele nem mesmo em um epílogo – a verdade é que, 24 anos depois, o câncer retorna e ele morre. Com sua ausência, as assombrações se tornam ainda mais presentes e terríveis com diversas aparições e atos profanos que realmente assustam. O acontecimento mais famoso dessa história são os estupros e abusos sexuais que diversos membros da família sofreram na mão dos fantasmas e demônios. Então o interesse do leitor fica tão desperto que não sentimos um decréscimo na qualidade da narrativa.

Com isso, já estamos com apenas pouco mais de setenta páginas restantes do livro. E é somente aí que os Warren finalmente surgem na narrativa com seus pesquisadores e começam os trabalhos para enfim exorcizar a casa. Novamente, o relato é fascinante e muito poderoso, porém, assim que o clímax termina, o livro acaba.

Não há um epílogo, uma seção de entrevistas, uma contextualização, um apêndice com as informações sobre o que aconteceu com a família e a casa depois da nova mudança. Nada. O que certamente é decepcionante para o leitor depois de investir algumas horas na leitura. Também não existem registros fotográficos de nenhuma forma espalhados nas páginas, o que é uma verdadeira pena. Também é curioso notar que Garton falha miseravelmente em conseguir explicar a geografia da casa - algo compreensível já que ele só esteve uma vez no lugar. Isso acaba, porém, deixando a experiência ainda mais assustadora, pois não há como prever ou antecipar um refúgio naquela casa que se torna um verdadeiro labirinto.

Um Lugar Sombrio

Porém, mesmo com problemas tão aparentes e um final que deixe a desejar, a leitura de Ed & Lorraine Warren: Lugar Sombrio é uma das melhores para leitores ávidos por histórias de assombração e caos fantasmagórico. É um dos maiores casos dos Warren e Ray Garton torna toda a leitura extremamente fluida e rica para todos nós. É possível devorar o livro em apenas uma tarde de tão eficiente que é sua estrutura.

O curioso é que, na vida real, Ray Garton se tornou um grande inimigo da família Snedeker (também o modo que retrata Carmen e Al é realmente cruel) e até mesmo de Lorraine Warren. Você pode conferir o motivo no documentário abaixo que traz mais informações que Garton falhou em trazer no livro. Nessa grande guerra de versões e extrema confusão em trazer verdadeira luz aos acontecimentos, cabe apenas a crença do leitor decidir o que realmente é fantasia e realidade.

Mas uma coisa é certa: essa história te provocará calafrios.

https://www.youtube.com/watch?v=NEcqQPC0oN0

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Crítica | Big Mouth - 1ª Temporada: A Culminação Criativa dos Hormônios

Crítica | Big Mouth - 1ª Temporada: A Culminação Criativa dos Hormônios

Alguns itens narrativos são comuns à vida de todos nós. Enquanto outras obras preferem ver o lado luminoso da vida, com momentos mágicos da infância, sobre os primeiros romances, as aventuras do casamento, o amor paternal e maternal, entre tantos outros temas tão pertinentes a vida humana, Big Mouth traz o retrato mais cru e irreverente sobre a pré-adolescência e toda a conturbação psicológica trazida por essa fase.

Criada por profissionais já envolvidos com animações adultas de comédia, a produção de Big Mouth se comporta como uma culminação da força criativa latente das mentes de Andrew Goldberg, Mark Levin e Jennifer Flackett. Como showrunners pela primeira vez, não há limites para o que pretendem trazer em tela. A liberdade criativa da Netflix realmente parece ter sido plena.

Na história, acompanhamos a vida de dois meninos de 13 anos com tremendo potencial para serem os losers da escola (mesmo não sendo). Enquanto Andrew já atingiu a puberdade, Nick sofre com a expectativa da chegada das mudanças hormonais. Apesar de seguir uma narrativa fluída e bastante amarrada, o formato narrativo se vale do foco clássico em aventuras diversificadas para que os roteiristas trabalhem diferentes temas – assim como ocorre com Rick e Morty e BoJack Horseman.

Felizmente, o seriado não recorre a estereótipos bem consolidados para criar a psique e o modo de agir dos personagens. O que realmente faz um grande sentido, já que os protagonistas estão passando pela fase que geralmente define as características mais permanentes das pessoas no futuro. Apesar de existirem adultos, o grande foco é mesmo nas crianças.

Humor Para os Fortes

Recentemente, Big Mouth já conseguiu angaria sua primeira polêmica com um pai desavisado colocando o desenho para os filhos assistirem. Na verdade, não é nem um pouco improvável que até mesmo um adulto fique transtornado pelas coisas apresentadas no desenho.

A proposta do humor da série é ser irreverente e “politicamente incorreta”. Os moralistas com certeza ficarão afetados pela comédia crua que consegue ser ainda mais forte que a de desenhos completamente sem freios como Rick e Morty.

Ao contrário dos dois cínicos desenhos já acima citados, não há um norte filosófico aparente em Big Mouth que não tange o existencialismo ou positivismo. Algo totalmente pertinente que evita o seriado de se tornar pedante, afinal até mesmo os roteiristas reconhecem que a maioria dos pré-adolescentes não tem crises existenciais como futuramente possa ocorrer. Na verdade, interessa muito mais aqui a linha sociológica de micro-cosmos, psicológica e até mesmo biológica.

Raramente havia visto um desenho tão inteligente em formar piadas com biologia humana sem descambar de imediato para a escatologia. De fato, há sim todo o humor escatológico e escroto representando fisicamente pelo Monstro da Puberdade, uma personificação egocêntrica e escrachada dos hormônios que afetam Andrew.

O personagem serve como um guia e guru para Andrew, norteando algumas de suas piores escolhas, pois, obviamente, não são racionais. O interessante é que, apesar de ser uma criatura mitológica e extremamente velha, o Monstro dos Hormônios geralmente acompanha a idade mental dos personagens, somente reverberando os maiores e depravados desejos que ele tem, mas que são podados pelo superego do psicológico. Aliás, se fossemos comparar em termos da psicologia, o Monstro seria a personificação mais forte do Id, a nossa força de desejos sem freios morais ou éticos.

Logo, o Monstro certamente é o personagem que mais traz o humor grotesco e nojento para a história. Algo que é até mesmo confrontado pelos protagonistas que evitam escutar alguns de seus conselhos.

Nessa primeira temporada, acompanhamos essas aventuras que nada mais trazem tópicos relevantes do amadurecimento de cada um. Ao longo de dez episódios, vemos narrativas que elaboram o primeiro beijo, tamanho peniano, mudanças de altura, mudanças repentinas de comportamento, a menarca, poluções noturnas, urgência de masturbação, festas de colegas de ensino médio, relacionamento com os pais, problemas domésticos e, finalmente, a descoberta da pornografia e o possível vício.

