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Crítica | Doutor Estranho no Multiverso da Loucura traz Sam Raimi de volta em grande estilo

Já faz 20 anos desde que Sam Raimi ajudou a potencializar o cinema de super-heróis da Marvel com o seminal Homem-Aranha, de 2002. De lá pra cá, a força dos super-heróis nos cinemas só cresceu, culminando na gigantesca peça mercadológica do Universo Cinematográfico da Marvel, comandado pelo visionário Kevin Feige e já colecionando quase 30 filmes desde sua origem. Nesse meio tempo, Raimi acabou se tornando uma joia rara: desde 2013 que ele não dirigia um filme, com a experiência traumática do prelúdio Oz: Mágico e Poderoso lhe deixando em Hollywood mais como produtor do que condutor.

Foi só quando Scott Derrickson inesperadamente deixou a direção do segundo filme de Doutor Estranho que uma oportunidade bateu à porta de Raimi. Já tendo sido um dos superiores de Feige durante sua passagem pela trilogia do Homem-Aranha (onde o hoje mandachuva era apenas um produtor assistente associado), Raimi volta não só para os cinemas, mas para o gênero de quadrinhos com Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, filme que precisa servir à história de outros longas, pelo menos duas séries de TV e – naturalmente – aos fãs do próprio Raimi. Uma tarefa virtualmente impossível, mas cujos resultados são surpreendentemente positivos.

A trama nos coloca ao lado do Doutor Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) mais uma vez, agora com o mago tendo que lidar com a aparição repentina de America Chavez (Xochitl Gomez), uma jovem que tem a habilidade de saltar entre diferentes realidades do multiverso. Ela é logo colocada na mira da Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), que deseja usar de seu poder para resolver uma questão pessoal, diretamente ligada aos eventos de WandaVision. Nesse cenário, enquanto serve como protetor de America ao lado de Wong (Benedict Wong), o Doutor Estranho conhecerá diferentes caminhos do estranho multiverso à sua volta.

Amarrando as pontas

A cada novo filme do MCU, a empresa parece cada vez mais dedicada a participações especiais e easter eggs, puramente para satisfazer os fãs de quadrinhos e jogar lenha na fogueira para futuras aparições no cinema. No que pode soar como uma verdadeira surpresa, ainda mais após o impacto de Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é uma obra bem isolada. Sim, a premissa literalmente depende de outras quatro obras que o espectador precisa ter assistido para que algumas viradas de personagens façam sentido, mas quando o roteirista Michael Waldron (da série Loki) engata a marcha da história, tudo parece fluir dentro de seu próprio… Universo?

Isso garante uma aventura mais focada e que não parece tão preocupada em ramificações dos Vingadores ou outros personagens da editora, e realmente senti que Waldron e Sam Raimi estavam olhando para o Doutor Estranho como um personagem. Há até mesmo um fio temático que, apesar de superficial, procura estudar se Stephen Strange é “um homem feliz”, o que gera diálogos inesperadamente dóceis e que parecem trazer o elemento humano de volta a esse espetáculo que ocasionalmente parece tão vazio e flácido. Há também um esforço para criar um laço afetivo de mentor e aprendiz entre Strange a jovem America Chavez, mas que não tem força o bastante.

Claro, o roteiro de Waldron não é sem seus problemas. Já havia mencionado a dependência de Multiverso da Loucura em outras obras, o que é uma questão que levanta uma discussão sobre o próprio futuro do entretenimento: não deveria este filme funcionar sozinho? Podemos aceitar um filme depender do outro (afinal, é a premissa básica de uma sequência), mas ter praticamente o primeiro ato inteiro dependente de uma série de TV é algo para se pensar – imagino que aqueles que não viram WandaVision certamente não saberão o que pensar da virada mais sombria da Wanda Maximoff de Elizabeth Olsen, porque realmente não funciona por conta própria (e eu acrescentaria que nem na série do Disney+ ela foi bem construída, diga-se de passagem).

