em ,

Crítica | Cenas de um Casamento – Transformando Bergman em uma Novela

O Conceito de paixão pode soar inócuo para os mais pessimistas, e dos mais complexos para os mais…apaixonados por assim dizer no que tange às fortes emoções que esse sentimento, ou efeito psicológico, engloba em seus efeitos. Em sua maioria, parece quase funcionar como uma força motora de muitas narrativas que se propõe a questionar a veracidade de dado sentimento frente à relações afetivas: amor, devoção, lealdade, compartilhadas entre duas pessoas. Mas isso parece apenas tocar na base primária, em uma síntese de algo que é inegavelmente mais profundo de um buraco de coelho que leva à situações ainda mais complicadas do que serem descritas.

O sentir paixão por alguém parece querer dizer criar um laço de sentimentos com alguém, as vezes este pode vir mesmo de um lugar sincero e sentido como algo que nos leva a cometer as loucuras mais inimagináveis contra a nossa própria natureza; ou algo dito da boca pra fora, a tentativa de legitimar um laço com alguém no qual uma atração passageira desperta, ou uma necessidade física clama.

Mas quando realmente verdadeiro, ainda que não recíproco entre duas pessoas, a paixão é capaz de entrelaçar sentimentos, seja de afeto, carinho e desejo pela outra pessoa. E se realmente forte e sincero essa vai ser uma conexão que vai para sempre habitar dentro de si, em menor ou grande grau, escondida bem dentro do seu subconsciente capaz de despertar à qualquer momento e se manifestar em diferentes formas. Uma vez sentido, jamais será esquecido!

Isso pode ser apenas como uma simplificação do que a paixão é como um todo, ou mesmo assumir que algo como Cenas de Casamento gira exclusivamente em torno apenas disso, mas é definitivamente parte de seus temas subconscientes que explora, no que talvez seja a obra definitiva de ficção sobre o amor, a vida conjugal e as pós-consequências da paixão. Mas não estamos falando sobre a versão de Ingmar Bergman – embora a mesma vai ser repetida aqui de vez em quando, já que estamos falando sobre a nova versão de Hagai Levi para Cenas de um Casamento, ou Scenes from a Marriage, a nova versão atualizada produzida pela HBO.

Remake Americanizado

Na verdade, é até surpreendente pensar que eles levaram esse tempo todo para readaptar algum material de Bergman ao DNA moderno, fora dos usuais cineastas modernos que tiram suas inspirações dele, desde Woody Allen a Noah Baumbach, muitas vezes apontados por simplificar excessivamente o trabalho do artista e mal ganhando uma fama de psicologicamente pesado, sexista e massante. Porém parte dessa mesma fama definitivamente deve ter sido um dos motivos por trás de deixar essa nova versão ganhar vida, visto que até o filho de Bergman, Daniel Bergman, permitiu que a mesma produção acontecesse ao ser designado como produtor executivo e trabalhar como assistente pessoal para permitir que mesmas mudanças e atualizações fossem feitas para um público moderno.

E receber a marca HBO parecia garantir um valor de produção fiel e de grande valor que o conteúdo tanto merece no departamento de criação, ou então poderia assim soar no tempo em que um novo drama da HBO era uma garantia fácil de grande qualidade de produção dramática na televisão. Enquanto que hoje em dia… o mesmo pode não ser tão garantido dado o resultado em questão. Nada nem remotamente ruim, mas aquém de seus próprios potenciais e entregando apenas uma tomada básica de um material que já outrora alcançou níveis magistrais como uma obra de arte rica em suas nuances!

Mas também vasto em sua atemporalidade e temas universais que se fazem questionar a legitimidade de se realizar uma nova versão, fora claro óbvias razões de lucro e atualizando sua narrativa para uma linguagem mais afável e explorando temas com ressonância atuais no que envolve relações amorosas e discussões de vertente feminista e a legitimidade monogâmica.

No entanto, o enredo e a base permanecem basicamente os mesmos, com um casal de classe média aparentemente feliz e estável, escondendo um relacionamento decadente prestes a implodir por dentro. Enquanto tudo se passa ao longo dos anos sendo cimentado em cinco partes dentro do drama encenado e a estrutura narrativa, com o idioma e nomes são as primeiras diferenças claras, e o roteiro fluindo de forma mais dinâmica junto da encenação mais filmística, tentando ficar longe das correntes de teatralidade em sua maioria.