Cada história trabalha bem esses temas, enquanto os roteiristas gostam de encaixar referências próprias do seriado em episódios posteriores. É um vício que é mal trabalhado na maioria das vezes, com exceção de uma que brinca com a linguagem visual de games arcade. Nas outras, há alguns vícios estúpidos em interromper a narrativa para inserir quebras de quarta parede nada pertinentes que mais funcionam também como uma autopromoção da série como se os showrunners tivessem medo de perder a audiência na metade da temporada.

Outro elemento muito chato e intrusivo é uma jogada imbecil de ficar mencionando a Netflix nessas quebras de quarta parede. Isso acaba nos removendo totalmente da imersão da série, além de quebrar o fluxo narrativo que é bastante fluído quando não ocorrem essas palhaçadas.

Estudo de uma Fase

Trabalhar os temas com afinco e boas piadas é o mínimo esperado para um seriado cômico, mas também é igualmente importante estruturar bem seus personagens para que não se tornem repetitivos como acontece em BoJack Horseman.

De grosso modo, Big Mouth já exibe alguns indícios de personagens que necessitam de melhor tratamento. Enquanto os pais de Nick, os dois protagonistas, Jessi e Missy e os dois Monstros da Puberdade (também tem a do sexo feminino) funcionam muitíssimo bem, outros passam a esgotar rapidamente como Jay, o fantasma de Duke Ellington e treinador Steve – esse em particular é uma boa representação do fracasso de alguém que nunca conseguiu sair da puberdade funcionando como uma crítica espetacular para a atual geração que está entre os 20 e 30 anos.

Os personagens têm bom potencial, como Jay com sua relação familiar problemática e frustrada, além do Fantasma ajudar a fazer piadas funcionais da América racista dos anos 1950. Porém, rapidamente os roteiristas não sabem mais o que fazer com eles, repetindo piadas e situações excessivas vezes. Por exemplo, todos sofrem de piadas que não funcionam, mas que insistem em surgir como a do analfabetismo de Steve, dos comerciais do pai de Jay e também sobre a vida cultural de Los Angeles em 1950 e 1960. Nada disso realmente presta ou agrega na narrativa.

Apesar de Nick ser um bom protagonista, os roteiristas têm menos interesse em trabalhar com ele por conta do atraso da puberdade. Portanto, Andrew recebe melhor desenvolvimento ao longo da temporada passando por descobrir sua sexualidade, entre outras noias pertinentes à idade. O personagem simplesmente funciona e conduz bem todos os episódios, além da escrita não ignorar os resquícios de inocência da infância dos garotos sempre as contrastando com um choque de realidade eficiente.

De resto, a narrativa não é revolucionária ou particularmente original. O uso com os personagens é bastante ordinário formando e desfazendo casais. Há, porém, jornadas geniais como um episódio que mimetiza gags de Seinfeld.

Aliás, da parte técnica, é interessante mencionar o estilo bastante único do design dos personagens extremamente cabeçudos e com lábios inchados. De certo modo, a estética não é desagradável de forma alguma e transparece boa dose de humanidade nos protagonistas e seus amigos. Na direção, não há lampejos que fujam do ordinário da animação 2D desses seriados. A linguagem é a mesma de sempre, correta e eficiente. Mas vale destacar os esforços de criar diversos números musicais paródicos com liberdades criativas visuais interessantes.

De toda a forma, Big Mouth funciona e é bastante promissor. No fim, apenas comprova que a verdadeira força dessas animações vem do carisma de seus personagens e na agilidade de diálogos inteligentes misturados com diversas caraterísticas de humor grosseiro.

Big Mouth (Idem, EUA – 2017)

Showrunners: Andrew Goldberg, Mark Levin e Jennifer Flackett
Direção: Joel Moser, Bryan Francis, Mike L. Mayfield
Roteiro: Emily Altman, Kelly Galuska, Mark Levin, Jennifer Flackett, Victor Quinaz
Elenco: Nick Kroll, John Mulaney, Maya Rudolph, Jenny Slate, Jessi Klein, Jordan Peele, Paula Pell, Kat Dennings
Gênero: Animação adulta
Duração: 25 min/episódio.


Crítica | Rick and Morty - 3ª Temporada - O peso das escolhas

Crítica | Rick and Morty - 3ª Temporada - O peso das escolhas

 

Se existe uma série que mostra à que veio desde o início, sem rodeios, é Rick and Morty. Principalmente em sua terceira temporada, quando expõe logo no primeiro episódio, jogando uma bola de demolição na quarta parede, o que estava por vir: “Oh, it gets darker, Morty. Welcome to the darkest year of our adventures” (“Oh, fica pior, Morty. Seja bem vindo ao ano mais sombrio de nossas aventuras”, em tradução livre).

Encontramos-nos em um momento delicado para a família Sanchez, após o desfecho da temporada anterior, onde se tornaram fugitivos após uma emboscada da Federação Galáctica no casamento da Pessoa Pássaro e de Tammy. Refugiados em um planetinha limitado e minúsculo, tem pouco o que fazer e precisam encaram um dilema: ficar com Rick ou, como Jerry sugere, entrega-lo à Federação para voltar à terra.

Durante as duas primeiras temporadas, acompanhamos a natureza niilista de Rick dando lugar a pequenos momentos vulneráveis – vimos tanto o grande e poderoso Rick Sanchez, viajador do multiverso, quanto o homem que se engana e possui uma tristeza profunda em seu interior nos quase inexistentes momentos em que baixa a guarda. Quando escuta sua família discutindo entregá-lo, com seu egoísmo como mote, presenciamos um desses poucos momentos, aparentemente - não podemos nos deixar enganar por como as coisas se parecem, já que Rick está sempre alguns passos a frente do espectador. Em um ato inesperado, ele mesmo liga para a Federação e diz onde está, fingindo ser Jerry e salvando sua família, que não precisará viver em exílio – enquanto a angustiante Hurt, de Nine Inch Nails, toca ao fundo.

O RETORNO DE RICK SANCHEZ

O arco de deixado pela season finale anterior, com o aprisionamento de Rick, faz a ponte para que possamos enxergar um pouco de seu subconsciente. Em The Rickshank Rickdemption o encontramos em uma simulação da realidade, criada por agentes federais espaciais a partir do cérebro de Rick para interroga-lo e tentar descobrir o segredo de sua arma de portais. Enquanto isso, sua família tenta lidar com sua falta em uma Terra colonizada por aliens e Summer exuma o Rick Alternativo enterrado em seu quintal com a intenção de usar a arma deste para salvar o avô vivo.

Na simulação, Rick está tentando – e sucedendo, porque Rick Sanchez não é brincadeira – enganar o Agente Federal insectóide Cornvelious Daniel (interretado por Nathan Fillion).

O impacto do episódio no espectador não é pouco, principalmente quando chegamos a um ponto das “memórias” de Rick em que ele vê o suposto fim de sua esposa e filha. Ainda que mais tarde ele diga não ser real, é uma amostra dos sentimentos mais profundos dos personagem, rara demonstração de fraqueza. Ao lançarem momentos como esse, Dan Harmon e Justin Roiland nos fazem crer na humanidade de Rick.

