O Desprezo é simplesmente histórico. Em toda sua história, Hollywood sempre esteve atenta aos talentos do estrangeiro, trazendo os maiores nomes exóticos para engrandecer o cinema americano com novos clássicos – apesar de raramente esses cineastas realizarem suas obras-primas nessas co-produções. Com a Nouvelle Vague totalmente concretizada em questão de pouquíssimo tempo já influenciando até mesmo realizadores do sistema como Alfred Hitchcock em Os Pássaros, já era mais que tempo para os produtores americanos voltarem os olhos para os queridinhos que revolucionaram o cinema mundial.
Mesmo sendo um co-produção majoritariamente francesa e italiana, O Desprezo marcaria a primeira vez que Jean-Luc Godard trabalharia com um produtor americano, além de um orçamento alto e modelos mais concretos de produção. Iria, enfim, fazer um filme dentro das regras visando quebrar diversas delas. Odiando completamente a experiência, Godard conseguiu criar uma verdadeira obra-prima. Isso é simplesmente inegável até mesmo para os espectadores que mais detestam a filmografia do francês.
Uma História de Filmes
Cuidando do roteiro, Godard adapta o romance de Alberto Moravia trazendo um fino exercício de metalinguagem sobre a metalinguagem com a história de Paul (Michel Piccoli), um roteirista encurralado no dilema de tratar um roteiro sobre A Odisséia de Homero para um novo filme de Fritz Lang (que simplesmente interpreta ele mesmo). O principal problema está concentrado com o produtor ricaço, Jeremy Prokosch (Jack Palance) um americano folgado que nada entende sobre arte, além de claramente estar interessado sexualmente na esposa do roteirista, a bela Camille (Brigitte Bardot).
Filmes sobre metalinguagem geralmente são, ao mesmo tempo, encantadores e difíceis. Com O Desprezo, tudo isso é multiplicado por dez. Godard não faz um filme fácil e sabe bem disso, exigindo muita paciência do espectador para encarar com seriedade esse grupo antipático de pessoas ao longo de toda a narrativa na qual ele brinca bastante com o realismo e romantismo, além de inserir pitadas irônicas de tragédias gregas sob o olhar de deuses esquecidos.
Basicamente, Godard torna as poucas cenas em atos inteiros, focando em diálogos que parecem nunca sair do lugar, além da problemática do produtor americano sempre precisar do uso de uma intérprete, Francesca (Giorgia Moll), para se comunicar com Lang e Paul. Godard não usa meias-palavras para antagonizar os lados com muita rapidez já que a representação de Jeremy é absurdamente tosca. O produtor bonachão é um tarado assediador, além de ser totalmente estúpido.
Obviamente, o texto é uma crítica direta do sacrifício da liberdade criativa em grandes produções ordenadas pelo dinheiro de produtores ricos que comandam os rumos que o filme deverá tomar durante todo o processo de produção. Godard, totalmente estranho a esse sistema de produção, já que financiava as próprias criações, experimenta isso na pele justamente com O Desprezo, mas parece englobar todos os anos da turbulenta experiência que Fritz Lang experimentou quando trabalhou em Hollywood.
Apesar de demonizar o produtor até não poder mais, Godard guarda diversas surpresas que revelam a alma do filme: a narrativa concentrada na vida ordinária do casal Paul e Camille. O segundo ato inteiro é dedicado para mostrar uma gigantesca discussão sobre a súbita decisão de Camille em desistir de amar Paul, colocando em risco a vida que os dois teriam em um apartamento na Itália, fixando residência.
A motivação do ódio de Camille é tratada como um mistério, apesar de ser bastante óbvia a razão dessa mudança de temperamento da moça. Apesar disso, nada é claro para Paul que fica intrigado com a rispidez da esposa, jogando todo o futuro da aceitação do trabalho nas mãos da mulher. Paul é claramente desajustado e rapidamente Godard apresenta como ele lida com os problemas que surgem em seu caminho: com violência.
Com as agressões físicas, Godard coloca Paul em pé de igualdade com a figura repugnante de Jeremy, apesar de mensurar com eficiência o quão genuíno é o amor do roteirista por sua esposa. Ironicamente, a cena que apresenta os dois, trocando confidências amorosas, foi uma exigência do produtor americano do filme – que obviamente já detestava O Desprezo, temendo um fracasso comercial em solo americano caso não houvesse alguma nudez no longa.
A exigência foi tamanha que Bardot praticamente passa o segundo ato inteiro coberta apenas por toalhas, fazendo nus traseiros ocasionalmente. A discussão dos personagens é tão exaustiva que em pouco tempo, o espectador torce para que a narrativa da metalinguagem recomece. E assim que ela chega, em um glorioso terceiro ato, temos o ápice da obra retirando todas as características estacionárias da obra.
