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Crítica Com Spoilers | Doutor Estranho no Multiverso da Loucura – Loucamente Autoral!

“Eu vou ensinar essas crianças como se faz um filme de super-herói.”

Uma fala que vem sendo compartilhada na internet nas últimas semanas, vinda do senhor Sam Raimi enquanto promovia seu mais novo filme da Marvel, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, onde ele, o filho pródigo, finalmente retorna ao gênero e marca que ajudou a crescer e a se formar na indústria gigante que é hoje graças à sua magnífica trilogia do Homem Aranha.

O ‘infelizmente’ disso seja por que mais parece ter sido como uma escolha contratual quase que secundária. Posto para dirigir uma “continuação” do filme de um personagem introduzido muito tarde no panteão do MCU, que desde sua introdução em um primeiro filme bem mais ou menos, vem ganhando grande importância nos grandes eventos que se moldaram na grande narrativa do MCU desde a saga do Infinito.

Agora embarcando nesta nova tentativa de saga girando em torno do Multiverso e todas as suas infinitas possibilidades que irão conduzir e moldar os futuros filmes deste universo. E felizmente com o Doutor Estranho encontrando uma caracterização melhor trabalhada em outros filmes do que seu primeiro filme solo falhou em construir.

Raimi assumindo a direção parecia promissor, embora preocupante, dado o fato de que um diretor altamente criativo como ele, teve sua própria parcela de dores de cabeça trabalhando sob controle pesado de estúdios, que com certeza não afetou seus primeiros filmes do Homem-Aranha que até hoje permanecem como filmes de quadrinhos de primeira linha– nem arruinou o ainda hoje altamente subestimado Homem-Aranha 3;

Mas isso com certeza deixou o diretor com um gosto amargo por essas grandes produções, e ele não dirigindo um grande projeto como esse desde 2013 com o problemático Oz: Mágico e Poderoso, só ajudou a colocar mais lenha na fogueira do ceticismo.

Porque a questão era se Raimi poderia sobreviver dentro do controle da marca do MCU e de todos seus artifícios narrativos, tendo que se encaixar no grande planejado cenário de Kevin Feige e sua equipe de executivos, enquanto faz algo que lembra remotamente seu estilo e a qualidade que ele era costumado a trazer em seu auge. A resposta é… em boa parte sim!

SALVOS PELO AUTOR?!

A maioria imediatamente julgaria a vinda do diretor para o MCU como uma necessidade desesperada de Raimi só pra pagar as contas. Dele desistindo de todo elo criativo e se rendendo ao gerenciamento de produção de histórias pasteurizadas da Marvel, especialmente por estar na posição de substituto do diretor Scott Derrickson, que deixou o projeto após divergências criativas.

E onde em uma situação diferente, a situação teria sido totalmente oposta com Derrickson substituindo Raimi, talvez, nunca se esqueça de quando Edward Wright foi substituído por Peyton Reed no primeiro filme do Homem-Formiga! Mas graças a Deus vivemos nesta parte do Multiverso porque Raimi traz um algo à mais para o personagem e sua fatia no universo do MCU!

Embora a verdadeira questão deva ser: em que ponto a suposta liberdade criativa dada a Raimi aqui é realmente notável e como realmente afeta a qualidade final do produto?! Sem sombra de dúvidas a presença de Raimi não é infalível à marca do MCU que ainda se predomina aqui, e ainda seguindo bastante de seus vícios típicos!

Por um lado, Raimi ainda tendo que trabalhar para encaixar a história dentro de algumas regras pré-estabelecidas, a ponto de não sei sequer se pode dizer que o filme é uma continuação do primeiro filme do personagem, que sejamos justos poucos ou ninguém se lembra a essa altura exceto pelos visuais barrocos surrealistas ala A Origem que foram trabalhados lá e algumas questões existencialistas baratas.

Mas quanto a linha narrativa de continuidade – o fato de Mordo ser introduzido como vilão no final do filme; o Ancião de Tilda Swinton; os poderes da Dimensão Negra – que aparece brevemente apenas na cena pós-créditos, etc.; são mal mencionados ou sequer são aqui.  E onde o mínimo de conexão é deixado com a presença de Christine (Rachael MacAdams) e a variante Illuminati de Mordo (Chiwetel Ejiofor).