Porém, é preciso lembrar que ele é um matador sem piedade e quase completamente sem arrependimentos. E isso é feito em seguida: após usarem a arma de portais, serem capturados pela Família Sanchez-Smith da Terra Cronenberg e então pelo time de Ricks da Cidadela,  Summer e Morty acabam revelando o encarceramento de Rick. Isso faz com que a Cidadela mande outros Ricks para assassiná-lo.

A tentativa é falha – nosso Rick aproveitou uma brecha no sistema para trocar de corpo com seus captores e, quando seu corpo original leva um tiro, bem, ele não está mais ali. Então aproveita, transfere sua consciência para um Rick da Cidadela, e volta para lá, disfarçado.

Em uma sequência de tramoias que resultam na destruição da Cidadela e da Prisão da Federação, Rick revela sua real motivação para ter se entregado na season finale anterior: acessar o sistema da Federação e desvalorizar completamente a moeda galáctica, quebrando a economia da Federação e, por consequência, destruindo-a.

Vai dizer que isso não é engenhoso e fabulosamente cruel – tanto por parte de Rick, quanto de Harmon e Roiland?

O tom melancólico é quebrado, obviamente, pela melhor revelação de todos os tempos: o cientista conta à Morty que sua única e maior motivação é conseguir provar mais uma vez o raríssimo molho Szechuan, uma edição limitada do McDonalds, feito como promoção para estreia de Mulan. Literalmente, que seu “arco na série” é encontrar o molho para McNuggets, nem que precise de mais nove temporadas para isso.

A TEMPORADA DAS ESCOLHAS

Uma das questões recorrentes nesta temporada de Rick and Morty é o poder das escolhas. De volta a uma Terra agora sem colonização alienígena, ainda no primeiro episódio, Beth é confrontada por Jerry em um dos seus pouquíssimos momentos assertivos: escolher entre Jerry ou Rick. Ela escolhe seu pai.

Essa decisão, que acarreta em um inevitável divórcio, acaba sendo a deixa para que o resto da família finalmente brilhe. Antes dessa temporada, ainda que todos fossem importantes, Summer, Beth e Jerry acabavam nas sombras dos dois personagens que dão nome à série.

O tema das escolhas retorna novamente no episódio seguinte, quando Rick, Morty e Summer vão parrar em uma Terra pós-apocalíptica certamente inspirada em Mad Max. Com dificuldades em superar o divórcio dos pais, Summer e Morty acabam se envolvendo demais com o estilo de vida dos Death Stalkers, um grupo de “carniceiros” locais. Ali, a adolescente precisa escolher se fica com os Death Stalkers e volta para casa, após se envolver romanticamente com um deles e se encontrar no estilo de vida rebelde e destrutivo do grupo - bem distante da realidade de teenager fútil e chatinha que ela representava.

Tempos depois, no nono episódio, Beth e Rick vão em uma aventura sozinhos. Na volta, Beth percebe quão parecida com seu pai ela é e, mais uma vez na temporada, é confrontada com uma decisão que a divide: continuar vivendo a mesma vida, ou ser clonada por seu pai e poder sair para conhecer o mundo – e provavelmente o resto do multiverso. Esse momento é representativo do crescimento da personagem durante a temporada, o clímax do conhecimento dela como indivíduo à parte de seus filhos, pai e marido. Inclusive, acaba compondo um dos grandes mistérios da season finale.

Enquanto todos evoluem, Jerry parece continuar um homenzinho sem graça, sem atitude e sem iniciativa - só realmente tomando as rédeas da sua vida ao confrontar Beth. Em The Whirly Dirly Conspiracy, ele faz um acordo com um alien que deseja matar Rick. Desistindo de última hora, ouve uma das coisas mais importantes que poderia escutar de seu ex-sogro: ele é um parasita que se alimenta da dó alheia. Quando, em The ABC's of Beth, precisa terminar com uma namorada alienígena que arranjou só para superar a ex-mulher, coloca a culpa em seus filhos e isso quase culmina no assassinato dos mesmos.

CONTINUIDADE E REALIDADE

Vi um vídeo recente no fantástico Film Theories sobre a probabilidade da existência – e sobrevicência – de Pickle Rick, apresentado em um episódio homônimo onde Rick se transforma em um picles para fugir da terapia em família - ele faz de tudo pra escapar desse tipo de envolvimento emocional. Dan Harmon fez uma participação especial e disse o seguinte: quando a equipe criou Pickle Rick, a ideia simplesmente surgiu e eles fizeram. Sem grandes pesquisas ou base na ciência, simplesmente porque deu na telha.

Tudo bem, ele diz que sim, normalmente eles fazer muitas pesquisas e por isso a série é tão profunda. Enquanto muito do que acontece em Rick and Morty é tão real e plausível, vários acontecimentos se distanciam do factível.

Talvez esse seja um dos motivos para a animação e sua terceira temporada – que quebrou o recorde de audiência do Adult Swim – fazerem tanto sucesso. A combinação perfeita, curiosamente nem sempre cuidadosa, de ciência e imaginação origina um universo absurdamente imersivo, onde não conseguimos deixar de acompanhar, ao lado da bizarra família do malucão Rick Sanchez e do agora não tão ingênuo Morty Smith.

Justamente nessa temporada, o pequeno Morty também cresce. Ele se torna mais maduro, aprendendo, inclusive, à confrontar seu avô - um sinal de que as coisas estão mudando mesmo. Ah, e a afirmação de Rick de que esse ano seria o mais sombrio? Morty cogitar e tentar matar seu avô em Vindicators 3 já faz disso a mais plena verdade.

A continuidade – com todas as pontas soltas sendo eventualmente amarradas – também impressiona. Arcos iniciados em temporadas anteriores são retomados, como o de Evil Morty – um dos maiores mistérios da série e que reencontramos em The Ricklantis Mixup.

Já definimos Rick and Morty como a melhor animação adulta que já aconteceu desde South Park. Agora, podemos colocar a terceira temporada como a melhor de todas, focada em aprofundamentos - tanto de seus personagens, quanto da mitologia da série. Se Harmon e Roiland continuarem assim, podemos esperar muito daqui para frente - e que venham as teorias!


Review | Cuphead traz as difíceis consequências do pacto com o Diabo

A evolução dos jogos indies é algo muito gratificante de se acompanhar. Alguns até mesmo conseguem superar jogos AAA de grandes empresas que estão no mercado há muitos e muitos anos. Uma certeza que todo gamer tem é que, a cada ano, um jogo indie dentro dos muitos lançamentos terá um destaque considerável ou uma maior base de fãs pelo ótimo trabalho feito: Undertale, Super Meat Boy, Shovel Knight e entre outros são dos poucos jogos que tiveram o seu mérito e mereceram seu local no trono de ouro dos indies. Por isso, podemos hoje aplaudir de pé mais um jogo que acaba de ganhar seu merecido destaque depois de anos de produção e trabalho árduo dos irmão Moldenhauer, Cuphead “Don't Deal With the Devil”.

