em , ,

Crítica | 1ª temporada de Sandman te convida a sonhar

Sandman é uma série de histórias de quadrinhos criada por Neil Gaiman e publicadas pela DC Comics sob o selo da Vertigo nos anos de 1989-1996. Gaiman resgata um personagem da era de ouro da editora e o coloca em uma roupagem totalmente diferente da original. É considerada uma das mais únicas dos quadrinhos, sua natureza fantasiosa e a densidade de suas histórias fez com que a HQ caísse naquela categoria de “inadaptável”.

No entanto diversas tentativas de trazer a icônica série da Vertigo para uma mídia audiovisual foram feitas desde os anos 1990, algumas delas promissoras, como um filme dirigido por Roger Avary que adaptaria os dois primeiros arcos dos quadrinhos: Prelúdios e Noturnos e Casa de Bonecas. Haviam também planos para uma adaptação para a televisão na HBO produzida por James Mangold. Mais recentemente, em 2013, um novo projeto com Joseph Gordon Levitt no papel principal tinha sido anunciado, outro projeto que não viu a luz do dia.

David S. Goyer, figura carimbada de Hollywood era um dos roteiristas que estava desde o início empregando seus esforços para realizar uma adaptação dos quadrinhos de Neil Gaiman, inicialmente como um filme. No entanto, em 2019, Gaiman e Goyer conseguem um contrato com a Netflix para produzir uma temporada de 11 episódios (diminuída posteriormente para 10) e é o que temos hoje.

Sandman na Netflix

sandman

A série veio em um momento crítico para a gigante do streaming, em que ela começa a ter uma certa má fama entre os entusiastas do meio. Muitos alegam que a qualidade das produções originais diminuiu, com o boom do streaming nos últimos anos, surgiram concorrentes que antes não existiam: Amazon Prime, Disney+, HBOMax, Star+, Apple TV+, entre tantos outros. A Netflix cultivou para si o estigma também de que as narrativas começadas por ela são quase sempre interrompidas em cancelamentos.

Sandman então vem como uma grande aposta da Netflix, prometendo ser um alívio para esses problemas da empresa e quem sabe atrair alguns dos assinantes que o serviço perdeu, visto que é uma adaptação de um dos quadrinhos mais queridos de todos os tempos e tem o próprio autor, Neil Gaiman, um escritor premiado, como um dos roteiristas e produtores da série.

Prelúdios e Noturnos

Charles dance

A série foca nos dois primeiros arcos da série: Prelúdios e Noturnos e Casa de Bonecas. No primeiro, Sonho é aprisionado por Roderick Burgess e quando finalmente consegue se libertar depois de quase um século de cárcere, deve procurar as ferramentas quer foram tiradas dele. Nos quadrinhos, a busca pelas ferramentas rende encontros com personagens consagrados do universo da DC Comics como John Constantine, Caçador de Marte, Sr. Milagre e Etrigan. 

O primeiro episódio trata do encarceramento de Sonho dos Perpétuos, uma das sete entidades que precedem os deuses, sempre estiveram lá desde a aurora dos tempos e apenas desaparecerão assim que o último ser vivo do último universo morrer. A intenção de Burgess era capturar a irmã mais velha de Sonho, a Morte. Mas seu riton dá errado e ele acaba capturando o príncipe das histórias (mais um dos muitos nomes atribuídos a Sonho).

Roderick Burgess aqui é interpretado por Charles Dance, que como sempre entrega uma excelente performance. O primeiro episódio pode ser descrito nas palavras de Neil Gaiman como “é parecido com Downtown Abbey, só que com magia e ocultismo”, a partir daí, como ele havia prometido aos espectadores e havia feito muitos anos atrás com suas histórias em quadrinhos, a história vai evoluindo e tomando outros rumos, sendo a imaginação o limite para onde ela deve seguir nos momentos seguintes.

Sonho é interpretado por Tom Sturridge, que interpreta a fisicalidade do Morfeus muito bem e  possui uma voz adequada para o personagem, que quando fala é como se estivesse narrando uma história conhecida a muito tempo, sempre seguro do que diz. O visual não é exatamente o que os fãs dos quadrinhos esperavam, mas muitas coisas tiveram que ser alteradas para incluir verossimilhança em um mundo representado em live action. 