Update Progressista

Como também ecoa um pouco do tom e repete algumas dos mesmos traços de em desenvolvimento da narrativa do original, indo desde planos bem similares, diálogos copy e cola, e apenas trocando papéis e atualizando as discussões que explora através da relação do casal. Vide por exemplo a entrevista com o casal que começa ambas as narrativas, que revela uma sinergia entre os dois com muita leveza, brincadeiras e provocações entre marido e mulher, e que imediatamente desenha as claras diferenças entre ambos escondidos em suas nuances comportamentais.

Na versão de Bergman’s tinhamos Johan (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullmann), ele com atitude autoconfiante, mas também cheio de uma condescendência desagradável, e ela uma pessoa mais tímida e de doce presença caridosa como uma companheira gentil, inteligente e compreensiva, mas com uma clara disposição indiferente. Ele um autor de poesia sentindo-se preso e com medo da vida conjugal à longo prazo, temendo que isso possa começar a afetar seus objetivos pessoais que ele nunca foi capaz de alcançar, e embora ame sua esposa, ele age de forma egoísta indo em busca de suas realizações às custas de seu casamento e uma nova paixão que ele percebe como a coisa isso vai dar-lhe inspiração que necessita.

Já ela se comportando como alguém mais submissa, se contentando com um certo claro vazio e ausência de felicidade na relação, ou melhor, uma felicidade imperfeita, mas completamente dependente do marido, não só financeiramente, mas como um porto seguro de uma personalidade claramente frágil e solitária.

Enquanto que agora vivamos uma modernidade onde os papéis de gênero não refletem mais uma estrutura patriarcal estrita da vida conjugal, então na versão americana vemos Jonathan (Oscar Isaac), um professor de filosofia de faculdade, o “dono de casa” por assim dizer, alguém de mente aberta e sincero sobre sua vida e tentando o máximo para soar relaxado em um claro desconforto na entrevista outrora mencionada.

Já sua companheira Mira (Jessica Chastain), deixa seu desconforto bem mais aparente, não sabendo como se descrever ela própria nas perguntas feitas pela entrevistadora. Ela é uma ambiciosa executiva de tecnologia, a chefe financeira da família e, ao contrário do original, é aquela cujo o caso com um amante precipita o colapso do casamento. Compartilhando um pouco do egoísmo nascido do desespero existencial como Johan no original. Quando ela se apaixona por um colega israelense, ela se torna cega para tudo, exceto para sua nova paixão e seus próprios interesses.

E é Jonathan que tem seu coração entrando em colapso total, já que ele é o responsável por compartilhar muitas das qualidades submissas de Marianne de Ullmann, devastado por essa traição, Jonathan, tão docilmente conciliador como Marianne, ajuda a esposa arrumar a mala como um amor submisso, indiferente à ação do companheiro, ele só o faz por um amor doloroso. E abraça forte sua amada para impedi-la de partir, papel que também recaiu a Liv Ullmann no original.

Embora ao contrário do original com Johan, cuja despedida abrupta de Marianne é filmada como fria e de quebrar o coração, Mira é vista quase sem qualquer culpa, já que ela mostrou ter todas as razões para estar fazendo tal ato, e talvez tenha sido culpa do marido em o primeiro lugar. Mas culpa de que?! Pela própria omissão dela que o deixou cego para um colapso potencial que veio do nada?! Pelo aborto que ambos concordaram fazer consensualmente e agora se amargou em arrependimento?!

