Quando você assiste ao primeiro Rocky pela primeira vez, com toda a certeza poderá afirmar que não parece um filme que nenhum pouco com um filme que precisava ter uma continuação depois de um final tão primoroso. Mas como você vê hoje em dia algo que se tornou uma franquia e já gerou um spin-off com o filme Creed de Ryan Coogler, essa certeza e afirmação já não valem de nada frente à longa paixão que Sylvester Stallone manteve pelo personagem e sua história para voltar para ela tantas vezes ao longo de sua carreira. Ao ponto de ter chegado aqui em seu quarto filme e levantar-se a inevitável questão, aonde mais essa história pode ir?!
Uma história que já passou pelo belo conto de superação e conquistando a figuração universal de importância e amor no primeiro filme; a busca para continuar lutando pelo que se ama no segundo filme; a quebra das correntes de fama e limitações geradas pelo medo no terceiro filme; agora para onde Rocky e a grande figura de perseverança e superação que se tornou podem ir? Ora, enfrentar a União Soviética comunista é claro!
Afinal quem poderia ser um maior rival do que o próprio Mr. T para o Garanhão Italiano do que senão o gigante sueco Dolph Ludgreen interpretando o maior pugilista Russo que o cinema já viu, Ivan Drago. E é exatamente isso que acontece aqui quando o temível novo oponente dá as caras nos EUA e desafia o cinturão de campeão mundial de Rocky. Que com certeza se apresenta como o seu maior desafio até hoje, que o vai levar ao limite e além de seu treino físico e mental para conseguir ter a chance de derrotar o aparentemente indestrutível oponente.
Redefinindo o boxe
Como toda franquia que se alonga por vários filmes é indispensável o intuito de uma querer se inovar e implementar com o tempo. Se a franquia 007 está aí como a prova perfeita disso então a franquia Rocky também compartilhou de um destino semelhante, onde cada filme com o passar dos anos buscava cada um trazer algo de novo, não só respectivamente à história mas também em tom e estilo. E Stallone sendo o tipo de diretor que sempre tentou fazer coisas novas por detrás da câmera, ele decide seguir um caminho que já havia parcialmente começado em Rocky III em querer pegar elementos pop cultural da época e integrar no estilo do filme.
Se em Rocky III isso era com a presença da música Eye of the Tiger da Survivor quase substituindo o tema principal de Bill Conti, em Rocky IV vamos para uma enxurrada de bizarrices pop dos anos 80 feitas para querer demonstrar essa mudança de estilo para os filmes da franquia e mostrar sua “atualidade”, só que extrapola para outro nível aqui que mais resulta em ser apenas risivelmente brega e cafona, o que não tira o senso de entretenimento que o filme consegue entregar até hoje, mesmo que isso sacrifique grande parte do seu drama.
Drama que por muito pouco não parece estar presente no que se pode chamar de uma narrativa consistente e palpável dentro do filme, ou uma completa ausência desta. Com Stallone fazendo essa estrutura cheia de constantes montagens musicais que parecem ser feitas exclusivamente para suprir a falta de um roteiro com conteúdo para um filme de uma hora e meia de duração o que só resulta no filme soar completamente bizarro. E que faz o filme mais parecer um álbum musical em forma de videoclipes editados em um filme longa-metragem.
Com canções que vão de Living in America de James Brown, que mais parece um musical inserido no meio do filme; No Way Out de Robert Tepper cujo brilhantismo é de ser uma montagem sobre Rocky se lembrando de suas antigas montagens de treino, genial; Burning Hearts da Survivor que perfeitamente sumariza o tema de ocidente vs oriente do filme quando vemos Rocky colocando os pés pela primeira vez na gelada Rússia; e claro, a já icônica Hearts on Fire de John Cafferty e Vince DiCola que basicamente se torna no novo tema principal do filme e que toca na montagem de treino mais brega porém ótima do filme.
E mesmo não sendo nenhum Bill Conti que fez o brilhante tema icônico da franquia desde o primeiro filme com Gonna Fly Now, DiCola faz um bom trabalho substituto aqui com seus acordes mais pop e tecno como se fosse uma trilha de um filme de ficção científica punk futurista. E vendo por uma perspectiva musical, Rocky IV na verdade é bem decente nesse quesito, com as ótimas letras de suas músicas sendo bem integradas dentro da história contada no filme, por mais estranho que possa parecer, e realiza o desejo principal de Stallone em querer dar uma nova cara para Rocky no cinema.
