Há uma tremenda beleza nos filmes sobre metalinguagem. Em fazer um filme sobre a arte de fazer filmes. Exemplos diversos de excelentes obras cravaram seus nomes como grandes películas dignas de Oscar e profundo estudo sobre seu conteúdo. Mas existe muito prestígio em retratar a arte, os bastidores de filmes de grandes mestres ou simplesmente contar as inusitadas situações que acontecem rotineiramente durante a produção de um filme.
Não era comum a indústria se arriscar em trazer histórias polêmicas ou indesejadas. Até ali, só tinham se arriscado em adaptar os bastidores do então considerado pior filme já feito com Ed Wood. Absolutamente ninguém pensava ou tinha a coragem necessária para fazer uma história sobre a ascensão e queda da indústria pornográfica no final dos anos 1970 e começo dos 1980. Isso, bom, até Paul Thomas Anderson mudar o jogo.
Boogie Nights é mais do que uma mera extravagancia de um cineasta disposto a tudo para afirmar seu valor em um cenário cinematográfico competitivo dos anos 1990. Paul Thomas Anderson conseguiu conferir uma obra que traz um retrato histórico muito significativo dessa indústria, além de tornar todos os seus principais personagens em figuras complexas bastante interessantes.
Luzes da Ribalta
Paul Thomas Anderson estava em um momento iluminado quando decidiu escrever a história totalmente original de Boogie Nights. Nela, acompanhamos toda a jornada de Eddie Adams, um garçom qualquer, mas “abençoado” pelo tamanho absurdo de seu pinto. Por causa do dote, acaba chamando a atenção do prolífico e famosos diretor de filmes adultos, Jack Horner, que enxerga a oportunidade perfeita de fazer dinheiro com o talento do rapaz.
Com uma rápida escalada de sucesso, o adolescente bobalhão Eddie Adams se torna o maior ator pornográfico da indústria sob o pseudônimo Dirk Diggler. Porém, em um meio claramente desequilibrado, não demora nada para o jovem ator ver toda sua glória ir por água abaixo.
De certa forma, Boogie Nights é um filme bastante fácil, afinal fazer histórias sobre sexo e violência sempre nos captura a atenção rapidamente, ainda mais em um cenário tão curioso como o da indústria pornográfica antes da revolução do videotape. A pornografia sempre esteve presente na História do Homem desde que nossos ancestrais aprenderam a desenhar, porém é bastante pertinente que Paul Thomas Anderson tenha escolhido um período histórico tão seleto: trata-se de uma época de transformação.
Logo, inserir os personagens que também serão alterados nessa jornada na mesma época, é uma grande sacada para potencializar a história. Boogie Nights parece uma leve experimentação de Paul Thomas Anderson antes dele partir para a complexa narrativa de Magnólia. O diretor/roteirista também trabalha com uma vasta gama de personagens que recebem tratamento mais que satisfatório para a duração do filme. Além do protagonista, temos Jack, Amber, Rollergirl, Buck, Little Bill e Scotty com boa dedicação do roteirista para desenvolvê-los.
A vantagem de termos o diretor como roteirista de uma obra, é que toda a concepção da cena é realizada exatamente como havia imaginado. Por isso que a cena de abertura é tão importante feita com um excepcional plano sequência para apresentar todos os personagens que nós iremos acompanhar na narrativa. Desse modo, Anderson une esses indivíduos para formar uma grande família. Esse primeiro ato da obra, que dura até mais da metade do longa, serve para encantar o espectador nesse mundo escapista de falso glamour.
Não à toa que depois dessa grande sequencia de apresentação cheia de luxo e cor, PTA apresenta o outro lado da moeda, o grande motivador para os personagens agirem no resto desse ato.
Vemos todos chegarem à casa, finalmente encarando o mundo real. Com Eddie, descobrimos que ele é infernizado por sua mãe todos os dias em um nível de pressão absurdo para um adolescente de dezessete ano, por mais que ela deseje seu bem. Sem aguentar mais a dureza da realidade, Eddie foge para a casa de Jack. Por sua vez, o prestigiado diretor deseja fazer um filme “de verdade”, que seja relevante para os espectadores. Já Amber, a grandiosa atriz pornô, vive escapando da responsabilidade de cuidar do filho pequeno em uma jornada libidinosa regada a drogas.