Mais priorizando ser uma continuação dos eventos da Marvel, e principalmente da série Wandavision que é basicamente uma obrigatoriedade assistir para não perder o fio da meada envolvendo o lugar que se encontra a Wanda ainda no inicio do filme e toda a sua transformação na real antagonista do filme!

Pra piorar, o filme até remete à aquele formato filme-episódio de fases passadas da Marvel, onde o filme do personagem nada mais é do que uma ponte para eventos futuros, uma narrativa de estabelecimento e sem sequer ter uma conclusão, deixando tudo sempre aberto para mais no futuro. Coisa que os últimos filmes do MCU até vinham evitando bem (mas não o suficiente para se salvar de outros erros grotescos da fórmula padrãozinha).

Desde a presença de America Chavez (Xochitl Gomez), aos Illuminati e as conseqüências gerais desse filme dentro do Multiverso, tão ali ou pra serem introduzidos e deixarem no ar para aparecerem futuramente em algo de conectivo e nada mais além disso no que tange a uma formulação de narrativa e história sola por si – e porventura são as partes mais fracas e vazias do filme.

Formando sinais do roteiro padrão da Marvel que busca introduzir personagens que só vão se tornar relevantes mais tarde depois de dois ou três filmes, e que ainda contam com as saídas narrativas mais fáceis das arriscadas de plot e exposição para explicar todas as suas regras. Com uma narrativa que se desenrola por um bom tempo através de uma onda de referências e explicações de seus elementos em jogo, e com personagens tendo que explicar e descrever conceitos e acontecimentos.

O conflito pessoal de Wanda e suas motivações tem que ser pelo menos relembrada umas três vezes no que parece ser um receio que o público interprete mal essa tornada vilanesca da personagem, tendo que reafirmar que ela está movida ainda pela dor da perda, sendo corrompida pelo mal do Darkhold e etc. Quase que a tornando o maior ponto de foque do filme do que o próprio protagonista dele – o que não seria a primeira vez de acontecer em um filme do MCU.

Embora consiga se equilibrar muito melhor do que, por exemplo, um Capitão América: Guerra Civil, que roubou o filme de seu protagonista-título para fazer um Vingadores 2.5 e deixar um cenário para o rompimento dos vingadores e as próximas consequências que teria ainda mais em Guerra Infinita. Enquanto aqui, mesmo em meio a todos os envelopes de ter que se adaptar a ser um meio, narrativa episódica, Raimi encontra no gênero, e nos personagens, elementos onde ele se via podendo se divertir na pura criação do coisa, e extrair o melhor dela!

Embora consiga equilibrar-se muito melhor do que por exemplo um Capitão América: Guerra Civil, que roubou o filme do seu protagonista titulo para fazer um Vingadores 2.5 e deixar um set-up para a quebra dos vingadores e as vindouras conseqüências que isso ia ter mais pra frente em Guerra Infinita. Enquanto que aqui, mesmo em meio à todos aos invólucros de ter que se adequar em ser uma narrativa do meio, episódica, Raimi encontra no gênero, e nos personagens, elementos onde ele se viu poder se divertir na pura criação da coisa, e extrair o melhor dela!

UMA AVENTURA DE SUPER-HERÓI CLÁSSICA

Esse ainda é um filme do Doutor Estranho, onde os protagonistas são bem delineados e são o foco marjoritário de toda a meada que conduz o filme. Wanda então é sim a antagonista cujas motivações são bem delineadas naquele nível agora sempre obrigatório de ser…”compreensível”, porém isso nada impede Raimi de ainda tornar sua persona de Feiticeira Escarlate como um verdadeiro cão chupando manga, sedenta por sangue e absolutamente sádica.

Enquanto que o desenvolvimento de Strange, prioriza seu pós eventos do Blip e como isso o afetou profundamente, tanto na sua fama de Vingador, e principalmente na sua vida pessoal – o que deixa sua persona mais fechada coerente para um personagem que ainda luta contra um orgulho próprio, incapaz de expressar as infelicidades que seus sacrifícios lhe trouxeram, ou sequer ter ainda a humildade para isso – nem para mostrar um mínimo de respeito à Wong e seu novo cargo como mago supremo.

