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Crítica | Coringa – O filme mais corajoso do ano

Criado há praticamente 80 anos nos quadrinhos da DC, o Coringa é sem dúvida alguma um dos melhores vilões de todos os tempos. É antítese perfeita para um herói tão soturno e sério como o Batman, e o desafio de lhe dar vida no live-action sempre rendeu resultados interessantes, e que são falados até hoje. Cesar Romero fez uma divertida versão na série de TV de Adam West, Jack Nicholson vendeu a perfeita visão de Tim Burton do gângster cartunesco no Batman de 1989, Mark Hamill conquistou diversos fãs com a dublagem fornecida para o Coringa na Série Animada de Bruce Timm (e também na série de games de Arkham), enquanto Jared Leto… Bem, ele trouxe ideias radicais para sua interpretação em Esquadrão Suicida.

Mas, claro, foi mesmo Heath Ledger quem mudou o jogo para sempre. Em Batman: O Cavaleiro das Trevas, o ator australiano ofereceu a performance definitiva do Palhaço do Crime, infelizmente sendo incapaz de ver o impacto que deixaria na cultura pop após falecer meses antes de o filme de Christopher Nolan chegar aos cinemas. É uma performance que elevou a barra para qualquer ator que arriscasse repetir o papel (e que Leto nem chegou perto), então nada mais apropriado do que o personagem ganhar um filme inteiro para ele com Coringa, que aposta no talento de Joaquin Phoenix e na reinvenção de Todd Phillips para oferecer algo inédito nos cinemas: uma história de origem trágica para o futuro arqui-inimigo do Homem-Morcego.

Vale reforçar que a trama de Coringa não tem conexão com nenhum outro filme do universo cinematográfico da DC, existindo em sua própria cronologia. Nela, estamos na sórdida e aterradora Gotham City do final dos anos 70, onde o solitário Arthur Fleck (Phoenix) vive com sua mãe doente (Frances Conroy) enquanto sonha em se tornar comediante stand up. Sofrendo de condições mentais agravantes, ele embarca em uma jornada sombria ao descobrir um segredo de seu passado, que é reforçado quando as coisas em sua vida começam a dar errado. 

Why So Serious?

Para início de conversa, é preciso abordar a polêmica em torno de Coringa. Antes mesmo de sua chegada nos cinemas comerciais, o filme de Todd Phillips foi acusado de ser uma obra “irresponsável” e “tóxica” por membros da imprensa americana durante sua passagem por festivais de cinema, chegando até mesmo no absurdo de sugerir que Coringa poderia inspirar os chamados “incels” a cometerem atos de terrorismo nos EUA. A principal acusação é que o longa glorifica as ações de seu protagonista, o que é uma tremenda falta de interpretação e subtexto da parte daqueles que levantam essa hipótese. Até mesmo porque Phillips e o roteirista Scott Silver não fazem nada disso aqui, além de um profundo estudo de personagem.

Ao longo de diversas entrevistas, Phillips afirmou que duas obras-primas de Martin Scorsese foram suas inspirações principais: Taxi Driver e O Rei da Comédia, ambos estrelados por Robert De Niro; que, não por acaso, está presente no filme em um papel coadjuvante. Essa influências estão presentes em cada canto de Coringa, focado em um homem solitário que vive às margens da sociedade (a Gotham coberta de lixo e sarjeta imediatamente nos remete à Nova York de Travis Bickle) que literalmente sonha acordado com a oportunidade de conhecer um apresentador de TV famoso, em um conflito quase idêntico ao de Rupert Pupkin e o comediante vivido por Jerry Lewis.

Tudo isso envolto em uma análise sobre a doença mental, e a jornada perigosa que um homem aparentemente ingênuo e marginalizado é forçado a seguir. Phillips e Silver claramente empatizam com Arthur Fleck, e o mais importante é que estamos sempre acompanhando de fora como sua narrativa se torna mais sombria e violenta. É um filme cuja moralidade está sempre na corda bamba, mas que jamais assume o lado de seu protagonista, que traz queixas válidas em seu grande monólogo em um dos pontos da história, mas obviamente assume métodos nada apropriados – que ajudam a ilustrar o lado sombrio da psique humana, e o quão baixo um ser humano pode decair. 

A grande ironia (ou piada, como diria o protagonista) é que sua felicidade só aumenta à medida em que decai à loucura; os passos para subir a escadaria sempre são pesados, enquanto a descida é uma verdadeira insanidade celebrada com uma dança perturbadora.

