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Crítica | O Estranho que Nós Amamos

Sofia Coppola sempre teve uma visão única em seus filmes. Seu mais novo trabalho, O Estranho que Nós Amamos, é uma das maiores provas disto – tanto que conquistou a premiação de melhor diretora para ela em Cannes. Ainda que a diretora esteja acostumada em fazer adaptaçõesAs Virgens Suicidas é baseado em livro homônimo de Jeffery Eugenides e The Bling Ring foi inspirado em um artigo de Nancy Jo Sales -, a nova estreia é acompanhada de outro fator determinante para sua análise, além do livro de Thomas Cullinan que serve de inspiração para o roteiro: a existência de outro filme baseado na mesma obra, dirigido por Don Siegel e estrelado por Clint Eastwood.

A história base continua a mesma: durante a Guerra Civil Americana, um cabo da União é encontrado gravemente ferido no meio da floresta por Amy (Oona Laurence), uma jovem de 12 anos que faz parte de um internato dirigido por Martha Earnsworth (Nicole Kidman). Preocupada e comovida com a situação do cabo, chamado John McBurney (Colin Farrell), ela o carrega de volta até a casa onde vive com outras mulheres. Simpatizantes dos Confederados, elas vivem em uma situação de isolamento total, distante de suas famílias e fugindo da realidade da guerra até que ela termine. Entre professoras e alunas todas passam a conviver com o homem cuja personalidade e motivação são incertas, e suas vidas se transformam.

É nas estrelas do filme que encontramos a primeira mudança. O grande chamariz da versão de Siegel é o galã anti-heroico que conquistava as telonas da época, Clint Eastwood. Já a versão de Sofia Coppola e seu casting minucioso (que manteve sua parceria vindoura com Kirsten Dunst) revelam que seu filme segue outra direção, dando mais valor aos papeis femininos da história. A própria diretora assumiu, em diversas entrevistas, querer retratar a visão feminina da guerra e dos acontecimentos do livro. Mas ver o filme não é necessário para fazer estas são constatações. Na prática, o que muda?

Ao fazer o filme, Siegel preferiu seguir um caminho visceral, colocando diretamente e claramente ainda no trailer quais eram suas intenções. John é retratado como um prisioneiro daquelas mulheres, privadas e sedentas por contato masculino. Elas são ao mesmo tempo sedutoras para com ele, e traiçoeiras entre elas, trocando até tabefes dignos de efeitos sonoros altíssimos. Nada bobo, John se aproveita dessas seduções e abre caminho para conquistar a companhia – e muito mais – de todas elas. Outros homens, os soldados confederados principalmente, também fazem aparições mais importantes, entrando em conflito direto com John e trazendo violências mais explícitas ao roteiro.

O Estranho de Coppola, por outro lado, é muito sutil. A começar pela linguagem cinematográfica – ainda que ela tenha mantido ambientes escuros, suas sombras são mais suaves que as do primeiro filme. Quando aparecem, são bem usadas com significados. Muitas das vezes as faces dos personagens estão apenas parcialmente iluminadas, principalmente nas conversas entre o cabo e as professoras Martha e Edwina – isso quando John não participa de diálogos inteiros com a cabeça virada para o lado, só metade do rosto exposta. Uma das poucas cenas em que essa regra é quebrada é em uma interação honesta entre a ainda severa Martha e o soldado.

Ao decorrer do filme, percebe-se que esta é uma estratégia para mostrar que nós conhecemos pouquíssimo das intenções e motivações de cada personagem, algumas reveladas em momentos de ingenuidade e desejo, no caso de Edwina, outras mantendo-se apenas insinuações e dúvidas até os plot twists acontecerem.

Afinal, não é difícil deduzir, em determinado momento da trama, que John é um cafajeste – mas a profundidade dessa falha de personalidade leva tempo para ser explícita, e outras questões referentes à sua falta de caráter só aparecem mais tarde. John é colocado, efetivamente, como um estranho desconhecido, algo que não acontece da mesma forma com o personagem de Eastwood.

A única personagem que tem seus objetivos óbvios desde o início é Alicia. A garota de 18 anos é interpretada por Elle Fanning e demonstra um fascínio sem igual pelo soldado, inspirada pela descoberta de sua sexualidade. Olhando sempre de trás de mechas de cabelo e muitas vezes de baixo para cima, ela parece estar frequentemente analisando alguém com desdém ou tramando seu próximo passo, determinada em tê-lo para si.

A narrativa também é acompanhada por muitos planos abertos e raros closes – criando um distanciamento entre o espectador e o que ali acontece. Certos momentos evidenciam ainda mais nossa posição externa à trama, como quando John chega a casa pela primeira vez. Ali, vemos ele sendo carregado de longe desde a floresta enevoada. Depois as vemos carregando John para dento da casa por fora barras de ferro do portão – uma alusão clara ao aprisionamento dessas mulheres, mesmo que voluntário.

Outras cenas que apontam para esse aprisionamento, e mais ainda a ânsia pelo fim da guerra e pela liberdade, são as passadas na varanda. Uma das meninas se encontra ali observando o horizonte através de uma luneta. Essas cenas se repetem várias vezes no decorrer do filme, como se a casa fosse um barco em alto mar e ela estivesse procurando terra e salvação em meio à tempestade que acontece entre quatro paredes – talvez um soldado que a leve embora, ou apareça anunciando o fim da guerra. E mesmo ali, não a acompanhamos na observação – estamos sempre de frente, vendo-a e não o que ela vê, ás vezes mais próximos, ás vezes muito distantes.

Drama Histórico Negando a História

Para aqueles que assistiram o filme anterior ou leram o livro, a única ressalva à obra pode ser a escolha de Sofia Coppola em empregar apenas atrizes brancas para os papéis. Mesmo antes da estreia oficial, a diretora foi fortemente criticada por essa decisão, que não é fiel à história original.

A justificativa de Coppola foi a preferência por retirar a presença de escravos da casa para focar a história no núcleo feminino, por consequência removendo o papel de Hallie, uma escrava negra que também cai nas graças de John. Considerando a narrativa criada, a mudança não retira sentido dos acontecimentos – quem nunca viu a versão de Siegel provavelmente não sentirá falta.

Polêmicas à parte, no geral, o filme é muito bom. É uma história lenta, sem frenesi, com momentos precisos de reviravolta e agitação. É um daqueles filmes com que nos envolvemos facilmente, primeiro por sua beleza – o cenário principal é uma mansão histórica construída em 1846 que reaviva a arquitetura grega em seus detalhes, em Louisiana, e também a casa da atriz Jennifer Coolidge, em Nova Orelans – e então por seus mistérios. Um drama histórico que nos estimula a desvendar o destino de cada um dos personagens e nos recompensa quando prestamos a devida atenção – já que tudo está dito desde o início, se não em palavras, em imagens.

O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled, 2017 – EUA)

Direção: Sofia Coppola
Roteiro: Sofia Coppola, baseada no livro de Thomas Cullinan
Elenco: Colin Farrell, Nicole Kidman, Kirsten Dunst, Elle Fanning, Oona Laurence, Angourie Rice, Addison Riecke, Emma Howard, Wayne Pére, Matt Story, Joel Albin, Eric Ian
Gênero: Drama
Duração: 93 minutos

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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