E tendo que aqui correr com o mcguffin ambulante que é America e Wanda/Feiticeira Escalarte no encalço deles agindo como o T1000 do filme, enquanto ambos se confrontam com suas próprias crises emocionais. Tudo dentro dessa escala de aventura multiversal, mas que não perde seu foco dos personagens e como a própria execução do filme os explora um nível à mais do que se espera!

Em essência, Multiverso da Loucura é um filme de perseguição implacável. Imagine Indiana Jones e o Templo da Perdição (misturado com toques de Uma Noite Alucinante 2) onde um set-piece é costurado ao outro em uma fluidez eletrizante, mas sem perder um senso de coesão narrativa. Os mcguffins e a ameaça são bem delineadas, não perde tempo explicando por demasiado, a trama não perde tempo com coisa inútil, sempre vai direto ao ponto da coisa. Os ‘blá blá blá’ são carregados pelo carisma dos atores e soam naturais em sua maioria.

O ritmo é ágil e dinâmico, mas sem nunca se sentir apressado ou desconjuntado (em boa parte), as duas horas não se sentem insuficientes nem curtas, são bem trabalhados para entregar uma história que entrega o que tem pra contar, sempre coeso e bem estruturado em volta de uma aventura sombria multiversal. As piadas bobocas ainda aparecem aqui e ali, mas boa maioria partem da irreverência autoconsciente de Raimi.

No final, o filme como um todo inevitavelmente deverá ser vítima apenas de suas próprias expectativas, ou melhor, daquela que os fãs depositaram nele! O que nos leva de volta para Homem Aranha: Sem Volta para Casa, um filme que veio com MUITA expectativa do público, e todas elas foram atendidas, e até mesmo superadas! Enquanto que Multiverso da Loucura entregue talvez metade do que os fãs esperam dele, e ao mesmo tempo nada.

É até uma certa ousadia não terem sacrificado o filme solo de Strange para entregar um filme de evento pré-Guerras Secretas apenas para lucrar com o sucesso de Sem Volta para Casa, fazendo o maior fan-service da história dos quadrinhos – embora eles estejam praticamente aludindo a esse suposto grande evento acontecendo bem mais tarde aonde quer que eles vão com esta saga Multiverso.

Mas não que faça as presenças legais de Anson Mount como Raio Negro, John Krasinski como Reed Richards, Patrick Stewart de volta como Charles Xavier, Hayley Atwell e sua Capitã Carter e Lashana Lynch como Capitã Marvel; serem nada mais do que um fan-service barato.

Sem Volta para Casa foi um tremendo de um filme fan-service, sem dúvidas, mas a própria presença de velhos rostos e nomes conhecidos lá servia a um propósito narrativo. Aqui… o único propósito que esses servem é pra causar uma onda de aplausos e gritos histéricos da platéia e não muito mais – e ok também realçar o nível de ameaça que as ações de Wanda e Strange estão alcançando, mas é a mesma desculpinha de roteiro para permitir esses momentos acontecerem.

Novamente outro ponto em uma lista de obrigatoriedades dada por Feige para Raimi, que tenho certeza de esse diálogo ocorreu mais ou menos assim:

Raimi: ok… mas posso pelo menos colocar Wanda nessa cena coberta de sangue como se ela tivesse acabado de sair das tripas de alguém?

Feige: uh… por quê?

Raimi: Porque seria maneiro!

Feige: Ok

E automaticamente a cena fica muito mais interessante!

Porque NOVAMENTE, esse consegue ser um filme de Sam Raimi completo! Os ângulos de câmera malucos, os truques de câmera criativos, o tom brega, a trilha sonora de guitarra dos anos 80, Bruce Campbell aparecendo do nada. Sendo clássico, cafona e cheio de breguices que vai fazer a grande maioria do público ficar em estranhamento, e os críticos de plantão revirando os olhos vendo como tentativas escassas e vazias de se printar uma assinatura e estilo pessoal dentro de uma fórmula desgastada e automaticamente enxuta; o fato é: dá para ver o diretor gostando do que está fazendo, e a diversão é contagiante compartilhar e até se envolver!

