Depois de um bom tempo assistindo aos primeiros filmes clássicos do Godzilla da Toho, sem falar claro dos vários outros filmes que o primeiro grande filme de Ishirô Honda inspirou, mas mais sobre eles depois. O fato da questão inevitável que vai aparecer à qualquer momento é, aonde mais se é possível levar o personagem depois dele já ter sido retratado como uma alegoria à ameaça nuclear; enfrentado um quadrúpede jurássico; o próprio King Kong; e uma mariposa gigante e seus dois bebês?!
Bom, um histórico com mais de trinta filmes responde por si só, e eis que chegava aqui em Ghidorah, O Monstro Tricéfalo talvez uma completa reformulação de ares para o clássico personagem e o universo em que vive, mesmo que ainda pise em solo muito familiar dos filmes passados. Pois foi aqui em que o mundo poderia ver pela primeira vez, não só quatro monstros gigantes se enfrentando simultaneamente no mesmo filme, mas também a criação de um dos primeiros e maiores universos cinematográficos compartilhado do cinema!
Essa afirmação já se comprova no fato de que esse fora o primeiro filme a introduzir o monstro título, ao contrário dos outros onde, além do Godzilla, até Mothra e Rodan tiveram seus filmes introdutórios, ambos dirigidos também por Honda (Mothra, a Deusa Selvagem e Rodan!… O Monstro do Espaço) bem antes deles se juntarem em crossover em filmes com o Godzilla, e agora todos finalmente aqui juntos dividindo a tela e dando continuidade direta de cada um dos filmes anteriores de cada personagem, pena que o King Kong não pode comparecer nessa vez.
Por consequência (e propositalmente) grande parte do “desenvolvimento” característico de Ghidorah e seu papel no filme, constantemente sendo classificado como “destruidor de mundos’ é rapidamente estabelecido aqui através das suas ações destrutivas ao longo do filme e que facilmente cimentam a grande ameaça que o vilão/protagonista é, praticamente o Thanos do universo de monstros da Toho (ou universo Godzilla se preferir).
O que mostra como Honda tenta evitar (em parte) qualquer perda de tempo no que diz respeito em mostrar o que o público quer ver que são seus monstros se digladiando sem fim. Aplicando o mesmo tratamento com seus outros personagens monstros como Rodan quando tem seu primeiro encontro e confronto com Godzilla, não perdendo tempo e conseguindo mostrar a rivalidade que se cria entre ambos os kaijus por um bom terço do filme antes da chegada de Mothra e a aparição de Ghidorah para apimentar as coisas.
Pode parecer e é verdade, pois estamos mesmo tentando focar o assunto o máximo nos monstros que são a melhor parte do filme e evitar o máximo de falar sobre os personagens humanos pois, sem exageros, são os momentos mais catatônicos e enfadonhos do filme ao ponto do tédio, o que toda a meia hora inicial do filme acaba sendo.
Não que isso seja culpa do seu diretor que, como já dito em críticas passadas, sempre fizera um trabalho técnico acima da média na forma com que lida com essas cenas e arcos humanos, por mais que seu roteiro não. Sempre com uma montagem bem cimentada em ritmo nada apressado nem vagaroso, e sempre usando tomadas bem limpas e suaves que captura os espaços dos personagens se contrapondo a escala gigantesca da luta entre os gigantes, etc. Momentos desinteressantes, mas ao menos podemos dizer que são bem filmados.
Mesmo que não ajude à diminuir o fato de que estamos perante uma trama completamente idiota, que vai desde misturar uma espécie thriller político/policial na investigação de tentativa de assassinato contra a Princesa de ‘Sergina’, junto com a fantasia vinda dos filmes de Mothra, constantemente focando nas pequenas asseclas da grande Mariposa deusa que a chamam com seu canto e conseguem entender o que os monstros falam, e ainda com ficção científica tanto no fato de Ghidorah ser um monstro vindo do espaço quanto na suposta entidade marciana se incorporando dentro do corpo da tal princesa e que prenuncia a chegada de Ghidorah e toda a destruição que ele trará junto da imensa batalha que irá se instalar entre os monstros.