Cuphead é um jogo estilo gun and run, side-scrolling baseado em jogos tipo Contra, Metal Slug e Sunset Riders, no qual o objetivo do jogador é sair correndo atirando nos diversos inimigos que surgem na tela e se manter vivo o máximo possível para adquirir sua vitória. Esse tipo de gênero era muito famoso em arcades dos anos 1980, junto com os famosos beat'em up.

Um dos pontos mais importantes que muitos jogadores devem ter notado é sua qualidade gráfica totalmente cartunizadas ao estilo dos desenhos animados da década de 30, inspirados em desenhos como Betty Boop, Marinheiro Popeye e Mickey Mouse. Todo o conteúdo, como cenários, personagens e background, foram desenhados 100% a mão, trazendo um visual único e magnifico para quem está usufruindo do jogo. Porém, o mais interessante é como esse visual obteve um impacto enorme nos dias atuais, no qual estamos todos acostumados com tecnologias mais realistas e impactantes enquanto Cuphead aborda o mais simples e clássico com efeitos chuviscados de televisão antiga e sons mais abafados e antigos.

A trilha sonora do jogo está impecável: grande parte das músicas são uma mistura de jazz ou pequenas orquestras lideradas pelo saxofone. Cada tela ou boss que enfrentamos se encaixa perfeitamente às trilhas. Logo, prepare-se para se viciar e querer escutar as várias trilhas de CupHead ao longo de sua vida como a da fase floral fury que tem um ritmo mais focado no samba ou na fase fiery frolic com um jazz mais agitado.

A história do jogo é bem simples e bem, digamos, a cara das antigas animações daquela época. CupHead e seu irmão Mugman são duas crianças que vivem com seu avô em Inkwell Isle. Ignorando seus avisos, os dois jovens acabam indo para a cidade e entrando no cassino do Diabo, onde começam a jogar e vencer diversas rodadas. Isso chama a atenção de King Dice, sócio do cassino, que avisa o Diabo em pessoa sobre esse dois visitantes. Sem perder muito tempo, ele faz uma aposta com CupHead: se ele vencesse mais uma rodada, seria dono do cassino; caso contrário, a alma dele e de seu irmão pertenceriam a ele. Como nem tudo acontece às mil maravilhas, os irmãos são derrotados pelo Diabo. Implorando por suas almas, o antagonista faz um novo trato, no qual o duo deveria trazer os contratos assinados por outras criaturas de Inkwell Isle que apostaram as almas em seu cassino. Praticamente a história tenta mostrar aquela velha lição de não se meter em encrenca ou desobedecer às regras de pessoas mais velhas, pois o pior pode acontecer.

Cuphead é dividido em dois tipos de cenários diferentes: o primeiro, onde o jogador deve passar a fase normalmente tentando coletar p máximo possível de moedas e completando a fase ao estilo de Super Mario World; e o segundo, no qual trava-se luta intensa com algum boss daquele respectivo mundo. Normalmente, são cinco chefes e duas fases normais em cada mundo.

Ao coletar essas moedas, o jogador poderá desbloquear novas habilidades dentro das lojas do comerciante. Lá, é possível comprar novos tiros, novas habilidades especiais como autoparry, aumento de vida e outros, que podem ser muito úteis para vencer chefes específicos ou fases mais complicadas.

E por falar em chefes, prepare-se para morrer e aprender seus movimentos a cada tentativa, criar estratégias e ser bem cauteloso a cada dano que tomar, pois eles irão com tudo para cima de você. Cada chefe normalmente tem três transformações, as quais ajudam a compreender o quão perto ou longe você está da vitória ou não. Porém, o mais divertido é que cada um deles consegue ser mais marcante que o outro, trazendo uma sensação incrível à medida que se vence um a um. Sempre que somos derrotadosm podemos ver nosso progresso e o quanto faltou para ser concluído - e preparem-se para sentir muita frustração quando descobrirem que estava a um golpe de vencer um boss ou fase especifica.

Uma das grandes perguntas que muitos jogadores fazem a respeito do jogo é: ”ele é extremamente difícil, chegando a um nível DarkSouls da vida?” e a verdadeira resposta é “depende do jogador”. Alguns vão achar que Cuphead contém um estilo dificuldade mediano, já que morrer e aprender com os erros é o mais comum em jogos tipos gun and run, outros vão achar o jogo a coisa mais absurda do mundo, por não estarem muito acostumados com o estilo do jogo e suas consequências de uma determinada ação. Vale ressaltar que o jogo tem seus desafios, já que não existem checkpoints ou algo que cure os danos tomados por alguns inimigos. Morrer é uma ação normal no jogo, mesmo que seja bem punitiva já que o jogador terá que refazer todo o progresso daquela respectiva fase. Mesmo assimm acabamos aprendendo com os erros e notamos evoluções conforme vamos jogando.

Infelizmente Cup head não tem ainda um modo co-op online, podendo apenas jogar com um amigo localmente. Mesmo que este seja um jogo extremamente divertido e nostálgico para uma pessoa, a adição de um companheiro deve ser muito mais interessante com uma experiência e sensações iguais as de Metal Slug.

Para você que é um verdadeiro jogador e quer platinar o jogo se prepare então para longos desafios já que o jogo contém um sistema de nota a cada final de tela com os objetivos necessários para receber a maior nota possível, mas não pense que isso é totalmente em vão pois o jogador será recompensando com algumas surpresinhas extras que darão mais vida ao jogo e claro, o aclamado 200% de conclusão de jogo. Falar de horas de jogo também é uma experiencia variada pois irá depender novamente de jogador a jogador.

Sem dúvidas, Cuphead é uma obra-prima em requisitos de músicas, divertimento, desafios, gráficos e jogabilidade, mesmo que falte o modo co-op online o jogo não peca em absolutamente nada, criando personagens únicos e memoráveis no qual acabamos sentindo um gostinho de mais e mais para desejar o final dessa aventura, como diriam nos anos 30 e dizem a cada fase concluída: “BRAVO”.


Crítica | Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos - A continuação de uma revolução

O subtítulo do nosso texto anterior para Gavião Arqueiro: Minha Vida Como Uma Arma foi “na mosca”, um vernáculo para descrever um acerto no alvo com perfeição. Não é exagero então dizer que a continuação do primeiro volume – Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos (Hawkeye Vol. 2 – Little Hits) – é um “Robin Hood”, nome dado quando um arqueiro consegue acertar uma flecha sobre outra flecha. Ou seja, beira a perfeição.

Apesar de ser o segundo volume, ele impressiona surpreendentemente como o primeiro. O trabalho de Matt Fraction no roteiro continua algo de cair o queixo. Ainda abusando de uma diagramação dinâmica e uma disposição de quadros que aproveita perto do absoluto os espaços permitidos pela página em branco, a edição tem um ritmo poucas vezes visto em uma HQ de continuidade de super-heróis. Fraction consegue flutuar com perfeição entre as cenas de ação e os diálogos que compõem a linha narrativa, sendo que ambos não se sobrepõem – eles são necessários um ao outro, e fazem com que as histórias ofereçam muito conteúdo ao mesmo tempo em que passam voando.

Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos

Os diálogos muitas vezes acontecem no ritmo de cenas de ação e as cenas de ação são fluidas como diálogos. O que torna tudo ainda mais impressionante é o tom das histórias. Apesar de haver nesse volume a ameaça pontual de vilões e criminosos – como o retorno da “gangue do moletom” – as histórias são no geral bastante leves, pois o roteirista mantém a coerência do volume anterior, focando muito mais nas relações pessoais de Clint Barton do que no seu expediente como super-herói. Mesmo as cenas de ação como Gavião Arqueiro envolvem suas próprias motivações pessoais, que evocam sua relação com as pessoas do prédio em que ele mora e defende – o arco com Grills é praticamente só Barton, sem nenhum “Gavião Armeiro” – leia o volume para entender – seus valores particulares, no arco com a ruiva apresentada na edição anterior, além da sua dificílima – e para nós, muito divertida – relação com suas muitas ex-amantes vingadoras.

Mas o grande destaque entre as coadjuvantes acaba sendo a mais instigante personagem nesse momento da vida de Barton – Kate Bishop, a Gaviã Arqueira. Embora compartilhem a mesma alcunha, certamente não possuem as mesmas escolhas por curso de ação, colocando Bishop em conflito com todos os aspectos da vida de Barton. De muitas formas, a personagem acaba sendo o grande ponto de conflito do volume, muito mais do que qualquer vilão, além de participar da HQ mais tensa e misteriosa do encadernado, que apresenta o lúgubre assassino Kazi, prometendo uma continuação ainda mais tensa para a história. Ter Kate como protagonista dessa história também é destacado pelo fato de que essa é uma de duas histórias que não são assinadas por David Aja – esse volume tem o traço de Francesco Francavilla. Tudo em Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos são detalhes a serem esmiuçados e apreciados.

Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos

Falando dos detalhes, o que dizer sobre David Aja, esse desenhista que conhecemos bem e admiramos pacas? É desnecessário falar mais sobre a arte dele – tudo o que podíamos louvar, já louvamos na resenha do primeiro volume. Mas tudo continua impressionante. O minimalismo no uso das cores, o traço “sujo” mas absolutamente preciso, o pensamento semiótico de um designer funcionando a favor de uma HQ. O volume da Panini ainda nos agracia com um breve – mas delicioso – extra, que demonstra como a colorização é pensada e aplicada para obedecer e destacar a filosofia minimalista do Gavião Arqueiro. Todas as habilidades do espanhol são soberbamente utilizadas por Fraction – ou vice-versa –  para construir uma HQ única, que não é exagero dizer  que certamente já entrou para o cânone do personagem da Marvel. Com certeza, é uma das melhores HQ’s do século XXI até aqui.

Se o amigo leitor duvida de nós, sugerimos ir direto à última HQ do volume, “Pizza é o meu negócio”, estrelada por ninguém menos que o cão adotado por Barton no primeiro volume, Muzzarela. Sim amigo leitor, a última HQ dá destaque ao coadjuvante mais carismático criado por Fraction para essa fase do Gavião. E antes que você ache que o resenhista está ficando ou já é um idiota, leia a HQ. Todo o trabalho semiótico minimalista pensado por Fraction e Aja é usado com perfeição aqui para narrar uma breve aventura do cãozinho, que acontece paralela aos eventos principais do volume, fazendo uma espécie de resumo e retomada de tudo o que aconteceu até aqui, da forma mais brilhante e singela possível.

Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos

É até difícil para o resenhista descrever o quão incrível é essa HQ, porque partindo do ponto de vista limitado, mas extremamente irreverente e inovador que é a visão de Muzzarella sobre a aventura do Gavião até aqui, nós somos presenteados com uma verdadeira AULA de estrutura narrativa e semiótica de uma HQ, que mesmo possuindo um protagonista canino, nos permite a total imersão na narrativa. “Pizza é o meu negócio” é uma HQ para ser ensinada em escola.

Gavião Arqueiro: Pequenos Acertos é o segundo volume de uma fase que não apenas vale a pena o leitor ter na estante, mas é necessária para qualquer um que se diga apreciador de HQ’s. É um daqueles arcos que, daqui a uns 20 anos, especialistas, apreciadores e bocós pretensiosos – como este que vos escreve – ainda estarão babando sobre. Com o belo tratamento dado a Panini para o volume aqui no Brasil, além de tudo, fica lindo para decorar sua coleção também.

Pequenos Acertos? De jeito nenhum. É praticamente um “Robin Hood”.

Via: Formiga Elétrica


Crítica | Gavião Arqueiro: Minha Vida Como Uma Arma - Revolucionando um personagem

Faz algum tempo que a Marvel tem uma proposta geral para o seu universo regular: desmontar os seus pesos-pesados e tirá-los de seus pedestais, ao mesmo tempo em que valoriza personagens anteriormente considerados de segundo escalão. A idéia é renovar o seu panteão principal e ao mesmo tempo oferecer, sem precisar arriscar muito, histórias que não sejam conectadas ao contexto de integração caótico em que o Universo Marvel (assim como a Distinta Concorrência) se vê enfiado a todo tempo. Uma parte essencial dessa estratégia é entregar esses personagens para escritores talentosos e dar a eles uma considerável liberdade criativa, algo impensável para os personagens da linha de frente nesses tempos de infindáveis “mega-sagas-cósmicas”. Ao optar por esse rumo, a Marvel teve mais acertos do que erros com os personagens e artistas escolhidos. Um dos grandes acertos é Gavião Arqueiro: Minha Vida Como uma Arma, fase comandada por Matt Fraction, David Aja e Javier Pulido, que a Panini lançou recentemente como encadernado em capa dura.

Gavião Arqueiro - Matt Fraction

Quem abre uma HQ de continuidade hoje em dia, seja da Marvel ou DC, tem um grande desafio: entender o que diabos está acontecendo. Nesse aspecto, esse arco, anteriormente publicado aqui na revista mix Capitão América & Gavião Arqueiro, é uma deliciosa mudança de ares. Saímos das grandiloquentes epopeias universais para o chão de Nova York, onde os maiores desafios de Clint Barton não são super-vilões ou alienígenas, mas sim tocar a vida de uma forma razoável em meio a loucura que é ser um vingador. A maior vantagem disso é muito objetiva: um leitor desavisado pode pegar esse encadernado sem medo, pois ele não exige muito conhecimento prévio para ser totalmente apreciado. E ainda que não haja conhecimento algum, tudo bem. Os arcos se sustentam sozinhos.

