Touchée Pixar”. Esta deve ter sido a frase proclamada pelos animadores e produtores da Dreamworks SKG após o lançamento de “Shrek”. A primeira carta do triunfo havia sido lançada e a Pixar sabia que aquilo era apenas o início de seu pior pesadelo. Em 2001, Mike, Sully e Boo não conseguiram impedir que o Oscar acabasse nas mãos de Shrek, Fiona e Burro. Assim, a interminável lista de prêmios de animação da Pixar foi abalada pela primeira vez. E novamente, neste ano, a Dreamworks tem a maior chance de ganhar o Oscar de Animação de 2011 com “Kung Fu Panda 2”. A série de fatores não poderia ser melhor. Daqui onze dias, a franquia mais fraca da Pixar retorna – “Carros 2”. Além disto, o pingüim mais chato do mundo marca sua volta também neste ano em “Happy Feet 2” e “Rio” não tem poderio narrativo para desbancar o panda simpático de seu merecido prêmio.
Antes de Po tornar-se o Dragão Guerreiro e antes da formação dos Cinco Furiosos, a cidade de Gongmen era governada por um casal de pavões. Eles eram adorados pela população pela invenção dos fogos de artifício. Entretanto, o filho deles não iria seguir um caminho tão luminoso e bonito como os brilhantes fogos que haviam criado. Shen aprimorou a pirotecnia de seus pais e criou a mortal e explosiva pólvora, além disto, fez uma máquina capaz de destruir tudo em seu caminho. Agora, a liberdade da China e a arte do kung-fu é ameaçada. Entretanto, Shen não esperava que um panda gorducho e seus cinco amigos furiosos estão a sua procura para deter seus planos maléficos. No meio de sua jornada, Po também descobrirá muitas verdades sobre sua história.
Emocionante, simples e sombria
Os roteiristas Jonathan Aibel e Glenn Berger do filme original regressam para escrever a divertida história do novo filme. Eles seguem a linha narrativa adotada por muitos roteiristas que escrevem a continuação de sua criação. Geralmente o primeiro filme conta com menos ação, mas sim com a apresentação e o desenvolvimento de seus personagens. Já, nesse, acontece o inverso. Muita ação, aprofundamento no protagonista, no coadjuvante e no novo antagonista e introdução de novos personagens. O melhor exemplo disto é a franquia “Transformers” – em uma tarde chuvosa experimente assistir os dois e confira o resultado pecaminoso.
Felizmente, os roteiristas do filme conseguiram escapar de um desastre pela narrativa bem simples, mas muito cativante. Extremamente agitado com inúmeras cenas de ação que empolgam o espectador, mas conta também com desenvolvimentos satisfatórios em alguns personagens. Po é o mais desenvolvido durante o filme. Com seu arco narrativo, os roteiristas elaboram o famoso “golpe da lágrima” – é preciso ter um coração de pedra para não se emocionar com a trágica origem do panda ou com a fantástica relação com seu pai adotivo, Mr. Ping.
Além disto, a sugestão que lançam aos espectadores é bem significativa. Eles abordam de maneira muito sucinta a atual extinção dos pandas e sobre a adoção, geralmente vista como um ato assustador por muita gente. O roteiro também tem oportunidades de amadurecer a essência do protagonista, mas na hora H utiliza uma piada pastelão devolvendo o ar de palhaço imaturo para Po o que é bem desapontador para o espectador ávido por atitudes inéditas, não renovadas. Fora isso, o corpo narrativo é bem semelhante ao do filme anterior em que o objetivo de Po era ser aceito na sociedade, despertar o espírito do Dragão Guerreiro e deter Tai Lung. Já neste filme, ele tem a missão de descobrir suas origens, encontrar a almejada Paz Interior e derrotar Shen. Mas não deixe se enganar pela estrutura reciclada da narrativa. Apesar disto, conta com momentos completamente únicos e originais.
Muito da originalidade do filme vem dos novos personagens. Lorde Shen é o antagonista mais despreparado que já vi. O pavão é histérico, inseguro, desesperado e covarde vivendo a beira de um ataque de nervos dos quais muitos são causados pelo hilário Chefe dos Lobos, aliado do vilão. A outra adição bem-vinda é a da cabra cigana Falamacia – personagem vital para a evolução da narrativa de Po e Shen. Até o breve Mestre Rhino consegue elevar o ânimo do público em seus poucos minutos.
