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Crítica | O Irlandês – A Máfia no Divã de Martin Scorsese

Poucos nomes do cinema americano são tão eficientes e lendários como Martin Scorsese. Desde que despontou como um dos principais cineastas por trás do movimento da Nova Hollywood na década de 70, o diretor nova-iorquino raramente fez um ruim. Na realidade, é difícil encontrar uma obra em sua vasta e diversificada carreira que fique abaixo de “ótimo”, oferecendo alguns dos melhores filmes da História do cinema americano. Se Scorsese tem um novo filme, os estômagos dos cinéfilos de carteirinha roncam de forma voraz.

E os fãs de Martin Scorsese certamente já ouviram falar muito de O Irlandês. Assim como o contemplativo Silêncio, seu longa anterior, é um projeto que o diretor luta para conseguir fazer há décadas; praticamente separado a sete chaves para Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino. Como a produção exigiria um orçamento elevado para usar efeitos visuais pesados no rejuvenescimento de seu elenco, a maioria dos estúdios de Hollywood rejeitou a oferta. Foi a oportunidade perfeita para a Netflix usar seus cofres aparentemente infinitos para bancar aquele que é, de longe, seu projeto mais prestigioso – além de um dos melhores filmes de 2019.

Baseada no livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, a trama é centrada no irlandês do título: Frank Sheeran (Robert De Niro). Ao longo de flashbacks e depoimentos, acompanhamos sua ascensão de motorista de caminhão até soldado da máfia e um dos grandes aliados do poderoso Russell Buffalino (Joe Pesci). A situação fica mais perigosa quando Frank e Buffalino formam uma aliança com o sindicalista Jimmy Hoffa (Al Pacino), uma das figuras políticas mais influentes e imprevisíveis dos EUA da década de 60.

Os Velhos Companheiros

O núcleo de O Irlandês traz Scorsese de volta ao ramo que a maioria dos fãs sempre o associou: filmes de máfia. O cineasta americano sempre lidou com o crime organizado em diferentes fases de sua carreira, seja como o ágil Caminhos Perigosos, o energético Os Bons Companheiros, o complexo Cassino ou o anárquico O Lobo de Wall Street (um tipo diferente de máfia, diga-se de passagem). Nunca se repetindo, o filme de 2019 representa Scorsese em sua fase mais madura e contemplativa: se o jovem Ray Liotta afirmava em Os Bons Companheiros que sempre sonhou em ser um gângster, o amargurado De Niro sofre com a solidão no fim da vida; Liotta e Leonardo DiCaprio quebravam a quarta parede para conversar com o espectador em um gesto de “ser maior do que a vida”, enquanto o Frank Sheeran de O Irlandês conversa com o público por simplesmente não ter mais com quem dialogar. É um atestado do amadurecimento de um dos grandes mestres do cinema americano.

Nessa ambiciosa saga de uma vida inteira, Scorsese conta com o roteirista Steven Zaillian (com quem colaborou no épico Gangues de Nova York) para traçar a longa narrativa de Sheeran. O resultado é um filme de 3h30, um luxo que estúdio algum concederia ao diretor em uma era dominada por super-heróis, mas que a Netflix certamente viu como benefício – afinal, a longa duração praticamente transforma o filme em uma minissérie, visto que será vista pela esmagadora maioria do público em suas televisões particulares. Com tanto material, Zaillian cria um universo rico em personagens e situações, ganhando tempo mais do que suficiente para nos apresentar à figura de Jimmy Hoffa e seu movimento – trazendo até mesmo uma metalinguagem ao contar com alguns personagens mais jovens revelando “nunca terem ouvido falar” no infame sindicalista. Como o próprio Frank afirma, as pessoas só sabem que ele desapareceu repentinamente; tendo sido dado morto, ainda que nunca comprovado.

É aí que reside a alma de O Irlandês. À medida em que Frank avança na Máfia, ele se torna um dos homens de confiança de Hoffa, e a narrativa avança até o ponto em que o protagonista se encontra pressionado entre o político e a máfia; já que a relação das duas partes passa a se tornar mais tensa com o desenrolar da trama. São características que Scorsese, um mestre absoluto da linguagem cinematográfica, transmite com maestria: vamos das tradicionais montagens com atos criminosos movidos a adrenalina (como a Netflix pagou tudo, e Scorsese nunca usou tantos travellings quanto aqui) até momentos mais intimistas: todo o ato final, que envolve um trabalho entre Frank e Hoffa, pode ser facilmente ser colocado como uma das coisas mais tensas que o diretor já comandou ao longo de sua carreira.

Vale apontar também que a duração de 3h30 é inevitavelmente sentida, mas perfeitamente equilibrada pela maior colaboradora de Scorsese: a montadora Thelma Schoomaker. A veterana ajuda a construir um ritmo sólido durante as passagens diferentes da narrativa, seja pelo dinamismo das montagens discutidas acima, ou nos aspectos mais quietos do filme: planos se alongam, cortes são usados para provocar paranoia (há um caso envolvendo o medo de uma bomba em um carro que é simplesmente brilhante) e a própria estrutura do velho Frank recontando todos os eventos ajuda a tornar a experiência aproveitável. Mas, novamente, as quase 4 horas são bem sentidas.

Mestres do Universo

Para os fãs de cinema, o premiado elenco principal de O Irlandês é motivo de celebração. Na verdade, não seria exagero algum defini-lo como um marco histórico: é a união de De Niro e Pacino (dois dos melhores atores do cinema americano) com Joe Pesci (que havia se aposentado) em um filme de Scorsese. De Niro surge como o grande protagonista, sendo rejuvenescido através de efeitos visuais por boa parte da trama (um investimento com resultados mistos, já que o ator parece um personagem de videogame em uma cena específica), entregando uma de suas performances mais multifacetadas em ano – e que ganha pontos pela alta carga dramática, especialmente nas cenas dedicadas à relação com sua filha, vivida por Anna Paquin em idade adulta.

Mas o grande destaque acaba voltado para seus dois colegas de cena. Pacino surge inspirado de uma maneira que não víamos há anos, afinal o veterano se encontrava em um modo “automático” por algum tempo. Na pele de Hoffa, Pacino traz a energia de um adolescente, . Em contraste, ver um envelhecido Pesci novamente é capaz de despertar nostalgia e já conferir imenso respeito à tela, e seu Russell Bufalino é uma figura ameaçadora e inquietante mesmo sem esforço – basta observar as duas ótimas cenas em que tenta ser carinhoso com a filha de Frank, mas cada gesto e presente surgem mais como ameaças do que agrados. Um elenco simplesmente irrepreensível, que conta ainda com bons trabalhos de Ray Romano, Jesse Plemmons, Bobby Cannavale, Stephen Graham e uma rápida participação de Harvey Keitel.

A Netflix pode se orgulhar intensamente de O Irlandês. É uma das obras mais maduras e contemplativas de Martin Scorsese, que entrega uma perfeita reinvenção de tudo o que entendemos como filme de máfia, agora com o olhar mais sóbrio e melancólico do tempo. Apesar da extensa duração, é um dos filmes mais imersivos e fascinantes do ano.

O Irlandês (The Irishman, EUA – 2019)

Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Steven Zaillian, baseado na obra de Charlie Brandt
Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Bobby Cannavale, Harvey Keitel, Ray Romano, Jesse Plemmons, Anna Paquin, Stephen Graham, Stephanie Kurtzuba
Gênero: Drama
Duração: 209 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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