A ideia em si não é original, sequer dentro da chamada “Nova Marvel”. Ela foi aplicada em outros títulos que se tornaram sucesso de crítica, como a recriada Miss Marvel de Wilson e Alphona, o ressuscitado Cavaleiro da Lua de Warren Ellis ou até mesmo um herói mais conhecido do grande público, o Demolidor, que a Marvel sabiamente entregou nas mãos do grande Mark Waid. Mas o que importa aqui não é a originalidade da estratégia, e sim a sua execução, que Matt Fraction tirou de letra, por sinal, em três grandes acertos.

Gavião Arqueiro - Matt Fraction

O primeiro, a história em si. Ao colocar Barton para lutar por seus vizinhos, salvar cachorros e, em última instância, para sobreviver, Fraction nos apresenta uma nova faceta de um personagem que nunca foi apropriadamente trabalhado. Embora ele seja um personagem antigo da casa, tendo sido inicialmente um vilão do Homem de Ferro, para logo após se tornar parte da segunda geração dos Vingadores, ao lado do Capitão América, Mercúrio e Feiticeira Escarlate, Barton sempre foi o personagem complementar, o coadjuvante. O homem sem poderes que apresentava tal perspectiva em meio aventuras com gênios da ciência e deuses.

Pois bem, em Minha Vida Como uma Arma todos esses gênios e deuses estão fora de cena. A única companhia que Barton tem aqui é a de Kate Bishop, antiga integrante dos Jovens Vingadores que assumiu o manto do Gavião durante o arco Reinado Sombrio, e o que eles enfrentam não poderia ser mais comum: senhorios abusivos, criminosos hilariamente estereotipados em moletons, e por aí vai. O fato de ambos enfrentarem desafios tão ordinários, e de se arrebentarem com frequência no processo, cria uma conexão muito fácil com o leitor. Conexão essa que não é explorada com pieguice condescendente, mas de uma forma que de fato constrói uma personalidade distinta para Barton e Bishop; personalidades essas que nunca haviam sido exploradas por completo antes. O fato de Barton ser um atirador sem igual é um mero detalhe que faz parte dessa construção. É como ver um encanador ou um cozinheiro, excelentes no que fazem, cujas vidas não se resumem a isso.

Gavião Arqueiro - Matt Fraction

Humor gráfico bem sacado!

O segundo acerto está na estrutura narrativa. O autor usa quantos quadros forem necessários e não se priva de fugir ao padrão quando isso serve à história. A primeira sequência de ação, por exemplo, é feita sem diálogos, com breves narrações em off, dando um ritmo quase cinematográfico – não no sentido pejorativo – para ela. Quando é preciso construir os personagens, o mesmo – a sequência em que Kate fica “impressionada” com a habilidade de Clint é muito engraçada. Fraction demonstra um domínio como poucos sobre a distribuição de quadros em uma página, supondo que a concepção tenha partido inteiramente dele.

Falando sobre o humor, temos o terceiro acerto. Muitos roteiristas menos talentosos e inspirados usam o cotidiano absurdo dos heróis para gerar humor, mas quase sempre da mesma forma – usando cinismo e expressões blasé. Fraction vai além. O humor aqui é uma válvula de escape para momentos de tensão, e por isso mesmo o vemos apenas pontualmente. Porém, muito bem usado, não apenas no contexto da história, mas usando a própria “mitologia” particular do personagem, como as famosas flechas multi-funcionais, descaradamente plagiadas do Arqueiro Verde em uma época do mundo mais divertida e mais inocente.

Gavião Arqueiro - Matt Fraction

Muita liberdade na narrativa visual!

Nesse aspecto, também temos que destacar a arte de David Aja. Minimalista, mas precisa e bela. Aja não quer roubar a cena. Os desenhos acompanham a vida de Barton – são pragmáticos, mas tremendamente elaborados naquilo que lhes são pedidos. Aja consegue equilibrar um desenho que é aparentemente “sujo” com a habilidade de não desperdiçar uma linha sequer. Se Fraction consegue construir boas sequencias alternadas de diálogos e ação, muito se deve ao dinamismo preciso e elegante dos desenhos de Aja. Além disso, também ficaram a seu encargo a reformulação do uniforme e a criação das capas. Estas últimas, incidentalmente, são incríveis. Belíssimamente bem desenhadas e organizadas, um sucesso que só é possível devido à experiência de Aja não apenas como desenhista, mas também como designer, que utiliza muito bem a colorização de Matt Hollingsworth para valorizar o seu minimalismo.

Gavião Arqueiro - Matt Fraction

A grande crítica que se pode fazer em relação encadernado está na queda de ritmo das histórias. O primeiro arco, Sortudo, é excelente. Começa, se desenvolve e termina muito bem. Trabalhando o aspecto humano de Barton, guarda um bom número de surpresas para o leitor. Já o segundo, A Fita, começa muito bem, com uma investigação particular do protagonista. Porém, no decorrer da história, temos o envolvimento da Shield e de alguns vilões mais conhecidos. Nesse momento, a trama se torna genérica e acaba com soluções simplistas, prejudicando a qualidade da narrativa. Além disso, nesse segundo arco, Aja é substituído por Javier Pulido. Embora competente, os desenhos de Pulido não têm a mesma personalidade dos de Aja, e a associação da queda da narrativa com desenhos mais comuns acabam tornando o próprio encerramento da HQ frívolo e entediante. Isso sem contar a história que fecha o encadernado, que embora sirva para apresentar a relação de Barton e Kate – e de levar a assinatura de Alan Davis e do próprio Fraction – é uma narrativa boba e comum. Muito em parte por estar inserida na saga Reinado Sombrio e -como não cansamos de dizer aqui – estas mega-sagas são mais enfadonhas do que qualquer outra coisa, mas também não há nenhum grande esforço por parte dos autores, principalmente se compararmos com o primeiro arco.

Gavião Arqueiro - Matt Fraction

A Marvel, assim com sua “contraparte”, tem muito mais errado do que acertado nos últimos tempos. A exceção são histórias como essas do Gavião Arqueiro. Só podemos esperar que o sucesso de crítica de arcos como Minha Vida como uma Arma estimule essas grandes editoras a explorarem mais as possibilidades que seus personagens oferecem e também o talento dos artistas em seus plantéis – que sabemos que não ser pouco. Não investir em mais séries como esta, além de insistir nessas enormes e pífias mega-sagas, só nos demonstra ignorância, incompetência, falta de visão/criatividade, ou todas juntas. Se as editoras querem de fato mudar, como dizem, que mudem para melhor com séries como essa.

Será um acerto como as flechadas do Gavião: na mosca!

Via: Formiga Elétrica


Crítica | O Escultor - Uma Obra-Prima Atemporal

O que é arte? O que define um artista? Desde a Poética de Aristóteles até as recentes correntes da filosofia hermenêutica, essas questões perturbam os filósofos, assim como os artistas. Na verdade, qualquer pessoa que em algum momento tenha flertado mais de perto com a arte já se pôs essas questões. Na minha agora distante adolescência, antes de iniciar minha jornada nos estudos filosóficos, eu não apenas flertava com a arte – estava profundamente apaixonado por ela.