UM DELEITE CRIATIVO

Ver o que Sam Raimi era capaz no cinema pipocão no início dos anos 2000 já era impressionante por si só, agora vê-lo anos depois trabalhando sob os limites visuais de hoje definitivamente seria uma delícia por si só, e assim o é, especialmente em termos de filmes do padrão Marvel. Carregando a inventividade visual para a ação e a própria modelagem dos efeitos em cena, trazendo um foco no fator humano no meio do espetáculo, algo sempre feito de forma rasa em diversas tentativas da Marvel.

Basta olhar para o que Jon Watts realizou em No Way Home como uma comparação recente, com boas decisões de deixar todos os grandes confrontos envolvendo grandes personagens, reduzidos a uma escala mais íntima e não tão espetacular. Mas mesmo assim, sai com o visual de barato e padrão devido à artificialidade da maior parte da ação. O filme teve um evento muito maior, vários personagens principais cara a cara em um encontro épico de montagem, e de alguma forma conseguiu parecer pequeno e para não dizer um pouco feio.

Basta olhar como comparação o que Jon Watts realizou em Sem Volta para Casa, com decisões bacanas de deixar todos os grandes confrontos envolvendo grandes personagens, reduzidos a uma escala mais intimista e não tanto espetaculosa. Mas mesmo assim, tudo saia com um ar de barato e padrão pela artificialidade da maior parte da ação. O filme teve um evento muito maior, vários personagens principais cara a cara em um encontro épico, e de alguma forma conseguiu parecer tudo em uma escala enxuta e para não dizer feia.

Ou os irmãos Russo, que filmaram alguns dos momentos mais épicos dos filmes da Marvel, em Guerra Civil, Guerra Infinita e Ultimato, mas onde parte do espetáculo perde um pouco de ímpeto e se torna raso porque se concentra demais no espetáculo diegético formulado por efeitos visuais, do que realmente carregar de ter qualquer peso humano.

Ou os Russo que filmaram alguns dos momentos mais épicos dos filmes da Marvel, tanto em Guerra Civil quanto Guerra Infinita e Ultimato, mas onde boa parte do espetáculo ali perde e fica-se raso por focar demasiado no espetáculo diegético formulado por efeitos visuais, do que realmente carregar nenhum peso humano.

Enquanto que aqui, não há evento de nível de ameaça mundial/universo com uma enorme reunião de heróis, embora tenha sequências de tal; mas tudo parece mais vital. Tem uma sensação constante de urgência embutida em cada ação e cena que se desenrola; as cores se destacam forte em um alto contraste alto comedido que traz vibrância e vida para um universo que andava cada dia mais morto com aquela palheta de cores acinzentada de esgoto de outros filmes do MCU – graças à ótima fotografia de John Mathieson que cria belas composições aqui.

Onde os grandes confrontos entre super-heróis e vilões passam a real sensação de épico, como se um grande evento estivesse acontecendo, com uma geografia compreensível para cada canto de ação na tela. Resultando em um nível ainda maior de emoção, ameaça e diversão genuína enquanto se assiste!

É o talento de Raimi se refletindo na forma ‘à moda antiga’ que ele  tem para cenas de ação vistosas e com todos os elementos para fazer com que cada ua se sinta genuinamente memorável: As reações quase cômicas do olhar de Gargantos no primeiro grande confronto do filme; a transformação de civil para herói que Strange faz do casamento de Christine para a ação como se fosse o Superman ou o Homem-Aranha de Raimi;

Ou a Feiticeira Escarlate cortando a Capitã Carter ao meio ou quebrando o pescoço de Xavier em uma batalha mental – remetendo muito ao que Singer fez em X-Men Apocalypse (embora não tão bom quanto…); pequenas coisas e detalhes que tornam as cenas tão mais impactantes e memoráveis, podendo não ser grande coisa, mas que se destacam E MUITO em meio ao padrão Marvel de filmar bonecões trocando raios de cor desnaturada e alguns chutes.

