Chegamos ao quarto filme da era Daniel Craig como o agente secreto mais famoso do mundo. E para a alegria geral do público, se trata novamente de um bom filme, ou a fine movie. O desafio era tremendo – se igualar ou superar a qualidade do estupendo Skyfall – filme aclamado pelo público, pela crítica e pela Academia. Apesar de ser um longa que na equação final, satisfaz, Spectre não chega perto da coragem narrativa e técnica que Skyfall apresentou em 2012. E isso, aparentemente, é proposital.
Dessa vez Bond tira suas “férias” durante o Dia de los Muertos na Cidade do México. Seguindo a trilha de um inimigo que pode fornecer pistas para prosseguir com uma longa investigação, o agente acaba por explodir meia cidade. Nisso, Bond encontra um anel misterioso com um polvo esculpido na prata. Pelas pistas retiradas do anel, 007 segue para Roma a fim de descobrir uma organização secreta terrorista, porém, o que descobre vai muito além do que ele imaginava, ao força-lo a revirar a história de seu nebuloso passado.
O sucesso do filme anterior foi tão grande e intenso, que a EON optou por apostar novamente com a equipe original – apenas o diretor de fotografia Roger Deakins e o montador Stuart Baird pularam fora. Com isso, o roteiro de John Logan, Neal Purvis e Robert Wade trabalham em cima de uma conclusão para a trilogia anterior enquanto ao mesmo tempo já estabelecem o retorno da franquia para o modelo clássico e “genérico” que os filmes pré-Craig já utilizavam.
Por isso, digo desde já, não espere um Skyfall em Spectre. Aqui se trata de um texto muito mais descontraído com boas revelações e ideias que são mal aproveitadas, apesar de serem filmes muito semelhantes na estrutura narrativa. Como na maioria de todos os filmes do espião, há uma nítida dificuldade em amarrar bem a trama durante as muitas mudanças entre as locações exóticas características da série. Então se acabar se perdendo um pouco ou perceber que algumas coisas não fazem sentido, paciência, bem vindo a um filme 007.
Spectre possui algumas similaridades com Skyfall e também acaba cometendo os mesmos erros – talvez o texto esteja se tornando vicioso. Como de costume nessa fase Craig, James Bond age por conta própria ou com pouquíssimo apoio do MI-6 e M que, por sua vez, luta para mostrar a relevância do departamento 00 de novo no cenário atual de espionagem repletos de drones, satélites e todas as quinquilharias do novo século. Obviamente, isso já começa a cansar o espectador. É a mesmíssima história contada de modo diferente. Aliás, isso já está tão enraizado no gênero que esse mesmo conflito está presente na trama de Missão Impossível: Nação Secreta.
O trabalho originado desde Cassino Royale é continuado aqui, mas a proposta central ainda é “revelar” o passado obscuro e “desconstruir” James Bond. Claro que isso é uma estratégia de marketing pouco explorada. Aliás, a revelação principal da narrativa é ótima e gera um elo fantástico entre o herói e o antagonista, Oberhauser, porém isso se revela um tiro nuclear no próprio roteiro quando paramos para pensar após o término do filme. Simplesmente, o modo como o agente reage à revelação é inexistente. O texto não explora a reação de Bond, algo que com certeza teria gerado um diálogo ótimo – como o existente entre Bond e Silva em Skyfall.
Aliás, o que seria o maior trunfo de Spectre, também não satisfaz. Assim como em Skyfall, há uma demora exemplar para apresentar o antagonista, Franz Oberhauser. Portanto, a confrontação é rápida, insatisfatória e surreal. Ao menos, o vilão tem uma motivação forte e um plano maléfico muito convincente para o espectador moderno. Infelizmente, nós nunca vemos de fato Oberhauser agir e lançar o caos no mundo – temos apenas uma cena excelente para expressar a maldade cirúrgica do vilão. O personagem só toma a força que tem por conta de ações de filmes anteriores e outras coisas que não posso revelar. Além disso, Cristoph Waltz ajuda para o crescimento do personagem com seu ar psicótico e racional característico desde Hans Landa em Bastardos Inglórios.