Mas fora se espelharem em diferentes perspectivas, e colocando tudo em camadas de questões complicadas, os temas enquanto os mesmos obtêm uma atualização do século 21 que é apresentada logo no início de sua estrutura similar. Com o primeiro episódio imediatamente investigando a exploração das normas de gênero que afetam os casamentos monogâmicos – a entrevista que começa ambas agora envolvendo uma pesquisadora sobre o assunto, usando Jonathan e Mira como cobaias, e a série faz praticamente o mesmo para seus próprios temas

E mais tarde, onde temos o mesmo desencontro com um casal amigo que começava com uma conversa amigável e se desenrolava em uma das conversas mais brutas secas e tensas sobre verdades cruas do matrimônio junto da hipocrisia mútua que ambos os lados são capazes de cometer, e que parece ser um prenúncio do que virá recair por cima do nosso casal principal. Enquanto aqui o mesmo encontro é usado para o mesmo efeito, você também pode notar onde os reais interesses, e falhas da série, se encontram.

Onde o casal entrando em discussão sobre casamento aberto e revelando suas graves consequências para seu próprio estado emocional, acaba divergindo atenção do drama central para um pequeno escape de desabafo entre duas amigas sobre a relação de uma delas. O que imediatamente já toma um lado parcial já revela apenas a perspectiva da mulher sobre a questão das escolhas de relacionamento poligâmico, e o quanto ela está sofrendo. E quando volta a atenção para o marido, ele é enquadrado como apenas um homem branco bêbado e frustrado. E que terminava o momento entre as duas amigas com um beijo compartilhado entre as duas vindo de forma totalmente aleatória. Uma forma de dizer que mulheres oferecem um gênero neutro, aberto a flerte entre elas mesma em sua intimidade?!

Parece muito mais tendências masculinas supervisionando o departamento de criação, e eu sei que isso vem de um lugar de boas intenções ao tentar se aprofundar dentro de uma perspectiva mais feminina das situações dos conflitos que a série explora para soar mais intimamente genuíno, mas não deixa ser nada disso porque ainda é a visão de um homem no topo do roteiro e direção. Levando a essas situações forçadas que não fazem nada além de basicamente soar como um discurso sobre o comportamento abusivo do homem em face da mulher oprimida. E em um relacionamento pessoal (um minimamente saudável pelo menos), é MUITO mais complexo do que apenas isso!

Tangibilidade Inócua

O elemento mais incrível do Cenas de um Casamento original, era sobre como tudo parecia totalmente imerso em sua sinceridade e catarticamente dramático por causa disso, foi como Bergman tirou as experiências de sua própria vida pessoal e de aspectos relacionáveis do próprio sentido primal de convivência, e entregou tudo em um prato de pura honestidade que parecia assustadoramente pessoal. Enquanto aqui tudo quase parece uma novela textualizada com algumas tentativas de dar explorações psicológicas

Alguns tendem a apontar como falha a austeridade teatral usual de Bergman no original, mas como sempre ele conseguia preencher tudo com um tom melancólico bem acertado entregue pelos atores que mantém tudo em um nível de sinceridade indescritível e palatável. Se desfrutando de tomadas longas para permutar a ação em um espectro temporal contínuo que prendem a atenção do espectador quase continuamente. Enquanto que aqui, tudo o que temos são os frames de curto prazo usuais, tomadas por cima do ombro no vaivém entre atores que parece preso à uma direção genérica que mal tende a usar seu próprio cenário bem estabelecido para contar de fato a história desse casal.

Ainda mais quando esses problemas acabam se estendendo aos eventos, ocasiões e os longos diálogos entre a dupla central – a espinha dorsal da estrutura principal de toda a peça em ambas as versões, que mais aqui parecem fabricações narrativas, nunca se sentindo verdadeiramente genuíno.  E é triste ver o quão ótimos atores são os dois protagonistas, mas que passam a impressão de estarem mal encaixados em seus papéis, e não vivem nem se transformam neles. Basta encarar em como eles se comportam em torno de suas profissões:

Jonathan, por exemplo, nunca parece ter nada para fazer o dia inteiro, exceto contemplar o fracasso de seu casamento e ponderar sobre seu relacionamento familiar com o judaísmo e o quão fracassada foi sua criação pelos pais. Poderia jurar às vezes que ele mais parece é uma paródia de um personagem usual de Woody Allen, desde sua aparência, à gestos e resmungos quase cômicos, principalmente porque o próprio Allen costumava pegar emprestado/se inspirar/ copiar o material de Bergman – e muito melhor do que feito aqui, devo acrescentar. E Mira, cuja aparência e comportamento frequentemente pomposos de uma atriz Hollywoodiana vindas da atuação de Chastain, nunca convencem que ela é a chefe de uma grande empresa de tecnologia.