Particularmente, a música, a única coisa capaz de dragar minha atenção dos meus sempre queridos quadrinhos. Assim, inspirado pelos meus grandes ídolos das quatro cordas, me aventurei a estudar o baixo. Mas a vida, fenômeno natural que é, não possui nenhum tipo de moralidade. Ela simplesmente acontece. Ela simplesmente é. E o que a vida rapidamente me ensinou é que, independentemente das nossas intenções ou sentimentos, nem sempre conseguimos o que queremos.

Por mais que eu me esforçasse – e foram anos de bolhas nos dedos e pulsos doloridos pela prática – eu nunca consegui me tornar um grande músico. Felizmente, ainda era aquela fase da vida em que todas as portas estavam abertas, e o meu amor não-correspondido, fadado ao eterno platonismo, pela música não significava o fim do mundo. Eu e arte continuamos de mãos dadas, mesmo que apenas como amigos. Porque eu entendi de forma relutante, mas resignada, que nós não escolhemos a arte – ela nos escolhe.

O mesmo não se pode dizer de David Smith, protagonista da obra de Scott McCloud, O Escultor (The Sculptor), publicada aqui em 2015 pela Jupati Books. Smith, no auge da sua juventude, foi ladeado por um generoso mecenas, que via no jovem escultor um imenso potencial para se tornar um dos grandes nomes do futuro dessa arte. Entretanto, o tempo passou e a vida de David não se tornou nada mais do que um acúmulo de frustrações, decepções e mediocridade. Sua família morreu e sua escultura nunca o levou a lugar nenhum. David ama sua arte, mas sua arte não o ama. Pior do que isso, David é um homônimo de outro escultor, e esse abundava habilidade. De forma cruel e objetiva, a vida, por inúmeras circunstâncias, faz questão de lembrá-lo disso a todo instante – David simplesmente não tem o talento que desejava ter.

O Escultor

Eis que entra em cena seu tio-avô, Harry. Harry é muito querido por David. Entre os principais motivos, o fato de que ele sempre foi um dos poucos a acreditar no talento de David desde a sua infância. Ao reaparecer, ele relembra David de toda a esperança que este possuía quando criança, e todo o deslumbramento que a arte lhe provocava. Entretanto, a presença de Harry nesse momento tão melancólico da vida de David não lhe traz nenhum alívio, por um motivo muito simples – Harry está morto.

Quando esse fato lhe é posto a frente, Harry revela o óbvio – não se trata de Harry, mas aquela que o levou. O aspecto simpático assumido pela Morte tem apenas um objetivo: atrair a atenção de David e lhe oferecer um acordo. Um pacto, se o amigo leitor assim preferir. E neste momento, entramos no ciclo faustiano de O Escultor – a Morte concederá a David toda a habilidade que ele sempre desejou, em troca de sua vida. A partir do momento do acordo, David teria apenas 200 dias de vida para desfrutar dessa habilidade, e depois partir.

Mas ao contrário do poema de Goethe, David não é objeto de uma disputa maior entre forças cósmicas, como Fausto era entre Deus e Mefistófeles. Ao contrário, a Morte, que na alegoria de McCloud ocuparia o lugar do demônio, é um personagem afável, que oferece a David aconselhamento e até mesmo uma agradável companhia até o fim dos seus dias. A única grande disputa, o único grande dilema posto pelo autor ao seu protagonista, é interno. A partir do momento em que o relógio começa a andar para David, poderíamos incorrer no erro de acreditar que a grande motivação do personagem seria correr contra o tempo para criar a maior quantidade de obras possíveis e marcar seu nome na história da arte.

Mas McCloud, ardilosamente, não está disposto a oferecer saídas simples para o seu personagem, e evoca as questões que eu pus ao leitor no início da resenha – o que é arte? O que define um artista? Posto dentro do contexto de O Escultor, o que McCloud nos questiona é: de que ainda vale toda a habilidade e talento do mundo, se você não sabe o que fazer com eles? O autor está disposto a torturar seu protagonista para nos fazer ir atrás das respostas. Pobre David.

O Escultor

David, tendo toda a habilidade do mundo, é incapaz de fazer algo que chame a atenção das pessoas. E esse paradoxo é tão cruel quanto comum no nosso mundo. Apesar do elemento alegórico fantástico dado ao autor para o seu personagem, David é um ser humano brutalmente crível. Basta o amigo leitor pensar em quantas pessoas conhece que possuem habilidades incríveis, mas que, pela incapacidade – seja ela qual for – de demonstrá-las ao mundo, estão condenadas a morrer no anonimato. Aquele seu primo que pinta quadros belíssimos, aquele seu colega de trabalho que é um fenomenal guitarrista, aquele moleque pentelho da vizinhança que joga bola como ninguém. Ninguém nunca saberá deles, porque eles têm o talento, mas estão ocupados pagando contas, saindo com a namorada ou ouvindo dos seus professores na escola que eles não têm chance. Todos eles são David.

Devido a isso, existe uma certa noção de temporalidade dentro de O Escultor que potencializa o seu brilhantismo. Com o prazo determinado para sua morte, a narrativa poderia facilmente se orientar pela noção que David tem do escoamento dos seus dias, provocando a todo instante uma sensação de urgência. McCloud, no entanto, habilidosamente nos conduz não através de uma temporalidade objetiva, contando o passar dos dias, mas através de uma “intratemporalidade”, a percepção da passagem do tempo do ponto de vista de David, orientada pela maneira como David se sente e observa o mundo.

Muito semelhante em alguns aspectos a percepção da passagem do tempo de Hans Castorp, protagonista de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, onde o leitor é sutilmente trazido à temporalidade interna do livro, orientado pela maneira como Castorp percebe a passagem do tempo sobre a montanha. No clássico de Mann, entretanto, o tempo parece passar mais devagar conforme Castorp permanece ali – na verdade, isso se manifesta até mesmo de maneira física no livro, em que o sétimo e último capítulo é colossalmente maior do que o primeiro. Embora os capítulos de O Escultor não sejam divididos dessa mesma forma, é fácil para o amigo leitor perceber essa distinção temporal, visto que a grande maioria da obra é dedicada as primeiras semanas do prazo de David, enquanto alguns dos meses finais são compilados em apenas algumas páginas. E o motivo para isso tem nome: Meg.

McCloud, em um momento de pura inspiração, nos apresenta o interesse romântico de David da maneira mais lírica possível. Em um dos primeiros momentos de real desespero dele na obra, as pessoas à sua volta se curvam a ele, e Meg desce dos céus na forma de um anjo e, após um tenro beijo, lhe diz que tudo vai ficar bem. A cena é de uma beleza única e – por um breve momento -oferece não apenas a David, mas ao próprio leitor, um momento de alento. Existe outra comparação interessante a se fazer aqui em relação ao clássico de Goethe – a alma de Fausto será levada somente quando Mefistófeles criar uma situação de felicidade tão plena que faça com que ele deseje que aquele momento dure para sempre. Desnecessário dizer o quanto esse momento irá marcar David pelo resto de sua breve vida.