Rollergirl, outra atriz pornô, desiste dos estudos para seguir uma carreira bastante arriscada. Buck, ator pornô, quer perseguir o sonho de ser empreendedor, apesar de seu ofício atual ser um grande empecilho. Little Bill tenta salvar seu casamento das constantes traições de sua mulher. E, por fim, Scotty, o operador de som, é homossexual e acaba se apaixonando por Eddie.
Com esse montante massivo de personagens, é compreensível que Paul Thomas Anderson tenha usado diversos clichês para gerar conflitos e motivações nesses personagens de destinos, por vezes, previsíveis. Mesmo que as jornadas individuais não impressionem tanto, o roteirista investe tanto nos diálogos inusitados para dar características e tonalidades tão distintas para os personagens que Boogie Nights se torna um excelente drama. Todos eles, por mais artificiais que sejam suas vidas, parecem reais, pessoas em constante estado de negação sobre a realidade que os cerca.
Evidentemente, a maioria desses personagens são caricaturais e exagerados para conseguir provocar a comédia dentro do filme. O primeiro ato apenas estabelece o sucesso, sem forçar conflitos desnecessários, afinal a ilusão tem que continuar em constante crescimento. Aqui, praticamente não há problemas na escrita, apenas a permanente falta de propósito do melhor amigo de Eddie, Reed Rothchild (interpretado vividamente por John C. Reilly). Até o final do longa, não há uma pífia razão do personagem existir, já que é apenas um alívio cômico que ocupa tempo demais em tela. Acaba funcionando como um mero sidekick de Eddie.
Escuridão Plena
Depois de brincar bastante com seus personagens em situações inteligentes e diálogos afiados, Paul Thomas Anderson puxa as rédeas da história para guiá-la em caminhos mais sombrios. Sutileza não é o forte do diretor em Boogie Nights, afinal o segundo ato começa justamente com um tiro na cabeça. Ele é bastante acelerado e baseado em contrastes puros, bastante fáceis, também apostando na eficiência de comportamentos clichês e bastante óbvios.
Nesse segundo segmento, chegamos aos anos 1980, totalmente opostos ao clima glitter e glamour da década passada. A indústria pornográfica se renova pelo videotape, democratizando a pornografia que antes era restrita apenas aos cinemas eróticos. Isso leva a uma mobilização indesejada de puristas, agora tendo que apostar em formatos mais decadentes de vídeos para superar a concorrência maciça.
Então temos elementos básicos como ciúmes, vício em drogas, impotência e, principalmente, as dificuldades reais da vida. A farsa da ilusão se encerra e todo o palácio de belas cartas desmorona. Anderson sabe que a quantidade de desgraças que insere é até mesmo exagerada, inserindo um segundo clímax bastante desnecessário em uma jogada vaidosa para causar a catarse no protagonista.
O desmembramento da família artificial que Eddie conseguiu ao entrar na indústria é visto com olhos punitivos do roteirista. Logo, é preciso que todos sofram para conseguirem encontrar o equilíbrio para reestruturar a família novamente, dessa vez de maneira mais contida e íntima. Felizmente, apesar de guiado com muita mão pesada, a história que PTA cria aqui é fascinante pelo contraste absurdo de suas partes: uma tão divertida e outra tão deprimente. Ao acompanharmos o melhor e o pior desses personagens, é difícil não sentir empatia por eles. É redondinho e feliz demais, mas todos merecem uma segunda chance. Paul Thomas Anderson é um redentor.
Condução de um Maestro
Paul Thomas Anderson tinha estreado muito bem com Jogada de Risco, porém, geralmente os olhos são mais atentos para o segundo projeto de diretores cheios de potencial. É nítido o quanto de esforço físico e psicológico que Anderson investiu em Boogie Nights. Só com a técnica cinematográfica mais difícil, o diretor apela com cinco planos sequência, sendo quatro deles extremamente complexos visitando diversos cômodos dos cenários para acompanhar a intrincada encenação para mostrar as ações dos personagens em diálogos completos.
É fenomenal, pois Anderson já apresenta um domínio inigualável com essa técnica, conseguindo variar os enquadramentos com muita naturalidade sem ficar restrito aos planos médios ou americanos que acompanham as andanças dos personagens. Um fio puxa o outro. Os planos sequência também tem uma função narrativa importantíssima em Boogie Nights que não trata o recurso como mera perfumaria.
