Dentro de um vasto leque de diretores tão promissores trabalhando até hoje e que deixam vários grupos de fãs incansavelmente ansiosos pelo seu próximo projeto, Spike Jonze com certeza deve ser um nome que deixa certas saudades, não emplacando um novo projeto no cinema desde 2013, deixando o questionamento sobre se algum dia voltaremos a vê-lo de volta em uma produção no cinema. Pelo menos até lá teremos seu vanglorioso passado para ser relembrado.
Após anos de uma carreira dirigindo vídeo-clips de bandas como Weezer e da própria Bjork, vários curtas, e tendo um incrível debut no cinema com Quero ser John Malkovich, entre ótimas e subestimadas obras como Adaptação e Onde Vivem os Monstros. Mas o verdadeiro ápice da carreira do jovem diretor só chegaria finalmente em 2013 com o seu maior e melhor filme até hoje: ELA.
Mas por onde pode-se começar a falar do filme em questão? Sobre ser um belo romance moderno? Ser uma bela obra de ficção-científica original em sua premissa e classuda em execução? Ou que tal sobre ser um conto utópico sobre a época do agora em vivemos?! Talvez por aí mesmo.
Com sua trama se passando em uma Los Angeles futurista onde nos deparamos com a vida de Theodore Twombly (Joaquim Phoenix) um tímido e reservado escritor de cartas românticas, que recentemente sofreu com o término de uma relação amorosa com Catherine (Rooney Mara). Com o coração partido, eis que surge um novo e avançado sistema operacional que promete ser uma entidade de inteligência artificial, só que melhor aprimorada ao nível de soar como uma pessoa de verdade e que rapidamente alça o interesse de Theodore. Ao iniciá-lo, ele tem o prazer de conhecer “Samantha”, uma voz feminina perspicaz, sensível e engraçada (Scarlett Johansson), que Theodore acaba se apaixonando.
Não é difícil de rapidamente perceber sobre 9 fato de que ELA é um daqueles raros filmes que usa o seu palco de ficção-cientifica para levantar fortes questões de temas variados. Mas ao contrário de seguir uma linha mais “brusca” sobre a exclusão social como Distrito 9, o poder totalitário em Brazil ou sobre a existência humana como Solaris e 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Jonze busca falar por sutis entrelinhas metafóricas sobre a sociedade viciada e dependente na tecnologia moderna e das relações criadas em redes sociais que se tornam mais verdadeiras do que as ao vivo.
E qual melhor forma de representar isso senão através de uma belíssima sátira romântica? Perfeito. Conseguindo se mostrar bem atual e com certeza vindo a se tornar cada vez mais atemporal nos tempos em que vivemos. Afinal, o que nós humanos temos hoje por nossos celulares, Tablets, Androids, e afins, se não uma espécie de amor viciante. O que se mostra explorado com louvor dentro do que é um genuíno belo romance que se forma entre Theodore e Samantha.
Ao que mostrava um Jonze em seu estado mais inspirado como autor de seus filmes. Onde após anos dirigindo as fantasias modernas autobiográficas de Charlie Kaufman como Quero ser John Malkovich e Adaptação, Jonze agora lidera o seu próprio filme com uma identidade bem sutil de autobiografia (mais sobre isso depois) e com um pródigo roteiro à disposição. De textura bem simples e uma estrutura bem básica e facilmente reconhecível de qualquer comédia romântica por aí, só que com uma penumbra dramática em seus diálogos e que consegue criar uma narrativa tão habilidosa.
Demonstrando que aprendeu muito bem após anos sendo um discípulo de Kaufman na forma com que Jonze trás traços similares ao mesmo por fazer uma mistura de toques de uma fantasia moderna e de lábia tragicômica nas constantes frustrações de Theodore, o que remete à uma naturalidade de diálogos que soam tão realistas e mostram um mínimo toque de Woody Allen.
E o humor sendo uma das especialidades de Jonze ele também não desaponta nesse quesito, adicionando uma ótima dose deste e que não poupa nas sacadas ácidas e até sujas como a hilária cena do sexo online logo no início do filme, e as constantes tiradas sarcásticas de Samantha com uma carismática atuação vocal de Scarlet Johansson. Isso tudo para mais também saber criar o drama que sua história evoca para arrancar lágrimas de olhos de qualquer um.
Mas a beleza da coisa não está só pela sempre garantida excelente performance de Phoenix, com uma doçura interminável em suas palavras carregados de frustração, mas com uma personalidade de nerdão bobalhão quando sua felicidade ao lado de Samantha começa à florescer. Que é trazida à vida pela exuberante atuação vocal de Johansson, e até repara-se nela uma pequena homenagem ao HAL de “2001” na personagem de Samantha, só que numa versão totalmente sensual e transbordando carisma em sua lábia tão doce e cativante que o próprio público se apaixona por ela junto de Theodore.
O que é um adereço narrativo de caráter proposital e muito interessante em que Jonze se usa em seu texto para criar uma personalidade de “amor universal” que se constrói em volta do relacionamento do casal. Pois reparem que quando Theodore compra o sistema de Samantha, que não é nada mais nada menos que um simples aplicativo, ele pode escolher entre este ser de perfil masculino ou feminino. E a personalidade romântica e sensível de Theodore cabe para uma percepção onde ambos homens e mulheres podem se relacionar e captar a sua escolha, independente de qual for.
Onde até o colega de trabalho Paul (Chris Pratt) elogia Theodore ao dizer em voz alta que a sensibilidade de Theodore o assemelha como a de mulher, fazendo assim possível que todos sejam capazes de se identificar, independente de gênero sexo ou opção sexual, com o amor entre dois seres. Um ser artificial, um ser de carne e osso, pertos ou longes um do outro, o amor ainda será capaz de ser puro e verdadeiro.