Também porque Raimi entendeu outra coisa valiosíssima do personagem título aqui: ele é o Mestre das Artes Místicas, então bota pra ele fazer um misticismo sinistro, estranho, que entrega uma total loucura, tudo que se faz jus ao titulo pela natureza descontrolada (e tão bem conduzida) que o filme carrega entre o diretor, seu estilo e os elementos que ele tem aqui para trabalhar, e tornando tudo uma brincadeira criativa engenhosa!

A magia é usada de forma criativa, você vê e entende cada pequena ação e movimento feito, ou na forma com que Raimi sutilmente subverte já conhecidos poderes de Strange: como a dimensão espelhada que é logo uma das primeiras habilidades que Strange usa contra Wanda como armadilha e ela quebra como se tivesse escapando de um pesadelo barroco, virando uma espécie de demonio que ataca a partir de dimensões que possuem reflexos;

Ou a luta Strange VS Strange onde começam a usar notas musicais como armas, e quanto mais as notas aumentam e ficando mais mortífera – momento onde o compositor Danny Elfman brilha, não só aí como também nos acordes de guitarra puro anos 80 que aparecem em momentos chave aqui e ali, puro e simplesmente porque soam maneiro e realmente são!

Expandindo completamente os limites dentro do leque insanamente criativo que Raimi simplesmente tira da natureza cósmica e fantasiosa dos quadrinhos. Abraçando o brega e exagerado tão absolutamente característico dos quadrinhos, como conceitos esdrúxulos que ele abraça e torna palatáveis exatamente por assumir esse exagero e fantasia como elementos vitais do personagem e seu universo!

Desde America Chavez falando que sonhos nada mais são do que visões de outras versões suas de outros universos paralelos, ou o fato dos portais criados por ela tomarem o formato de uma estrela – uma imagética que se encontra no limiar do fantástico e o cafona.

Assumindo bizarrices quadrinhescas de forma comedida, sem soar galhofa, coisas que Raimi fez tão bem com seus Homem-Aranha, é trazido aqui em estilo. Nada em frente da câmera é pra ser levado a sério, mas é o que é: o artificial literário popular sendo traduzido através da linguagem popular do cinema. E no caso de Raimi, sua linguagem é o terror! Pois quando o filme mergulha na loucura de suas inspirações inusitadas, com Raimi resgatando todo seu catálogo de terror que vai desde a trilogia Uma Noite Alucinante à Arraste-me para o Inferno, o filme se torna uma delicia de se assistir!

O MULTIVERSO DO HORROR

Uma bela bagunça que se implode em tela com experimentações com a câmera, o tom do filme que pula do genuinamente dramático pro brega, rindo de si mesmo, e tendo mais sangue que qualquer filme do MCU jamais se viu! Com jump scares genuínos – e até brincalhões, imagens sobrepostas uma na outra, zoom ins, travellings de câmera agressivos, câmera em primeira pessoa que nem as que Raimi filmava o ponto de vista do demônio em Uma Noite Alucinante – aqui o próprio demônio é Wanda.

O filme é sem dúvidas repleto de elementos de terror – o que muitos vem exaltando o filme por realizar; e talvez se importe mais na execução estilística do mesmo do que conseguir construir genuinamente um filme de terror. Embora momentos de surpreendente brutalidade aparecem aqui ora ou outra, entregando o que é sem dúvidas o filme mais violento dentro do MCU.

Com direito a zumbis, demônios, possessão, violência que vai de pessoas sendo queimadas vivas, cabeças implodindo por de dentro, um senhor Fantástico mal sendo introduzido no MCU e já virando macarrão de blueberry. E também o mais carregado de humor negro muito autoconsciente, quase fazendo o fã de Uma Noite Alucinante que esteja assistindo a esse filme pensar ser uma continuação perdida da trilogia. Embora com que, nada realmente chegue aos pés da cena do hospital em Homem-Aranha 2 em relação ao nível real de terror tangível, mas você pode definitivamente ver que é o mesmo diretor por detrás!