As qualidades do roteiro provém, na maior parte, da nostalgia dos filmes da era Connery e Moore. Aqui há diversas referências tanto no texto quanto no visual de diversos filmes da franquia – Moscou contra 007, A Serviço Secreto de Sua Majestade, 007 Contra a Chantagem Atômica, Viva e Deixe Morrer, Um Novo Dia para Morrer, O Mundo não é o Bastante, entre outros.
Logo, temos a atmosfera mais light e repleta de ação característica desses filmes, além do humor canastrão proveniente das ótimas frases de efeito. Spectre é o começo do retorno aos moldes clássicos de filmes do agente secreto – tenha isso em mente quando for assistir.
A relação de Bond com a nova Bondgirl, Madelaine Swann é digna de nota e salva a segunda metade do filme. Se trata de mais um excelente estabelecimento romântico para o protagonista após Vesper Lynd, além do fato da personagem ser muito interessante, reforçando a imagem da mulher forte presente desde a era Brosnan, mesmo que seja calcada em alguns clichês do gênero – como os clássicos daddy issues. Léa Sydoux também merece destaque pelo ótimo trabalho. Agora àqueles que estão esperando uma grande participação de Monica Bellucci como Bondgirl, podem esquecer. A cougar femme fatalle fica apenas sete minutos em cena servindo apenas como trampolim para mover a narrativa, fornecer um sexo fácil para o agente tarado por mulheres casadas e gerar o clássico diálogo: Who are you? Bond… James Bond.
A equipe de Bond também tem boa participação na trama – M, Q e Moneypenny auxiliam o agente de diversas formas, porém ainda é decepcionante notar que os roteiristas aproveitam pouco o M de Ralph Fiennes e o novo modo de se relacionar com Bond.
Para bem ou para o mal, esse retorno das velhas características trouxe algo que estava fazendo falta há tempos nos filmes Bond: um capanga fora do padrão. Spectre conta com o talento e tamanho de Dave Bautista encarnando o gigantesco Hinx – um vilão que entretém muito em meio a pancadaria desenfreada.
Entretanto, não é só de texto que vive os filmes de James Bond. Sam Mendes retorna para direção e consegue criar a tensão na medida certa, mesmo que a dose das piadas tenha aumentado consideravelmente. O diretor já começa o filme com os pés na porta: um plano sequência de alta complexidade que acompanha 007 “festejando” o Dia de los Muertos. Visualmente implacável, belíssimo e bem construído para manter sua atenção na ação, é uma das expressões artísticas mais marcantes da franquia.
Estranhamente, esse Mendes de Spectre é muito diferente do de Skyfall. De certa forma, a elegância dos enquadramentos e movimentação de câmera ainda estão presentes, mas o diretor começa a apostar em sequencias com câmera na mão, ao estilo shaky cam, aliadas a uma montagem mais acelerada. Digamos que se trata do mesmo conteúdo visual, mas apresentado de forma diferente.
A vinda do novo cinematografista certamente teve um baita impacto na imagem o que pode ter desencadeado essa nova concepção visual do diretor. Hoyte Van Hoytema trabalha com película ao contrário de Roger Deakins, entusiasta do formato digital. Logo sua foto aparenta ser mais “crua” ou “rude” graças a presença nítida e bela dos grãos do filme.
Porém isso é somente impressão. Mesmo que Hoytema não consiga fazer uma foto tão esteticamente apreciável quanto Deakins, ele chega bem perto e assimila muito da técnica do fotógrafo. O trabalho com luz difusa é tão bom quanto o de Deakins, além de conseguir manter um estilo próprio. O melhor de seu trabalho fica para a cena na qual Bond se infiltra na reunião da Spectre que ocasiona o primeiro confronto com Oberhauser. O forte tom amarelado acompanhado de um trabalho intenso de penumbras geradas pela iluminação barroca é espetacular. Aliás, Hoyte elabora a luz principal de todos os atores nesta cena marcante, apenas com contraluzes bem marcadas. Isso realmente torna a atmosfera da cena única, algo fora do padrão. Aliás, em todas as cenas que Craig e Waltz contracenam, a fotografia se transforma – e a direção de Mendes, também.
