Amor à Tarde é definido como a obra-prima de Éric Rohmer. A conclusão de sua fantástica antologia Six Moral Tales, uma coleção de filmes unidos pela vasta exploração do tema “amor” em diversas narrativas intrigantes, traz características completamente únicas para si, conferindo uma identidade que a coloca em uma posição de destaque.
Já tendo explorado o amor em campos, praias e até mesmo nas montanhas, Rohmer achou de bom tom concluir essa antologia com a exploração do urbano e da metrópole – algo por si já estranho ao diretor que gosta tanto das paisagens paradisíacas que oferecem as vistas maravilhosas dos filmes. Outra peculiaridade é que dessa vez acompanhamos personagens mais adultos em uma narrativa bem mais intimista que, por exemplo, o excelente O Joelho de Claire.
Uma Vida Sem Riscos
Uma hora ou outra, Rohmer iria se aventurar nos complexos temas que envolvem o casamento e novo ritmo de vida que esse status oferece. Para trabalhar nisso, o roteirista nos apresenta a Frédéric (Bernard Verley) um bem-sucedido advogado casado que aguarda a chegada do seu segundo filho, reflexo do tranquilo casamento feliz que leva com Hélène (Françoise Verley). Com uma rotina fixa, Frédéric sempre tira algumas horas de sua tarde para passear nas ruas parisienses.
Suas ponderações são básicas para uma vida de doce sabor tomada pelo conforto burguês. Entretanto, essa calmaria é logo rompida com a chegada inesperada de uma antiga amiga, Chloé (Zouzou). Repleta de mistérios e totalmente obcecada em invadir a privacidade de Frédéric, a mulher se torna uma companhia fascinante para o advogado, reacendendo uma grande amizade e talvez algo a mais.
Como disse, Amor à Tarde é um longa muito instigante pela mudança de ares que Rohmer propõe chegando até mesmo a abrir exceções sobre as regras de sua assinatura cinematográfica que havia seguido com os outros filmes anteriores. Já no começo do longa, conhecemos o protagonista melhor do que ninguém, afinal ele narra a própria história via voz over, como se estivesse se recordando de um passado já distante.
O prólogo da obra é totalmente concentrado em nos oferecer um retrato muito interessante para Frédéric, um homem que tem tudo, mas ao mesmo tempo deseja mais. Ele pondera sobre seu casamento com questões pertinentes, nos revela vícios, entre outras coisas, mas seu maior segredo são as fantasias que tem a respeito das misteriosas e belas mulheres que transitam nas ruas de Paris todos os dias, atiçando uma enorme vontade dentro de si para colocar seu casamento em risco em favor de uma aventura apaixonante.
Colocando o personagem de um modo tão nu e íntimo para o espectador, Rohmer quebra a tradição em não trazer seu próprio julgamento moral da história como havia feito anteriormente. Mas é justamente por isso, nessa adequada escolha de ponto de vista, que Frédéric se torna tão interessante e honesto. Ao contrário dos outros personagens masculinos da antologia, Frédéric nunca é traído pela própria vaidade, afinal ela já revela tudo de uma vez.
Mesmo sabendo que a traição é algo condenável, Rohmer apenas traz esses pensamentos perdidos de um homem amargurado, sem norte ou certeza sobre a situação que se meteu, buscando um escapismo absurdo. E de tanto flertar com a aventura, ela finalmente chega.
Depois, na primeira parte, enfim Chloé é apresentada. O diretor é bastante esperto em não torna-la nada atraente no primeiro encontro, a vestindo com roupas estranhas, conferindo um aspecto sujo e até mesmo masculinizado – algo que também contraria os primeiros encontros repletos de beleza feminina até então. O fato é que Chloé não é nada agradável. As primeiras conversas são repletas de depressão e provocações infantis contra Frédéric, buscando tirar alguma estabilidade do homem.
O interessante, porém, é que a presença dela em tela é tão forte que, assim como em Frédéric, nos dá saudade a cada súbita ausência da mulher. Rohmer a modela como alguém instável e carente, disposta sempre a visitar Frédéric quando as coisas vão mal, apesar de recompensá-lo com conversas mais agradáveis quando sua complicada situação financeira encontra alguma estabilidade.