Um Gancho dramático
Todos os investimentos aqui foram feitos para isso, tanto que Rocky IV tinha sido até então o filme mais caro da franquia e se mostra querer ser esse espetáculo e comemoração do personagem e sua história, mesmo que tornando este num musical indireto é que a bizarrice das decisões de Stallone começam, ainda mais dentro de um filme que parece não ter quase conteúdo algum para sustentar a até interessante idéia que tem. Ao mesmo tempo que mostra ser um projeto feito com total paixão e dedicação de seu criador e seus atores, longe de ser algo feito para bancar um cheque mensal para todo mundo.
O que faz o filme entrar naquela mesma categoria de filmes como Comando para Matar de Mark L. Lester ou o próprio Stallone Cobra de ambos Stallone e George P. Cosmatos, filmes que não importa o quão brega e cafona eles possam ser, pois ainda conseguem grandes produções que mostram a dedicação de seus criadores por detrás delas e que inevitavelmente conseguem possuir o poder de divertir seu público.
Uma dedicação bem presente na marca de Stallone e o imenso carinho que ele possui para com essa história ainda se mostra bem presente por mais que não gostem de dar crédito, ou que o próprio filme não deixa parecer com suas constantes interrupções sejam musicais ou alguma piadota envolvendo Paulie e seu robô. Mas sem esquecer ou ignorar suas origens dramáticas, dedicando uma boa parcela de momentos chaves de diálogo entre Rocky e algum dos coadjuvantes de ouro que os filmes sempre tiveram, e que demonstra uma genuína progressão evolutiva da história e vida de cada um dos personagens até aqui.
Seja com Apollo Creed, outrora um grande rival antagonista e agora amigos e aliado de Rocky, com Carl Weathers ainda brilhando charme e carisma no icônico personagem e que agora mostra suas dúvidas e medos de forma sempre convincente e palpável perante sua fama e legado que vai deixar para trás, o que o leva para a impactante cena de sua luta com Drago que com certeza deixou uma verdadeira cicatriz emocional em todos os fãs até hoje. Tanto ao ponto de seu legado mais tarde ganhar um spin off com os ótimos filmes Creed.
Ou até com personagens mais menores como Duke (Tony Burton), o outrora treinador de Apollo e agora se tornando o treinador de Rocky. Ao mesmo tempo em que o próprio Rocky demonstra criar mais e mais independência e profissionalismo em seu treino físico e mental mostrando um amadurecimento natural do personagem muito diferente do que vimos como um cobrador de dívidas da máfia no filme original, e que claro continua sendo brilhantemente interpretado por Stallone.
Em contra partida, temos bem mais do mesmo com os personagens de Adrien e Paulie, com a esposa voltando a mostrar suas dúvidas e preocupações sobre se o marido deve mesmo ou não lutar, para no final voltar atrás e apoia-lo até o fim, mas Talia Shire continua convencendo 100% no drama de sua personagem. Enquanto seu cunhado à essa altura já se tornou a chacota ambulante de todo mundo, mas Burt Young é tão perfeito no papel que a gente faz vista grossa para isso, e constantemente nos divertimos com sua presença sempre hilária, pelo menos dessa vez ele tem uma namorada como algo novo, mesmo que ela seja um robô.
Guerra Fria no Ringue
Mas o irônico é que a robô criada talvez seja um personagem bem mais humano se formos comparar com o grande oponente do filme, Drago, que se mostra sendo outro rival de personalidade marcante da franquia, e um que consegue ser bem mais divertido, letal e interessante que o Mr. T como o maníaco Clubber Lang fora em Rocky III. Mesmo que Lundgren apenas fale um apanhado de só sete frases ao longo de todo o filme, ele conquista com sua presença imponente e expressão que parece feito de pedra sólida e completamente ameaçadora. Uma perfeita representação da máquina indestrutível e convicta criada pelos melhores esforços da URSS, e uma completamente caricata também dentro dos exageros do filme.