Retornando ao sonhar, ele descobre que o reino está em ruínas e para restaurá-lo, precisa recuperar as ferramentas o quanto antes, invocando as  três Graças (também conhecidas como moiras, as mesmas da mitologia grega), que indicam onde ele deve seguir para encontrá-las. Os envolvidos na série, seja por questões contratuais ou por uma decisão criativa, decidiram não utilizar alguns dos personagens mais conhecidos do universo DC que aparecem na história, sendo simplesmente cortados.

A decisão pode ter vindo inclusive do próprio Gaiman, o qual em sua introdução no primeiro volume da edição encadernada de Sandman confessa que posteriormente achou essas participações “desnecessárias”.

No entanto, mantiveram o personagem Constantine, mas em uma diferente roupagem. A versão do tempo presente e a ancestral que viveu nos tempos da revolução francesa seriam interpretados pela mesma atriz, no caso Jenna Coleman, interpretando a detetive do oculto, Johanna Constantine.

Uma mudança interessante, levando em conta que a Netflix gosta de pautar em suas produções um elenco diversificado e Sandman certamente oferece uma grande abertura para isso, sendo a obra também bastante diversificada em personagens e situações.

Outro personagem da DC que foi mantido é John Dee, também conhecido como o Dr. Destino, um dos vilões que teve sua primeira aparição em um dos quadrinhos da Liga da Justiça nos anos 1960 e na série é interpretado por David Thewlis.

O personagem protagoniza o episódio 24/7, adaptação da história em quadrinhos 24 Horas, que Gaiman admite ter sido uma das histórias mais horripilantes que escreveu em sua carreira. A história, que envolve seu “ensaio sobre histórias e autores”, indaga sobre o preço da mentira e a importância dos sonhos acaba sendo um dos episódios que mais se destaca na temporada.

O que dizer também de Gwendoline Christie como Lúcifer Estrela da Manhã, um dos principais antagonistas dos quadrinhos. Ela incorpora bem a natureza angelical do personagem, misturada com uma identidade rebelde que o anjo demonstra por vezes, como Neil Gaiman descreve o personagem e certamente a mensagem chegou a Christie: “ele é um anjo caído, mas em essência é um anjo, me influenciei em David Bowie nos seus dias de cantor folk, com seus cabelos cacheados”. Gwendoline incorpora esse aspecto em seus maneirismos.

Sandman1

Algo que a série faz várias vezes é mostrar um lado vulnerável de Sonho, algo que não acontece muito nos quadrinhos. O Morfeus da Netflix se machuca fisicamente mais fácil do que nas HQs. O que nos traz ao excelente episódio 6, O Som das Asas dela, que traz duas das minhas histórias favoritas dos quadrinhos. A primeira história apresenta a irmã mais velha de Sonho, Morte, uma versão diferente do ceifador a que estamos acostumados a encontrar na literatura e no cinema.

Kirby Howell-Baptiste interpreta magnificamente essa versão da morte, ela é gentil, bondosa e honesta, é a versão de ceifador que o Neil Gaiman e creio que a maioria de nós gostariamos de encontrar quando chegasse a nossa hora.

Ela traz a tona um lado mais vulnerável emocionalmente de Morfeus, ele confessa a sua irmã seus medos e inseguranças, algo que ele não tenta esconder de todas as outras pessoas. A jornada que Morte e Sonho passam nesse episódio, com a Morte fazendo seu trabalho e mostrando a seu irmão o verdadeiro propósito de seu trabalho é de trazer lágrimas aos olhos.

O episódio traz outro conto que apresenta Hob Gadling, o homem que decide não morrer, também um dos melhores contos nas edições stand alone  de Sandman, a versão televisiva faz jus a edição e promete bastante coisa pro futuro. Uma das coisas que lamento na temporada foi a ausência de mais histórias isoladas como essas duas.

Casa de Bonecas

Neil Gaiman, o criador dos quadrinhos, está em papel criativamente ativo dentro da série, algo raro em grandes adaptações como essa, mesmo assim diversas mudanças são observadas. No entanto, não são mudanças que “estragariam” o que é apresentado no material fonte e o espectador que é familiar ao material se surpreende ao perceber que na verdade certas mudanças ressaltam a obra.

