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Crítica | Preacher – 1ª Temporada

Nunca li nenhuma edição da popular série de quadrinhos Preacher, criação de Gareth Ennis para o selo Vertigo da DC, mas basta uma espiada na orelha da capa ou um breve sumário da história para se dar conta de que é um material bastante controverso; ainda mais para ganhar uma adaptação audiovisual – e 10 vezes mais se estamos falando de uma para a televisão aberta. Mas é isso que os showrunners Seth Rogen, Evan Goldenberg e Sam Catlin partiram para fazer no final de 2013, e com a primeira temporada da série ganhando vida pela AMC só agora em 2016, temos um dos programas mais únicos e diferentes de toda a grade de programação.

Mesmo não conhecendo bem os quadrinhos, sei o suficiente para ter a noção de que muita coisa foi modificada nesta adaptação, então me manterei centrado apenas na história destes 10 episódios. Ela começa quando a entidade conhecida como Gênesis, o fruto de uma cria proibida entre um Anjo e um Demônio, escapa do Céu e cruza a Terra em busca de um hospedeiro. Ela encontra um na forma de Jesse Custer (Dominic Cooper), um pastor do Texas que busca honrar o legado de seu pai ao tocar a pequena igreja de sua cidadezinha enquanto constantemente luta para apagar seu passado criminoso, que está sempre batendo à porta na figura de sua persistente ex-namorada Tulipa O’Hare (Ruth Negga). Quando o Gênesis entra no corpo de Jesse, ele ganha a misteriosa habilidade de controlar outros a seu redor, que obedecem todas as palavras que saem de sua boca.

Una isso ao fato de termos o vampiro irlandês fanfarrão Cassidy (Joseph Gilgun), a dupla de Anjos Fiore e DeBlanc (Tom Brooke e Anatol Yusef) e o inescrupuloso empresário Odin Quincannon (Jackie Earle Haley) e temos o palco armado para uma narrativa incomum e que constantemente surpreende o espectador com sua inventividade e ideias completamente fora de série. É um leque de personagens tão carismáticos e divertidos que parecem ter saído das mentes de Quentin Tarantino e dos Irmãos Coen; que são mencionados o tempo todo, aliás.

O problema é que essa temporada poderia ter sido resolvida em 5 episódios e o efeito seria o mesmo. A plot que envolve Tulipa desesperadamente tentando convencer Jesse a se juntar a ela e dar cabo em um ex-parceiro que os queimou em um antigo serviço é arrastada e dá voltas e voltas até chegar no mesmo ponto de partida, como bem evidenciado na decepcionante mudança de opinião de Jesse ao final do terceiro episódio. O fato de a trinca de Jesse, Tulipa e Cassidy funcionar tão bem chega a ser irritante pela inabilidade dos produtores em unirem suas histórias, rendendo um tremendo desperdício de potencial; Jesse e Tulipa, Tulipa e Cassidy e Jesse e Cassidy são as combinações, mas nunca temos o trio que, acredito eu, possa tornar-se um dos mais memoráveis da Televisão.

Mas felizmente Preacher consegue entreter, mesmo quando nitidamente preso em uma narrativa que não anda pra frente e sofre com o efeito “enchimento de linguiça”. A começar por Jesse Custer, a quem Dominic Cooper fornece uma performance carismática e na medida certa, como um sujeito problemático que reage de formas curiosas aos diversos eventos sobrenaturais que batem a sua porta. A dinâmica do Pastor e sua habilidade do Gênesis rendem ótimas situações, como a antológica cena em que ameaça um agressor no banheiro de um posto de gasolina, o conselho de “abrir o coração” e até a inesperadamente sombria reviravolta em que, acidentalmente, manda um dos personagens ir ao Inferno – para seu azar, o Gênesis não é muito bom com metáforas.

Tudo melhora com os personagens que rodeiam Jesse, a começar pelo mais sensacional vampiro que tive o prazer de conhecer nos últimos anos. Vivido por Joseph Gilgun com intensa ironia e um sotaque acertadíssimo, Cassidy garante momentos de humor negro hilários, desde referências ininterruptas à cultura pop (“O Grande Lebowski é superestimado!”), um talento especialmente notável para a carnificina e hábitos estranhos – genial a ideia deste o tempo todo se esconder do sol com chapéus enormes e protetores solares -, Cassidy é o ponto alto absoluto e rende uma dinâmica fantástica com Cooper.