Realmente abraçando uma dinâmica de terror, até na forma como ele flerta tanto com o slasher, com Wanda se tornando quase um Jason Vorhees de saia e sem máscara; e o filme de possessão que roubam duas das melhores cenas do filme: um sorrisinho sarcástico de Wanda para a câmera quebrando a quarta parede, e um Strange zumbificado entrando em ação como se fosse a capa de um álbum de Metal, pesado alçando vôo com demônios substituindo sua capa.

Não só reforçam a assinatura de quem está por detrás da câmera como o caos presente a cada instante, a loucura caótica brutal que se espalha por aqui, a violência descontrolada de Wanda na perseguição de Strange, uma realidade de pesadelo sem começo nem um fim claro para sua loucura – até transformando aqueles finais abertos habituais da Marvel vazios em algo estilisticamente significativo… e acredite em mim, o último frame aqui vai se cravar na sua mente!

Todas as cenas do filme o assim são de fato, pelo quão bem são dirigidas, graças à clara paixão que está aqui presente, que carrega um tom rústico quase artístico em algumas cenas, pela sensação genuína de clima e atmosfera que o filme cria, com cenas cruzadas uma em cima da outra, duas realidades alternando entre si, criando um clima tanto alucinógeno quanto carregado de emoção.

Não só do luto de Wanda que atinge aqui seu nível mais sombrio de descarrego, como também no conflito pessoal de Strange que alcança um tom surpreendente tocante com a presença de romance nas cenas que ele compartilha com Christine, mas especialmente sua variante que ele conhece e encara como seus erros foram compartilhados, em diferentes níveis, por seus outros ‘eus’ em diferentes realidades.

Cenas que te remetem imediatamente à relação Peter e MJ dos seus filmes do Aranha, com aquela breve pausa de troca de sentimentos que não poupa no romantismo presente no diálogo. E por mais que McAdams não esteja bem a vontade no papel, é Cumberbatch que carrega essas emoções de forma contundente, só revelando ainda mais o peso e o valor do ator nesses filmes! Pois por debaixo de toda a bela cafonice presente aqui, e que escondem boa parte dos resquícios do padrão Marvel, há também um bom filme de dramas e traumas pessoais!

CONFRONTANDO SEU REFLEXO

Interessante notar como os filmes anteriores da Marvel que giraram em torno da ameaça do Multiverso se concentrando em histórias focadas no estudo de personagens: Wanda em Wandavision enfrentando seu luto com sua própria realidade criada para escapar da dor; Loki confrontou sua mortalidade e falhas profundas como um personagem tentando reescrever seu próprio destino; Peter em Sem Volta pra Casa aprende com seus reflexos de outras realidades, que atravessar o sofrimento e a dor são passos necessários para se tornar o seu melhor eu;  E agora o Doutor Estranho em Multiverso da Loucura mais uma vez voltando o foco para o indivíduo no centro de tudo e de toda grande ameaça em escala multiversal.

Não é nada de novo, original ou sequer marcante para nenhum desses projetos, nem muito menos para este, pois aparentemente vivemos em uma época em que os embates existenciais voltam a tomar forma em tantas narrativas diferentes, especialmente nas histórias em quadrinhos. Um reflexo dos tempos em que vivemos onde nosso lugar neste mundo parece apenas mais disperso em significados sem rumo?! Ou, neste caso, simplesmente porque Raimi sabia, desde o primeiro Homem-Aranha, que esse sempre seria o maior desafio do herói a enfrentar: ele mesmo!

Isso não é levado a nenhum nível complexo, mas lida com isso com um cuidado genuíno, um pouco brega e sentimental, apenas para tornar suas emoções mais expressivas e reais na maneira como as sentimos. Colocar Strange para enfrentar seus próprios demônios – quase que literalmente ao ponto de assumir o controle deles e transformá-los em sua capa e voar para a batalha. Tentando reescrever seus erros, não apenas de si mesmo, mas de seu legado através do multiverso, enfrentando a si mesmo, confrontando seu fim inevitável, vítima de seu próprio ego, e tentar ser melhor por seus próprios méritos.