Novamente com comparações, mas essas serão inevitáveis, mas no original Ullmann e Josephson convenciam em todos os níveis que eles realmente eram Marianne e Johan, dois pais verdadeiros, ele um autor de poesia e ela uma advogada de divórcios. As próprias reações mínimas a cada uma das conversas entre eles pareciam imensamente naturais a um grau assustador de tangibilidade. A banalidade de sua rotina diária parecia parte integral do drama e o tom construído em torno da simplicidade que os rodeava, fazendo assim que suas conversas parecem ser a parte central de tudo, e não um suporte secundário. Porque se o texto quer realmente ter credibilidade, depende da união principal, e quanto ao casal protagonista aqui, é outra gama de problemas, e qualidades, por si só.

Dentre os dois, eu diria que Isaac é o único que está menos preso à robótica do roteiro, embora ele também seja culpado de se ater muito ao mesmo pela maioria da narrativa, mas ele consegue entregar um nível de sinceridade emocional às suas cenas individuais que funcionam aqui e ali – especialmente no final do segundo episódio depois que todo o rompimento entre os dois, que ressoa particularmente forte graças ao ator, embora LONGE de ter o mesmo peso cru e doloroso do mesmo momento de Ullmann no original

Embora sua personalidade seja o mais interessante, querendo construir o homem hetero progressista com crenças feministas democrata da atualidade. E é uma boa sacada que a série meio que usa essa mesma personalidade contra ele mesmo quando ele vê que tudo que ele acredita e defende, se volta contra ele, revelando uma instabilidade emocional que ele é incapaz de suportar ou admitir pra ele mesmo que está sentindo. O que deixa seu personagem se sentir como algo único fora do original, mas uma direção melhor para os atores faz falta aqui para fazer Isaac realmente entregar tudo que ele é capaz e de melhor com o material.

Enquanto Mira se desenha como a mulher forte empoderada dona de si mesma e de sua vida, chefe financeira da casa, mas com um baque emocional por não conseguir se sustentar dentro de uma vida matrimonial onde ela se sente presa e que adentrou muito cedo, e se mantém dentro de uma personalidade sempre emocionalmente intransponível, que chega até ser instigante conforme os conflitos se desenrolam nos episódio. Só que para mais tarde cair em si sobre o quanto ela se prendeu a mesma, que ama de verdade o marido e sua filha o bastante para querer voltar a viver com ambos. mas seria apenas o seu desespero existencial de medo e solidão falando por ela mesma?!

Fatores que no papel parecem um prato cheio para um drama amplamente profundo e universal em suas questões, mas que acabam chegando a lugar nenhum, e que acabam soando tão formalizadas e roteirizadas sem quase um pingo de honestidade dado a elas. Sendo entregues por Chastain que mantém quase que uma nota só de personalidade durante toda a série. A mesma ser chamada para o projeto soava uma idéia lógica visto que a mesma já trabalhou com a própria Liv Ullmann em seu Miss Julie, e ela pode-se dizer tem uma proximidade com origens Bergmanianas, mas não mostra isso.

Sua atuação parece faltar uma pungência extra que faça seus conflitos pessoais soarem sinceros e não simplesmente reclamações mimadas de alguém confusa consigo mesma, o que por si só seria uma característica dramática perfeita para ser trabalhada, mas o roteiro nunca adereça isso como um dos fatores que lhe é de interesse, e que só ajuda a tornar extremamente difícil acreditar que Jonathan e Mira como qualquer coisa se não apenas como dois atores, bons e velhos amigos com uma química clara que ajuda na conexão entre ambos, mas não se parece com nada além de serem reunidos para um projeto e eles estão lendo suas falas, ficando bonitos nas câmeras enquanto nisso, mas não muito mais nada fora disso.