Enquanto Po é plenamente desenvolvido, os seus side-kicks são completamente esquecidos pelo roteiro. Eles estão envolvidos na história para ajudar o protagonista e servir de alívio cômico. Com exceção de Tigresa, os outros quatro furiosos – Garça, Macaco, Louva-a-Deus e Víbora, são apenas alegóricos. O teor cômico do filme é extremamente elevado – é impossível sair da sessão sem dar umas boas risadas. Carregadas de ironia e elementos-surpresa, as piadas são inteligentes e muito bem manjadas principalmente por lembrar que o filme é na verdade uma fábula. Ou seja, os protagonistas são animais falantes e, com isso, o roteiro aproveita para criar piadas a respeito da natureza dos bichos.
Algumas características do filme anterior retornam para a sequencia sendo a principal delas a conservação dos habitantes do Vale da Paz. É uma piada muito discreta que poucos perceberão, mas os coelhos, patos e porcos que dão vida a cidade – são pratos típicos da culinária chinesa – novamente a ironia se faz presente. A ambientação histórica também é muito interessante enriquecendo a trama. A pólvora foi criada na China durante a dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.). Ele também aproveita para citar sutilmente o Yin-Yang.
Apesar das muitas qualidades, o roteiro conta com elementos extremamente clichês. O maior exemplo disto é a história da origem de Po. Além dos clichês, conta com a previsibilidade assustadora de seu clímax – apenas com oito minutos de projeção já sabia como ia terminar o filme. Isso acaba desmoronando completamente o charme e entretenimento do ato final. Existe uma falha tremenda no meio da projeção que chega a assustar. Lá pelas tantas, Garça visivelmente quebra sua asa e pede ajuda para os amigos. Logo na cena seguinte ele já está voando em pleno esplendor. É por essas razões e o descaso com os demais personagens que o filme peca e decai sua notável qualidade.
Alegorias da voz
Se existe uma coisa mais difícil de analisar em um filme, além da fotografia, certamente é o trabalho de vozes dos atores em animações. Como a dublagem é muito natural, é praticamente impossível aguçar a audição o suficiente para juntar informações e escreve-las no parágrafo. Por isso estou distraindo você, caro leitor, com esta simples introdução a análise das vozes que imortalizam os personagens. Já aviso que a assisti a versão legendada então os comentários dirigem-se a mesma.
Jack Black volta a dublar Po e consegue achar espaço para surpreender e ensurdecer o espectador. A maioria de sua dublagem resume-se a gritar como um louco e emanar várias onomatopeias sendo a mais famosa o quote do filme “Skatoosh!”. Ele é extremamente caricato deformando diversas vezes sua voz para inserir uma dramaticidade ou comicidade a cena. Entretanto, o mais notável de seu trabalho é a energia que consegue transmitir a plateia que se diverte a todo instante com o audível exagero do ator.
Angelina Jolie continua a apostar na fala truculenta, ameaçadora e serena de Tigresa. Infelizmente, Dustin Hoffman, Seth Rogen, o ótimo David Cross, Lucy Liu, Jackie Chan, Jean-Claude Van Damme e Michelle Yeoh não contam com muito tempo em cena para desenvolver algo inédito, sendo que a participação destes atores é confinada a apenas seletas frases.
Quem definitivamente rouba a cena é Gary Oldman dublando Lorde Shen. Ele sim teve uma notável preocupação em criar um sotaque original para o personagem trabalhado. Algumas vezes, altera a elocução da fala do personagem puxando para um tom indescritível. O ator sabe trabalhar e regular muito bem a dicção ameaçadora e carregada do personagem para transformá-la num piscar de olhos em uma voz esganiçada, estridente e desesperada que diverte o espectador. De praxe, cria uma risada maligna completamente única.
Outra surpresa agradável no elenco milionário do filme é o modesto James Hong que empresta sua voz ao pai adotivo de Po. O trabalho de sua voz é um dos mais elaborados conseguindo emocionar o espectador pela transmissão muito competente do amor que o personagem sente pelo filho. Destaque também para Danny McBride em sua dublagem como Chefe dos Lobos.