Seja com ele literalmente tendo sua luta final com uma de suas variantes amaldiçoadas por seus erros, ou tendo que possuir o corpo morto de outra para ter sucesso onde aquele falhou – salvando a America e dando a ela a chance de aprender a controlar seu poder, com a confiança dada por Strange em um momento que é ao mesmo tempo tocante e fodão por tê-lo completamente zumbificado dando uma boa conversa estimulante de mentor para aprendiz – e dando um piscadinha para a câmera!

E, finalmente, respondendo à pergunta que lhe é constantemente lançada ao longo do filme: ele não está feliz, e tá tudo bem! Porque a felicidade não é um pesadelo para controlar ou sobreviver, é para superar sua própria realidade e seu peso. Aceitá-lo, sem mudanças, para se assim poder ser feliz no futuro, ou ter a inspiração de buscar essa felicidade!

Algo que Wanda não consegue compreender para si mesma, tentando roubar a realidade de uma de suas variantes apenas pela chance de ser feliz que há muito lhe foi perdida tempo, ou melhor: se recusa a procurar qualquer outra maneira de enfrentar sua dor. Wanda não está tão longe de ser tratada como Doutor Octopus em Homem-Aranha 2 (até mesmo seu sacrifício final lembra muito o mesmo), nem o Duende Verde de Dafoe, porque não apenas Elizabeth Olsen está agindo claramente tomando direção do cara que criou esses dois vilões icônicos em a tela, inspirando a atriz a se permitir soar um pouco brega e cafona sem perder o peso de sua seriedade em suas motivações.

E ela está claramente divertindo horrores aqui sendo má, impondo uma presença ameaçadora real, de personalidade volátil, engraçada e sem dúvida mais memorável do que a heroína sem sal que ela era antes, e no final, pagando o preço por isso. Finalmente confrontando as consequências de suas decisões em um trágico reconhecimento de suas falhas, que pode soar clichê no papel, mas caramba se não é bem dirigido!

Porque, apesar de tudo de fraco e ruim em Wandavision, a série tinha sim a meada e o cenário perfeito para encabeçar uma história de origem/transformação em vilã para Wanda Maximoff, mas por terem terminado com medo de acabar em uma nota sombria, basicamente dando uma bela passada de pano para suas atitudes moralmente inescrupulosas de escravizar uma cidade inteira para alimentar sua ilusão e confrontar seu luto vendendo como: uma atitude mal compreendida, e tudo de culpa recaindo na bruxa roxa malvada.

Aqui, felizmente, Raimi ignora alguns desses fatores e se concentra no monstro corrompido que ela se tornou após esses eventos, e tira proveito disso no palco, criando uma vilã imprevisível, imponente e até temível. Na verdade, pode até incomodar o tratamento de Wandavision ao personagem!

Aqui, felizmente, Raimi ignora parte desses fatores e foca no monstro corrompido que Wanda se tornou depois desses eventos, e toma perfeito proveito disso em cena, criando finalmente uma vilã imprevisível, imponente e de fato temível! E até, dar uma leve provocada no tratamento que Wandavision deu a personagem!

Onde no início do filme Strange faz exatamente o que Monica Rambeau fez no final de Wandavision, dando a Wanda um passe para o que ela fez pois diz entender o que ela passou, já que ela é um deles afinal, e nisso quase entregando a America de bandeja para Wanda porque ele não tem a capacidade de pensar criticamente sobre esses eventos – assim como todos os fãs de Wanda que gritaram como loucos a cada nova morte que ela impiedosamente ceifava aqui no filme. E ele só não faz porque Wanda comete um erro muito óbvio de mentir, então ele sabe que está mexendo com um monstro!

O que temos aqui é literalmente um filme do MCU chamando a atenção de outro do mesmo universo por sua falta de coerência, algo basicamente o mais próximo que esses filmes chegaram de ser revistas em quadrinhos porque autores constantemente faziam a mesma coisa no passado entre as novas edições, chamando atenção as más ideias do último e apagando descontinuidade ao ter que lidar com essas consequências em novas histórias. Multiverso da Loucura é exatamente isso!

Tanto que mais tarde, Strange imediatamente ressalta que como alguém com esse nível de poder e um desejo descontrolado, não vai melhorar de uma hora para outra. Com o filme e Raimi, abandonando qualquer pretensão de dar a ela um passe por suas ações, e se você fizer isso, você está apenas forçando!. Está tudo fora do saco agora!