E temos também o problema do MCU. Apesar de outros filmes não terem muita relação na história, claramente há um impacto deixado por obras que envolvem o multiverso, já que o segundo ato do filme envolve o encontro de Strange com um grupo de personagens dos quadrinhos que certamente vai agradar pelo fan service e pela a escolha do elenco – mas que literalmente não tem o menor impacto na narrativa, sendo até mesmo descartados (de forma homérica) como um fan service barato e sem muitas implicações relevantes. É um ponto onde o roteiro de Waldron realmente falha, mas imagino que tenha sido alguma exigência contratual de Kevin Feige para conseguir arrancar alguns gritos de empolgação nas salas de cinema. Pois realmente não serve nenhum outro propósito.

O Retorno do Rei

Já falamos tudo o que havia para falar sobre o Universo Marvel e suas implicações de universo compartilhado, agora podemos falar sobre cinema? Eu tinha minhas dúvidas quanto a um autor cinético e imprevisível quanto Sam Raimi tentar adaptar seu estilo ao padrão simplista e monocromático do MCU, mas fiquei absolutamente surpreso em encontrar as impressões digitais do diretor de A Morte do Demônio por toda à parte. Apesar de não ter participado no roteiro ou na construção da narrativa, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é, por boa parte deste, um filme de Sam Raimi.

Ainda que já tenha dirigido filmes de super-heróis antes, Raimi nunca havia explorado o potencial mágico de um personagem como o Doutor Estranho. De cara, a inventividade de Raimi com os poderes e efeitos visuais em cenas de ação é vastamente superior ao que nomes como Scott Derrickson, Taika Waititi, Jon Favreau, Jon Watts ou os superestimados irmãos Joe e Anthony Russo. Isso já fica escancarado em uma das sequências iniciais, onde o protagonista enfrenta uma criatura Lovecraftiana no meio das ruas de Nova York – e a alternância para reações de civis nas calçadas, janelas e prédios da cidade é um diferencial importantíssimo, já que faz aquele universo ter vida e ainda acrescenta um nível de perigo maior; algo que ele já fazia muito bem na trilogia Homem-Aranha.

Mas é mesmo com o terror que Raimi realmente consegue se divertir. Seja nas variações do Doutor Estranho em outras dimensões ou a verdadeira cruzada das trevas que a Feiticeira Escarlate executa, o diretor faz o máximo para que consiga trazer todos os seus invencionemos visuais e de câmera de A Morte do Demônio para o MCU, sobrando até mesmo referências para Arraste-me para o Inferno e seu suspense O Dom da Premonição (no que diz respeito a closes de olhos sobrepostos sobre imagens de paisagens). Visto que a Wanda de Elizabeth Olsen (absolutamente incrível em uma virada mais vilanesca e sinistra) tem até mesmo a capacidade de possuir mentes, Raimi aproveita para libertar seus demônios de Evil Dead, com uma ou duas cenas que me deixaram sorrindo de ponta a ponta ao ver travellings de câmera agressivos e ventania sobrenatural dentro de um cômodo fechado.

E graças aos céus, Raimi e o diretor de fotografia John Mathieson conseguem trazer uma paleta de cores mais interessante, colorida e com contraste alto – evitando pela maior parte da projeção o efeito de tela “lavada” do MCU.

Há inclusive uma sequência em que Raimi parece ter feito especialmente para seu colega Danny Elfman, que substitui Michael Giacchino na condução da trilha sonora. Sem querer entregar muitos detalhes, mas envolve o Doutor Estranho combatendo um oponente e, mostrando que a criatividade ainda não morreu no MCU, ambos começam a usar notas musicais de uma partitura de papel como armas cortantes – onde o impacto de cada uma delas gera um som de instrumento distinto.

Ainda que tenha suas deficiências na história e dependente demais de outras obras, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura vale suas 2 horas pela presença de Sam Raimi. É uma gigantesca surpresa ver o cineasta tão à vontade e sob domínio de sua arte, trazendo um verdadeiro deleite para os fãs de sua fase de terror.

Não existe cameo que supere o talento de Sam Raimi.

Crítica em vídeo

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness, EUA – 2022)

Direção: Sam Raimi
Roteiro: Michael Waldron
Elenco: Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen, Benedict Wong, Rachel McAdams, Xochitl Gomez, Michael Stuhlbarg, Julian Hilliard, Jett Klyne
Gênero: Aventura
Duração: 126 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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