Da Ressaca à Loucura

Por trás das câmeras, Phillips nunca teve um olhar tão íntimo e contemplativo. Ao lado do diretor de fotografia Lawrence Sher, que o acompanha desde a trilogia Se Beber, Não Case!, Phillips cria belíssimas imagens que reforçam a solidão de Arthur na cidade. O olhar se alterna entre planos detalhe de lembretes, anotações e olhares intensos para quadros mais vastos que capturam a podridão de Gotham City – e que é bem contrastado com o luxo colorido do estúdio do apresentador Murray Franklin. O uso da razão de aspecto 1:85.1 certamente ajuda o espectador a ficar mais próximo dos personagens e de suas vidas. Há alguns excessos estilísticos (não acho que precisávamos de tantas danças de Arthur), mas é uma evolução do cineasta.

E Phillips certamente não poupa quando a história exige mais tensão ou violência. Existem poucas sequências assim ao longo de Coringa, mas o diretor aposta em um choque genuíno e sem grande espetáculo: é uma ação crua e fria, e que provavelmente vai incomodar a maioria dos espectadores, ainda que nem de longe seja tão pesada quanto a mídia estrangeira possa ter sugerido. Ainda assim, é gráfica o bastante para se distanciar da grande maioria das obras do gênero. Não é exagero algum afirmar que o cinema de quadrinhos nunca teve um filme como Coringa.

É preciso também destacar uma das maiores forças do longa: a trilha sonora original. A perturbadora música ficou a cargo da compositora Hildur Guðnadóttir, que ganhou um Emmy recentemente por seu trabalho assombroso na série Chernobyl. A atmosfera de Coringa fica ainda mais pesada e soturna graças às cordas dolorosas de violoncelo que acompanham quase toda a trajetória de Arthur ao longo do filme. Não é o tipo de trilha com temas variados, mas cujos sons marcantes e penetrantes ajudam a manter o espectador tenso, e também para pontuar – em momentos que poderiam soar totalmente diferentes – que o que acontece com Arthur é mesmo uma tragédia, e não uma celebração.

O Homem que Ri

Mas precisamos falar sobre Joaquin Phoenix. A ideia de ter o ator, um dos melhores de sua geração, na pele de um personagem como esse foi empolgante desde o anúncio do projeto. É um trabalho completamente diferente de todos os outros intérpretes do Coringa, principalmente por vermos mais de seu aspecto humano. Phoenix demonstra um estudo notável sobre o comportamento, postura e fala de uma pessoa que sofre com distúrbios mentais, sendo particularmente fascinante ver como o ator parece torcer todo o seu corpo ao se encontrar vítima de suas gargalhadas involuntárias – uma condição médica real.

À medida em que Arthur vai se tornando o Coringa do título, a performance de Phoenix vai mudando. A ingenuidade, a inquietude e a risada involuntária vão dado espaço a uma figura não exatamente carismática, mas segura e extremamente volátil – e que surge nada menos do que assustadora quando o vemos com a ótima maquiagem que resgata um visual de palhaço de circo. Talvez seja a caracterização que mais provoque medo, mas curiosamente também é aquela que garante uma certa “compreensão”. Não dizendo que somos capazes de concordar com Arthur, mas sabemos de onde ele veio.

É um show unicamente de Phoenix, que completamente ofusca os demais membros do elenco. É uma pena, já que a talentosa Zazie Beetz pouco pode fazer para tornar sua personagem interessante (ainda mais considerando a péssima reviravolta em torno dela) e Robert De Niro claramente está se divertindo ao fazer do apresentador Murray Franklin uma figura sagaz.

Punchline

A Warner Bros e a DC tiveram coragem em conceder tamanha liberdade a Todd Phillips. Coringa é um filme maduro e corajoso, cujo roteiro básico é elevado por uma direção caprichada que caminha pelas referências certas e uma performance inebriante de Joaquin Phoenix. Quem diria, em uma indústria dominada por filmes de super-heróis cada vez mais genéricos e pasteurizados, ainda é possível que criadores com ideias a virem de cabeça para baixo.

Coringa (Joker, EUA – 2019)

Direção: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver, baseado nos personagens da DC
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Bryan Tyree Henry, Marc Maron, Shea Whigham, Bill Camp, Brett Cullen, Glenn Fleshler, Josh Pais
Gênero: Drama
Duração: 121 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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