Novos contrastes
A fotografia cria novos parâmetros ao se arriscar em contrastes inéditos. A paleta de cores escolhidas pelos animadores é variada, mas é perceptível o predomínio do amarelo e do vermelho. A iluminação morna satura o amarelo quando a trama focaliza Po e os Cinco a fim de tornar o ambiente mais seguro e amistoso. O amarelo também é usado inteligentemente durante o belo flashback de Mr. Ping concebendo um ar retrô a cena. Porém, todo jogo de iluminação é alterado assim que Shen aparece. No mesmo instante, os céus ficam em tom vermelho vivo contrastando com a branca e pálida penugem do pavão denotando uma dimensão de maldade e frieza abrangente para o antagonista. Além disto, o filme conta com segmentos onde a iluminação torna-se sombria. Ele conta com diveros segmentos noturnos exteriores e mesmo com os óculos 3D o espectador consegue desfrutar as belíssimas cenas. Isto acontece graças ao truque de iluminação mais manjado do cinema – a famosa “luz da lua”, só que neste caso usada em uma animação. Durante estas cenas os animadores enchem o céu de nuvens a fim de deixar a iluminação mais translúcida e suave. Novamente outro contraste é criado. Enquanto um lado da composição da imagem é iluminada pela cor cinza esverdeada que furam as nuvens, o outro reflete a luz avermelhada que escapa das janelas da torre de Shen.
Os artistas gostam de inserir fontes que iluminam indiretamente o cenário. Isto é fácil de observar durante as cenas da prisão, na subida de lance de escadas e no covil de Mestre Shifu. Graças a interessante escolha, os desenhistas tiveram a oportunidade de brincar com sombras, além dessas terem um cuidado especial na animação. O mais fascinante da modelagem da luz e sombra do filme, não é a incidência desta nos corpos dos personagens, mas sim nos cenários. A iluminação dos cenários é estonteante. Cada um recebe sombreamentos diferenciados dependendo da angulação da câmera.
Diferenças? Nunca mais!
Se o departamento de animação gráfica da DreamWorks tinha que provar que tinha potencial tecnológico para equiparar-se com a Pixar, definitivamente aconteceu neste filme. Cada filme da DreamWorks tem um ponto alto na animação. Em “Como Treinar Seu Dragão” existia o cuidado detalhado nos olhos, nas escamas dos dragões e principalmente da física da água e do fogo, mas desapontava assustadoramente no polimento porco conferido aos personagens figurantes que preenchiam cada cenário. Já em “Megamente” o cuidado era voltado à reação dos tecidos com o cenário e seus elementos, mas novamente a animação derrapava na recriação dos olhos inexpressivos dos personagens. Entretanto, a tecnologia deu um salto gigantesco e o mais beneficiado com isto é o novo “Kung Fu Panda”.
Absolutamente tudo é detalhado ao extremo, desde pêlos, olhos, tecidos e o visual arrebatador de cada cenário. A recriação da geografia chinesa medieval é de cair o queixo graças à grandeza das florestas, planícies, morros, cadeias montanhosas e, até mesmo, a concepção artística das cidades que os protagonistas visitam. Entretanto, o departamento de arte realmente impressiona no visual da torre de Lorde Shen. Absolutamente impecável, conta com a clássica e belíssima arquitetura chinesa. Lá ocorre uma das melhores cenas de ação que lembra ligeiramente um segmento muito parecido do novo “Transformers 3”.
A composição física dos cenários também é fantástica. Com o mínimo de esforço, o espectador perceberá que todos cenários contam com uma atmosfera única. Geralmente, os animadores inserem elementos naturais como a neblina, o vento, o pó, riachos, mares – a física da água é significativa durante o clímax, repare. Entre vários outros a fim de assemelhar o desenho com o mundo real. A direção artística é apenas a base do filme. A animação é o aspecto mais surpreendente e inacreditável. O movimento dos personagens nunca fora tão fluido e natural como neste caso dando um dinamismo fantástico as agitadas cenas de ação. As expressões faciais também são uma surpresa pela variedade de caretas encaixadas nas faces dos bichos, principalmente na de Po.
Quando o espectador pensa que não existe mais nenhuma surpresa no filme, finalmente Lorde Shen entra em cena. A caracterização proporcionada pela arte da produção é marcante principalmente pela cauda do pavão, hipnótica de tamanha beleza. As expressões do antagonista também são minuciosamente definidas retratando cada emoção vivida pelo personagem. Até mesmo o visual original das balas que a arma de Shen dispara são belos. A mistura perfeita das cores vibrantes dos fogos de artifícios dá vida aos disparos.
