Para muitos, o ápice da Trilogia das Cores de Krzysztof Kieslowski se dá justamente no capítulo final, A Fraternidade é Vermelha, que mistura a atmosfera arthouse de A Liberdade é Azul com a narrativa mais clássica de A Igualdade é Branca. Nesse ponto da carreira, Kieslowski já havia anunciado que esse também marcaria o último filme faria antes de sua aposentadoria, elevando as expectativas sobre o lançamento que provaria ou não a força da proposta conceitual do diretor para esta trilogia antológica.
Mesmo que tenha tratado o processo de produção de forma bastante racional e igualitária, a ideia iluminista deste filme é um pouco mais complexa que as anteriores. A Fraternidade, como dita pelo ideal francês, tem a ver com a boa cidadania, mas também é possível interpretá-la em sentidos mais amplos envolvendo a solidariedade e o amor ao próximo.
Neste ponto, quem realmente compreendeu qual é a de Kieslowski com a Trilogia das Cores já sabe bem o que esperar: a subversão tanto do ideal iluminista quanto do gênero cinematográfico abordado. Aqui, no caso, é o Romance.
Encontros e Desencontros
Novamente em conjunto com seu amigo roteirista Piesiewicz, o diretor traz a breve história da modelo Valentine (Irene Jacob). Presa a uma rotina fixa e um relacionamento infeliz e distante, a vida da jovem é virada de cabeça para baixo quando atropela acidentalmente uma cadela. Notando que a cachorrinha pode sobreviver, Valentine se dirige até o endereço marcado na coleira, mas logo se frustra ao descobrir que o dono é um senhor antipático e rude que nega o retorno do animal.
Indignada, a mulher leva a cadela para o veterinário para tratar dos ferimentos. Porém, assim que ela novamente se recupera, foge para a casa do antigo dono, atraindo Valentine a entrar novamente em contato com o velho. Porém, ao chegar lá, ela descobre um perturbador segredo: o homem espiona a vida de todos os seus vizinhos através de escutas telefônicas e logo se vê envolvida pela misteriosa motivação da espionagem.
Ainda que seja uma trilogia de histórias diferentes e com ligações mínimas entre si, é difícil crer que algum espectador não encare esse trabalho de Kieslowski pelo começo em A Liberdade é Azul. Até chegar então no último longa, estamos acostumados com estilo do diretor em não focar excessivamente em regras de roteiro para trazer uma historinha fechada, bonitinha e coesa. Esse não é objetivo desses filmes o que acabam por exigir firmemente uma percepção mais aguçada do espectador, pois as recompensas estão além do superficial.
No ponto de vista narrativo, apesar do cenário de espionagem amadora ser sempre interessante, o tom frio de outrora é mantido, apesar da narrativa se desenrolar em acontecimentos óbvios. Mais do que os outros longas, temos uma protagonista que simboliza a Fraternidade do título. É através dela que Kieslowski traça críticas repletas de cinismo sobre esse ideal bastante bonito e difícil de compreender.
Valentine é uma modelo utilizada como propaganda e manequim, ou seja, fins completamente supérfluos que nunca permitem que sua essência bondosa e altruísta se manifeste para inspirar terceiros. Porém, ao introduzir a vida pessoal da simpática mulher, os roteiristas inferem o quão frouxa ela é contra aqueles que a destratam ou a abusam psicologicamente. Ela também é uma daquelas personagens nitidamente fracas, pois nunca interfere ativamente na narrativa, mas sempre é levada pelos acontecimentos gerados por terceiros.
Ou seja, apesar de moralmente correta, Valentine é, em essência irrelevante. Porém, ela é um elemento catártico catalisador para o personagem do Juiz, o espião amargurado. Assim como ela, também é um personagem passivo, apenas admirando a beleza das paixões trágicas dos vizinhos que o cercam até que Valentine entra em sua vida. Esse personagem sem nome é, certamente, o melhor trabalhado em toda a trilogia devido a natureza de seu conflito interno que explica a razão para toda sua paranoia e desamor pela vida.
O fato é que existe um terceiro núcleo que é onde o romance é desconstruído, assim como a fraternidade entre cidadãos e homens. Nele, vemos um magistrado passar pelos melhores e piores momentos de sua vida. Apesar de parecer totalmente irrelevante em primeiro momento, Kieslowski guarda uma bela surpresa para a reviravolta final do longa, mesmo perdendo uma grande oportunidade de experimentar com a montagem de modo realmente único.