Equilibrado ainda com a visão mais cínica e crítica nas suas entrelinhas na forma com que sutilmente mostra que o amor que Theodore sente por Samantha, é uma representação quase poética e metafórica no contexto do filme sobre posse, afixação e dependência que nós somos capazes de ter pelos aparelhos tecnológicos ou as relações que criamos através deles. E o emprego de Theodore como escritor de cartas românticas é uma clara amostra do afastamento social que as pessoas de hoje têm entre si, principalmente no amor, e a incapacidade de se expressar de forma social e agora, nesse futuro utópico, até através da escrita onde humanos chegaram ao ponto de precisarem de outrem para poder se expressarem.
A própria direção de Jonze ajuda nisso, construindo uma Los Angeles montada com toques utópicos de cidades como Shangai. E os planos de câmera por onde Theodore passa denota de forma impressionante pessoas e mais pessoas mexendo e falando no celular, de forma quase assustadora. Surpreendendo ainda com uma belíssima direção de arte detalhada em uma coloração distinta e que destaca as cores mais saltitantes em cena que lembra a usual estética dos videoclipes de Jonze, mas integrados dentro de um visual cinematográfico realmente belo.
Conseguindo aspirar e demonstrar muitos dos próprios sentimentos das situações em cada cenário por onde os personagens passam em cada ponto da história. Seja no apartamento de Theodore que inicialmente é filmado em quase plena escuridão mas que logo se ilumina quando Samantha é introduzida dentro do filme e na sua vida, com os reflexos da manhã refletindo no quarto do protagonista como se revelasse um novo ambiente esperança. Ou quando vemos a cidade em uma penumbra acinzentada e fria no início, para logo se transformar em um cenário iluminado pelo sol como fosse um holofote reluzente.
Mas claro, também sabe revelar tudo isso através das ótimas características no qual ele consegue construir em ambos Theodore e Samantha e seu relacionamento no decorrer do filme. E Jonze impressiona por saber escrever o passar pelas várias fases de um relacionamento de forma extremamente realista, com o início sendo quase que um passeio nas nuvens de alegria entre ambos Theodore e Samantha com ambos se conhecendo melhor a cada conversa; os desabafos íntimos; seguido da primeira “noite de amor”, um dos momentos de beleza mais íntima do filme; e a primeira viagem juntos que mais remete à uma lua de mel, e é quando o filme começa a tocar em temas mais sensíveis.
Como o fato de Theodore aos poucos começa a se frustrar com um relacionamento que parece tão perfeito, com Samantha lhe sendo quase que uma perfeita subserviente de seus desejos, ao ponto de contratar uma garota de programa para ele fazer sexo enquanto pensa nela, lhe mostra apoio no trabalho ao enviar suas cartas para um autor de nome e publicar um livro com elas.
Mas ele parece insatisfeito, cansado e decepcionado com o marasmo, se entristecendo pela falta de um relacionamento com toque e sentimentos. Onde vemos a mudança repentina de humor de Theodore que vai de um solitário carente de companhia e ainda sofrendo pelo térmico com sua ex para um otimista apaixonado, tudo para no final as consequências da forma como subestimou seus sentimentos, levando o filme por um caminho de grau bem mais complexo e também íntimo para o diretor.
Afinal não deve ser nenhum segredo reparar na linha bem autobiográfica que o filme carrega para si tendo em conta o quanto de familiar ELA possui com o filme Encontros e Desencontros da diretora Sofia Coppola cujo Jonze já foi casado e que não terminaram da forma mais feliz. E talvez um principal bom motivo pelas dores de frustração e arrependimento que o filme carrega conseguirem ser tão palpáveis.
O que faz da resolução final, a despedida de Samantha que decide desligar o seu sistema junto das outras inteligências artificiais do mundo para permitir que as pessoas possam tentar depositar o amor que davam à eles, entre si; uma declaração de desapego e superação, não só por Samantha mas pelas mágoas ainda guardadas de sua ex Catherine, mas que agora chegou a hora de mudar.
Fazendo do final (e o filme como um todo) quase que uma carta de amor, perdão e despedida, tanto de Theodore como de Jonze para o seu grande amor do passado que infelizmente não resultou em felicidade plena, mas que agora talvez aceitando os seus erros e mandando um verdadeiro e eterno amor que Samantha lhe ensinou, mesmo que não mais juntos, é que eles agora podem seguir em frente e talvez encontrar um novo amor.
Remetendo fortemente ao tema do amor encontrado na dor (e vice-versa) que Encontros e Desencontros já abordara e ELA quase se torna sua continuação espiritual e apaixonada. Onde também de forma similar seus protagonistas, afundados em sua solidão e decepções causadas pelo amor, Charlotte (Scarlett Johansson, coincidência?!) em Encontros e Theodore em ELA, e que encontram o amor através de uma amizade. Com Bob (Bill Murray) em Encontros e Amy (Amy Adams) a amiga fofa de Theodore.
Difícil haver outras palavras para classificar “ELA” do que senão como uma bela e pequena obra-prima dessa década e com certeza o melhor filme da carreira de Jonze como diretor. Um filme que demonstra a possibilidade de perdermos nossas capacidades de socializar e amar no mundo de vícios e reclusão a qual vivemos. Tudo criado através de uma belíssima e crível história romântica que transmite sentimentos verdadeiros que nos conquista totalmente e nos prende do inicio ao fim entre risos e lágrimas. O que faz do filme, e ambos Theodore e Samantha, totalmente inesquecíveis!
Ela (Her, EUA – 2013)
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Spike Jonze
Elenco: Joaquim Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Chris Pratt, Rooney Mara
Gênero: Drama, Romance, Ficção Científica
Duração: 126 min