Paixão Moderna

Uma camada interessante que a série adiciona a tudo são os segmentos introdutórios a cada episódio, seguindo os dois atores, Isaac e Chastain, intercalando entre episódios, enquanto eles se preparam segundos antes de começar a filmar a primeira cena do episódio que levará ao novo ato, com toda a equipe mascarada obedecendo aos protocolos COVID-19 no set. Os mais familiarizados com Bergman não verão isso como uma idéia intrusiva ou pretensiosa, pois o mesmo frequentemente quebrava a realidade de seus filmes e mostrava a si mesmo e sua equipe como parte da história sendo contada – embora não no Cenas de Casamento original.

Aqui é apenas usado para revelar de forma mais direta a natureza perfomática de ambos os atores que estão se desafiando a si mesmos para sustentar uma narrativa difícil e fazê-la soar sincera, enfrentando os limites dados pela pandemia para trazer uma história de contato humano, e relações de viver em sua própria pequena realidade segura, espelhando nosso passado antes do “novo normal” se predominar. Até o frame granulado de câmera super 8 dado nesses segmentos parece querer fazer ressoar um sentido lírico e nostálgico.

É um reconhecimento da artificialidade do projeto, que faz com que as performances até funcionem dentro desse espectro, mas sem nenhum ponto claro feito com elas fora apenas entregando drama banal dentro da série e na história principal. Bergman pretendia levar os dois personagens aos seus extremos, para que fossem forçados a abandonar suas fachadas e descobrir o que está e o que não está lá dentro de si. Quebrando suas próprias angústias para reconhecer que os erros ignorados de seu matrimônio, foram toda a causa de seu presente colapso em um caminho aparentemente sem volta.

A série ainda tenta expandir isso a outros espectros, levantando discussões contundentes e diálogos doloridos em uma veracidade genuína. A forma com que escreve a derrocada de Jonathan como algo premeditado a partir de sua personalidade, alguém que sempre teve controle de tudo na sua vida, e agora vê esse controle desafiado quando seu elo de conforto matrimonial é desafiado e lhe puxa o tapete por debaixo de seus pés, e responsabilidades lhe são questionadas. E o faz questionar não só os motivos de sua perda, mas a sua própria capacidade de amar alguém e ser amado. A legitimidade do amor se posta em dúvida, vai ser sempre o caminho para a sua falta de sustentabilidade!

E o vai e vem que isso se faz com Mira e suas próprias dúvidas internas e falta de desejos e desejos, se perpetuam por meio de fios existencialistas perfeitos que envolvem as relações modernas, e como uma é capaz de ser sustentada em um mundo moderno onde discussões de relacionamento monogâmicos se tornaram tão amplas, e sua legitimidade sustentável, frente a um universo de conectividade via uma aldeia global tecnológica.

Contundente já que ambas séries funcionam sim como espelhos de seu tempo, se Bergman mostrava uma relação entrando em erupção em tempos onde se predominava uma mentalidade patriarcal, e mostrando sua tangível fragilidade em um nível quase visceral. Quando pronomes e questões de fidelidade e amor não eram mais capazes de sustentar uma relação que se cerca de problemas que invadem o subconsciente dos indivíduos e põe em dúvida sua própria mortalidade junto de outra pessoa e como ela realmente é capaz de te completar.

A versão de Levi reflete em cima da ansiedade que move humanos na atualidade, a quererem o novo e o atual a se renovar a cada momento, e o banal de um casamento fiel e honesto pode não ser mais suficiente para suprir isso; debates de gêneros, a liberdade beneficiária poligâmica para uma relação, mas também sua frágil sustentabilidade à longo prazo;

Amor Memorável?!

A certa altura do original, Bergman alcançava em sua narrativa a desconexão entre o que os personagens dizem e o que eles realmente refletem, não apenas em sua ambivalência profunda, mas também seu estado existencial confuso. Marianne e Johan não se entendem nem um ao outro. Egoisticamente ou simplesmente por estarem destruídos com tudo o que eles tiveram que aguentar em seu longo processo de divórcio e uma paixão e desejo que parecia ainda os conectar involuntariamente. Esse ponto é social, psicológico e metafísico.

Quando chegamos ao último episódio, que no original encapsulava tudo isso em uma poesia quase purgatória, aqui, o último capítulo faz com que tudo pareça um pouco ambivalente e enrolado em suas próprias pretensões que nunca alcançam uma resposta ou reflexão final, como a série num todo pareceu.