Mas um exagero e ridicularização que quase parecem soar como propositais dentro do roteiro de Stallone ao querer criar essas caricaturas capitalistas e comunistas representando o ridículo do conflito de nações que ainda era um tema e evento histórico decorrente na época, e que o filme busca demonstrar no que pode se chamar de sua “mise-en-scène” e certas caracterizações, afinal o ridículo robô empregada de Paulie não está ali à toa em querer mostrar a superprodução tecnológica ao nível do ridículo.
Se ainda não acreditam, apenas veja a luta de Apollo vs Drago como perfeito exemplo disso, onde de um lado você vê o espetáculo e pomposidade do Ocidente em querer criar um verdadeiro circo de espetáculo antes da luta, e com Apollo se vestindo como George Washington em seu famoso short estrelado enquanto grita: “I WANT YOU”, reminiscente do primeiro filme e claro homenageando a famosa propaganda da segunda guerra.
Enquanto do outro lado com Drago vemos a frieza na forma de um ser humano programado somente para uma coisa, vencer e destruir. E onde suas cenas de treinamento que vemos mais a frente no filme remetem à uma construção de uma verdadeira máquina inanimada em emoções. Caricaturando perfeitamente o feito de que a corrida armamentista de superioridade entre ambas as nações conseguiu chegar ao ponto de construir seus lutadores de boxe para serem a disputa física entre as nações.
Stallone com certeza estava fissurado nessa época com a Rússia e temas da guerra fria, tanto que ele ironicamente quis implementar muito disso em Rambo 3, um dos poucos lembrados da franquia onde o herói ajudava o povo Mujahedeen do Afeganistão contra as forças invasoras da URSS, basicamente uma grande propaganda cheia de testosterona e suor contra o conflito bélico na região ainda consequente das corridas armamentistas de ambas nações.
Enquanto aqui ele busca criar essa grande metáfora de duas nações opositoras políticas confrontando seu inevitável o colapso de seu sistema econômico em meio à sua modernização, no final de uma Guerra Fria que durou décadas e que quase terminou em uma destruição mútua. Uma constante metaforização dentro do filme ao ponto de você quase pode interpretar que cada soco e round da luta final representa um evento chave da guerra fria. O primeiro soco de Drago? A crise dos mísseis de Cuba. O primeiro round ganho de Rocky? O homem pisando na lua, e por aí vai.
Mas também é a forma sutil de Stallone querer dizer em sua mensagem, sobre o que essa grande luta entre Rocky e Drago irá significar de verdade, dentro e fora do filme. Que esse conflito histórico, que por muito tempo aparentava ser infinito, agora só o boxe, o esporte, ou o cinema, a forma de entretenimento, podem trazer um fim e apaziguamento à isso. Ou como o próprio Rocky diz lindamente em seu belíssimo discurso final que faz valer todo o filme: “Se eu posso mudar, e vocês podem mudar, todos podem mudar!” enquanto ele fala para todo o público URSS que no início da luta estavam esbravejando pela cabeça dele no ringue, e no final terminaram o exaltando como um herói. Impossível não abrir um sorriso de satisfação.
Brega demais mas bom demais
É com esse mesmo sorriso com que assistimos Rocky IV. Um filme completamente atrapalhado em seu tom e idéias que o fazem parecer mais um filme musical do que um filme de boxe. Mas que ainda assim um filme feito com total paixão e que indiscutivelmente possui uma personalidade muito própria dentre todos os filmes da franquia. Que pode ter a estrutura mais bizarra possível, mas seus personagens e sua história ainda nos lembra o melhor que esse universo tem de melhor para oferecer, e que nos desperta a estranha vontade de correr uma montanha gelada acima e gritar “DRAGO”!
E quem diria que esse, o filme mais galhofa da franquia, seria o filme que viria originar a trama intensamente dramática do vindouro Creed 2 não é mesmo? Que meio que engrandece e valida a existência desse bizarro mas divertidíssimo filme.
Rocky IV (Idem, EUA – 1985)
Direção: Sylvester Stallone
Roteiro: Sylvester Stallone
Elenco: Sylvester Stallone, Talia Shire, Burt Young, Carl Weathers, Dolph Lundgren, Brigitte Nielsen, Tony Burton, Michael Pataki
Duração: 91 min.