Até te faz até pensar sobre como uma franquia que se iniciou como uma alegoria brilhante e impactante sobre as consequências da guerra, e que agora virava esse filme dos trapalhões asiático tentando se levar à sério. Mas é aquele velho ditado, quem raio somos nós ou qualquer um para querer criticar a bulhufas do roteiro de uma trama oca que apenas serve como palco bônus para o glorioso combate de monstros gigantes que o filme entrega, e que já bastava para fazer o filme ser delicioso de assistir, o que nesse quesito seu diretor e filme não falham nem um pouco.
Ao trazer os quatro icônicos monstros juntos em um filme, não só Ishirô Honda cumpria um ambicioso feito ao formar esse universo compartilhado onde cada um dessas figuras monstruosas nipônicas construíam não só uma história própria e agora a compartilhavam o mesmo filme. Pode não ter sido o filme mais bem executado para isso, mas se mostra como um belíssimo exemplo da grande imaginação e a inocência da época e com qual esses filmes eram feitos, capazes de encantar ao público.
E quando temos momentos como quando a Mothra interrompe uma intensa luta entre Godzilla e Rodan para os três terem uma digna conversa de bar refletindo seu papel no mundo dos humanos ao desabafarem que sempre foram mal tratados pelos humanos e que eles não merecem salvação nenhuma, são os que fazem todo o filme valer a pena de se assistir.
Que se dane um rolê para comer schwarma na pós créditos do primeiro Vingadores, fazer o Godzilla mostrar que até ele tem sentimentos e frustrações é simplesmente impagável, o mesmo serve para Rodan cujo que até então era só um mero saco de pancada. Tudo isso que serve como gancho “narrativo” quando eles em seu egoísmo monstruoso se recusam à ajudar os humanos contra a destruição massiva que Ghidorah está causando, Mothra parte sozinha para enfrentar o grande monstro.
E ao verem a coragem e resiliência da jovem minhoca e sua especial habilidade de levar porrada sem dó, os dois gigantes se unem à pobre coitada para enfrentarem o seu maior desafio até então. O que marcava a primeira vez que veríamos o Godzilla assumindo o cargo de protetor da raça humana e não mais a grande ameaça destrutiva que fora retratado até então. Sem deixar de mostrar isso em toda sua glória monstruosa.
Com Honda voltando a fazer um trabalho impecável no comando da ação monstros contra monstros e de todas as calamidades destrutivas que eles causam em seu caminho com outro formidável trabalho de cenários em miniaturas misturado com os cenários práticos. Novamente passando a perfeita alusão de escala épica e massiva que a batalha dos monstros gigantes oferece, agora com quatro dominando a tela e com tudo sendo destruído enquanto os quatro gigantes trocam golpes e raios, com enquadramentos tortos, planos abertos à distância, tudo dando a perfeita noção da grandiosidade dessas batalhas com tanta simplicidade técnica.
Que fazem de Ghidorah, O Monstro Tricéfalo uma inegável diversão escapista que funciona mesmo que contenha sua boa dose de momentos enfadonhíssimos, mas aí anos depois descobrimos que tudo realizado aqui até então era apenas um ensaio para o que Honda iria fazer anos depois com um compêndio de monstros ainda maior, em O Despertar dos Monstros.
Ainda falaremos dele aqui, mas não deixe de conferir a primeira vez que Godzilla mudou sua violenta natureza para se tornar um protetor da humanidade e fez amizade com uma minhoca e um pterodátilo gigantes para esbofetearem um dragão de três cabeças vindo do espaço, e todos tem um final feliz. Só pulem todas as partes chatas com os humanos e você terá uma experiência divertida.
Ghidrah, O Monstro Tricéfalo (San daikaijû: Chikyû saidai no kessen – 1964, Japão)
Direção: Ishirô Honda
Roteiro: Shin’ichi Sekizawa
Elenco: Yôsuke Natsuki, Yuriko Hoshi, Akiko Wakabayashi, Emi Itô, Yumi Itô, Hiroshi Koizumi, Takashi Shimura, Akihiko Hirata
Gênero: Ação, Aventura, Fantasia
Duração: 93 min