O núcleo criativo do filme também não se limitou apenas a desenhar em computação gráfica. Durante o longa, o espectador encontrará três estilos de desenho animado. O primeiro é baseado no traço das antigas gravuras encontradas em papiros e vasos chineses descobertos em sítios arqueológicos. A animação também muda de forma durante as epifanias de Po baseando-se no traço do mangá – marcante pelo tamanho desproporcional dos olhos. O terceiro estilo é a animação computadorizada.
Sonho de consumo
Pasmem, amantes de trilhas sonoras. A dupla fantástica de compositores, Hans Zimmer e John Powell, retornam para o delírio de seus ouvidos. Zimmer e Powell tem uma história de grandes conquistas musicais juntos da DreamWorks. Zimmer trabalhou na mediana trilha de “Madagascar” enquanto Powell conduziu a imensurável música levemente nórdica de “Como Treinar seu Dragão”.
Neste filme retornam com outra explosão de criatividade. Totalmente inspirados na música chinesa/oriental, compõem uma trilha fenomenal que mistura o melhor de dois mundos. A flauta, instrumento amplamente utilizado em trilhas de filmes sobre kung fu, está presente em praticamente todas composições. Zimmer e Powell constroem faixas misturando diversos instrumentos de forma im0ecável!
Flautas, corais, harpas, sininhos, tambores, trombones, violinos auxiliam os compositores a criar uma trilha inspirada. As músicas conseguem elevar o animo dos espectadores e adicionar um dinamismo frenético para as cenas de ação. Além de compor temas super agitados, criam faixas carregadas por um ar melancólico e triste que intensificam o “golpe da lágrima” citado na parte do roteiro. Se os temas não são tristes ou agitados, são belos pela simplicidade dos arranjos e pela sentimentalidade que possui.
Tiro arriscado, mas certeiro
Mark Osborne e John Stevenson foram substituídos na direção pela estreante Jennifer Yuh. O antigo cargo da mulher era o de diretora do departamento de arte – certamente uma bela promoção. A cineasta marca pontos positivos em sua estreia. Ela abandonou os diálogos – marca registrada da direção anterior, e apostou com todas as fichas a riqueza e a quantidade de cenas de ação.
A coreografia das batalhas é bem original, porém extremamente caras para o orçamento do filme. A diretora aproveita o gênero do filme – em que tudo é possível, para movimentar as câmeras de maneira alucinante durante as lutas. Por tratar-se de uma animação extremamente cinética e inserção do efeito 3D estereoscópico ajudou a dinamizá-la ainda mais. Este é um dos únicos filmes que eu garanto que a experiência 3D é necessária para o melhor aproveitamento da diversão que o filme tem a oferecer. Além disto, a cineasta encaixa slow motions que são piadas por si só.
Yuh não tem medo de brincar com a linguagem cinematográfica. Diversas vezes a diretora cria piadas visuais com simples movimentos de câmera e edições oportunistas inteligentes. Até mesmo a escolha de planos lança referências diretas a elementos da cultura pop. Ela também deu o toque feminino que faltava para a franquia. Existe um toque muito humano na condução da origem de Po que dificilmente se encontraria em uma direção masculina. Outro toque muito interessante de sua direção acontece bem no início do filme durante a primeira batalha. Yuh sincroniza a luta com a música interagindo com elementos do próprio cenário. Ou seja, a cena de ação indiretamente cria a música que a acompanha. Vale lembrar que as escolhas dos diferentes tipos de animação que compõe o filme também foram ideias da diretora.
Duas vezes inacreditável
O retorno de “Kung Fu Panda” para as telonas é uma ótima dica para divertir as crianças. A simplicidade de sua narrativa conversa com o público que quer atingir e confesso que sou um fã dedicado de animações, pois elas fizeram parte de minha vida e sempre farão. Os adultos também deveriam dar uma chance a Po e seus colegas porque o divertimento é garantido e a experiência 3D é recompensadora. Em uma sociedade em que a infância está sendo extinta aos poucos graças ao processo de “adolescentização” pelo espelhamento de ídolos teen, totalmente desprovidos de talento e simplicidade, que atinge nossas crianças, o filme se consagra por resgatar a essência da infância – a diversão sem nenhum compromisso e preocupações acompanhadas pelo processo de aprendizagem simples, mas extremamente significativo e construtivo.