É preciso tempo para aperfeiçoar a técnica. Às vezes, muito tempo. Depois de 1992, com o lançamento de Baraka, Ron Fricke levaria quase duas décadas para elaborar Samsara, o segundo documentário de uma possível trilogia seguindo a mesma proposta estética do filme anterior. Apesar de ainda não trazer uma narrativa, narração over, entrevistas ou a maioria dos ingredientes de linguagem que estão presentes em um documentário convencional, o diretor oferece a si mesmo o luxo de uma modelagem menos experimental neste novo filme.
Apesar de se valer de uma linguagem muito popularizada por Godfrey Reggio em na trilogia Qatsi, Fricke certamente é um autor menos sutil. Isso já era explícito com Baraka, mas em Samsara se torna ainda mais evidente, desviando da proposta do “documentário puro” ao alinhar em uma vertente ideológica clara, mas carregando diversas mensagens consigo conferindo um retrato desconjuntado para a obra completa.
As Texturas da Vida
De início, Fricke parece realmente interessado em dar uma conotação distinta para Samsara, se afastando dos temas religiosos e dos rituais explorados no primeiro ato de Baraka. Essa renovação de imagem contribui para que este documentário seja bastante belo, apesar do olhar um pouco mais viciado nos enquadramentos sempre muito equilibrados que o diretor/fotógrafo oferece.
Aliás, justamente por ser um diretor de fotografia tão experiente que temos essa proposta visual sinestésica no primeiro ato da obra: as texturas da vida. Para enxergar, obviamente, é preciso luz e a manipulação correta da mesma para potencializar a imagem artística de obras essencialmente visuais. Por isso, há um longo segmento exibindo belos lugares espalhados em todo o mundo, tanto naturais quanto construídos por diferentes culturas, e o comportamento da luz sobre todos eles. Isso é realizado com uma proeza técnica fabulosa através da junção eficiente do formato de 70mm
O resultado flerta com o metafísico, oferecendo uma meditação para o espectador, também muito auxiliado no relaxamento pela bela trilha musical de três compositores diferentes que adequam a música para cada segmento. O contato com o natural de paraísos perdidos, além de templos antiquíssimos oferecem esse retrato naturalista da obra que evoca sim um contraste novamente maniqueísta com a vida moderna dos grandes aglomerados urbanos – assim como acontecia em Baraka.
Mas se antes Fricke simplesmente pesava muito a mão na direção do longa, isso certamente é mais abrandado em Samsara. Mesmo sacrificando a proposta de ser uma obra distinta ao abordar a luz, texturas, natureza e a arte da religião – como no caso do trabalho incrível das mandalas elaboradas com perfeição por monges tibetanos, há muita consciência revisitar temas abordados insatisfatoriamente em Baraka sobre a vida moderna, ainda que haja uma intensa atmosfera incomodamente similar a Koyaanisqatsi.
Nesse segmento, o metafísico desaparece para dar lugar ao realismo pessimista da vida urbana, da dependência de todos os setores para manter a máquina funcionando, além do lazer diminuto se comparado ao esforço mundano empregado por horas em linhas de produção maçantes e repetitivas. A polêmica envolvendo a indústria alimentícia animal é revisitada, mas dessa vez com imagens mais interessantes e poderosas sem a necessidade completa a apelação emocional barata.
As imagens trazem o funcionamento da indústria com um olhar mais frio, mas revelador sobre como esses seres vivos são tratados sem dignidade em um modelo de produção zumbificante. Aliás, é justamente sobre a desumanização do ser humano que Fricke aborda aqui com bastante competência. Após mostrar a infelicidade do trabalho viciado, o diretor revela a “artificialização” das relações e da própria humanidade a partir do consumo exacerbado, da cirurgia plástica, da fabricação de bonecas sexuais realistas até a completa mudança de gênero sexual com as famosas ladyboys da Tailândia.
Passado isto, o diretor mira o próximo segmento na sobre o impacto ambiental da ação humana. Aqui certamente há a elaboração mais fraca e superficial do longa. Ele aborda principalmente Dubai por conta das ilhas artificiais e do campo de ski totalmente coberto, mas a crítica só se torna forte quando realiza um excepcional enquadramento mostrando mulheres vestidas com a burca logo na frente de uma propaganda de cuecas com modelos musculosos semi-nus na profundidade de campo.
Por repetir a estrutura de Baraka, novamente há uma elaboração forte sobre a arte sacra e das religiões em geral para fechar o longa, tentando retomar aquela natureza metafísica de outrora que levava o espectador até a meditação. O poderio visual retorna com imagens espetaculares capturando até mesmo alguns ritos como o do batismo e de danças tradicionais indonésias e indianas. Novamente, vale como uma documentação bela e respeitosa que nos lembra o quão rico é nosso mundo repleto de etnias e belezas peculiares.
Baraka 2.0
Ron Fricke deve ter sido assombrado pelos bobos erros cometidos em Baraka para inventar o novo manifesto artístico em Samsara que retoma diversos dos temas trabalhados anteriormente. Certamente há um aprimoramento estético e da direção da Fricke em ser mais claro com o que quer dizer aqui. Mesmo que seja repetitivo e redundante em partes para quem já tenha visto o documentário de 1992, Fricke consegue provar em Samsara que também consegue tornar imagens mais poderosas que mil palavras.
Samsara (Idem, EUA – 2011)
Direção: Ron Fricke
Roteiro: Ron Fricke, Mark Magidson
Gênero: Documentário
Duração: 101 minutos