PTA basicamente subverte a natureza realista da técnica ao colocar as passagens mais coloridas e fantásticas da obra como na boate, na casa de Jack e na virada do ano que termina para encerrar essa trilogia de sequências escapistas ao jogar todos os personagens para a realidade do choque da violência.
Tanto que no segundo ato, o mais sombrio, não há uma única vez que o diretor utilize a técnica. Os cortes secos predominam, mas com o uso mais inspirado da montagem para acelerar a narrativa definindo a decadência dos personagens. Por exemplo, em determinado momento, vemos Eddie esperando um colega chegar com a cocaína. Em uma cena, ele diz “bem na hora”. Na próxima, o discurso muda para “por que demorou tanto?”. É engenhoso e bem sacado para inferir como o vício do personagem anda descontrolado.
Até mesmo no trecho mais fraco do longa, o segundo clímax, há uma jogada bacana de encenação ao inserir um convidado disparando bombinhas na sala, já um foreshadowing de um vindouro tiroteio demarcando o fundo do poço. Porém, como essa sequência vem exatamente depois de uma cena poderosa envolvendo montagem paralela, ela certamente perde força pelo comportamento.
O que mais chama a atenção no trabalho do diretor é o quão ele consegue ser engenhoso com a câmera, isso tanto no lado alegre e sombrio do filme – a transformação fotográfica é de um contraste absurdo. Apesar da mudança de ares completa, Paul Thomas Anderson sempre se preocupa em manter essa riquíssima qualidade visual do longa. De fato, há muita mimese de Martin Scorsese em sua técnica. A influencia se torna até mesmo explicita quando usa uma máscara sob o ponto de vista de Scotty para enfatizar o foco em Eddie – assim como Scorsese usa em A Época da Inocência diversas vezes.
Aliás, essa questão tremenda que PTA faz de mostrar serviço acaba sendo excessiva algumas vezes. No começo, quando Jack procura Eddie para oferecer uma proposta, temos os personagens sentados em uma cafeteria. Em questão de pouco tempo, Anderson faz uma panorâmica removendo Jack do enquadramento e focando somente em Amber. No contra-plano, o mesmo acontece com Eddie, solitário no quadro. Um foreshadowing nada sutil para inferir que os dois terão uma forte ligação – essa, artificial e totalmente motivada por razões psicológicas desequilibradas.
Também existe um excesso completo de canções licenciadas na obra. Embora todas sejam muito boas e bem encaixadas, quase nunca há um bendito momento de silêncio em Boogie Nights. Diversas vezes o efeito histérico te tira do filme pelo exagero já que não há praticamente uma trilha original na obra.
Porém, PTA compensa muito bem com o conteúdo de metalinguagem do filme, se divertindo ao criar os filmes eróticos completamente toscos de Jack Horner. Já a primeira filmagem, o diretor se esforça consideravelmente para criar uma atmosfera incrível para a cena muito magnética. Há uma jogada pela montagem bastante esperta em tornar o ato da filmagem, nas entranhas da câmera, em algo tão sensual quanto a ação que ocorre em frente a ela. Aliás, é uma cena bastante cômica pelos reaction shots tão bem encaixados da equipe de filmagem.
Como a cena é tão marcante, Anderson sabe bem como aproveitar o efeito para criar o contraste da banalidade de encaixar o VHS em uma camcorder sem esforço ou delicadeza. São muitos artifícios inteligentes em Boogie Nights que fazem dessa segunda direção de Paul Thomas Anderson muito marcante, apesar dos tropeços cometidos por excesso de vaidade.
A Metalinguagem Indesejada
Nesse cenário muito generoso para a criatividade, Paul Thomas Anderson soube aproveitar bem essa oportunidade com sua história de ascensão e queda em Boogie Nights. Há muita paixão dedicada ao filme para torná-lo um divertido espetáculo visual, além de uma história muito interessante sobre relações disfuncionais humanas. Com um elenco muito sólido para personagens bem escritos, uma ótima história e um olhar muito cuidadoso para a realização final do filme, há um resultado arrebatador que merece muitos elogios.
Quem diria que nos cantos mais vulgares da história da filmografia em geral, teríamos a inspiração para uma das histórias mais divertidas do cinema americano.
Boogie Nights: Prazer Sem Limites (Boogie Nights, EUA – 1997)
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Mark Wahlberg, Burt Reynolds, Julianne Moore, Don Cheadle, Luiz Guzmán, Heather Gragam, John C. Reilly, William H. Macy, Philip Seymour Hoffman
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 155 minutos.