Mantendo o padrão alto, Sam Mendes ainda consegue criar sequencias de ação boas, porém somente duas realmente se destacam – a abertura do filme e a perseguição nos alpes. As demais cumprem o papel de divertir graças ao bom dinamismo. Apenas uma perseguição de carros em Roma deixa a desejar, apesar de ser visualmente fantástica, ela pouco faz sentido dentro da diegese realista proposta por esses filmes – repare que praticamente não há um vestígio de trânsito ou pedestres durante a sequência. Algo realmente estranho se comparada a frenética perseguição em Istambul de Skyfall.
Assim como em seu filme anterior, Mendes insiste em trabalhar com o conceito da ressurreição. O diretor parece obcecado em imprimir toda sua marca autoral sustentando esses filmes nesse alicerce. A iconografia da morte e ressurreição é escancarada pelo texto que abre o filme. Os ótimos créditos iniciais de Daniel Kleinman também reforçam a imagem da morte enquanto brinca com caveiras sombrias e diversas silhuetas de mulheres de corpos esculturais envolvidas por polvos – algo me lembrou muito do clássico Possessão. Novamente o teor da abertura é extremamente psicológico – e a ótima canção de Sam Smith contribui com isso. Não é por acaso que o Dia de Los Muertos foi escolhido para apresentar o item que levará Bond a confrontar um de seus mais temíveis inimigos.
Encare Spectre como um espelho “reverso” de Skyfall. Enquanto no outro filme era Bond quem ressuscitava para se tornar, gradualmente, o melhor espião do MI-6, aqui acontece algo parecido. Além disso, Mendes procura amarrar as pontas soltas de todos os três filmes anteriores, então é uma ótima ideia revê-los antes de assistir essa nova aventura. Entretanto, mesmo cuidando desses detalhes e conseguindo construir algo a mais do que apenas ação estúpida e descerebrada, Mendes começa a tropeçar quando usa e abusa de diversos deus ex machina e pedir muito da suspensão da descrença do espectador. Como disse anteriormente, a estrutura narrativa de Spectre é frágil e depende muito dessas soluções arbitrárias do roteiro e da ação.
Além disso, o diretor alonga demais algumas cenas de ação que deveriam ser mais curtas enquanto apressa cenas de desenvolvimento de personagem que precisavam ser mais longas. Apesar de errar nessas coisas, Mendes nos recompensa com diversos elementos de cena interessantes que pedem para ser analisadas. Seja na figura do polvo, o emblema da Spectre ou nas teias e redes que ele opta por enquadrar Craig através delas explicitando a armadilha que o agente está prestes a cair – esse recurso visual já foi utilizado por David Fincher em Se7en. Aliás, é muito importante dizer que o próprio diretor faz uma análise interessantíssima sobre os filmes anteriores em meio a um diálogo delicioso entre Oberhauser e Bond – tirando qualquer dúvida restante de que esses filmes se tratam sobre a morte, a vida, o fracasso, o sucesso, o passado e o futuro.
Em termos gerais, Spectre é um dos melhores filmes deste espião que tanto amamos. O retorno aos moldes pré-Craig pode ser uma boa ideia, mas também tem tudo para dar errado após esse tratamento mais complexo conferido ao personagem. O longa diverte e muito com sua boa história e ótimas cenas de ação – virou um dos meus filmes favoritos da série. Também temos mais uma oportunidade de ver o ótimo trabalho que Daniel Craig vem fazendo ao reinventar 007. Além disso, temos o prazer de celebrar os cinquenta e três anos desta franquia histórica.
Realmente, sr. Bond, tempus fugit.
007 Contra Spectre (Spectre, Inglaterra – 2015)
Direção: Sam Mendes
Roteiro: Neil Purvis, Robert Wade e John Logan
Elenco: Daniel Craig, Christoph Waltz, Léa Seydoux, Monica Belucci, Naomie Harris, Ralph Fiennes, Ben Whishaw, Dave Bautista, Andrew Scott, Rory Kinnear, Jesper Christensen
Gênero: Ação
Duração: 158 min