Entretanto, embora tudo isso traga uma mensagem bastante interessante de acordo com a proposta pessimista da trilogia, existem diversos entraves que não tornam a experiência de ver A Fraternidade é Vermelha em algo único e prazeroso. O principal motivo se dá pelo texto bastante desconjuntando com acontecimentos ocorrendo sem maior capricho em sua linearidade, além Kieslowski manter um ritmo frio e pouco vivaz que não desperta muito interesse – é uma pena que a trilha musical seja a mais fraca da trilogia também.
Porém, apesar de alguns percalços em seu filme final, Kieslowski reconhece que a imagem precisa dar um trato nas características que o roteiro é pouco incisivo. Como de costume na trilogia, temos a excepcionalidade no trabalho das cores dispostas nos cenários e locações. O foco da vez é o vermelho, mas não só o do romance, mas o vermelho da paixão de viver, do sangue vivo. Toda a casa de Valentine é permeada por esses tons, além das cenas que acompanham o jovem casal também terem presença maciça do vermelho.
O contraste só existe na casa do Juiz, único lugar onde o vermelho não impera, dando lugar a cores mais mortas, de um vermelho gasto, mofado e esquecido, repleto de rancor e ressentimento. A maturidade, portanto, é vista como trágica e contraposta à juventude repleta de vibrações intensas. Ou seja, há um papel muito importante nos simbolismos que o cineasta emprega. Se você não investir um raciocínio, rapidamente perderá o encanto pelo estilo do diretor.
Outros simbolismos são mais cínicos norteados pela esfera ideológica bastante sutil de Kieslowski. Isso é evidente com o retrato presente nos três filmes de uma velha senhora que nunca consegue enfiar uma garrafa na lixeira. Ao contrário dos outros dois protagonistas, Valentine é a primeira que a ajuda a realizar a tarefa tão simples. A senhora é nitidamente a Velha Europa, decrépita, doente e já pouco lúcida que precisa da ajuda de jovens ideais para perpetuar seus valores – e, em toda a trilogia, só Valentine é pura pela sua ingenuidade e bondade.
A crítica mais sutil do filme, porém, é aquela alinhada contra a Unificação da Europa como já estava presente nos filmes anteriores de formas diferentes. Aqui, ela acontece somente na cena final do longa, com os personagens já transformados de modo belo, mas que acabam se deparando por um evento catastrófico que traz a opinião da ruína inevitável dessa aliança.
É preciso apontar também que existe muito mérito em como Kieslowski traz suas ideias para este filme. Como disse, a abordagem visual é bastante forte, apesar de um pouco mais fraca que a vista em A Liberdade é Azul. Entretanto, temos uma evolução enorme com o sentido de linguagem visual que o diretor emprega. Simplesmente há energia em sua câmera que busca um realismo muito mais difícil ao explorar encenações complexas com a profundidade de campo para estabelecer como o bairro que Valentine vive é sempre orgânico e repleto de encontros e desencontros, além da presença muito bem-vinda de planos-sequência elegantes. Aliás, elegância define A Fraternidade é Vermelha.
A Farsa da Fraternidade
Em seu último filme, Kieslowski trouxe o empenho memorável que empregou em toda a sua vida como prolífico cineasta e importantíssimo realizador para a arte como um todo. Sua nova obra conceitual se conclui e mesmo repleta de pequenas imperfeições, traz mensagens tão interessantes e muito atuais – principalmente levando em consideração a provável iminência da ruptura da União Europeia, que é impossível não dizer que a Trilogia das Cores é uma bela obra-prima de sua carreira como intelectual e diretor de cinema.
Através de histórias de pessoas comuns, experimentamos as mais absurdas, tristes e infelizes situações que conseguem representar poeticamente realidade muito maiores. Em ritmo frenético através de uma fonte inesgotável de ideias, Kieslowski infelizmente só viu sua vida parar quando decidiu parar de filmar. A realidade da relação simbiótica entre longevidade e trabalho parece nunca ter sido tão verdadeira e cruel por encerrar prematuramente a vida de um gênio.
A Fraternidade é Vermelha (Trois couleurs: rouge, Polônia, França, Suíça – 1994)
Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Kieslowski, Krzysztof Piesiewicz
Elenco: Irène Jacob, Jean-Louis Trintignant, Frédérique Feder, Jean-Pierre Lorit
Gênero: Drama, Romance
Duração: 99 minutos.