Mesmo que sejam talvez os momentos mais sinceros compartilhados entre os atores e seus personagens, tendo vivido tempo suficiente para absorver quem eles são, depois de todos os caminhos pesados e difíceis que eles passaram por seu conturbado divórcio, comportando-se de maneira fria e finalmente explodindo suas frustrações um com o outro no episódio anterior; aqui eles se encontram com tanto carinho quanto no início, como se nada tivesse acontecido, enquanto tudo aconteceu.

As brigas agora estão no passado, e agora elas se rejuvenescem em seu comportamento, espelhados pelo quarto da adolescente, eles têm seu último ato de amor, o mais intimamente verdadeiro de toda a série que usou o sexo quase como uma ferramenta física desgastante (bem claro na cena bem gráfica no quarto episódio), e se abrindo um para o outro mais sinceramente do que nunca. Citando: “In the Middle of the Night, in a Dark House, Somewhere in the World” – “No meio da noite, em uma casa escura, em algum lugar do mundo”, título do episódio e meta-referência direta ao episódio final da série original.

E no final, eles conseguem fazer ter uma despedida agridoce, enquanto na versão de Bergman, o casal parece transcender seus próprios papéis como personagens e a tragédia que afetou o destino de seu casamento, e se tornam uma entidade solitária cercada por um estigma inquebrável de paixão. No final do dia, paixão e amor permanecem como a entidade superior acima de suas próprias fragilidades humanas, eles podem não suportar viver uns com os outros como seres racionais, mas o laço de amor que eles criaram, parece eterno e dependente, ligados para sempre e inseparáveis. “Nós nos amamos de uma forma mundana e imperfeita”.

Enquanto aqui, os personagens são deixados no vazio de uma narrativa pretensiosa, e na cena final, vemos os atores se afastando do set juntos, ambos agindo de forma tão carinhosa e se abraçando como amigos, com uma doce química aparentemente de um casal, e de forma mais tangivelmente real do que aquela compartilhada por seus personagens, mas cada um indo embora para suas próprias vidas, já que paixão pertence apenas à ficção e sem finalidade dada.

Reflete sobre a mesma qualidade da história de Bergman, o que foi uma vez sentido tão forte, jamais será esquecido. O mesmo não pode ser dito pelo facilmente esquecível nova versão em si, que traz pontos contundentes e boas idéias, aproveitadas dentro de um convencionalismo vazio, e isso não é paixão! A mesma paixão que permitiu a Bergman fazer uma das obras-primas mais intimistas de todos os tempos, e a mesma falta de paixão apenas cria um drama formulaico, muito mais interessado em trazer temas atuais que refletem mais as perspectivas sócio-políticas do que o drama pessoal real entre dois humanos.

Pode até te enganar e te fazer sentir algo, mas nada que vá fica realmente preso à você. Assim como a pessoa que um dia você pensou que amava e compartilhava tanto, mas se tudo acabou tão facilmente e mais nada daquilo ainda permute em sua mente, então você sabe que a paixão não habitou ali. Paixão por si só não corrobora como forte e genuína o suficiente para manter algo firme e sólido, mas é inegável que ela tem seu efeito inesquecível!

Scenes from a Marriage (EUA, 2021)

Showrunner: Hagai Levi
Direção: Hagai Levi
Roteiro: Hagai Levi, Amy Herzog (baseado numa série de Ingmar Bergman)
Elenco: Oscar Isaac, Jessica Chastain, Nicole Beharie, Corey Stoll, Michael Aloni
Gênero: Drama, Romance
Emissora: HBO
Episódios: 5
Duração: 50 min / 60 min

Avatar

Publicado por Raphael Klopper

Estudante de Jornalismo e amante de filmes desde o berço, que evoluiu ao longo dos anos para ser também um possível nerd amante de quadrinhos, games, livros, de todos os gêneros e tipos possíveis. E devido a isso, não tem um gosto particular, apenas busca apreciar todas as grandes qualidades que as obras que tanto admira.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Crítica | Lua Azul – Descobrimento interrompido

Quem são os navegadores de Duna?

Quem são os navegadores de Duna?