O Escultor

Mas Meg acaba revelando, obviamente, não ser um anjo. Ao menos, não no aspecto literal. Pois David descobre nela o sentido do amor e da vida – enfim, de salvação – que ele ainda não havia descoberto antes de seu pacto com a Morte. Cruelmente romântico. E ela representa justamente o rompimento com ciclo descendente do protagonista até aqui – é ela quem dá sentido e objetivo para David usar os seus recém-adquiridos talentos. Tal qual Fausto, Meg, o interesse romântico, é a ponte entre o primeiro e o segundo ato de O Escultor. Incidentalmente, uma breve curiosidade, que pode ser coincidência ou não, e que pode sustentar essa tese de comparação com a obra de Goethe – o nome do interesse romântico de Goethe é nada menos do que Margaret, nome do qual “Meg” é uma contração.

Para fugirmos um pouco desta constante comparação ao poema trágico alemão, também podemos observar que esse não é o único fio narrativo de O Escultor. A presença de Meg faz com que David reencontre um sentido para viver que não unicamente a sua arte – embora usar seu talento de forma significativa ainda seja um objetivo principal. Porque Meg não é uma personagem bidimensional – ao contrário, como todos os outros personagens da obra, ela é profundamente complexa.

Suas características particulares são sutilmente construídas por McCloud para fornecerem os plot-twists, as tais viradas necessárias que fazem o protagonista seguir em frente, sem simplesmente permanecer parado esperando seu prazo se esgotar. Assim, David, após fazer seu pacto com a Morte e se sentir confortável em simplesmente esperá-la diante do fracasso no uso de seus poderes, decide lutar por algo que valha a pena – seu frágil e peculiar recém-descoberto amor.

Nos parece que a partir do momento em que David firma esse pacto, ele de fato só permanece vivo para buscar construir e, de certa forma, celebrar uma lembrança mais cálida de si mesmo. Exatamente por isso, dessa forma, a obra parece se passar durante as fases do luto – negação, raiva, barganha, depressão e aceitação – que o personagem sente em relação aos seus próprios últimos dias. De fato, toda a constituição de O Escultor é sutilmente criada para fazer com que o leitor oscile entre o contemplativo, o reflexivo e o melancólico.

Essa construção é profundamente marcada pela paleta de cores e pelo uso pragmático, mas ao mesmo tempo criativo, da diagramação dos quadros feitas pelo autor. Não obstante, a maneira como os “poderes” de David funcionam são usados de maneira perfeitamente alegórica, em muitos momentos, para representar aquilo que não pode ser explícito apenas em palavras – uma ideia representada, de maneira comovente e bela, no encerramento da obra.

Uma leitura rasa poderia nos fazer relacionar o fato de McCloud ser um especialista em quadrinhos à ideia de que em O Escultor ele estaria criando uma espécie de “super-herói” seu, visto que esse é o gênero criado nos e para os quadrinhos. Mas essa é uma interpretação mesquinha e superficial, que não dá conta da totalidade da compreensão do autor sobre história em quadrinhos que ele apresenta aqui. A página em branco de uma história em quadrinhos é um espaço metafísico e metalinguístico, onde as palavras constroem imagens e as imagens expressam palavras. Ele entende isso com clareza e seu trabalho deve ser lido com cuidado, para que todas as suas camadas possam ser observadas e apreciadas.

O Escultor

Isso se revela principalmente na presença de um dos protagonistas da trama – a cidade de Nova York. Nada é desperdiçado na mise en scène de McCloud, sua construção minuciosa do espaço cênico. Como dissemos anteriormente, a paleta de cores, a diagramação e o posicionamento do ponto de vista dos quadros são usados sutilmente para criar um cenário que é o próprio objetivo da vida e da arte de David – posteriormente na obra, algo levado a sério no sentido literal da coisa.

A cidade se apresenta, tal qual os outros protagonistas, como um personagem multi-facetado. Ela pode ser cruel e lúgubre, mas pode ser iluminada e acolhedora. Tudo depende do momento de cada um, e como eles interagem entre si. Da mesma forma, a diagramação não é ousada e complexa, como veríamos em outros grandes autores como Eisner ou Gaiman. Ao contrário, McCloud opta por uma apresentação econômica, apenas pontualmente usando a extrapolação visual permitida pelos quadrinhos. Isso tem um motivo claro – nosso foco é e sempre será David, até literalmente o último dos seus dias. O uso inteligente da diagramação pelo autor é também uma ferramente para percebermos o que é realmente importante.

A cidade serve como uma moldura – minimalista, mas que chama a atenção – para o que está acontecendo dentro de si. Talvez até por isso a escolha de McCloud pelas cores que permeiam a obra. O próprio autor alegou em entrevistas que o uso de três cores – branco, preto e azul-cobalto – foi devido à dificuldade de trabalhar com um colorista, mas é impossível não associar a precisão do uso delas aos humores dos personagens e, como dissemos, da cidade. Particularmente, a transição nos tons de azul sobre o branco e preto é digna de contemplação – ela dita com clareza sutil os humores internos da obra, mas nunca nos deixa escapar a melancolia perene que paira sobre David e sua percepção sobre a vida, o amor e a arte.

No final das contas, e aí retornamos ao próprio princípio da obra, podemos dizer que McCloud nos apresenta, apesar do tom melancólico da obra como um todo, uma visão relativamente esperançosa do que ele entende por esses tópicos. O uso cuidadoso do fantástico pelo autor mantém o nosso foco naquilo que realmente importa: problemas humanos, demasiado humanos, como a depressão, intenções frustradas pela vida ou o florescimento de um amor. O Escultortrata menos sobre os maravilhosos poderes de um homem capaz de derreter um muro com apenas um toque e mais sobre os muros intransponíveis que erguemos ao redor de nós mesmos – e o que acontece quando eles inevitavelmente caem.

Alguns desenhos específicos – como a calçada transformada em um calendário que termina em um abismo, um corpo em queda livre congelado metros acima do chão, ou mesmo a obra final de David – são maravilhosamente comoventes, tornando esta HQ uma obra grande o bastante para contemplar diversos tipos de questões nevrálgicas da existência humana. Algumas delas, como as que propusemos no início da resenha. Assim, podemos nos permitir arriscar respondê-las.

O que define a arte, o que define um artista, segundo O Escultor de Scott McCloud, é a crença, a esperança de que nós viemos a esse mundo para realizar algo a mais do que simplesmente esperar para morrer. A arte se define por si mesma, porque, tal qual o artista, tal qual nós mesmos, ela simplesmente é, e cabe a nós tornar-nos e torná-la algo belo.

Algo digno de mais do que querer dar a vida – algo digno de se querer viver por.

Via: Formiga Elétrica