Chloé simplesmente é a personificação que Frédéric tanto queria em sua vida: imprevisibilidade, medo, aventura e risco enquanto Chloé detesta as dificuldades da vida “nada burguesa” que enfrenta. Enquanto isso, Rohmer praticamente nunca nos mostra a relação verdadeira de Frédéric com sua esposa que permanece em casa, trabalhando enquanto espera a chegada do novo bebê. É bem crível que Hélène também sinta as apreensões de Frédéric, já que sua vida se torna um tédio completo, além de contar com a enorme ausência do marido.
O contraste dessa primeira parte com a segunda é também grandioso. Nesse segmento, Rohmer decide trazer Chloé muito mais feminina e divertida, deixando claro suas intenções com o protagonista e o que quer dele. A personagem está mais amadurecida e centrada na realidade, iniciando um jogo de sedução muito eficiente. Rohmer explora a graça dos diálogos entre os dois, embora Frédéric já não seja mais desenvolvido, afinal ele só precisa agir e consumar a traição ou parar com todo o affair.
Como todas as obras da antologia, o final é bastante esperado, afinal a resolução é sempre muito poderosa. E no caso de Amor à Tarde, certamente é um dos momentos narrativos mais célebres de Rohmer que firmou toda sua competência no texto ao trazer uma abordagem mais adulta e profunda do que de costume.
Atração e repulsão
Assim como no roteiro, Rohmer traz mais elementos cinematográficos em Amor à Tarde. Isso, obviamente, está conectado ao fato do filme se passar em Paris. Apesar de ser bela e charmosa, Rohmer sabe que a cidade não traz o impacto que natureza elabora para os enquadramentos mais simples que ele opta em construir.
Apesar de tentar preservar suas regras visuais estilísticas, o diretor se dá diversos luxos para inserir enquadramentos mais fechados e alguns movimentos de câmera como os zoom in nada discretos que ele usa vez ou outra. Há até mesmo um raríssimo enquadramento no qual ele centraliza o rosto do ator, quase ousando quebrar a quarta parede.
Aliás, isso ocorre na sequência mais onírica da obra, na qual Frédéric interage com todas as mulheres que já apareceram nos filmes anteriores da antologia, para testar um dispositivo eletrônico que colocaria todas as mulheres à sua disposição – Éric Rohmer já fundava seu universo compartilhado com essa boa cena repleta de humor.
Como a maioria de sua assinatura está concentrada no roteiro, pouco sobra ao visual de Amor à Tarde, mas é louvável que a encenação tenha um papel tão forte para gerar a catarse final em Frédéric sem apelar a qualquer tipo de melodrama ou flashback. A colaboração com Néstor Almendros na foto apenas traz elementos básicos refletindo a monotonia da vida do protagonista com cores monocromáticas, tanto que quando há alguma explosão de cor, representando algum desejo, ele já se torna inseguro, correndo de volta para a esposa.
Aliás, em termos de movimentação dos atores, certamente esse é um dos melhores trabalhos de Rohmer. Basicamente, tudo tem a ver com atração e repulsão. Frédéric se aproxima de Chloé, para ela logo depois se afastar e vice-versa. Isso gera uma dança involuntária repleta de tensão sexual que emana entre os personagens. É fascinante como Rohmer consegue criar esse poder de sugestão apenas com elementos simples de proximidade e sorrisos constrangidos.
Entretanto, nada tira a força do erotismo que ele arquiteta. Sensual e sem qualquer apelação, o diretor apenas traz situações repletas de potencial para fazer o coração do espectador bater com força, como no brilhante último encontro de Chloé com o nosso confuso protagonista.
Para o amor, tudo pode?
Fechando sua antologia maravilhosa, Rohmer traz um dos melhores filmes de sua carreira. Amor à Tarde é um conto atemporal pela sua sensibilidade em tratar um problema tão comum na vida de qualquer homem ou mulher que tenham passado por qualquer relacionamento duradouro. Com Frédéric, um de seus poucos protagonistas masculinos melhores resolvidos, tudo se torna um prazer de acompanhar.
Um amor para qualquer hora do dia.
Amor à Tarde (L’amour l’après-midi, França – 1972)
Direção: Éric Rohmer
Roteiro: Éric Rohmer
Elenco: Bernard Verley, Zouzou, Françoise Verley, Daniel Ceccaldi, Malvina Penne, Elisabeth Ferrier
Gênero: Drama, Romance
Duração: 97 minutos