Já Ruth Negga é prejudicada pelo arco fraquíssimo no qual Tulipa é inserida aqui, que fica no vai e vem de convencer Jesse a lhe ajudar em sua missão – pra se ter ideia, em um episódio a personagem é tão jogada que ela passa todas as cenas cuidando de um cachorro, sem mais nem menos. Isso quase afeta a excelente performance de Negga, que faz de Tulipa uma criança crescida que acabou por tornar-se uma badass, vide sua memorável introdução no primeiro episódio e todas as cenas na qual ela é forçada a interagir com os amigos de igreja de Jesse, o que inclui uma relação de inimizade e ciúmes com a Emily de Lucy Griffiths. Negga é excelente, só queria que ela tivesse mais o que fazer aqui.

Outro personagem coadjuvante que acaba por render algumas das melhores cenas da série é o garoto Eugene Root (Ian Colletti), infamemente apelidado de Cara de Cu, graças à sua horrenda deformação na boca que fora provocada por uma tentativa de suicídio. É um personagem que provoca extrema empatia e dó pelo bullying e agressividade com que sofre constantemente, fruto também da ótima performance de Colletti, que consegue transmitir o medo e insegurança de Eugene mesmo com os quilos de maquigem em seu rosto; cuja voz abafada ganha até mesmo legendas em inglês. Aliás, um dos momentos mais belíssimos da série é quando Eugene passa a ganhar uma redenção por parte das outras crianças da escola (fruto do poder do Gênesis), que o surpreendem com um intimista show de fogos de artifício.

Grande surpresa também a competência de Seth Rogen e Evan Goldenberg. Quem conhece o trabalho da dupla, que é composto majoritariamente de comédias stoner e nonsense, jamais pensaria que seriam capazes de tirar do chapéu uma série com cenas de ação consistentes e uma estética visual que impressiona a cada episódio. Claramente inspirados no trabalho de Vince Gilligan em Breaking Bad (temos referências a Albuquerque, a presença do compositor Dave Porter e até o uso do mesmo cenário do icônico episódio Ozymandias), a dupla impressiona pelas composições criativas e a paleta de cor que privilegia o verde e a temperatura de cor mais quente, algo diretamente relacionado à geografia da série e as misteriosas cenas que envolvem um cowboy que aparentemente não tem nenhuma conexão com o restante da série… Até o NONO episódio nos revelar de forma brilhante qual é seu papel aqui.

Rogen e Goldenberg ainda mostram seu talento para ação em duas sequências do primeiro episódio. Uma delas envolve Jesse enfrentando um grupo de arruaceiros em uma brutal briga de bar, que surpreende justamente por mostrar as até então desconhecidas habilidades de luta do protagonista. A outra, claro, traz o vampiro Cassidy em uma situação que começa como uma festa social em um avião em pleno ar com um bando de estranhos, apenas para que tudo se revele como uma armadilha destes para capturá-lo. O que se segue é uma pancadaria muito bem coreografada e montada, e ainda divertida por contar com a sagacidade de Gilgun.

A série contina a impressionar no quesito quando tivemos a luta entre Cassidy e os Anjos Fiore e DeBlanc dentro de uma igreja em See, que envolve um bizarro ritual e membros sendo decepados por motosserras. Se isso já não fosse o maior gore da série, ela se supera em Sundowner, onde Guillermo Navarro traz toda a sua habilidade sangrenta de Hannibal para um confronto inusitado e completamente ousado entre Jesse, Fiore, DeBlanc, Cassidy e um outro Anjo que é enviado atrás do grupo. Sempre que um dos Anjos morre, outro corpo se manifesta e assim por diante, rendendo uma carnificina inesperadamente divertida e sensacional, ainda mais pelo plano em que Navarro coloca a câmera através de um buraco na parede. O plano final com todos os corpos “descartados” é marcante.

Então, chegamos ao episódio final da temporada. Não quero entrar em spoilers, mas é certo dizer que Rogen, Goldenberg e Caitlin tomaram uma decisão radical que certamente vai irritar muitos e agradar outros. É uma reviravolta narrativa que imeditamente dá um novo início à série, que agora promete seguir uma plot mais similar à da HQ, onde a trinca de Jesse, Cassidy e Tulipa embarcam em uma road trip surreal.

A primeira temporada de Preacher peca pela inconsistência e o ritmo enrolado de seus primeiros episódios, mas torna a visita muito agradável e divertida graças a seu inacreditável leque de personagens e as ideias brilhantes que traz da HQ de Gareth Ennis. Fica a torcida para que a já anunciada 2ª temporada faça um uso ainda melhor e mais satisfatório destes.

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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