Com Spoilers
Acredito que muitos do meio cinéfilo hoje, incluindo os vários fãs do sujeito, talvez já tenham se questionado de onde veio esse grande nome, quase tão popularmente conhecido, do renomado Guillermo Del Toro. Afinal, o que esse mexicano de sotaque atropelado, cineasta apaixonado pelo classicismo, grande admirador da cultura pop e nerd, conhecido pela sua fantasia gótica alegórica de seu fantástico Labirinto do Fauno ou suas duas adaptações quase Cult de Hellboy com Ron Perlman, fez de tão marcante para ter um nome tão quase amplamente conhecido como um Tarantino ou até de um Spielberg?
Bem, uma possível resposta para tal, se encontra exatamente em seus filmes! De uma personalidade versátil, o sujeito consegue passar por um filme de baixíssimo orçamento independente, como o filme aqui em questão, e amplamente ir se aventurar no cinema mainstream blockbuster com monstruosidades visuais e épicas como Círculo de Fogo, ou até misturar um pouco de ambos como o seu subestimado romance gótico Colina Escarlate. E com isso tudo, já conquistou uma pequena legião de fãs familiares com seu trabalho e sempre no aguardo de seu próximo filme.
Mas e suas origem? De onde um talento, em constante crescimento como esse surgiu e veio a ser notado pelos grandes estúdios americanos?! Basta-se apenas voltar ao passado e o olhar para sua pequena estréia no cinema com o fabuloso e esquecido Cronos.
Na trama, encontramos uma pacata família de classe média mexicana, com Jesus Gris (Federico Luppi), um senhor de idade que trabalha em uma loja de antiquários e cria como pai sua netinha inocente Aurora. Até que um dia ambos encontram dentro de uma estátua sacra de um anjo, um bizarro amuleto mecânico de ouro movido a uma chave, que quando girada o amuleto abrem garras e espetam o membro mais próximo e começa a sugar sangue. Mas ao invés de enfraquecer, o aparelho parece fortalecer e rejuvenescer a pessoa que o usa, no caso Jesus que cria um vício interminável com o aparelho. Mas um sombrio e misterioso ricaço recluso, De La Guardia (Claudio Brook) busca o mesmo aparelho para seu uso pessoal, que lhe pode garantir imortalidade.
Criaturas sobrenaturais e mutilação de corpos? Já conhecendo os futuros trabalhos do diretor, nada disso soa como estranho ou diferente do que já estamos acostumados a ver em um de seus filmes. Mas, tendo Cronos como porta de entrada para o cinema de Del Toro, esteja preparado para conhecer tudo que já viria compor o cineasta que ele é hoje. Apresentando logo de cara aqui, um dos temas que sempre o fascinou: histórias de monstros. E ainda, suas desmistificações de certos elementos e mitos conhecidos dos mesmos. No que se refere à histórias e filmes de vampiros, acredite, este está longe de ser o mais usual que você verá por aí!
Uma Tragédia familiar
Talvez se encontre aqui também, o motivo pelo qual garantiu a Del Toro mais tarde o levar a realizar seu primeiro blockbuster de quadrinhos, o ótimo (e também subestimado) Blade 2, não por coincidência esses dois sendo seus filmes de vampiros. E em bora lidem com a temática similar, nem preciso salientar o quão diferentes são as abordagens com que ele constrói cada filme, respectivamente em seus tons, trama personagens etc. Pois enquanto Blade 2 é um digníssimo filme de monstros, disfarçado de blockbuster de ação truculento, sangrento e porradeiro (uma interpretação fidedigna daquele personagem e seu universo), Cronos já se apresenta como uma verdadeira e digna tragédia moderna. Se você pensava que o Nosferatu de Werner Herzog era o filme de vampiros mais melancólico e melodramático já feito, falta-lhe certamente de assistir a Cronos. Uma das histórias mais originais envolvendo vampiros que o cinema já produziu.
E isso toma forma exatamente pelo fato do roteiro de Del Toro nunca se assumir como um filme de vampiros logo de cara. Nem a própria nomeclantura ‘vampiro’ é sequer mencionada ao longo da projeção. Tudo é construído de forma minimalista, criando o sentimento de antecipação da suposta aparição da criatura de forma instigante e sutil, deixando sim pistas e elementos aqui e ali que revelam a verdadeira natureza da trama que irá se desenrolar no filme, embora o palco em que ela se apresenta seja totalmente o contrário e inesperado do mesmo.
Depois de uma introdução inspirada de um conto de fadas gótico (marca registrada do diretor desde sempre) e de uma fúnebre narração sobre a história de um velho de pele branca pálida, e sombrios segredos envolvendo cadáveres, sangue e o estranho mecanismo dourado, parece que o público está prestes a entrar numa versão moderna da história de Drácula de Bram Stoker. Mas não, tudo muda de figura, em uma ótica quase inocente e alegre, quando somos apresentados à pacata família de Jesus nas tarefas de seu dia-a-dia. Com Del Toro revelando, de forma até brilhante, a personalidade de cada personagem e a relação emocional entre cada um apenas por focar a câmera em pequenos gestos, trocas de olhares e rápidas falas.