De cara são notadas mudanças mais didáticas, por exemplo, o Burgess já sabia sobre os perpétuos nos quadrinhos, na série, o Coríntio explica a ele o que seriam essas entidades. Mas uma das mudanças essenciais está no próprio Coríntio, interpretado por Boyd Holbrook. Na HQ ele é antagonista apenas no arco da Casa de Bonecas, na série ele está sempre presente.

Sonho foi pego por Burgess enquanto procurava por Coríntio que havia deixado o Sonhar, enquanto que no material fonte, fica claro que ele só deixa o Sonhar muito depois do desaparecimento de Morfeus. A série faz com que Coríntio seja o antagonista principal da temporada, esse elemento ajuda a prender o espectador, criando uma curiosidade para saber qual será o fim dessa disputa.

boyd sandman

Quanto ao CGI da série, ele é bem irregular, às vezes ele é impressionante, destaco a parte do Sonho da Barbie nessa segunda parte da temporada e por vezes não é possível deixar de notar certa artificialidade, como nos cenários do inferno por exemplo, que parece estar sempre envolto em filtro. Isso ocorre porque para representar os desenhos tão imaginativos dos quadrinhos é difícil recorrer a menos do que esses recursos.

Eles fazem também uma escolha um tanto estranha ao recorrer a certas objetivas que deixam os personagens esticados, um tanto esquálidos e compridos, provavelmente mais um recurso para simular os quadrinhos, mas não podemos deixar de notar a estranheza.

Entre os personagens que habitam o Sonhar, estão Lucienne, a bibliotecária, interpretada por Viviene Acheampong, que foca o lado mais protetivo para com Morpheus. A dupla de irmãos Caim e Abel, que fizeram sua primeira aparição em Monstro do Pantano de Alan Moore, são representados por Sanjeev Bhaskar e Asim Chaudhry.

O elenco de Sandman tem o privilégio de contar com o excelente Mark Hammil emprestando seu talento vocal a Merv, o espantalho falante. Falando em vozes, não posso deixar de citar Patton Oswalt, muito provavelmente o ator mais entusiasta com o projeto, que demonstrou sua paixão por Sandman nos primórdios da pré produção, sendo o primeiro a ser escalado, interpretando o corvo Mathew.

Destaco principalmente o ator Mason Alexander Park, que interpreta o perpétuo Desejo, principal rival de Sonho com bastante maestria. O ator não binário incorpora bem a natureza andrógina e um tanto estranha do perpétuo enquanto se nota que se diverte bastante interpretando o papel, enquanto que a atriz Donna Preston, que interpreta sua irmã gêmea, Desespero, aparenta estar em completo sofrimento, assim como deve ser, ela causa uma boa impressão no pouco que aparece.

Mason-Alexander-Park-on-The-Sandman-Iconic-Comic-Scenes

A família Walker passa por diversas mudanças em relação aos quadrinhos, papéis de certos personagens são mudados, algo que me deixou bastante curioso para saber se mudariam também os rumos da história. Entretanto, os roteiristas acharam soluções interessantes para algumas dessas questões e os resultados são bastante satisfatórios. Fico curioso para saber o que farão com a personagem Lyta Hall, interpretada por Razane Jammal.

Sandman é uma série imaginativa, que consegue fazer adaptações que deixa intrigados até mesmo os que já conhecem o material fonte, apresenta o universo de Sandman para uma nova geração e para um público maior e o mais importante de tudo, estimula o ato de sonhar.

Mal posso esperar para a segunda temporada que deve adaptar um dos meus arcos favoritos e creio que o favorito de muitos fãs, Estação das Brumas e provavelmente também o ótimo Um Jogo de Você.

Sandman – 1ª Temporada (Idem, Netflix – 2022)

Showrunner: Allan Heinberg
Direção: Mairzee Almas, Mike Barker, Jamie Childs
Roteiro: Neil Gaiman, David S. Goyer, Allan Heinberg
Elenco: Tom Sturridge, Boyd Holbrook, Charles Dance, Patton Oswalt, Mason Alexander Park, Jenna Coleman, David Thewlis
Gênero: Fantasia
Streaming:
Netflix
Duração:
50 min por episódio (10 no total)

Avatar

Publicado por Daniel Tanan

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Abuso da Marvel na indústria de efeitos visuais está repleta de estresse, burnout, colapsos e baixos salários

Disney Plus define preço e data de plano com anúncios nos EUA