Raimi não deixa nenhum lugar para se suavizar nada do que a personagem faz aqui: matando inúmeras pessoas porque ela quer viajar para um universo diferente para estar com seus filhos que já têm sua mãe, portanto, tentando substituí-la; tudo isso sem pensar duas vezes em ter que matar uma garota inocente que não consegue controlar seus poderes direito.

A ponto de eu achar que o Darkhold acaba sendo apenas uma mera desculpa para suavizar suas ações, e não enfrentar a verdadeira fonte de corrupção em jogo aqui: o amor selvagem de uma mãe por seus filhos! Demente, assustador, mas genuíno, como o terror de Raimi!

A SALVAÇÃO DO MCU?

Talvez o filme ainda esteja muito aquém dos limites para realmente estar entre os melhores do diretor, mas uma espécie de milagre acontece no final deste… você se lembra dele! Das cenas, das falas, das atuações, e isso vindo de um filme do MCU, é um GRANDE feito que poucos o alcançaram! Tudo porque eles deixaram o diretor fazer o que ele sabe fazer e sobreviveu em meio a todo o livro de regras da Marvel.

Muitas vezes, em críticas de filmes recentes do MCU, você vê alguns dos mesmos tipos repetidos de elogios: “soa inovador”; “quebra a fórmula”; “finalmente a Marvel ousando ser diferente”; elogios parecendo quase que desesperados para tentar enaltecer a possível sensação de diversão que o filme novo entregou como se fosse algo novo e de diferencial dentro do panteão Marvel, que no fim se sente como parte da mesmíssima coisa que eles já vem entregando a mais de 28 filmes e 6 séries complementares – que basicamente também são filmes do MCU só que vendidos na Disney Plus – todos com o mesmo padrão de direção, tom, humor, com algumas variações aqui e ali, claro.

Mas que no final das contas, só serve para oferecer aquele bom entretenimento de 2 horas que logo será esquecido quando chegar o próximo filme. No entanto, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura se sente realmente como algo diferente dessa vez, o filme mais não tão MCU desde Guardiões da Galáxia 2, que se mostra diferente, que se é dirigido de forma, se não inovadora, com algo original e criativo por detrás!

Você definitivamente pode se lembrar de todas os diálogos de Homem Aranha: Sem Volta para Casa devido a todo o fator nostálgico carregado ali, e Guerra Infinita ainda é um dos blockbuster mais épicos e ousados dos últimos anos (mesmo que Ultimato tenha arruinado seu final); mas Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é memorável por causa de quão bem executado é.

Pela forma com que é construído, como é filmado, o tom que se assume vagueando livre entre o cômico brega e o terror oitentista e genuínos ares dramáticos, é quase ver uma revista em quadrinho perdida do Doutor Estranho que você acharia no fundão da prateleira, ganhar vida na tela!

Transformando o que poderia ser apenas mais um filme esquecível da Marvel em emocionante aventura e louca que deixa você ansioso por mais de Raimi por trás das câmeras imediatamente! E se o futuro dos filmes da Marvel irão apostar em diretores realmente interessantes e terem o aval para colocarem sua marca de contarem histórias nos novos projetos, então estarei mais do que satisfeito!

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness, EUA – 2022)

Direção: Sam Raimi
Roteiro: Michael Waldron
Elenco: Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen, Benedict Wong, Rachel McAdams, Xochitl Gomez, Michael Stuhlbarg, Julian Hilliard, Jett Klyne, Patrick Stewart, John Krasinski, Hayley Atwell, Lashana Lynch, Anson Mount, Charlize Theron
Gênero: Aventura
Duração: 126 min

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Publicado por Raphael Klopper

Estudante de Jornalismo e amante de filmes desde o berço, que evoluiu ao longo dos anos para ser também um possível nerd amante de quadrinhos, games, livros, de todos os gêneros e tipos possíveis. E devido a isso, não tem um gosto particular, apenas busca apreciar todas as grandes qualidades que as obras que tanto admira.

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