Se Godard já havia sido cruel nos dois primeiros atos, nada se compara com o terceiro, apesar dele ser o mais fácil para o espectador, pois o roteirista basicamente explica toda a situação do filme ao comparar o casamento de Paul com a situação de Odisseu e todo seu conflito interno sobre retornar ou não para Penélope. Apesar disso remover um pouco o brilho da obra, já entregando o jogo para o espectador antes do clímax, Godard cria uma situação desconfortável sobre a enorme suspeita que Paul sofre ao desconfiar de uma traição da esposa com o produtor Jeremy.
Definindo o destino dos personagens, sem oferecer qualquer possibilidade de redenção, Godard cria uma ironia final bastante poderosa com a resolução de todos os conflitos do filme rebaixando os personagens às suas completas insignificâncias. Somente Lang que resiste a tudo, somente a arte que sobrevive sem se preocupar com a pequenez humana, pois nela há o sentido maior do legado.
A enorme farsa complexa de Godard é bastante simples e também genial. Um mistério que não é misterioso.
Um Artista Controlado
Godard simplesmente se porta como um verdadeiro cineasta profissional em O Desprezo. Mas isso é apenas um truque para desviar a atenção do espectador, pois o diretor insere seus toques autorais já na primeira cena do filme, trazendo os créditos iniciais narrados em vez de apresentados por letreiros tradicionais. Além de um plano muito charmoso que acompanha diretamente a filmagem da filmagem do próprio Desprezo. Uma brincadeira criativa sempre típica da genialidade de Godard.
Trazendo muitas características de Viver a Vida, Godard usa a câmera com bastante elegância, dando extrema preferencia à encenação com plano bastante longos, mas nunca perdendo a mobilidade relativamente simples da câmera que explora cantos e cômodos. Isso é bastante expressivo no segundo ato, quando acompanhamos a intensa discussão do casal.
Aliás, nacionalista do jeito que é, Godard já infere a traição de Camille ao fazê-la beber discretamente Coca-Cola, a incriminando pelo sabor americano de Jeremy. É curioso vê-lo explorar tanto linhas cinematográficas tão distintas, já que ele é um caso fortíssimo de diretor fissurado pelo poder do corte, da montagem. Aqui, Godard explora o movimento da fluidez da câmera e, pela primeira vez, o poder de enquadramentos muito bem pensados em um equilíbrio visual formidável.
Simplesmente temos um filme lindo de assistir aqui, já que Godard, mesmo obrigado, sabe usar muito bem o Cinemascope, principalmente no terceiro ato. Nele, o diretor se vale de belezas naturais da ilha de Capri, além da arquitetura excêntrica da casa de Jeremy. Aqui, há até mesmo ótimas metáforas visuais através de uma encenação simples ao enquadrar Paul na rocha, refletindo sua persistência burra e imóvel, enquanto Camille nada nua pelo cintilante mar azul, inferindo o derradeiro fim daquele casamento.
De tempos em tempos, Godard insere algumas sequências rápidas de imagens, como se fossem flashbacks, talvez para refletir a neura de Paul, porém, dentro da obra, é apenas uma distração que tira o encanto de um ótimo trabalho de direção. Entretanto, as inserções inteligentes das estátuas de deuses gregos trazem certa ambiguidade no destino final dos personagens, afinal estariam eles sendo julgados pelas divindades mortas? Há qualquer controle no destino dessas figuras infelizes? Impossível saber. Infelizmente, outro nítido exagero é o uso da trilha musical de Georges Deleure que, apesar de realizar um excelente tema, Godard insiste em inserir em diversos momentos, principalmente no segundo ato, aproximando a discussão no limite da paciência do espectador.
Teste de Paciência
Talvez O Desprezo seja tão fascinante por ser um filme vivo. Ele é irritante e exagerado, mas inteligente e encantador. Godard nos faz uma verdadeira prova de fogo para aguentar a primeira hora do filme com a já tradicional narrativa diluída, além de cenas alongadas ao máximo em discussões sem fim. Mas, quando finalmente as coisas saem do ponto-morto, é impossível ficar indiferente a essa excelente obra-prima.
É uma das melhores criações de Godard que nos traz uma dose de desprezo muito eficiente em apaixonar o espectador.
O Desprezo (Le Mépris, França, Itália – 1963)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard, Alberto Moravia
Elenco: Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Jack Palance, Fritz Lang, Giorgia Moll
Gênero: Drama
Duração: 103 minutos