Bastante comum encontrarmos obras cujas narrativas acabam perdendo-se em excessivamente complicadas tramas. Especialmente quando se trata de algum vilão, é seguro dizer que qualquer um que já tenha assistido mais de meia dúzia de filmes se perguntou “mas por que tudo isso, se ele poderia ter feito o seguinte?”. Dezenas de longas de James Bond estão aí para provar isso.
O Grande Lebowski apresenta justamente essa característica, mas ela é subvertida, transformada em um, se não o maior, dos acertos da obra através do grande senso de ironia dos irmãos Coen, que já é deixado bem claro nos minutos iniciais, quando ouvimos Sam Elliott divagar algumas vezes durante sua narração em off inicial, a qual já procura nos dizer: esse não é um filme sobre uma trama complexa, é um filme sobre como a complexidade tirou um “cara” de sua absoluta tranquilidade.
Após esse pequeno prelúdio acompanhado pela profunda voz de Elliot, conhecemos The Dude (Jeff Bridges), um sujeito que parece vestir sempre a primeira coisa que encontra em seu armário preenchido quase que exclusivamente de pijamas e um calçado como uma sandália ou melissa. Sua vida se resume a jogar boliche com seus amigos Walter (John Goodman) e Donny (Steve Buscemi) e fumar maconha em casa.
Tudo isso muda, claro, quando desconhecidos invadem sua casa, colocam sua cabeça na privada e urinam no seu tapete. Tendo sido confundido por alguém de mesmo nome, The Dude vai atrás desse outro Jeff Lebowski a fim de conseguir alguma compensação pelo tapete arruinado (ele realmente amava o tal tapete). Tudo o que consegue, porém, é se envolver em um complicado jogo de interesses envolvendo uma esposa sequestrada, niilistas, diretores de filmes pornôs e excêntricos artistas.
That’s just like, your opinion, man
À época de seu lançamento, no final dos anos 1990, O Grande Lebowski recebeu divisivas críticas, algumas das quais caíram em cima justamente do fato de grande parte dessa complexa história, com diversos personagens, não levar a absolutamente nada. Como dito antes, no entanto, essa intrincada trama sem grandes objetivos, é uma das grandes ironias construídas pelos Coen – o foco aqui é o Dude, que é rodeado por idiossincrasias, incluindo suas próprias. Existem aspectos claros de comédia do absurdo aqui, com características bastantes similares às de Fargo, especialmente no quesito de que nada parece que vai dar certo. A ironia, portanto, se faz presente nas situações, além, é claro, das falas de Dude, que, desde o início, realmente só queria seu tapete.
Com esse cenário construído, os Coen criam uma gama de personagens variados, cada um deles com personalidades bem estabelecidas, ainda que muitos sejam, essencialmente, unilaterais – mas veja, isso não chega a ser um deslize da obra, já que todos estão ali em função do protagonista, servindo como percalços ou pontos de virada dentro da história, dito isso, não há, de fato, motivos para se aprofundar em figuras como Maude (Julianne Moore) ou Donny, que está ali simplesmente para ouvir repetidos “cala a po**** da boca, Donny” ditos por Walter, o único personagem secundário que, de fato, ganha certa atenção.
Essa escolha narrativa se torna bastante óbvia se pegarmos o simples fato de que o Dude está sempre em cena (salvo em dois específicos e curtíssimos trechos) – em outras palavras, tudo gira em torno dele, esse é um recorte de sua vida, por mais estranha que ela seja – qualquer coisa além disso, na realidade, não importa. Assim sendo o grande foco permanece na reação do protagonista aos estranhos eventos nos quais ele acabou se envolvendo e não se a garota supostamente raptada irá aparecer, ou qual será o desfecho- do campeonato de boliche. Todos esses elementos estão ali a fim de realmente evidenciar o quão simples é The Dude.
This aggression will not stand, man
Então, além das ironias e situações inesperadas, o que faz O Grande Lebowski funcionar tão bem? Naturalmente, devemos levar em conta todo o elenco que, se encaixa na medida certa em seus respectivos papéis. Começando, claro, pelo próprio Jeff Bridges como Dude, que, segundo os Coen, somente era dirigido antes das filmagens quando perguntava se seu personagem havia fumado um antes de chegar até ali. Bridges encarna perfeitamente o retrato do descompromisso, ele é o que muitos chamariam de “vagabundo” – não tem um trabalho, joga boliche e fuma o dia inteiro e nada mais. Em essência, porém, trata-se do homem perfeitamente à vontade com sua vida – até que, claro, alguém urina em seu tapete. O que chama a atenção é a naturalidade da interpretação de Bridges, perfeitamente à vontade no papel, como se, de fato, estivesse apenas relaxando ali no set de filmagens.