A troca de afeto paternal entre Jesus e sua netinha Aurora, revelando um carinho e amor mútuo; a autoridade revoltante da esposa Mercedes (Margarita Isabel) que revela certo desafeto com a jovem neta – uma responsabilidade forçada – e um casamento já desgastado com seu velho e idoso marido. Elementos de uma família quebrada que Del Toro trabalha em pequeno segundo plano no filme, mas que só adiciona mais camadas ao seu drama e as genuínas emoções que virá transmitir.
Mas esse clima de drama familiar é rapidamente quase que violado, quando se é apresentado o personagem de De la Guardia na narrativa, e o seu ambiente com uma figuração hospitalar, com restos mortais de insetos de molho em vidros revelando-se quase que como um filme body-horror a la David Cronenberg ou Lucio Fulci, e as diversas estátuas de anjos quebrados revelando uma faceta angelical deturpada. É o uso perfeito da mise-en-scene de Del Toro para novamente revelar os elementos sacro-religiosos e de terror que a obra aqui vai abordar de forma bem imersiva.
Vale já ressaltar nesse ponto, o quanto o filme revela uma exploração de caráter bem católico em seu mito vampiresco. Ou vocês acharam que o nome do protagonista ser ‘Jesus’ era apenas mera coincidência? Muito da jornada do protagonista revela o percurso de Cristo de forma interessante, e até “profana” em sua caracterização. A primeira vez que ele usa o amuleto para sugar seu sangue e ele entra em um transe de quase morto, escorregando escada a baixo de braços abertos como se estivesse crucificado; o espeto principal do amuleto que suga o sangue vai diretamente em seu pulso como um prego; sua morte ocasionada pelos inimigos De la Guardia, claras personificações de Satanás e seu servo; seu “ressuscitar” agora como vampiro sendo três dias após sua morte e se cobrindo com um manto vermelho; são metáforas sutis mas bem claras para compreender. Ele é a encarnação do bem sendo consumado pelo mal sedutor e viciante.
E isso serve como um interessante alicerce de Del Toro para demonstrar o elemento profano que se reveste em sua história e a transformação demoníaca que Jesus se decai, sedento em sua transformação na figura monstruosa. Uma representação do nível baixo e podre que o ser é capaz de atingir para lutar pela sua imortalidade, fugir da morte, e sua deterioração moral interior se espelhando no exterior. Começar vendo Jesus no início do filme como um pacato, bondoso e humilde senhor de idade, e depois no final vê-lo com a pele descascando em pedaços e vivendo a base do vicioso amuleto de imortalidade, é um quadro extremamente triste e desolador de se contemplar.
Esse sentimento de depressão sendo atirada no coração do público, é algo que ele captura tão bem de uma das cenas mais icônicas do Frankenstein de James Whale, a morte da inocente garotinha. Uma das cenas mais desoladoras de todos os tempos. A desmistificação da criatura monstruosa para uma figura inocente e trágica, exatamente através de outro elemento de mais pura inocência, a criança.
Pois se enquanto Whale usou da pureza de ambos monstro e jovem menina na sua inocente troca de afetos e brincadeira, que por um acidente culminou na morte dela, Del Toro também usa aqui da figura da jovem inocente se relacionando com o monstro através da netinha de poucas palavras, Aurora. O que torna tudo de partir o coração em Cronos, é o grande afeto de amor e carinho que a jovem neta tem pelo avô. Ao ponto de encararmos Jesus da mesma forma que Aurora o encara, com pena, com carinho, querendo lhe ajudar em seu sofrimento não importa o custo. Lhe dando o amuleto para se mutilar ainda mais em seu vício de rejuvenescer, e até em certa altura lhe oferecendo seu sangue para ele poder sobreviver e alimentar sua fome. Pois é, bote crise familiar nisso!
A desmistificação e evolução do mito
Isso faz parte de um quase instinto natural de Del Toro que repercutiu por toda sua carreira: deturpar as convenções narrativas de gêneros. No caso de um suposto filme de vampiros, quer algo mais destoante do que construir-lo como um drama familiar?! Mas a qualidade deste não se prende somente nesse fator de destoar o convencional, e sim cria uma das mais tristes histórias que já vi em um filme. Usando-se do elemento fantástico e sobrenatural, para contar uma história íntima e deteriorante do espírito humano.
