É raro um cineasta se aventurar no abstrato. Apesar do cinema poder comportar essa forma de arte, como visto em ápice na obra-prima de Alain Resnais, O Ano Passado em Marienbad, não é nada comum nos depararmos com obas deste tipo. Muito alinhada ao cinema arthouse, o abstrato praticamente nunca é abordado em Hollywood, tirando raras exceções de sequências surreais nos filmes de David Lynch.
De certa forma, Sem Medo de Viver é um belo “bug no sistema” ao fazer uma miscigenação estranha aproveitando conceitos abstratos enquanto trabalha em uma narrativa clássica como qualquer outra. Peter Weir deve ter feito seu filme mais autoral com esse experimento curioso que desafia o espectador a todo momento.
Sem Medo de Morrer
Saído da mente de Rafael Yglesias, um roteirista sem muitas habilidades excepcionais, é surpreendente o grau de humanidade e mistério que Sem Medo de Viver carrega consigo. A narrativa acompanha Max Klein (interpretado maravilhosamente por Jeff Bridges) e seu futuro cheio de consequências surreais e imprevisíveis. Por uma boa parte do longa, praticamente não sabemos nada sobre Klein, apenas que ele sobreviveu a um recente desastre aéreo conseguindo salvar um punhado significativo de pessoas.
Ao contrário de obras que envolvem jornadas de vida após enormes tragédias, Yglesias aposta em um conflito genial sobre o impacto psicológico que um evento desses traz em suas vítimas. Por conta disso, vemos o protagonista não acreditar de fato que está vivo, mas sim vagando como um morto na Terra, apesar de conseguir interagir com todas as pessoas ao seu redor, além de manipular objetos.
Nesse “renascimento” que dura até o último minuto de exibição, temos um protagonista muito complexo, de poucas palavras e bastante desagradável. Esse é o segundo filme de Peter Weir que acompanhamos a jornada de um personagem que não faz a menor questão em nos gerar empatia como visto em A Costa do Mosquito. Portanto, o desafio para conseguir transmitir a mensagem da obra é bastante elevado.
O interessante é a adição de alguns fatores sobrenaturais no meio disso tudo, sobre uma força invisível, mas presente ao longo do filme inteiro. Basicamente, através de situações narrativas inteligentes, vemos Max acreditar que é invulnerável a certos perigos que antes com certeza o teriam matado. Sem o menor apego a tudo e aos outros, se comportando como um zumbi abençoado, Max não consegue se conectar novamente a sua família e se torna um estranho em sua própria casa.
Outras problemáticas surgem quando ele não consegue sentir empatia por outros, o tornando um homem cruel. Isso é ordenado com o núcleo da burocracia envolvendo um processo de indenização contra a companhia aérea. Apesar de ser a parte menos interessante da obra, ela contribui para modelar o excêntrico personagem, além de mostrar a complexidade moral de um processo de compensação monetária através de uma tragédia. Funciona bem como uma comparação entre a frieza do protagonista com a crueldade ética do processo.
Para balancear isso, vemos que Max é chamado de O Bom Samaritano por ter conseguido salvar tantas pessoas depois do acidente, visto como heróis. Os sobreviventes nutrem uma enorme admiração pelo homem e se sentem seguros próximos dele, como se Max fosse o Messias em pessoa. E aí que entra um jogo de opostos fascinante, pois, com essas pessoas, Max consegue se conectar e sentir prazer em estar vivo.
O filme se transforma com a inserção do núcleo do psicólogo Bill Perlman contratado pela companhia para conseguir tratar das vítimas. Apesar de funcionar como um instrumento narrativo, Bill permite a junção dos opostos perfeitos para florescer uma relação que se transforma na alma do filme. Desse modo, Max conhece Carla Rodrigo, uma das sobreviventes mais impactadas pelo acidente já que acabou perdendo o filho de dois anos no desastre.
Ele, o destemido desconectado da realidade, passa a tirar Carla da enorme depressão que se afundou, temendo todos os prazeres da vida por conta da síndrome de pânico que desenvolveu. Com diálogos fascinantes, há ótimas ponderações sobre o viver e o contato íntimo com a religião, sobre o papel do divino e também pela razão dos dois estarem vivos enquanto tantos outros morreram.
Inevitavelmente, nessa troca voluntária de carinho que devolve, gradativamente, as deficiências que os dois adquiriram, ambos se apaixonam conseguindo trazer mais conflitos para o roteiro trabalhar durante o resto do filme. O que torna a escrita de Yglesias tão real são os constantes esforços em dar consequências para os atos de Max, criando cenas muitíssimo poderosas como uma envolvendo uma batida de carro para provar um ponto gerando uma espetacular catarse nos personagens.
É um trabalho belo que vai a fundo em questões existencialistas, sobre o luto e a morte. Portanto, é sim uma obra de conteúdo bastante abstrato, afinal esses conceitos são interpretados de modos distintos por uma vasta gama de espectadores. Simplesmente uma das histórias de superação mais complexas que já tenha visto.