Do outro lado temos o Walter de John Goodman, uma bomba prestes a explodir a qualquer momento. Curiosamente, apesar de toda a sua agressividade, ele parece sempre seguir o protagonista – a não ser quando está irritado com algo, nesses pontos ele ouve simplesmente a si próprio. Sempre com seus aviadores, o personagem de Goodman funciona como o exato contrapeso para Dude, há toques de alguém aproveitador, violento, enquanto o outro é simplesmente a paz personificada, querendo somente o que é dele. Não por acaso é Walter que funciona como o estopim para diversas das situações do filme, inclusive o envolvimento de Lebowski com Lebowski, algo que jamais aconteceria sem ele, já que Dude simplesmente deixaria a questão do tapete passar, eventualmente.
Já todo o restante, como mencionado anteriormente, apenas floreia esse cenário, o preenche com as estranhezas, fornecendo as inusitadas situações que tiram o protagonista de sua zona de conforto. Claro que os Coen utilizam as constantes quebras de expectativa, fornecidas por tais estranhas personalidades, para constituir o peculiar humor de sua obra. De fato, com isso, os irmãos conseguem entregar momentos únicos, como a sequência do furão (ou marmota, para o Dude), ou os peculiares trechos com Maude, que era simplesmente o que faltava para tudo se tornar uma loucura generalizada.
Assim como o Dude, todos esses personagens são escancaradamente resumidos por três elementos: como se vestem, onde vivem e pelas situações nas quais os encontramos. Bons exemplos disso são (o Grande) Lebowski (David Huddleston) e Karl Hungus (Peter Stormare) – o primeiro bem vestido em sua mansão, total oposto ao Dude e o segundo visto primeiro em uma piscina, simplesmente fazendo nada, resumindo, com bastante ironia, seu niilismo. Através dessas óbvias retratações, os Coen dispensam grandes explicações sobre o que são, construindo tudo através da imagem, deixando os diálogos para jogar toda a idiossincrasia possível.
Ironicamente, por mais surreal que isso tudo seja, grande parte dos personagens da obra foram inspirados em pessoas reais, inclusive o protagonista. Com isso, mesmo com toda a estranheza, há um toque de inesperada realidade nisso tudo, o que acaba complementando a escolha do diretor de fotografia, Roger Deakins, em trazer uma atmosfera mais suja, realista para o apartamento de Dude, perfeitamente contrapondo-se às sequências oníricas, que esbanjam luzes e cores. Aliás, é preciso notar como a direção ousa mais nesses trechos de alucinação/ sonho do protagonista, como se os diretores brincassem, experimentando enquadramentos e movimentos de câmera menos convencionais, que aumentam o tom surrealista dessas cenas – vide o quadro girando junto com a bola de boliche.
Essa mistura de tons contemporâneos com algo mais de época (intencional por parte dos Coen), da realidade com o onírico, acaba gerando um ar de anacronismo na obra, que quase nos impede de localizar exatamente o filme em certo ano, por mais que seja dito que a história se passa nos anos 1990. Basta olharmos para o telefone utilizado por Dude em diversos momentos da obra para enxergamos que a intenção era, de fato, criar essa amálgama anacrônica. Com isso é garantido que o filme não envelheça, perfeitamente se adequando a qualquer época.
The Dude Abides
O ciclo, então, se fecha quando o personagem de Sam Elliott novamente aparece em tela e retoma sua narração, que começou lá no início do filme. A história deixa de acompanhar Dude nesses instantes finais e somos automaticamente distanciados de toda essa história, enquanto o personagem tece comentários de cunho bastante pessoal sobre toda essa trama complexa que pegou o protagonista de surpresa. Nesse tom leve, descontraído, somos deixados, já entendendo que O Grande Lebowski é o tipo de filme para se assistir despretensiosamente – não que seja uma obra que busca o mero fugaz entretenimento, para ser esquecida logo após, muito pelo contrário.
Trata-se de uma comédia única, com toda a identidade dos Coen em sua construção, com ironia, constantes quebras de expectativa, surrealismo e um protagonista para lá de cativante – a tal ponto que, mesmo após a morte de um personagem, nos leva de volta para aquela tranquilidade de sempre – especialmente após toda aquela trama complexa se esvair, na maior ironia do filme, não nos levando a nada, retomando o ponto de que essa história é sobre The Dude e não sobre as coisas exageradamente complicadas da vida.
O Grande Lebowski (The Big Lebowski – EUA/ Reino Unido, 1998)
Direção: Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen
Elenco: Jeff Bridges, John Goodman, Julianne Moore, Steve Buscemi, David Huddleston, Philip Seymour Hoffman, Tara Reid, Peter Stormare, John Turturro, Sam Elliott
Gênero: Comédia
Duração: 117 min.