Essa distorção do mito vampiresco é criado de forma inteligente e, de certa forma estranha, mas gratificante de se assistir desenrolar. É realmente como vermos a história de Drácula se deteriorando pela nossa realidade. Jesus é o vampiro mais pobre coitado que você verá em um filme. Ele nunca mata ou ataca ninguém; sua tumba de vampiro é o baú de brinquedos de sua neta; as únicas vezes que bebe sangue é ou por acidente de encontrar uma vítima quase morta por outro, e em uma cena icônica, com um forte elemento de tragicômico, onde o vemos lamber o sangue pingado por acidente no chão.
Mas isso não foge ao drama central, que se demonstra como sendo uma verdadeira tragédia a cada minuto. A cada cena Jesus parece estar pior do que na última. E nem preciso salientar o quanto Federico Lupi está soberbo, vendendo todas as genuínas emoções de Jesus com muita naturalidade, o que só torna mais difícil o ver sofrer com sua transformação e o púbico sente a mesma dor sem pena alguma do diretor. A cena de sua carta final para sua esposa é uma das mais belas e mais tristes que Del Toro já filmou!
E ainda junto disso, Del Toro já revelava desde cedo seu fascínio pelo cinema de monstros, já começando aqui por criar a sua própria versão da história de Drácula. Ou melhor; que tal uma evolução do mesmo? A jornada de Jesus, sofrendo das consequências de seu fardo, carrega fortes elementos da ‘tortura do existir’ que criaturas como Frankenstein ou o Homem Invisível carregavam pra si. E seu confronto com o De la Guardia do ótimo Claudio Brook, se revela quase que como um embate de gerações vampirescas. La Guardia assumindo uma perfeita personalidade de um Dracula de Bela Lugosi velho e decaído, com sua sede sedenta pela imortalidade, enquanto Jesus é talvez um Conde Orlok de Max Schreck de Nosferatu, vindo para roubar seu posto.
Até o, certamente quase descartável, personagem Angel de La Guardia (Ron Perlman), o sobrinho insubordinado de De La Guardia, serve como parte elementar disso, se apresentando como o Igor da história, o guarda costas burro truculento. Que aparentemente é americano enquanto o tio é espanhol…mas ok. Nem vou ressaltar o fato de Pearlman claramente não saber quase nada de espanhol e Del Toro lhe escrever aqui um personagem que particularmente só fala em inglês em suas cenas. Embora a presença dele no filme seja proposital, não só como adereço referencial mas também como um desejo de Del Toro desde sempre querendo distorcer certas convenções de filmes mainstream, e cria um personagem do ianque burro truculento, papel esse que um mexicano ou alguém de outra nacionalidade qualquer faria em um filme americano.
Mas isso são só pequenos pitacos em um filme que falha tão pouco em sua execução. Até impressiona como Del Toro criou um filme tão tecnicamente eficiente mesmo tendo que ter trabalhado com uma merreca na época de 2 milhões de dólares. Apresentando ter um trabalho soberbo de maquiagem na criação de seu vampiro humano. E acompanhado de ótima fotografia do velho parceiro de Del Toro, Guillermo Navarro e uma excepcional trilha de Javier Álvarez, que juntos trabalham na criação da aura gótica e bucólica que cria a personalidade tão impactante do filme.
Primeiros passos de um prodígio
O próprio Del Toro bem já disse uma vez que os filmes que definem a carreira de um diretor são sempre o seu primeiro e último filme. Del Toro parecia querer buscar e trazer esse impacto e marca para a sua carreira, e com Cronos ele certamente cumpre sua missão. Seu primeiro longa no qual já demonstra com proeza todos os elementos que ainda viria trabalhar melhor. A aura gótica fantasiosa; temáticas de famílias distorcidas; personagens em crises existenciais e sua deterioração física e psicológica; o uso do fantástico como metáfora para lidar com problemáticas realistas e de caráter atemporais.
Nada mal para um Mexicano gordinho começar sua carreira com um dos filmes mais originais de vampiros de todos os tempos. Ao mesmo tempo em que é uma história de uma luta interna desesperada pela imortalidade, pelo que resta de mais humano dentro de nós em meio a monstruosidade que consome nosso espírito. O vampirismo aqui não seria só uma mera maldição, é a personificação do medo, da solidão, da morte, da velhice iminente e a vida frágil sempre por um fio. Onde talvez só o mais puro, e inocente, amor pode ser a salvação e redenção final!
Acho que só um verdadeiro grande cineasta seria capaz de despertar e extrair tantas profundas e genuínas emoções tão humanas de um suposto filme de monstros e terror. E foi só o seu primeiro passo de uma prodigiosa carreira.
Cronos (Idem – México – 1993)
Direção: Guillermo Del Toro
Roteiro: Guillermo Del Toro
Elenco: Federico Luppi, Ron Pearlman, Cláudio Brook, Tamara Shanath, Margaritta Isabel, Daniel Giménez Cacho, Mario Iván Martínez
Gênero: Terror, Drama
Duração: 94 min