Aurora
Afirmo categoricamente que Peter Weir é um mestre subestimado e desconhecido da Sétima Arte. Não consigo compreender que alguns de seus filmes sejam tão adorados por cinéfilos como O Show de Truman e A Sociedade dos Poetas Mortos, enquanto A Testemunha, A Costa do Mosquito e Sem Medo de Viver sejam gemas preciosas totalmente jogadas ao léu, como se fossem obras secundárias de um diretor importantíssimo para a indústria.
Nessa minha atual jornada para compreender o cinema de Peter Weir como um todo, a cada filme que assisto, mais fico convencido sobre seu talento expressivo em ser um autor cinematográfico silencioso. Existem diretores que preferem outra abordagem para mostrar o diferencial do seu serviço. Obviamente, não há o menor problema nisso, mas Weir simplesmente foge disso, adotando um estilo bastante clássico de direção da técnica invisível.
Mesmo assim, é bastante evidente que Sem Medo de Viver seja seu filme mais autoral. Os primeiros minutos simplesmente são arrebatadores em exibir Max experimentando o que é estar vivo “novamente”. São várias imagens poderosas que evocam sinestesia como as lufadas de vento no rosto enquanto dirige, ou do contato com a terra alterando a areia para lama em um simples ato, do prazer de comer o “fruto proibido” já estabelecendo bem o flerte com a morte que Max carrega ou revisitando um amor esquecido do passado.
Tudo isso serve para comprovar que o personagem existe fisicamente, mas simplesmente crê que seja um “fantasma”. Logo, se é um fantasma, há o sentimento de invulnerabilidade que impulsiona a única sensação que faz Max se sentir vivo: a explosão de adrenalina. Por isso, Weir consegue fazer sequências maravilhosas nas quais Max se arrisca a um enorme perigo para sentir que pertence ao mundo dos vivos.
Weir mantém essa intimidade na direção, definindo cenas leves entre Max e Carla e as contrastantes de Max com o resto das pessoas. Weir, como costuma fazer em todos seus filmes até aquele ano, não se preocupa com a opulência visual do filme, mas cria imagens inteligentes e um modo peculiar para enquadrar os personagens durante os diálogos sempre cheios de energia. Isso se sobressai na cena destinada a uma reunião dos sobreviventes, na qual Weir captura diversas reações sobre o debate rendendo um dos momentos mais poderosos da atriz Rosie Perez que até chegou a ser indicada ao Oscar pelo papel.
Há momentos de conquista completa de encenação, como quando Carla finalmente acredita ser um “fantasma” também. Nesse trecho belíssimo, a personagem se aproxima de uma mãe com um bebê no colo. Ela respira o cheirinho da criança e a acaricia levemente, sem ser percebida nem por ele, nem pela mãe do garoto. É simplesmente arrebatador, pois Weir cria uma atmosfera sagrada e depressiva simplesmente única tornando o luto da mulher em algo físico que todos podemos sentir.
Outra escolha acertada é sobre a montagem do acontecimento da tragédia. Weir apresenta somente o pós-desastre, mostrando o efeito disso na vida das vítimas. Mas, vez ou outra, através de elaboradas sequências de sonho, Weir exibe o aconteceu dentro do avião durante a queda. São cenas frenéticas apresentando lados pouco explorados em filmes sobre o assunto. É através dela que conhecemos um elemento sobrenatural simbolizado por um forte foco de luz que invade e preenche Max.
Isso acontece outras duas vezes durante a obra – todas bem justificados, nas quais Max se põe em situações perigosas para flertar com o divino. É somente aí que entendemos o conceito do toque divino e do desafio ao superior que Max sente. Tudo isso culmina para os últimos cinco minutos de projeção nos quais temos uma das mais belas catarses que eu já vi em um filme.
Weir finalmente revela os momentos finais do voo, traçando três linhas temporais em montagem paralela para potencializar a epifania do protagonista. Facilmente, essa é a melhor sequência de qualquer filme que busca representar o efeito devastador de um desastre aéreo. Momentos antes do caos, Weir mostra uma beleza encantadora de amor ao próximo e carinho demonstrados por Max, acalmando um garotinho. Nisso, o caos surge poder devastador, arrancando pedaços do avião, arrancando passageiros de suas poltronas sendo lançados violentamente ao ar, da fuselagem se retorcendo e das múltiplas explosões internas queimando as pessoas.
Weir simplesmente cria uma obra-prima poderosíssima que consegue nos impactar no final de forma avassaladora. Sublime. Possivelmente seu melhor trabalho como diretor cinematográfico.
Estar Vivo
É curioso como Sem Medo de Viver seja tão esquecido em listas sobre clássicos dos anos 1990. Apesar de ser um filme bastante denso, difícil e moderadamente lento, sua mensagem é tão poderosa e profunda, com personagens tão intrigantes e uma direção apurada de Weir, certamente seria válido de menção em algumas listas sobre os filmes dessa década. Mas isso simplesmente não ocorre.
Então, caso também nunca tenha ouvido falar de Sem Medo de Viver, apenas dê uma chance ao filme. A catarse final tem potencial de te marcar pelo resto da vida:
Sentir medo, é estar vivo.
Sem Medo de Viver (Fearless, EUA – 1993)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Rafael Yglesias
Elenco: Jeff Bridges, Isabella Rossellini, Rosie Perez, Tom Hulce, John Turturro, Benicio Del Toro
Gênero: Drama
Duração: 122 minutos